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Na corda bamba

Plágio ou inspiração? Entenda violação de direitos autorais na música

Disputas judiciais acerca de originalidade de obras são antigas, mas se intensificam com o surgimento do streaming e da IA no cenário fonográfico.

Da Redação

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Atualizado às 11:59

"Se João Gilberto/ Tivesse um processo aberto/ E fosse nos tribunais/ Cobrar direitos autorais/ Por todo o samba-canção/ Que com a sua gravação/ Passou a ser bossa nova/ Qualquer juiz de toga/ De martelo ou de pistola/ Sem um minuto de pausa/ Lhe dava ganho de causa" - João nos Tribunais - Tom Zé

Conta-se que, ao apresentar a música "Com que roupa?" no final dos anos 1920, Noel Rosa recebeu uma bronca inesperada de Candoca da Anunciação (maestro Homero Dornelas): "Noel, esse teu samba é igualzinho ao Hino Nacional!".

Segundo o maestro, o trecho "Agora vou mudar minha conduta" era entoado de maneira idêntica a "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...". Para evitar qualquer acusação de plágio, Noel acatou a sugestão e modificou o ritmo da canção.

O episódio mostra que nem mesmo o Hino Nacional escapou da suspeita de plágio.

Controvérsias desse tipo são frequentes no meio artístico, tanto entre músicos nacionais quanto internacionais. Muitas delas chegam à Justiça, enquanto outras são resolvidas por meio de acordos extrajudiciais com pagamento de royalties. A questão se torna ainda mais complexa com a ascensão de novos agentes no cenário musical: as plataformas de streaming e a inteligência artificial generativa.

Desde Victor Hugo

O advogado e músico Hiago Cordioli, em entrevista ao Migalhas, explicou que a preocupação com a exploração das obras artísticas remonta ao final do século XIX, em Paris, quando foi criado o primeiro tratado legal para garantir a propriedade intelectual, impulsionado pelo escritor Victor Hugo.

No campo da música, essa regulamentação se intensificou com a popularização do rádio e outros meios de comunicação, levando à criação de associações que passaram a representar tanto compositores quanto intérpretes.

Ritmo, melodia, harmonia, letra...

O advogado ressaltou que a estrutura musical é composta por três elementos fundamentais: ritmo, melodia e harmonia. No caso das canções, há também a letra. "Muitas vezes, a composição é feita por dois ou mais autores", observou, destacando que o plágio pode ocorrer em qualquer um desses aspectos.

Atualmente, uma das disputas judiciais mais conhecidas no cenário musical envolve a cantora Adele e o compositor brasileiro Toninho Geraes. O músico alega que a artista britânica copiou trechos da canção Mulheres - composta por ele e consagrada na voz de Martinho da Vila - para criar Million Years Ago, pleiteando R$ 1 milhão por danos morais.

Segundo o compositor, suas notificações às gravadoras foram ignoradas, permitindo a comercialização da obra. Em dezembro de 2024, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu a execução de Million Years Ago. O caso segue sem desfecho, mantendo a música de Adele suspensa.

Ao analisar a questão, Cordioli apontou que há uma "coincidência de construção melódica e harmônica" entre as músicas. No entanto, ele ponderou que, dado o fato de a música ocidental contar com apenas doze notas, as possibilidades de combinação não são ilimitadas. "Toda arte se faz baseada em outro tipo de arte, na forma do estilo vigente", afirmou, ressaltando a dificuldade de comprovar plágio em algumas situações.

Veja a entrevista:

Stairway do Heaven

Nos Estados Unidos, um caso de grande repercussão envolveu Stairway to Heaven, do Led Zeppelin, e Taurus, do guitarrista Randy Wolfe, da banda Spirit.

O processo foi movido por Michael Skidmore, administrador do espólio de Wolfe, que alegava que a introdução da icônica canção do Led Zeppelin teria sido copiada de Taurus. A acusação sustentava que a progressão de acordes na introdução das duas músicas era substancialmente semelhante e configurava infração de direitos autorais.

A defesa do Led Zeppelin negou qualquer infração, argumentando que a progressão de acordes em questão era um elemento musical comum, sem proteção autoral. Os advogados também alegaram que os músicos não copiaram intencionalmente qualquer trecho de Taurus e que qualquer semelhança entre as músicas era coincidência.

O caso passou por diferentes instâncias judiciais nos Estados Unidos. Inicialmente, a ação foi julgada improcedente, mas, após recurso, um novo julgamento foi determinado.

Durante o trâmite, foram analisadas questões fundamentais do direito autoral, incluindo a possibilidade de proteção de combinações de elementos musicais que, isoladamente, não seriam protegidos.

O tribunal concluiu que Stairway to Heaven não violou os direitos autorais de Taurus.

A decisão baseou-se na ausência de similaridade substancial entre as obras segundo os critérios da legislação de direitos autorais. O tribunal também reforçou a necessidade de comprovação de que elementos não protegidos, quando combinados, criam uma nova expressão original para serem passíveis de proteção.

Thinking out loud

A Corte de Apelações dos Estados Unidos para o Segundo Circuito confirmou decisão da Justiça de Nova York e rejeitou o processo movido pela Structured Asset Sales, LLC (SAS) contra Ed Sheeran.

A empresa alegava que a canção Thinking Out Loud, lançada pelo cantor britânico em 2014, infringia os direitos autorais da música Let's Get It On, de Marvin Gaye e Ed Townsend, lançada em 1973.

A SAS, que detém parte dos direitos sobre a composição de Townsend, argumentava que a música de Sheeran copiava a progressão de acordes e o ritmo harmônico da canção original. No entanto, a Corte concluiu que esses elementos não possuem originalidade suficiente para receber proteção autoral.

Ao analisar o caso, os juízes destacaram que a proteção de direitos autorais sobre Let's Get It On estava restrita à partitura registrada no Escritório de Direitos Autorais dos EUA em 1973, e não à gravação sonora da música. Com isso, qualquer alegação baseada em elementos que aparecem apenas na versão gravada foi excluída do julgamento.

A decisão enfatizou ainda que a teoria de "seleção e arranjo", utilizada pela SAS para argumentar que a combinação da progressão de acordes com o ritmo harmônico criava um elemento único, não se sustentava. "A progressão de quatro acordes e o ritmo sincopado são comuns na música e não possuem originalidade suficiente para serem protegidos por direitos autorais", afirmou o tribunal.

Além disso, a Corte citou a existência de outras músicas anteriores a Let's Get It On que utilizavam a mesma progressão de acordes e técnica rítmica, demonstrando que esses elementos não eram exclusivos da obra de Gaye e Townsend. "A combinação desses elementos, por si só, não é inovadora e não pode ser monopolizada por um único artista", concluiu o tribunal

My Sweet Lord

Outro caso de plágio famoso envolveu My Sweet Lord, de George Harrison, e He's So Fine, de Ronald Mack, gravada pelo grupo The Chiffons. Em 1976, um tribunal dos Estados Unidos concluiu que Harrison havia plagiado a melodia da canção, mesmo que sem intenção deliberada.

A disputa ganhou um novo capítulo quando se descobriu que Allen Klein, ex-empresário dos Beatles, negociou secretamente a compra dos direitos de He's So Fine durante o processo judicial, sem o conhecimento de Harrison. A transação gerou um conflito de interesses, levando o ex-Beatle a processar Klein por má-fé.

Em 1983, a Corte de Apelação determinou que os direitos autorais de He's So Fine fossem devolvidos a Harrison, mediante o pagamento de US$ 587.000, o mesmo valor gasto pela empresa de Klein na aquisição da obra.

A decisão consolidou o conceito de "plágio inconsciente" e reforçou a necessidade de transparência nas negociações do setor musical.

Do you think I'm sexy

Outro caso emblemático envolveu o cantor britânico Rod Stewart e o brasileiro Jorge Ben Jor.

Segundo o advogado Hiago Cordioli, Stewart afirmou que, após uma visita ao Brasil para o Carnaval do Rio, voltou aos Estados Unidos com uma melodia em mente, sem se lembrar de onde a havia ouvido. O refrão de Do You Think I'm Sexy?, criado por Stewart, apresentava grande semelhança com a música Taj Mahal, de Jorge Ben Jor, resultando em uma ação judicial.

"Neste caso, foi possível estabelecer um nexo causal, já que há um elemento distintivo e uma similaridade muito grande entre as músicas", explicou Cordioli.

Porém, o caso foi resolvido fora dos tribunais. O cantor britânico admitiu a semelhança entre as músicas em 2012, em sua autobiografia e revelou que após acordo extrajudicial com Jorge Ben Jor, os lucros da canção foram doadis à Unicef.

Em 1979, o jornal O Globo noticiou a contenda entre os músicos.

 (Imagem: O Globo)

Samples

Com a digitalização da música, o uso de samples - trechos de gravações reutilizados em novas composições - tornou-se uma prática comum na produção musical. Para que seu uso seja legal, é necessário obter autorização dos detentores dos direitos autorais ou pagar pelo licenciamento adequado.

No entanto, com o avanço das plataformas de streaming, muitas produções são lançadas sem consulta prévia aos titulares, gerando disputas jurídicas e debates sobre os limites da reutilização criativa de obras preexistentes.

A cultura do sampling tem suas origens no hip-hop norte-americano da década de 1970, quando DJs e produtores passaram a incorporar trechos de músicas para criar novas batidas e bases instrumentais. Embora essa prática tenha sido inicialmente alvo de controvérsias, tornou-se um dos pilares da produção musical contemporânea, influenciando diversos gêneros.

Um caso que envolveu o uso de samples sem configurar plágio foi o do músico Gotye. O artista foi processado pelos herdeiros de Luiz Bonfá devido ao uso de um trecho da música "Seville", lançada pelo violonista brasileiro em 1967, na introdução de Somebody That I Used to Know.

Em 2011, as partes chegaram a um acordo extrajudicial, reconhecendo Bonfá como coautor da faixa e garantindo à sua família cerca de 50% dos royalties gerados pela canção.

Inteligência artificial

A questão se torna ainda mais desafiadora com o uso da inteligência artificial na criação de músicas.

"Hello World" foi, em 2019, o primeiro álbum criado com recursos avançados de inteligência artificial. O projeto, lançado em plataformas digitais, utiliza um sistema que analisa padrões de composição de artistas renomados e recria novas amostras musicais, fundindo aprendizado de máquina com criatividade humana.

A produção das 15 faixas do álbum foi realizada por meio do Flow Machines, uma ferramenta de inteligência artificial desenvolvida para ajudar compositores. O sistema opera por meio da análise de padrões musicais e estilos, permitindo que novas músicas sejam geradas a partir desses modelos. Esse processo de machine learning possibilita, por exemplo, a criação de melodias com harmonias similares às de Tom Jobim ou arranjos inspirados em bandas icônicas como os Beatles.

O advogado Hiago Cordioli destacou que alguns artistas já processam plataformas que utilizam suas obras como input para treinar modelos de IA e gerar novas composições. Contudo, ele ressaltou que essa prática não configura, por si só, uma violação. "O que não se pode é fazer uma obra muito similar à de outros artistas ou se passar por eles", afirmou. Segundo Cordioli, a inteligência artificial aprende de maneira semelhante aos seres humanos: "Nós aprendemos a partir do que vemos e experimentamos. Como impedir que uma IA faça o mesmo?".

Em 2023, mais de 200 artistas renomados, incluindo nomes como Paul McCartney, Kate Bush e Stevie Nicks, assinaram um manifesto intitulado "200 Artists Urge Tech Platforms: Stop Devaluing Music".

 (Imagem: Reprodução/Internet)

Artistas assinaram manifesto contra a "desvalorização" da música.(Imagem: Reprodução/Internet)

O documento, promovido pela organização Artist Rights Now, expressa preocupações sobre a desvalorização da música nas plataformas digitais e faz um apelo para que as empresas de tecnologia reconheçam e respeitem os direitos dos criadores.

O manifesto destaca que, embora as plataformas digitais tenham facilitado o acesso à música, elas também contribuíram para a diminuição do valor atribuído ao trabalho dos artistas. Os signatários enfatizam a importância de uma remuneração justa e da proteção dos direitos autorais no ambiente digital.

Além disso, o documento solicita maior transparência nas práticas das plataformas e uma colaboração mais estreita com a comunidade artística para garantir que os criadores sejam devidamente compensados por seu trabalho. Os artistas argumentam que, sem essas medidas, a sustentabilidade da criação musical está em risco.

Linha tênue

Diante de um cenário cada vez mais complexo, em que inteligência artificial e plataformas digitais ampliam as possibilidades - e os desafios - da criação musical, a proteção dos direitos autorais se mantém como uma pauta essencial para artistas e juristas.

Casos emblemáticos, como os de Adele, Led Zeppelin e Rod Stewart, mostram que a linha entre inspiração e plágio pode ser tênue, exigindo constante debate e regulamentação.

Com novas tecnologias transformando o modo como a música é composta e consumida, a busca por equilíbrio entre inovação e proteção dos criadores continua a ser um dos grandes dilemas da indústria fonográfica.

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