MIGALHAS QUENTES

  1. Home >
  2. Quentes >
  3. Migalhas Quentes >
  4. Direito Penal deve tutelar o humor? Veja o que dizem especialistas
Limites do humor

Direito Penal deve tutelar o humor? Veja o que dizem especialistas

Pena de prisão em casos de comédia ofensiva dividem opiniões no meio jurídico.

Da Redação

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Atualizado às 19:47

Em outros tempos, a piada parecia não reconhecer fronteiras. Mesmo quando de "mau gosto", o humor era frequentemente protegido sob o manto da liberdade de expressão, servido como válvula de escape e até escudo contra acusações de preconceito. Hoje, o cenário é outro.

Casos recentes, como o envolvendo o comediante Leo Lins, condenado a oito anos de prisão, evidenciam uma crescente judicialização da comédia, sobretudo quando dirigida a grupos historicamente oprimidos.

Que o humor encontra limites nos direitos da personalidade é algo cada vez mais pacificado no meio jurídico. Mas uma pergunta incômoda e necessária ainda se impõe: o Direito Penal é o instrumento mais adequado para lidar com os excessos do humor?

 (Imagem: Arte Migalhas)

Para uns, criminalizar o riso ameaça a democracia; para outros, é questão de dignidade.(Imagem: Arte Migalhas)

Prisão não é solução

Para os doutores em Direito Bruno Leitão e Francisco França, em artigo publicado no Boletim IBCCRim a resposta é negativa.

Eles defendem que o Direito Penal não deve ser a primeira trincheira na resposta a piadas ofensivas. Mais do que isso: uso desmedido pode comprometer o próprio alicerce da liberdade democrática. A crítica dos autores não relativiza a gravidade das ofensas, mas propõe enfrentá-las de forma juridicamente proporcional e culturalmente eficaz.

Os autores apontam que a liberdade de expressão, como todo direito fundamental, não é absoluta. Os contornos convivem com outros valores constitucionais: os direitos de terceiros, a dignidade da pessoa humana, a igualdade.

Quando o humor ridiculariza minorias, pode reforçar estigmas e atingir profundamente a autoestima coletiva de grupos vulnerabilizados. Ainda assim, eles defendem que nem toda falha ética justifica o acionamento da esfera penal.

A CF veda a censura prévia (art. 5º, IX), e o Direito Penal, por sua natureza subsidiária, deve ser acionado apenas quando as demais esferas jurídicas forem insuficientes. 

Os juristas lembram que há instrumentos menos gravosos e eficazes para coibir abusos: ações civis por danos morais, boicotes públicos, perdas contratuais e desmonetização em plataformas.

Além disso, a responsabilização criminal exige prova de dolo específico - o chamado animus injuriandi - e a identificação de vítima determinada (honra subjetiva), requisitos de difícil demonstração em contextos artísticos e performáticos.

Essa exigência ficou evidente em recente decisão que absolveu sumariamente o comediante Vinícius Teixeira Lima, do canal "Live da Ofensa", da acusação de injúria racial.

O juiz de Direito André Luiz Rodrigo do Prado Norcia entendeu que não houve dolo específico, elemento essencial para caracterização do crime previsto no art. 2º-A da lei 7.716/89. O magistrado destacou que, embora as falas tenham sido potencialmente ofensivas, estavam inseridas em um contexto de descontração e ironia, afastando a intencionalidade discriminatória.

Punitivismo simbólico

Segundo os autores do artigo, confiar ao Direito Penal a tarefa de resolver fenômenos culturais, como o racismo recreativo ou a misoginia disfarçada de piada, revela um vício do populismo legislativo: a crença de que criminalizar comportamentos é suficiente para transformá-los. O que se obtém, muitas vezes, é apenas um efeito simbólico.

A ameaça de prisão pode até intimidar manifestações de ódio, mas também pode criar mártires involuntários e inflamar discursos reativos em nome de uma suposta "liberdade irrestrita de expressão".

O caso do humorista Léo Lins ilustra esse paradoxo: após decisões judiciais determinarem a remoção de vídeos com piadas ofensivas, sua base de seguidores cresceu. A controvérsia alimentou sua audiênciam e não o contrário. Para parte do público, Lins passou a encarnar a resistência à censura.

Mais recentemente, no entanto, o caso ganhou novos contornos. Léo Lins foi condenado a oito anos, três meses e nove dias de prisão em regime inicial fechado por incitar preconceito e discriminação durante um show de stand-up. A decisão, proferida pela juíza Federal Barbara de Lima Iseppi, da 3ª vara Criminal de São Paulo/SP, também fixou o pagamento de R$ 303.600 a título de danos morais coletivos.

A ação penal teve origem em denúncia do MPF, que apontou que o humorista publicou vídeos na internet com conteúdos preconceituosos e discriminatórios contra pessoas negras, indígenas, idosos, pessoas com deficiência, homossexuais, judeus, nordestinos, evangélicos, gordos e pessoas que vivem com HIV. O show, intitulado "Perturbador", foi transmitido no YouTube e acumulou mais de três milhões de visualizações.

A juíza rejeitou a tese de que se tratava apenas de conteúdo humorístico. Segundo ela, o fato de ser uma apresentação artística não isenta o réu de responsabilidade. A divulgação em massa extrapolou o teatro e ampliou os danos causados. Para a magistrada, houve dolo, ou seja, intenção deliberada, por parte do humorista.

"Não é humor, é crime"

Na direção oposta à crítica de Leitão e França, vozes do campo jurídico sustentam que o Direito Penal deve, sim, intervir com rigor diante de manifestações que naturalizam a violência simbólica. A criminalista e mestre em Direitos Humanos, Priscila Pamela, afirma que os discursos de Leo Lins ultrapassam o campo da ofensa: são criminosos.

"Os discursos proferidos pelo NÃO humorista Leo Lins não são apenas potencialmente ofensivos, mas criminosos, por isso a correta incidência do Direito Penal, que deve ser acionado nos casos de grave lesão a bens jurídicos relevantes, quando as demais áreas do Direito não se mostrem eficazes. É exatamente o caso!"

Segundo ela, práticas discriminatórias disfarçadas de piada atentam contra valores fundamentais (dignidade humana, igualdade, vida) cuja tutela penal é imprescindível. A complacência, adverte, seria repetir o erro histórico de normalizar o inaceitável.

"Não entender que há fomento de práticas discriminatórias por meio de frases que atentam contra a dignidade desses grupos para classificar o ato como piada ou mero dissabor é ser conivente com a violência diária imposta de forma desproporcional a grupos vulnerabilizados."

Sem impunidade

Enquanto Leitão e França reconhecem que a comédia pode machucar, sobretudo quando toca em feridas abertas da história social, advertem para os riscos de um Direito Penal moralizante, seletivo e, no limite, ineficaz. A crítica não está dirigida ao combate ao preconceito, mas à escolha dos instrumentos.

Já a criminalista Priscila Pamela chama atenção para o oposto: a complacência jurídica pode alimentar a impunidade e perpetuar estruturas de exclusão violenta.

Apesar das divergências, ambos os lados convergem em um ponto essencial: o humor não é neutro. O palco não está fora da sociedade. O que se disputa é o melhor caminho, e o menor custo democrático, para assegurar que esse espaço permaneça, ao mesmo tempo, livre e responsável.

Referência

SANTOS, Bruno Cavalcante Leitão; FRANÇA JÚNIOR, Francisco de Assis de. É comédia ou ofensa? Ponderações jurídico-criminais sobre os limites da liberdade de expressão artística. Boletim IBCCRIM, v. 31, n. 368, 2023.

Flávia Thaís De Genaro Sociedade Individual de Advocacia

Escritório de advocacia Empresarial, Flávia Thaís De Genaro Sociedade Individual de Advocacia atua nas áreas Civil, Tributária e Trabalhista. Presta consultoria em diversos segmentos da Legislação Brasileira, tais como: Escrita Fiscal, Processo Civil e Alterações do Novo Código de 2002, Falências,...

ADRIANA MARTINS SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA
ADRIANA MARTINS SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA

Nosso escritório é formado por uma equipe de advogados especializados, nas áreas mais demandas do direito, como direito civil, trabalhista, previdenciário e família. Assim, produzimos serviços advocatícios e de consultoria jurídica de qualidade, com muito conhecimento técnico e jurídico. A...

PEGNOLATTO & OTERO CORRESPONDENCIA JURIDICA LTDA

PEGNOLATTO & OTERO CORRESPONDENCIA JURIDICA LTDA