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Desafios da prática forense: O prazo do art. 523 e a intimação pelo Domicílio Judicial Eletrônico

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado em 24 de setembro de 2025 10:40

Deparamo-nos, recentemente, com um pronunciamento em cumprimento provisório de sentença, determinando a intimação da parte para pagamento, "na forma dos arts. 513, § 2º, I, c/c 523, ambos do CPC", observado o prazo de "15 dias corridos". A intimação ainda foi encaminhada diretamente à parte, via Domicílio Judicial Eletrônico, apesar de haver advogado regularmente constituído nos autos.

Não é preciso muito para imaginar as repercussões práticas prejudiciais dessa receita desastrosa. A parte, que se pressupõe leiga, recebe a intimação para pagar e registra a leitura. Por não compreender adequadamente do que se trata e quais são as consequências da inércia, ou, ainda, por crer que seu advogado, contratado para defender seus interesses, está ciente de tudo que ocorre no processo, a parte não o comunica.

De uma só vez, perdem-se dois prazos. A dívida é acrescida de multa e honorários, cada um de 10%, e se torna indiscutível. Logo mais, a parte é surpreendida por um bloqueio em sua conta ou pela visita de um oficial de justiça. Pobre do advogado que precisará explicar uma aberração dessas para seu cliente.

Duas questões teóricas, mas com profundas implicações práticas, se apresentam: o prazo para pagamento do art. 523 do CPC realmente se conta em dias corridos? A intimação eletrônica encaminhada diretamente para a parte é válida?

Houve (e aparentemente ainda há, pois o despacho é recente) quem entendesse que o prazo de pagamento não se conta em dias úteis, conforme o art. 219, do CPC. Basicamente porque o ato de pagar teria natureza de direito material, competindo à parte praticá-lo e não ao advogado. Diferente seria o prazo para apresentar a impugnação ao cumprimento de sentença, este sim de natureza processual e contado em dias úteis.

Ou seja, de uma só intimação, surgiriam dois prazos com naturezas distintas: o primeiro para pagar, de quinze dias corridos, e o segundo para impugnar, de quinze dias úteis, que tem início imediatamente após o encerramento do anterior, sem nova intimação (art. 525, CPC).

Felizmente, essa linha de entendimento não prevaleceu por muito tempo. Mas a discussão precisou chegar ao STJ, no REsp 1.708.348/RJ1, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze. Na ocasião, concluiu a 3ª turma que o prazo do art. 523 do CPC é de natureza processual e deve ser contado em dias úteis.

Em linhas gerais, decidiu-se que "Conquanto o pagamento seja ato a ser praticado pela parte, a intimação para o cumprimento voluntário da sentença ocorre, como regra, na pessoa do advogado constituído nos autos (CPC/15, art. 513, § 2º, I), fato que, inevitavelmente, acarreta um ônus ao causídico, o qual deverá comunicar ao seu cliente não só o resultado desfavorável da demanda, como também as próprias consequências jurídicas da ausência de cumprimento da sentença no respectivo prazo legal". Ainda, "não seria razoável fazer a contagem dos primeiros 15 dias para o pagamento voluntário do débito em dias corridos, se considerar o prazo de natureza material, e, após o transcurso desse prazo, contar os 15 dias subsequentes, para a apresentação da impugnação, em dias úteis, por se tratar de prazo processual".

Além disso, "a intimação para o cumprimento de sentença, independentemente de quem seja o destinatário, tem como finalidade a prática de um ato processual, pois, além de estar previsto na própria legislação processual (CPC), também traz consequências para o processo, caso não seja adimplido o débito no prazo legal, tais como a incidência de multa, fixação de honorários advocatícios, possibilidade de penhora de bens e valores, início do prazo para impugnação ao cumprimento de sentença, dentre outras". 

Atualmente, ao menos no âmbito dos tribunais, esse entendimento vem sendo seguido de forma unânime, de modo que é realmente injustificável um pronunciamento como esse, com menção a dias corridos.

A segunda questão, sobre a validade da intimação eletrônica encaminhada diretamente à parte, a respeito de um prazo processual, mesmo havendo advogado regularmente constituído nos autos, é um pouco mais tortuosa.

Não raras vezes nos últimos anos, éramos surpreendidos pelos clientes, que nos informavam terem recebido, via portal eletrônico dos sistemas dos tribunais, intimações a respeito de despachos, decisões, sentenças, enfim. 

Para nossa surpresa, passaram a surgir decisões legitimando essa prática, valendo-se de interpretações perigosas a respeito de dispositivos como o art. 246, § 1º, CPC, que obriga empresas públicas e privadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações.

Qualificamos como interpretações perigosas, fazendo eco ao desabafo da Prof. Teresa Arruda Alvim e de João Ricardo Camargo, feito em outro artigo publicado no Migalhas: "Discussões a respeito de prazos, de forma de contagem dos prazos, de forma de estabelecer termos iniciais e termos finais são nocivas. E, ademais, não há nenhum valor agregado do ponto de vista ético a nenhuma das duas, das três ou das quatro possíveis soluções! Nada justifica, portanto, que se perca tempo com criar ondas para surfistas, naquilo que deveria ser um lago tranquilo, para permitir a navegação"2.

O processo não é ambiente para criação de armadilhas aos advogados e, especialmente, às partes. É o ambiente para a materialização de direitos. Dentre inúmeras possíveis interpretações, sempre há de se prestigiar aquela mais benéfica à parte, à consecução da finalidade maior do processo. Não é, como diz a Prof. Teresa e João Camargo, "saudável para o sistema que os processualistas dediquem suas energias para discutir sobre prazos. Quanto menos dúvidas houver, melhor para todos."3

Isso se aplica também aos juízes e tribunais, que são, todos, irrestritamente, processualistas por excelência, na medida em que vivem, respiram o processo, no exercício diário da função jurisdicional que lhes cabe.

Dito isso, a intimação para pagamento, nos moldes do art. 523 do CPC, deve observar o art. 513, § 2º, isto é, deve ser feita preferencialmente pelo Diário da Justiça4, na pessoa do advogado constituído nos autos (inciso I). Quando não estiver representada por advogado, aí sim, tem lugar a intimação pessoal ou por edital (incisos II a IV). Ou, ainda - e nesta hipótese a intimação pessoal é obrigatória, sob pena de nulidade absoluta - quando o pedido de cumprimento da sentença tiver sido formulado após um ano de seu trânsito em julgado (art. 513, § 4º)5

Não fosse a letra da lei suficiente, o art. 18 da resolução CNJ 455/22, na redação dada pela resolução 569/24, prevê que o Domicílio Judicial Eletrônico será utilizado "exclusivamente para citação por meio eletrônico e comunicações processuais que exijam vista, ciência ou intimação pessoal da parte ou de terceiros". A intimação para pagamento, ainda que seja o ato que instaura o contraditório na fase de cumprimento de sentença, não é citação, tampouco ostenta natureza de direito material, mas, sim, processual, como visto.

Em resumo: o prazo para pagamento, previsto no art. 523 do CPC, é contado em dias úteis, porquanto ostenta natureza processual. A intimação é feita, preferencialmente, na pessoa do advogado e não da parte, ressalvadas as hipóteses legais que justificam a intimação por outros meios.Isso se aplica também aos juízes e tribunais, que são, todos, irrestritamente, processualistas por excelência, na medida em que vivem, respiram o processo, no exercício diário da função jurisdicional que lhes cabe.

_______

1 STJ. REsp 1.708.348/RJ. Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma. J. em 25/6/19. DJe 1/8/19.

2 Disponível aqui.

3 Idem.

4 Atualmente, no Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN).

5 O que tem razão de ser, conforme pondera Cássio Scarpinella Bueno: "O dispositivo evita que o devedor seja tolhido de surpresa, mediante intimação para cumprimento de sentença depois de fluído esse prazo de um ano, que o legislador entendeu razoável. Findo esse período, não mais se pode exigir do devedor - e de seu advogado - que a intimação possa ser feita na pessoa deste último, presumindo o legislador que o transcurso do tempo pode ter implicado em rompimento do vínculo entre o advogado e seu constituinte, dificultado a comunicação entre ambos e a ciência real ao devedor do início do prazo, que pode se dar a qualquer momento mediante requerimento do credor". (BUENO, Cássio Scarpinella. Comentários ao código de processo civil. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 596/597)