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Tendências do Processo Civil

Novas tendências e julgamentos inovadores do processo civil.

Marcelo Pacheco Machado, Zulmar Duarte de Oliveira Junior, Fernando da Fonseca Gajardoni, Andre Vasconcelos Roque e Luiz Dellore
Texto de autoria de Marcelo Pacheco Machado, Zulmar Duarte e Fernando Gajardoni A cena real é a seguinte. Advogado chega para sessão de julgamento, pede preferência, e ao ver seu caso no fim da fila, acompanha o órgão colegiado na apreciação de admissibilidade e mérito de dezenas de recursos. Sessão começa. Sala absolutamente lotada. Longos cumprimentos. Os minutos, e até as horas, passam. Os casos e os debates não se apresentam por completo na mente dos espectadores distraídos. Desinteressados quanto ao resultado das vidas alheias. Apenas frases e ideias, votos e debates, intermitentemente chamam a atenção. Aqueles sentados ali, simplesmente esperam sua vez. Até que um caso se destaca pela qualidade do contraditório. Sustentação oral, voto do relator e debates. Um julgamento verdadeiramente colegiado. Atento ao caso, à prova e ao direito. Debate-se como se deve debater. Mais de uma hora. Um exemplo de atendimento ao escopo do sistema recursal. Julgamento que verdadeiramente estende a garantia do acesso à justiça e permite pleno reexame por parte do órgão colegiado, para remediar eventuais equívocos na avaliação dos fatos e do direito. Mais do que isso, uma prova do potencial dos recursos em uniformizar a aplicação do direito. Gerando unidade e previsibilidade no sistema jurídico1. Até agora o enredo perfeito para ressaltar a relevância dos recursos no sistema de Justiça. Até que todos são surpreendidos ao escutarem menção a um número, valor. Escapa de alguém informação essencial. A dívida discutida naquele caso, lindamente debatido em Tribunal, era de menos de R$ 1.800,00. O que nos transporta, imediatamente, de uma situação de enlevo jurídico para a mais fria incredulidade matemática. Basta uma conta rudimentar, estimativa, e levando em consideração tudo e mais um pouco, para se constatar que aqueles seis desembargadores que participavam do julgamento, mais o espectador do Ministério Público, custariam, apenas naquela hora de julgamento, valor superior ao da causa debatida. Isso sem se considerar todas as outras horas levadas até se chegar lá e sem se considerar os custos dos demais servidores e da manutenção do Palácio da Justiça relativamente a aquele caso2. Sim. Por mais que um sistema de justiça adequado não possa prescindir dos recursos e, especialmente do recurso de apelação, é uma verdade incontornável que os recursos representam significativos custos, pagos pela sociedade. No caso em comento, o povo brasileiro, por meio dos tributos que recolhe e dos repasses para o Judiciário, subsidiou anos de atuação jurisdicional naquela causa. Talvez até dezenas de milhares de reais foram gastos numa causa que, se bem sucedida, poderá permitir ao autor o recebimento de 2 mil reais. Valor superado apenas pela sessão de julgamento da apelação. Mas isso não é todo o custo. Há também o consumo de tempo. Tempo fisiológico para a adequada extensão do contraditório em segundo grau de jurisdição e, não raro, tempo patológico decorrente das dilações indevidas decorrentes das limitações físicas dos tribunais, cada vez mais abarrotados. Não podemos ignorar o quanto o tempo necessário para os recursos retarda a solução de questões relevantes para a sociedade, negócios estagnados, perpetua-se a incerteza nas relações subjetivas. Tudo isso com reflexos negativos para a sociedade e relevantes impactos econômicos. A solução, portanto, é mais do que óbvia. O ululante. Temos de restringir a admissibilidade dos recursos, garantir acesso adequado aos tribunais para as causas de maior repercussão e barrar o acesso, desde logo, do diminuto, social e economicamente irrelevante. Não porque isso é o melhor modelo, mas porque se trata de uma imposição da racionalidade. O Judiciário ideal é economicamente inviável e, portanto, devemos focar no mais importante. Trabalhar do melhor modo com os recursos escassos que temos. O direito estrangeiro nos traz referências quanto à necessidade de restrição do direito de recorrer, como uma forma de otimização do exercício da jurisdição. O Access to Justice Act of 1999 esclarece que a interposição do recurso de apelação na Inglaterra pressupõe a prévia obtenção de uma "permissão para apelar", a qual seria concedida a partir de uma análise a respeito da relevância do recurso interposto3-4. O sistema americano segue ideologia similar. Relevante precedente da Suprema Corte datado da década de 1940 declara que o direito ao um julgamento proveniente de mais de uma corte é matéria de cortesia e não necessariamente configura "ingrediente da Justiça". Com base nisso, cada estado tem liberdade para criar filtros e restringir a admissibilidade para a apelação, tanto na matéria cível quanto criminal, sem que isso implique em ofensa à garantia do devido processo legal5. A mesma tendência pode ser observada no sistema processual alemão, especialmente a partir da reforma de 2001, na qual a ZPO foi alterada com a finalidade de reduzir as hipóteses de admissibilidade recursal6. Em síntese, ficou definido que os tribunais não deveriam receber de recurso nas causas que não excedessem 20.000 euros (Nichtzulassungsbeschwerde) ou não apresentassem questão fundamental7. Até mesmo o problemático sistema processual italiano aceitou restrições, estabelecendo filtros para o recurso de cassação8. Todas essas referências, decorrentes de outros sistemas jurídicos, poderiam ter sido tratadas com mais atenção pelo legislador. Mesmo porque, não se pode afirmar peremptoriamente que a decisão colegiada de segundo grau será melhor do que a decisão individual objeto de revisão, sendo que na realidade o contrário pode ocorrer9. O Código de Processo Civil de 2015 traz novidades em vários quadrantes, mas não toca na ferida. Timidamente tenta restringir o agravo (CPC, art. 1015), sem sucesso, com o contra-ataque no Superior Tribunal de Justiça e da taxatividade mitigada10. O excesso de recursos e a incapacidade de os tribunais lidarem adequadamente com as causas que recebem é ponto inquestionável. Também o é a inviabilidade de mais e mais gastos com a Justiça, e criação de novos órgãos e tribunais, às custas dos investimentos necessários em saneamento, educação, num país pobre como o Brasil. Convocamos, portanto, a comunidade jurídica e nossos legisladores a refletirem sobre a necessidade de estabelecermos filtros ao recurso de apelação, limitando-o em valor e relevância da causa11, para que possamos ter perante os tribunais ambiente adequado para o reexame das causas relevantes, atendendo adequadamente aos escopos dos recursos12. __________ 1 A respeito dos fundamentos históricos, cf. Chiovenda, Principios de derecho processal civil, vol. II, p. 495. Para posições mais recentes, cf.Comoglio, Ferri e Taruffo, Lezioni sul processo civile, 2ª ed., p. 781; e Flávio Cheim Jorge, Teoria geral dos recuros cíveis, 3ª ed., p. 101 e ss. 2 A conta é a seguinte. Imaginando-se subsídios de R$ 35 mil mensais, pagos por 13 meses mais 2/3 de férias, chegamos ao valor anual de R$ 478.331,00. Considerando dois meses de férias e 20 dias do recesso forense, temos 10 meses e 10 dias totais ou aproximadamente 227 dias úteis de trabalho, nos quais o expediente de 12 às 18h horas leva ao total de 1816 horas anuais. Assim chegamos ao valor mínimo de R$ 263,40 por hora. Valor que multiplicado pelos 7 presentes totalizaria R$ 1.843,80 consumidos naquela hora de excelente julgamento. É importante ressaltar que, ao julgamento do caso, bastaria a presença de três magistrados. Todavia, como ocorre em vários tribunais pelo Brasil, havia naquela sessão a presença de 6, entre juízes convocados e desembargadores, atendendo a continuações de julgamento e garantindo presença para eventuais julgamentos estendidos, nos termos do artigo 942 do Código de PRocesso Civil. 3 Cfr. Rule 52.3 (6) (b) CPR. Cf. ZUCKERMAN, Zuckerman on civil procedure, London, 2006, p. 850; e ANDREWS, The modern civil process. Judicial and alternative forms of dispute resolution in England, Tübingen, 2008, p. 153. 4 Relativamente ao sistema inglês, Jolowicz ressalta exatamente esta mudança de perspectiva, pela qual a reforma inglesa transformou o recurso de apelação, de direito subjetivo do sucumbente em uma mera liberalidade da corte. Jolowicz, On civil procedure, Cambridge: Cambrigde University Press, 2000, p. 271. 5 Cf. Cobbledick v. United States, 309 U.S. 323, 324-25, 60 S.Ct. 540, 541, 84 L. Ed. 783 (1940) 6 cf. Remo Caponi, "La reforma dei mezzi d'impugnazione", in Riv. Trim., 2012, 4, 1159-1160. 7 Nas causas de até 600 euros, o juiz de primeiro grau passou a ter poderes para determinar, de modo vinculante, a admissibilidade de recurso de apelação e permitir a recorribilidade somente nos casos de ser identificada questão fundamental ou oportunidade para que o tribunal uniformize a interpretação ou melhore o direito. Além disso, o art. 522, 2 e 3, da ZPO prescreve que o juiz de segundo grau, imediatamente, ao receber o apelo em qualquer causa pode inadmiti-lo se estiver convencido de que (1) o apelo não tem nenhuma chance de sucesso (keine Aussicht auf Erfolg), (2) a causa não tem nenhum significado fundamental-axiológico, (3) a decisão da causa em segundo grau não representaria evolução do direito ou uniformização da jurisprudência. 8 Foi isso que defendeu Marcelo Pacheco Machado em "Reformas no recurso de apelação: como a Itália escolheu enfrentar seus problemas e como o Brasil não", RePro 243/505. 9 Vide CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil: as relações processuais; a relação processual ordinária de cognição. Com anotações de Enrico Tullio Liebman. Traduzido por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. v. 2, p. 119. 10 A este respeito tivemos a oportunidade de escrever - Acesso em 9/72019. 11 A proposta ideal, pensamos, é limitar a admissibilidade da apelação às causas que tiverem repercussão econômica superior a 40 salários mínimos ou para as causas que demonstrarem questão social ou jurídica relevante fundamental. Ex. Liberdades civis, questões de gênero, raça ou situações com potencial de formar causas repetitivas. 12 Obviamente, não se desconhece quem defenda o duplo grau de jurisdição como garantia constitucional e/ou convencional (sobre o tema: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Execução e recursos: comentários ao CPC de 2015. 2 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 894/895). Ainda assim, a quetão pode ser objeto de alteração pelo legislador (infra)constitucional, sendo uma escolha política.  
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque, Luiz Dellore, Zulmar Duarte de Oliveira Jr. e Marcelo Pacheco Machado Continuando com a nossa temática da semana passada1, em que buscamos reavaliar a garantia do acesso à justiça sob a perspectiva do interesse processual e da possibilidade de prévia solução extrajudicial dos litígios, agora voltamos nossos olhos para os Juizados Especiais. Como se sabe, o procedimento nos Juizados Especiais é gratuito - ao menos em 1º grau de jurisdição. Nesse sentido, estabelece o art. 54 da lei 9.099/1995 que o "acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas". Ainda, de acordo com o art. 55 da mesma lei, a "sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé". A situação, como se sabe, é bem diferente em segundo grau de jurisdição. Para a interposição do recurso inominado contra a sentença, salvo os casos de concessão de gratuidade de justiça ao recorrente, exige-se o recolhimento de custas, inclusive pelos atos anteriormente praticados em primeiro grau (art. 54, parágrafo único, da lei 9.099/1995). Ademais, se o recorrente for vencido também em grau recursal, estará sujeito ao pagamento de honorários ao advogado do recorrido, que serão fixados entre 10% e 20% da condenação ou do valor corrigido da causa (art. 55, parte final, da mesma lei). O regime é o mesmo nos Juizados Especiais Federais e da Fazenda Pública, por conta da aplicação subsidiária da lei 9.099/1995, determinada pelas leis que regulam o processo nessas duas esferas do Poder Judiciário (respectivamente, art. 1º da lei 10.259/2001 e art. 27 da lei 12.153/2009). Costuma-se justificar esse regime especial, em que as custas processuais somente serão cobradas na eventualidade de ser interposto o recurso inominado e os honorários de sucumbência somente serão arbitrados se vencido o recorrente, na garantia de acesso à justiça. Afirma-se que, se fossem cobradas custas para o acesso aos Juizados Especiais, muitas demandas deixariam de ser submetidas ao Poder Judiciário pelo obstáculo econômico daí decorrente. O problema é que a solução adotada pelo legislador ao longo do tempo se mostrou propensa a estimular o demandismo - ou seja, o ingresso de ações judiciais em que o autor tem ciência de que não tem razão ou de que poderia resolver o problema em sede extrajudicial, mas prefere se dirigir ao Poder Judiciário simplesmente porque não custa nada e tem a possibilidade de até mesmo receber alguma compensação por isso (por exemplo, indenizações por danos morais, que também estão presentes na maior parte das demandas perante os Juizados em que se pleiteia dano material). Ainda que faltem estatísticas para aferir exatamente quais casos poderiam se enquadrar nesta categoria, trata-se de realidade que não pode ser ignorada, já que estimulada por uma posição processual sem maiores riscos ou responsabilidades. Além disso, sob a perspectiva financeiro-orçamentária do Estado, esse sistema de custeio tende a ser injusto com quem nunca faz uso ou faz pouquíssimo uso da Justiça, na medida em que obriga todos os cidadãos a, indiretamente, custearem as despesas com a manutenção dos serviços judiciários2. Ainda que tal situação não seja imputável exclusivamente ao Juizados Especiais, o gráfico abaixo, de percentual do PIB investido no Poder Judiciário, faz pensar, em todas as suas perspectivas de acesso, até que ponto se justificam os gastos expressivos que o Brasil vem suportando com a prestação da jurisdição: Diante desse quadro, consideramos que uma das tendências contemporâneas do processo civil no Brasil tem sido revisitar os riscos e benefícios econômicos para os usuários do serviço disponibilizado pelo Poder Judiciário, a fim de assegurar o acesso responsável e adequado - e não desmedido - à Justiça3. Nessa direção, podemos citar como exemplo paradigmático a Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017) que, entre outras inovações: (i) alterou o art. 789 da CLT para estabelecer a cobrança de custas para o acesso à Justiça do Trabalho (ressalvados os casos de concessão de gratuidade de justiça à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo); e (ii) acrescentou o art. 791-A à CLT para estipular a fixação de honorários de advogado sucumbenciais. Segundo levantamento realizado pelo TST, o número de reclamações trabalhistas no ano de 2018 - o primeiro após a entrada em vigor da Reforma Trabalhista - caiu cerca de 34%, o que tem sido atribuído sobretudo aos riscos econômicos assumidos pelo demandante, caso saia derrotado. Confira-se o gráfico abaixo: (Fonte: Revista Veja) Outro exemplo importante encontra-se no Código de Processo Civil, na medida em que o seu art. 292, V, ao indicar que o valor da causa deve contemplar o montante pretendido a título de danos morais, tem sido interpretado no sentido de vedar o pedido genérico de indenização por essa parcela4. Consequentemente, passa o demandante a recolher custas com base no pedido apresentando, bem como, via sucumbência, pela diferença entre o postulado a título de danos morais e o fixado pela decisão5. Como não poderia deixar de ser, o acesso irrestrito aos Juizados Especiais também tem sido alvo de debates. Nessa direção, recentemente foi aprovado no Senado Federal o PLS 227/2018, que altera o art. 54 da lei 9.099/1995 para estabelecer a possibilidade de cobrança de custas para o cumprimento de ato judicial por oficial de justiça, ficando ressalvados os casos de parte beneficiária de gratuidade de justiça. Aludido projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, passando então a tramitar como PL 3.191/2019 e aguarda as próximas etapas do processo legislativo. Conquanto tímida e pensada inicialmente apenas como uma forma se assegurar o reembolso aos Oficiais de Justiça das despesas relativas às diligências que têm de cumprir em decorrência de mandados expedidos pelos Juizados Especiais, conforme Justificativa apresentada junto ao PLS 227/2018 pelo Sen. Hélio José (Pros/DF), trata-se de proposta que promove alguma relativização no regime de isenção irrestrito que tem vigorado até o momento nesta esfera. Porém, acreditamos que o ideal seria uma alteração legislativa que responsabilizasse o autor pelos custos do processo sempre que perdedor na sua demanda. Poderiam existir diversos modelos para isso, mas sugerimos aquele em que o autor não precisaria pagar custas no início da demanda, ao protocolar a petição inicial. Mas, na hipótese de improcedência, a sentença já o condenaria nos encargos da sucumbência6. Como em tudo na vida, o autor avaliaria o risco de sua iniciativa antes do ingresso do processo nos juizados especiais, na perspectiva de que, acaso vencido, será responsabilizado pelas custas processuais e honorários advocatícios7. Note-se que, também sob a perspectiva do réu, sua derrota implicaria condenação nas custas processuais e honorários advocatícios, o que poderia servir como mais um incentivo para que ele se dispusesse a resolver extrajudicialmente a questão ou, pelo menos, estivesse aberto a uma autocomposição antes da sentença. O que não parece viável nos dias de hoje, com Juizados Especiais congestionados e despesas elevadas com o Poder Judiciário, é permanecermos apegados ao mito de que a Constituição asseguraria o acesso à justiça absolutamente incondicionado e inconsequente, a ponto de estimular o demandismo. __________ 1 Confira-se o texto inaugural de nossa coluna. 2 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Vol, I. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 366. 3 Entre outras obras recentes no Brasil que propõem uma releitura do acesso à justiça com base na análise econômica, WOLKART, Erik Navarro. Análise Econômica do Processo Civil - Como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 437 e ss.; FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 27-48. 4 "6.1. A prescric¸a~o, ao acentuar a necessidade de dimensionamento dos danos morais pleiteados no valor da causa indenizato'ria, pretende tomar partido na dis- cussa~o, enta~o superada, de que o pedido indenizato'rio de dano moral na~o acolhido integralmente importa em sucumbe^ncia parcial, bem como serve de limite ao provi- mento jurisdicional (artigos 141 e 492). Pensamos assim que a disposic¸a~o legislativa em aprec¸o, conjugada com o tratamento conferido a` sucumbe^ncia, e o liame existente entre tais mate'rias suscitara~o renovada compreensa~o do tema. Portanto, a estimativa realizada pelo autor ou reconvinte limita o provimento jurisdicional, sendo que do deferimento parcial do pedido indenizato'rio decorre a sucumbe^ncia parcial, com divisa~o dos o^nus da perda respectivos, salvo na hipo'tese da perda mi'nima". (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015; parte geral. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 868). 5 Sobre o tema, DELLORE, Luiz. Pedido de indenização e o CPC: fim da indústria do dano moral? 6 No ponto, sugere-se nova redação ao caput do artigo 55 da lei 9.099 de 1995: "Art. 55. A sentença de primeiro grau condenará o vencido em custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.". 7 Por óbvio, ficariam ressalvados os beneficiários da assistência jurídica gratuita.
É necessário prévio requerimento administrativo para o acesso ao Poder Judiciário? Seria essa uma condicionante legítima para o acesso ao sistema de Justiça? Esta questão, que durante longos anos foi respondida no Brasil de modo negativo, tem ganhado novos contornos a partir de diversos precedentes de Tribunais Superiores, em releitura das condições para o exercício do direito de ação, especialmente do interesse processual (interesse de agir). De fato, visto o interesse processual ser o juízo de necessidade/adequação, não parece fazer sentido se afirmar "necessário" o pronunciamento judicial sem que o interessado tenha, antes, manifestado ao adversário sua pretensão. Antes do conhecimento de tal pretensão sequer poderia se pensar em resistência ao pedido. Além disso, não se pode ignorar o estímulo que o CPC confere aos meios extrajudiciais de solução de conflitos (art. 3º, § 3º). Desse modo, é necessária a releitura do princípio do acesso à justiça, de maneira que - dentro de certos parâmetros e desde que isso seja possível sem maiores dificuldades - não viola o art. 5º, XXXV, da CF e o art. 3º, caput, do CPC a exigência de prévio requerimento extrajudicial antes da propositura de ações perante o Judiciário. É possível verificar a evolução da jurisprudência nesse sentido, deixando de lado uma visão de que sempre, em qualquer situação e sem qualquer critério, seria possível ajuizar uma medida judicial. Vejamos alguns exemplos. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, com repercussão geral reconhecida, considerou que a exigência do prévio requerimento administrativo em causas previdenciárias - antes de o segurado recorrer à Justiça para a concessão de benefício previdenciário - não fere a garantia de livre acesso ao Judiciário, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Isso porque sem pedido administrativo anterior, não fica caracterizada lesão ou ameaça de direito. Em seu voto, o ministro Roberto Barroso considerou que "não há como caracterizar lesão ou ameaça de direito sem que tenha havido um prévio requerimento do segurado. O INSS não tem o dever de conceder o benefício de ofício. Para que a parte possa alegar que seu direito foi desrespeitado é preciso que o segurado vá ao INSS e apresente seu pedido" (grifos nossos). Ficou decidido, porém - dentro da visão de que a exigência de prévio requerimento perante o INSS não pode ser erigida a instrumento de postergação ou embaraço do acesso à Justiça (aí sim, óbice inconstitucional) -, que não é necessário o exaurimento de todas as instâncias administrativas, não havendo impedimento ao segurado para que ingresse no Judiciário antes que eventual recurso seja examinado pela autarquia. Considerou-se, ainda, não haver de aguardar a apreciação de prévio requerimento administrativo para que o segurado ingresse judicialmente: a) com pedidos de revisão de benefícios (a não ser nos casos em que seja necessária a apreciação de matéria de fato); b) com pedidos em que a posição do INSS seja notoriamente contrária ao direito postulado (como é o caso das aposentadorias por idade rural com base exclusivamente em prova oral); e c) com pedidos em que, apresentado o requerimento administrativo, não haja resposta do INSS em prazo razoável. Esse mesmo entendimento se aplica à exibição de documentos junto a bancos. O STJ tem decidido que a exigência de requerimento prévio junto à agência bancária é indispensável para aquilatar o interesse processual/necessidade e, assim, não viola o princípio do acesso à Justiça. Nesse sentido, "a propositura de ação cautelar de exibição de documentos bancários (cópias e segunda via de documentos) é cabível como medida preparatória a fim de instruir a ação principal, bastando a demonstração da existência de relação jurídica entre as partes, a comprovação de prévio pedido à instituição financeira não atendido em prazo razoável, e o pagamento do custo do serviço conforme previsão contratual e normatização da autoridade monetária" (STJ, Resp. 1.349.453-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2014, grifos nossos). A exigência de prévio requerimento tem sido estendida, ainda, para outros tipos de demandas judiciais, como nas cobranças de seguro obrigatório (DPVAT) junto à Seguradora Líder (Resolução CNSP 154/2006 e Portaria CNSP n° 2.797/07) e, mais recentemente, em pedidos direcionados às pessoas jurídicas de direito público para fornecimento de medicamento de alto custo. Em ambos os casos, somente após a prévia negativa da cobertura pela seguradora, ou do atendimento à demanda de saúde pela administração direta, que se tem permitido o processamento das ações respectivas perante o Poder Judiciário. A tendência está bem-posta e, aparentemente, ainda será estendida para casos outros1. A necessidade de racionalização do acesso à Justiça (essencial para a própria contenção de gastos em um Estado agigantado) e de se reduzir o número de demandas derivadas de conflitos hipotéticos (em que o adverso sequer tem conhecimento prévio da pretensão apresentada em juízo) bem indica que o mote do Sistema de Justiça é cada vez mais prestigiar mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos, sejam os contenciosos administrativos nos casos de demandas contra o Poder Público, os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor) nas relações de consumo, ou mesmo as ferramentas, especialmente virtuais, de recepção e atendimento a reclamações. Evidentemente, tal releitura pressupõe um grau de eficiência mínima da instância administrativa2. Tanto a administração pública quanto as empresas privadas devem conceber meios eficientes e julgamentos pautados nas reais expectativas jurídicas das partes, solucionando as questões favoravelmente ao demandante todas as vezes que puderem identificar que este possui significativas chances de ter seu pedido acolhido caso, no futuro, valha-se do Judiciário3. Neste quadrante ganha especial relevo a plataforma consumidor.gov.br. Trata-se de plataforma digital que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas, via internet, para solução de conflitos de consumo, evitando, assim, o ajuizamento de ações perante o Judiciário (especialmente JECs). Monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor - Senacon - do Ministério da Justiça, Procons, Defensorias, Ministérios Públicos e, também, por toda a sociedade, a ferramenta permite que as reclamações dos consumidores sejam encaminhadas diretamente a empresas previamente cadastradas no sistema, que têm o prazo de 10 (dez) dias para apresentar uma solução ao problema4. Considerando a possibilidade de aperfeiçoamento da plataforma e expansão de seu alcance para outras empresas, afigura-se correto o entendimento, baseado na proposta aqui apresentada, de que o exercício do direito de ação perante o Judiciário seja condicionado à prévia tentativa de solução do conflito através da referida plataforma, desde que se trate de fornecedores previamente cadastrados no sistema e que tenham histórico razoável de solução extrajudicial de litígios por esta plataforma. Isso obviamente dependerá da credibilidade desse sistema de resolução de conflitos, cuja responsabilidade recai sobre os seus próprios usuários, utilizando-o como oportunidade efetiva de resolver conflitos de parte a parte, sem os custos inerentes ao Poder Judiciário. Uma sociedade que se pretende madura deve ser capaz de resolver algumas controvérsias via negociação direta, não necessitando ser, invariavelmente, tutelada pelo Poder Judiciário. Por evidente, tanto quanto nos casos de ações previdenciárias e exibitórias, esse entendimento deve ser temperado pela admissão de hipóteses excepcionais em que o acesso à Justiça se daria de forma direta, como nos casos em que: a) a resposta não se dê em tempo razoável; b) os pedidos de consumidores, de ordinário, não são atendidos pelos fornecedores cadastrados; e c) seja necessária tutela de urgência, não sendo possível ao jurisdicionado aguardar eventual solução extrajudicial. Assim, salvo nos casos excepcionais acima expostos, se houver uma demanda de consumo ajuizada em face de empresa cadastrada no sistema, é lícito ao juiz determinar ao autor que comprove ter utilizado previamente a plataforma consumidor.gov.br (CPC, arts. 6º, 10 e 321), sob pena de indeferimento da inicial, por falta de interesse de agir (CPC, art. 330, III). Portanto, apenas após a comprovação de uso desse sistema - e insucesso na composição extrajudicial - é que o juiz determinaria a citação do réu. De se considerar, ainda, que uma vez tentada a solução extrajudicial do conflito pela plataforma consumidor.gov.br, e não havendo sucesso na pretensão extrajudicialmente esboçada, fica dispensada a audiência de conciliação do art. 334 do CPC ou do art. 21 da Lei 9.099/95, até como forma de acelerar o tramitar do processo judicial e desincentivar comportamento ímprobo de fornecedores (que podem ver na prévia exigência do uso da plataforma salvaguarda para postergar a prestação da tutela jurisdicional). Fato é que a nova leitura do princípio do acesso à Justiça leva à conclusão de que o Judiciário deve mesmo ser a ultima ratio. Sendo possível a apresentação de prévio requerimento administrativo junto a órgãos oficiais constituídos (como é o caso da plataforma consumidor.gov.br), sem que existam quaisquer óbices nesse sentido, ausente também qualquer prejuízo pelo tempo de resposta destes órgãos, tal requerimento deve ser considerado como condição para o exercício do direito de ação (interesse processual - necessidade) perante o Judiciário. __________ 1 Nesse sentido, a doutrina processual começa a caminhar para a releitura do acesso à justiça. Como exemplo, João Batista Lopes, em artigo ainda inédito, aponta que o "atual modelo processual está esgotado", sendo necessário repensá-lo, propondo uma série de sugestões para "coibir o abuso no direito de demandar", dentre as quais uma proposta em parte análoga ao que se defende neste artigo (Modelo Constitucional de Processo e lentidão da Justiça, artigo aceito para publicação na RePro). 2 Sobre o tema, já se advertiu: "Em contrapartida, atualmente ganha forc¸a a tese de ausência de interesse processual pela inexistência de exaurimento da via administrativa, exceto se demonstrado, prima facie, a absoluta impossibilidade de qualquer êxito naquela (deciso~es ou pra'ticas administrativas anteriores e contra'rias ao êxito do requerimento administrativo). Conquanto sejamos simpa'ticos a` tese, ela pressupo~e e exige a estruturac¸a~o adequada dos contenciosos administrativos, a fim de oferecer respostas ra'pidas e com qualidade aos administrados. No contexto atual, em que o procedimento administrativo, ressalvadas algumas excec¸o~es, apresenta baixa performance, invia'vel exigir seu pre'vio exaurimento, sob pena de erigir mais um obsta'culo ao acesso a` justic¸a". (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015; parte geral. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 125) 3Louvável, por isso, a edição do recente decreto 9.830, de 10 de junho de 2019, regulamentando a nova redação dos artigos 20 ao 30 do decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, que pretende qualificar a motivação das decisões, inclusive administrativas. 4 De acordo com dados informados na própria plataforma, 80% das reclamações registradas no Consumidor.gov.br são solucionadas pelas empresas, que respondem as demandas dos consumidores em um prazo médio de 7 dias. Evidente, portanto, estar atendido o grau de eficiência mínimo a que se referiu anteriormente.