STJ absolve réu condenado com base em reconhecimento pessoal irregular
Ministro Rogerio Schietti aponta persistência de condenações sem observância do art. 226 do CPP e critica: "é uma irresponsabilidade consciente. Não estamos lidando com papéis, mas com pessoas inocentes".
Da Redação
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Atualizado às 21:09
Por unanimidade, a 6ª turma do STJ absolveu Paulo Alberto da Silva Costa, condenado por roubo com base apenas em reconhecimento fotográfico realizado sem observância dos critérios legais previstos no art. 226 do CPP.
O relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, afirmou que o caso "talvez seja o mais emblemático da desfuncionalidade do sistema de Justiça criminal brasileiro" e criticou a continuidade de condenações baseadas em provas inválidas.
"É preciso que os profissionais do direito, que atuam desde o início da fase investigatória até os mais elevados graus de exame do processo, sejam mais do que empáticos: sejam responsáveis. Não estão lidando com papéis, estão mantendo na prisão pessoas inocentes."
O ministro determinou ainda o envio da decisão ao CNJ, para que o órgão adote providências concretas diante da resistência de autoridades em aplicar o precedente da 3ª seção no Tema 1.258, que considera inválido o reconhecimento de pessoas feito em desacordo com a lei.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro recorreu ao STJ após o TJ/RJ manter a condenação de Paulo Alberto, mesmo depois de a 3ª seção da Corte, em 2023, reconhecer que o réu havia sido vítima de "violência processual sistêmica" em diversos processos baseados exclusivamente em reconhecimentos pessoais irregulares.
A única prova da acusação era um reconhecimento fotográfico extraído do Facebook, realizado sem formação de grupo de semelhantes - procedimento conhecido como show up.
As vítimas descreveram um homem negro, magro, de 20 a 25 anos e 1,75 m, enquanto o réu tinha 32 anos e 1,85 m à época dos fatos.
Em juízo, duas vítimas não o reconheceram, e uma terceira apenas o apontou em audiência, sem lavratura de termo formal. Mesmo sem outros elementos probatórios, o Tribunal fluminense manteve a condenação em dezembro de 2024.
Descumprimento reiterado da lei e de precedente
Ao votar, Schietti registrou que, no mesmo dia, o CNJ havia instituído o Observatório Nacional para Evitar Erros Judiciários e Condenações Injustas, sob relatoria da conselheira Daniela Madeira e coordenação do ministro Edson Fachin, iniciativa que, segundo o relator, representa "esperança de que as coisas tomem outro rumo".
O ministro relatou que Paulo Alberto passou três anos preso, foi absolvido em 51 processos, teve duas denúncias rejeitadas, duas revisões criminais julgadas procedentes e uma impronúncia, mas ainda possui 14 anotações duplicadas em sua folha de antecedentes criminais.
Segundo Schietti, o réu foi indiciado em mais de 60 inquéritos, sem nunca ter sido ouvido em delegacia nem encontrado com qualquer objeto ilícito.
"A vida desse homem, que passou três anos preso, se acabou. Ele não consegue mais sair às ruas, perdeu o convívio da filha e vive enclausurado, ainda carregando anotações e processos decorrentes de uma acusação infundada", criticou.
Irresponsabilidade consciente
O relator destacou que, mesmo após o julgamento do HC 598.886, que consolidou a obrigatoriedade de observância ao art. 226 do CPP, o STJ ainda registra 234 decisões em 2025 sobre reconhecimento de pessoas, das quais 70 são do Estado do Rio de Janeiro.
Em 70% desses casos, o parecer do Ministério Público Federal foi pela denegação, mesmo quando o reconhecimento era a única prova.
Para o ministro, a insistência de autoridades em descumprir a jurisprudência consolidada configura "irresponsabilidade consciente".
"Talvez chegue um momento em que agentes públicos venham a ser civi, administrativa e criminalmente responsabilizados, porque condenar alguém à prisão, ao cárcere, diante desse quadro, diante de todo esse arcabouço normativo, de toda essa jurisprudência maciça, é, no mínimo, uma irresponsabilidade consciente. Não é por ignorância, é consciente, e isso precisa mudar."
Schietti acrescentou que o CNJ, o STJ e o Supremo Tribunal Federal têm atuado para corrigir tais distorções, mas ainda há resistência de magistrados e membros do MP.
"É triste. Tantos anos passarem e nós continuarmos a ter de julgar as mesmas questões, ocupando, inclusive, o nosso tempo, para dizer o óbvio. É preciso dar um basta nisso."
Providências
Schietti sugeriu que o CNJ seja formalmente comunicado da decisão, para adoção de medidas de sensibilização e fiscalização quanto à correta aplicação da jurisprudência.
A 6ª turma acompanhou o relator por unanimidade, dando provimento ao recurso especial para absolver Paulo Alberto da Silva Costa e reafirmar o entendimento do Tema 1.258, segundo o qual o reconhecimento de pessoas feito sem observância dos critérios do art. 226 do CPP é inválido e não pode embasar condenação.
- Processo: REsp 2.204.950






