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Estado soberano

Soberania: Entenda significado e riscos já enfrentados pelo Brasil

Do Império à Lava Jato, país viveu diferentes formas de pressão sobre sua autonomia política, territorial, econômica e institucional.

Da Redação

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Atualizado às 07:09

"O poder legítimo emana juridicamente da soberania nacional, e esta se gera da vontade de todos; por conseguinte a constituição fundada sobre esse princípio é infalivelmente democrática."
José de Alencar

Nesta sexta-feira, 25, a tradicional Faculdade de Direito da USP será palco de um ato público em defesa da soberania nacionalO evento ocorre em resposta à escalada de tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.

O estopim da crise foi uma série de medidas tomadas pelo governo norte-americano: imposição de tarifas de 50% sobre exportações brasileiras, revogação de vistos de ministros do STF  e familiares, e declarações do presidente Donald Trump criticando diretamente a Corte brasileira.

Paralelamente, Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro, passaram a divulgar nas redes sociais uma narrativa de perseguição política, interpretada como tentativa de mobilização popular contra decisões judiciais.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, classificou a atuação como uma "estratégia de coação institucional", impondo medidas cautelares ao ex-presidente da República, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica.

Os episódios marcam o debate sobre o que significa soberania. A compreensão do termo exige abordagem histórica e jurídica apurada.

Acompanhe a seguir.

De onde vem a ideia de soberania?

A compreensão da soberania exige rigor conceitual.

O jurista Dalmo de Abreu Dallari, na obra clássica "Elementos da Teoria Geral do Estado", destaca que a soberania é um conceito multifacetado, que envolve dimensões políticas, jurídicas e simbólicas. Para ele, trata-se da capacidade suprema de decidir, em última instância, sobre a vigência e eficácia das normas dentro de um território.

O conceito, conforme explica Dallari, consolidou-se apenas no século XVI, com o fortalecimento do poder dos reis sobre os senhores feudais e a emancipação dos monarcas em relação à autoridade do papa e do imperador.

Jean Bodin, teórico do absolutismo, foi o primeiro a definir soberania como poder absoluto e perpétuo, não subordinado a leis humanas - apenas às leis divinas e naturais.

Com a Revolução Francesa, a soberania deslocou-se da figura do monarca para o povo ou a nação. Já no século XIX, com a consolidação do Estado como ente jurídico, ela passa a ser atribuída ao próprio Estado, não mais a indivíduos.

Dallari adverte que, por seu forte apelo simbólico, a soberania é frequentemente manipulada para justificar interesses conflitantes. Essa ambiguidade levou autores como Kaplan e Katzenbach a classificá-la como um dos conceitos mais embaraçosos do Direito Internacional.

Ainda assim, permanece como fundamento essencial do Estado moderno, desde que compreendida como instrumento jurídico de ordenação e proteção contra o arbítrio, tanto interno quanto externo.

Características

A doutrina clássica define a soberania como:

  • Una: só pode haver um poder soberano no mesmo Estado.
  • Indivisível: não se reparte entre os Poderes, ainda que suas funções se dividam.
  • Inalienável: não pode ser transferida sem que o Estado deixe de existir.
  • Imprescritível: não se extingue pelo tempo.

Outros atributos apontados por Zanzucchi e Duguit incluem: ser originária, exclusiva, incondicionada e coativa. Mesmo quando o Estado se submete voluntariamente a compromissos externos - como no caso da adesão a tratados internacionais - isso não implica renúncia à soberania, desde que tal adesão decorra de decisão soberana.

Soberania nas Constituições brasileiras

A trajetória da soberania estatal no Brasil acompanha diretamente a evolução constitucional do país. Cada Carta refletiu uma concepção distinta sobre o poder e sua legitimidade.

A Constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I, instituiu monarquia constitucional centralizada, marcada pela presença do Poder Moderador e pela sacralização da figura do imperador. Embora não afirmasse expressamente a soberania popular, o art. 12 reconhecia que "todos estes Poderes no Império do Brazil são delegações da Nação", sinalizando que a soberania residia, ainda que de forma mediada, na coletividade.

Com a Constituição de 1891, a soberania passou a ser vinculada ao povo, com a proclamação da República e a adoção do modelo federativo e presidencialista. O novo texto rompeu com o centralismo imperial e consagrou, em seu preâmbulo, a vontade popular como fundamento da organização estatal. A soberania foi então descentralizada, permitindo aos estados legislar sobre assuntos locais, ao passo que à União cabia a condução das relações exteriores.

A Constituição de 1934, promulgada em um contexto de instabilidade política e influência da Constituição de Weimar, avançou na direção de uma democracia social. Pela primeira vez, a soberania popular foi explicitamente reconhecida como fundamento do poder. O art. 2º estabeleceu que "todos os poderes emanam do povo", e o artigo 3º definiu que os três Poderes do Estado eram órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais. Foi uma etapa importante na consolidação da soberania como expressão da vontade coletiva e da ordem jurídica.

Contudo, essa construção democrática foi interrompida pela Constituição de 1937, imposta por Getúlio Vargas no contexto do Estado Novo. Inspirada em regimes autoritários europeus, a Carta concentrou o poder nas mãos do Executivo, suprimiu a autonomia dos Estados e esvaziou a participação popular, ainda que mantivesse, no texto, menções formais à soberania. O culto à unidade nacional, como a incineração das bandeiras estaduais, ilustrou o apagamento simbólico das soberanias regionais.

A Constituição de 1946, promulgada após o fim da ditadura varguista e a Segunda Guerra Mundial, representou o retorno do regime democrático. O texto resgatou o princípio da soberania popular, com eleições livres, representação proporcional e ampliação dos direitos sociais. 

Esse avanço, porém, foi novamente interrompido pela imposição da Constituição de 1967, durante o regime militar. Embora semelhante, em redação, à de 1946, sua interpretação foi monopolizada pelo Executivo, que se valeu de Atos Institucionais para concentrar poder e reprimir opositores. A soberania, nesse período, foi instrumentalizada para justificar tanto a centralização política quanto decisões de política externa, como a negociação de empréstimos com o FMI.

Com o fim da ditadura e o processo de redemocratização, o Brasil viveu um novo marco com a Constituição de 1988, chamada de "Constituição Cidadã".

Nela, a soberania assume status de fundamento da República (art. 1º, I), integra o conceito de soberania popular (art. 14) e figura como princípio da ordem econômica (art. 170). Diferentemente de momentos anteriores, em que serviu para legitimar o autoritarismo ou a centralização do poder, a soberania passou a ser concebida como valor democrático, voltado à efetivação dos direitos fundamentais e à promoção do bem comum.

Assim, ao longo da história constitucional brasileira, a soberania esteve sempre presente, ora como instrumento de dominação estatal, ora como fundamento da cidadania. 

A soberania brasileira já foi ameaçada?

As ameaças à soberania brasileira não são inéditas, nem restritas a uma única dimensão do poder estatal.

A depender do ponto de vista adotado, jurídico, territorial, econômico ou institucional, é possível identificar diferentes momentos históricos em que a soberania nacional foi posta à prova.

No plano territorial e de pressões ao Legislativo, o século XIX testemunhou episódios marcantes, como a edição da Lei Bill Aberdeen (1845), pela qual o Parlamento britânico autorizou sua marinha a apreender embarcações brasileiras suspeitas de tráfico de escravizados, mesmo fora das águas britânicas.

Embora a medida tenha contribuído para o fim do tráfico atlântico, foi amplamente percebida como violação da soberania legislativa e marítima do Império, gerando reações nacionalistas e tensões diplomáticas com o Reino Unido.

Na República Velha, a soberania econômica foi fortemente comprometida por concessões feitas a empresas estrangeiras em setores estratégicos.

Companhias como a São Paulo Railway (ferrovias), a Light & Power (energia e transporte urbano) e a Brazil Railway Company (portos) passaram a controlar parte relevante da infraestrutura nacional. O modelo de desenvolvimento baseado em enclaves estrangeiros gerou dependência externa e críticas à entrega de ativos nacionais a capitais internacionais, marcando uma soberania econômica fragilizada e submetida aos interesses de potências industriais.

 (Imagem: O Estado de S. Paulo)

Durante a Segunda Guerra Mundial, a soberania territorial voltou ao centro do debate com a instalação de bases militares dos Estados Unidos no Brasil, como a de Natal (RN), ponto estratégico no Atlântico Sul. Embora justificadas pelo esforço bélico contra o nazifascismo, essas bases geraram preocupação quanto à autonomia do Estado brasileiro, por envolverem presença militar estrangeira permanente em solo nacional.

 (Imagem: O Globo)

Pressões recentes

Em tempos recentes, dois episódios se destacam como expressivas ameaças à soberania brasileira, sobretudo no que se refere ao funcionamento independente das instituições e à autonomia decisória do Estado: a Operação Lava Jato e as pressões internacionais em matéria ambiental.

Lava Jato

Desde os primeiros anos da Operação Lava Jato, o MPF estabeleceu canais diretos com o DoJ - Departamento de Justiça dos EUA, o FBI, a SEC (comissão de valores mobiliários norte-americana) e autoridades suíças, com o objetivo de compartilhar informações bancárias e construir casos contra empresas e dirigentes brasileiros.

Embora a cooperação internacional seja prevista em tratados formais, como a Convenção da OCDE e o Estatuto de Cooperação Penal, muitos dos contatos ocorreram à margem do Itamaraty, sem tramitação oficial pela Autoridade Central brasileira (o DRCI - Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional).

A prática foi apontada como violadora da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e do princípio de reciprocidade. O próprio ministério das Relações Exteriores enviou ofícios ao MPF questionando os contatos paralelos com governos estrangeiros, feitos à sua revelia.

A partir de 2019, reportagens publicadas pelo The Intercept Brasil, revelou que membros da força-tarefa de Curitiba mantinham interlocução direta com autoridades americanas sobre estratégias de leniência, datas de operações e compartilhamento de provas, muitas vezes antes mesmo de decisões judiciais formais.

Um dos trechos mais emblemáticos mostrava que autoridades dos EUA optaram por evitar o envolvimento do Itamaraty para não "politizar" o processo, preferindo atuar diretamente com os procuradores.

As revelações levantaram hipóteses de instrumentalização da jurisdição penal brasileira para fins geopolíticos. Juristas críticos à operação defenderam que se tratava de um caso típico de lawfare, ou seja, uso estratégico do Direito como arma de guerra política.

Pressões internacionais no campo ambiental

Entre 2019 e 2023, o Brasil também se viu alvo de pressões diplomáticas e econômicas relacionadas à sua política ambiental, especialmente no que diz respeito à Amazônia.

Em 2021 e 2022, diversas embaixadas europeias, entre elas Alemanha e Noruega, emitiram notas públicas expressando preocupação com decisões do STF e ações do governo Federal que poderiam fragilizar a proteção ambiental.

Embora nem todas as correspondências tenham se tornado públicas, foi amplamente noticiado que diplomatas exigiram justificativas formais por eventuais retrocessos na política ambiental brasileira.

Em agosto de 2019, os governos da Noruega (R$ 133 milhões) e da Alemanha (R$ 155 milhões) suspenderam os repasses ao Fundo Amazônia após críticas do então ministro Ricardo Salles aos comitês técnicos que geriam os recursos e pela tentativa de redirecionamento das verbas. As embaixadas afirmaram que só aceitariam mudanças com propostas escritas e mecanismos de governança claros.

 (Imagem: O Globo)

Com a mudança de governo, a partir de 2023, os aportes foram retomados, mas condicionados a compromissos ambientais, transparência e metas pactuadas em conferências internacionais como as COPs.

Em defesa do Brasil

A soberania, como disse José de Alencar, é a expressão jurídica da vontade de todos. Na prática, ela se constrói e se defende diariamente, não apenas contra ameaças externas explícitas, mas também diante de pactos silenciosos, dependências estruturais e interferências disfarçadas de cooperação.

Seja pela mão invisível da diplomacia econômica, pela atuação informal de potências aliadas ou pela instrumentalização simbólica do patriotismo, o Brasil tem enfrentado desafios históricos para afirmar sua autonomia institucional sem se isolar do mundo.

As tensões recentes, somadas aos episódios do passado, mostram que a soberania não é um dado estático, mas construção coletiva e permanente, cuja vigília cabe a todos os cidadãos.

Em tempos de globalização acelerada, interdependência econômica e disputas geopolíticas, defender a soberania é, mais do que nunca, compreender seu sentido profundo: garantir que a vontade democrática não se curve nem ao arbítrio interno, nem às conveniências externas.

Referências

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998.

GALLO, Ronaldo Guimarães. Soberania: poder limitado (parte II) in "Revista do Senado". Brasília a, v. 43.

SANTOS, Carolina Costa. A soberania estatal: evolução histórica, desenvolvimento no Brasil e perspectivas atuais. Revista de Doutrina Jurídica, v. 107, n. 2, p. 276-295, 2016.

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