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Se condenado na 1ª turma, Bolsonaro pode recorrer ao plenário? Entenda

Precedentes do STF mostram critérios restritivos para embargos infringentes e outros recursos.

26/8/2025

Em setembro, os olhos do país estarão voltados, com expectativa, para o desfecho, ainda potencial, do julgamento do núcleo 1 da trama golpista, em especial de um de seus integrantes: o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Potencial é o adjetivo mais adequado, porque, na dinâmica do rito processual, muita água ainda poderá correr.

Mesmo que o processo seja concluído na 1ª turma, nas sessões já agendadas, e sem supor qualquer pedido de vista, o julgamento não se encerra necessariamente com a proclamação do resultado. A depender da configuração do placar, abrem-se caminhos recursais que podem alongar a tramitação.

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A matemática das decisões, até o momento, aponta para uma condenação provável do núcleo.

Mas não se pode descartar uma divergência dentro da turma, sobretudo do ministro Luiz Fux, que já sinalizou posições distintas em ocasiões anteriores.

Nesse cenário, a defesa de Bolsonaro poderia lançar mão dos embargos infringentes, recurso que, em hipóteses específicas, transfere o debate da Turma para o Plenário? E, além dele, recorrer também a embargos de declaração ou até a um habeas corpus?

A depender do resultado do julgamento de Bolsonaro na 1ª turma do STF, defesa do ex-presidente poderá lançar mão de alguns recursos.(Imagem: Ton Molina/STF | Arte Migalhas)

Embargos infringentes

Os embargos infringentes estão previstos tanto no CPP, quanto no RISTF - regimento interno do STF, funcionando como mecanismo que permite rediscutir julgamentos não unânimes, desde que desfavoráveis ao réu.

No plano processual penal, o art. 609, parágrafo único, do CPP prevê que, quando a decisão de segunda instância não for unânime e for desfavorável ao réu, cabem embargos infringentes e de nulidade. O prazo, nesse caso, é de 10 dias, e a impugnação se limita à matéria objeto da divergência.

No plano regimental, o art. 333 do RISTF estabelece que cabem embargos infringentes contra decisões não unânimes do plenário ou da turma que:

O parágrafo único do dispositivo acrescenta que, no plenário, exige-se mínimo de quatro votos divergentes para a admissibilidade do recurso, salvo em casos de julgamento criminal em sessão secreta.

O rito procedimental é detalhado nos artigos seguintes: o prazo para interposição é de 15 dias (art. 334); o relator abre vista para contrarrazões (art. 335); e, caso não admita o recurso, cabe agravo em cinco dias.

Se o caso estiver sendo julgado em uma das turmas, os embargos infringentes transferem o julgamento para o plenário, onde os 11 ministros reavaliam a matéria objeto da divergência. Não se trata de reabrir todo o processo, mas apenas a parte em que houve votos absolutórios em favor do réu.

Embora o regimento interno do STF preveja, de maneira ampla, o cabimento de embargos infringentes em decisões não unânimes, a Corte foi, ao longo dos anos, impondo restrições adicionais para conter o uso do recurso.

Possibilidade dos embargos infringentes: Mensalão

O momento de maior visibilidade dos embargos infringentes no STF ocorreu no julgamento da AP 470, no caso do Mensalão.

Em setembro de 2013, o plenário decidiu, por 6 votos a 5, admitir o recurso, decisão que alterou o rumo do processo e ampliou a possibilidade de revisão para parte dos réus.

O voto de desempate coube ao ministro Celso de Mello, que reafirmou a subsistência do art. 333 do regimento interno do STF mesmo após a edição da lei 8.038/90.

Essa lei veio depois do regimento e regulamentou o trâmite dos processos no Supremo e no STJ, mas não mencionou os embargos infringentes. Parte dos ministros entendia, então, que a lei mais recente teria derrogado tacitamente o dispositivo regimental, tornando o recurso incabível.

Para Celso de Mello, os embargos infringentes permaneciam válidos nas ações penais originárias, já que o dispositivo regimental não havia sido expressamente revogado.

O placar final ilustrou bem a divisão da Corte: contra o recurso votaram Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio; a favor, Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.

Àquela altura, dos 25 condenados, três já haviam recebido penas alternativas, dez não tinham mais recursos cabíveis e, para doze réus, abriu-se a possibilidade de revisão parcial das condenações por meio dos infringentes.

O resultado reforçou o caráter garantista do recurso, mas também acendeu críticas sobre o risco de eternizar processos penais de grande repercussão.

Foi a partir desse precedente que amadureceu, no Supremo, a percepção de que seria necessário fixar balizas mais rígidas ao uso dos infringentes.

Conteúdo dos embargos infringentes

Em 2015, o plenário enfrentou novamente a questão, na AP 409, envolvendo a condenação do político Zé Gerardo Arruda.

Na ocasião, a Corte reforçou que a divergência que justifica os infringentes precisa ser de conteúdo absolutório em sentido próprio.

Não é possível, portanto, somar votos de natureza distinta, como prescrição ou nulidade processual, para compor o número mínimo exigido.

Apenas votos que declarem de forma clara a improcedência da pretensão acusatória podem sustentar o recurso.

Embargos infringentes nas turmas: Caso Maluf

O movimento de restrição se consolidou em 2018, no julgamento da AP 863, envolvendo o ex-deputado Paulo Maluf.

O plenário definiu que, nas ações penais de competência originária julgadas pelas turmas, os embargos infringentes só seriam admitidos quando houvesse, no mínimo, dois votos vencidos pela absolvição em sentido próprio.

A Corte explicou que o regimento, ao exigir quatro votos divergentes no plenário (art. 333, parágrafo único), visava assegurar a existência de uma divergência relevante, capaz de colocar em dúvida a correção da decisão majoritária.

Transposta essa lógica para as turmas, formadas por cinco ministros, o critério proporcional passou a ser a exigência de dois votos absolutórios.

Além disso, o Supremo delimitou o conceito de absolvição em sentido próprio.

Não basta um voto reconhecendo nulidade processual, prescrição ou apenas discutindo a dosimetria da pena. Para justificar embargos infringentes, o voto divergente precisa afirmar, de modo inequívoco, a improcedência da pretensão acusatória.

No caso concreto, como havia apenas um voto divergente, e este não absolvia em sentido próprio, o recurso foi considerado manifestamente inadmissível.

A Corte concluiu que a interposição tinha caráter meramente protelatório, motivo pelo qual não impediu o imediato cumprimento da decisão condenatória.

O julgamento, entretanto, revelou uma divisão expressiva.

De um lado, os ministros Fachin, Barroso, Rosa Weber e Fux sustentaram a necessidade dos dois votos absolutórios, em defesa de uma leitura estrita e do princípio da taxatividade recursal. Essa visão, que prevaleceu, reforçou a ideia de que só a divergência relevante pode justificar o reexame pelo plenário.

De outro, ministros como Toffoli, Moraes, Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio defenderam que bastaria um voto dissidente, ou, ao menos, que não caberia ao tribunal impor restrições além das previstas no regimento interno. Para os ministro, reduzir o alcance dos embargos significaria esvaziar garantias processuais e limitar o direito de defesa em instâncias originárias.

Ministro Celso de Mello, embora tenha apresentado considerações em favor de uma proteção reforçada ao acusado, alinhada inclusive a normas internacionais, acabou aderindo à tese proposta por Barroso, segundo a qual são necessários dois votos.

Ministra Cármen Lúcia também acompanhou essa linha, enfatizando a importância da colegialidade e da segurança jurídica, ao reafirmar o entendimento consolidado desde a AP 470 (mensalão).

Assim, o Supremo fixou a tese que passou a balizar seus julgamentos: nas turmas, os embargos infringentes só são admitidos em caso de dois votos vencidos em favor do réu, ambos de conteúdo absolutório em sentido próprio.

Veja o voto dos ministros à época:

Caso Collor

O Supremo voltou a discutir os limites dos embargos infringentes no processo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, condenado a 8 anos e 10 meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da Lava Jato.

Após o esgotamento dos recursos, ministro Alexandre de Moraes determinou a execução imediata da pena, classificando como protelatórios os últimos embargos manejados pela defesa. A decisão foi submetida a referendo do plenário, que, por 6 a 4, manteve a prisão do ex-senador.

No julgamento, ministro André Mendonça abriu divergência ao votar pelo cabimento dos embargos infringentes. Para S. Exa., tanto o art. 333 do regimento interno do STF quanto o art. 609 do CPP autorizariam o recurso em qualquer decisão não unânime desfavorável ao réu, inclusive quando a divergência se limitasse à dosimetria da pena.

Segundo Mendonça, o fato de quatro ministros terem defendido a redução da pena de Collor para quatro anos de reclusão, apenas por corrupção passiva, já justificaria a reabertura do julgamento por meio dos infringentes.

Também destacou que o direito ao duplo grau de jurisdição e à ampla defesa, previstos em tratados internacionais como o Pacto de San José da Costa Rica, devem orientar a interpretação do STF em favor do acusado.

A posição, no entanto, foi minoritária.

A maioria da Corte reafirmou o entendimento consolidado desde o caso Maluf, de que os embargos infringentes só cabem quando a divergência é pela absolvição em sentido próprio, não bastando votos distintos sobre pena ou nulidades processuais.

Caso Débora Rodrigues

A 1ª turma do STF também enfrentou a questão dos embargos infringentes na AP 2.508, da ré Débora Rodrigues, condenada após ter pintado de batom a estátua da Justiça durante os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

Ela recebeu pena de 14 anos de reclusão e detenção, além de multa e indenização por danos coletivos de R$ 30 milhões, em decisão majoritária do colegiado.

A defesa interpôs embargos infringentes, sustentando que deveriam prevalecer os votos dos ministros Luiz Fux, que absolvia a ré de parte dos crimes, e Cristiano Zanin, que divergiu apenas na dosimetria da pena.

O relator, ministro Alexandre de Moraes, rejeitou o recurso, reafirmando os precedentes da Corte.

Segundo S. Exa., o cabimento dos infringentes exige dois votos absolvitórios em sentido próprio, conforme fixado no caso Maluf. Divergências parciais, seja na dosimetria, seja em questões processuais, não suprem esse requisito.

Moraes destacou que houve apenas um voto absolutório parcial (Fux), e o outro divergente (Zanin) limitou-se à fixação da pena, o que não configura absolvição em sentido próprio. Assim, não se verificou a "divergência relevante" que justifica a reabertura do julgamento pelo plenário.

O ministro também classificou o recurso como manifestamente incabível, frisando que a tentativa de ampliá-lo pela aplicação do art. 609 do CPP não se sustenta, já que a norma regimental do STF prevalece sobre a processual geral. Dessa forma, os embargos infringentes não foram admitidos.

Desde 2013, STF pronunciou-se em APs quanto ao cabimento de embargos infringentes.(Imagem: Arte Migalhas)

E Bolsonaro?

À luz da jurisprudência consolidada pelo STF, a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro só teria chances de ver admitidos embargos infringentes se, no julgamento da 1ª turma, surgirem ao menos dois votos pela absolvição em sentido próprio.

Um único voto dissidente, ainda que favorável à absolvição parcial, não seria suficiente, como se viu no caso Débora Rodrigues.

Tampouco bastaria divergência restrita à dosimetria da pena ou a questões processuais, como tentou sustentar a defesa de Fernando Collor.

Assim, o cenário mais provável é que o recurso só prospere se ministros da turma não apenas discordarem da maioria, mas absolverem Bolsonaro em algum dos crimes centrais pelos quais é acusado.

Nesse caso, os embargos infringentes poderiam levar o processo ao plenário, ampliando o colegiado de cinco para onze ministros.

Fora dessa hipótese, a tendência, conforme os precedentes mais recentes, é que a Corte considere o recurso incabível e protelatório.

Alternativas

Mesmo que não consiga levar o caso ao plenário por meio dos embargos infringentes, a defesa de Bolsonaro ainda dispõe de outros instrumentos processuais.

O primeiro deles são os embargos de declaração, cabíveis em até cinco dias após a publicação do acórdão. Servem para sanar omissões, contradições ou obscuridades, mas não reabrem o mérito da condenação.

Na prática, contudo, podem atrasar o trânsito em julgado, embora o STF venha reconhecendo como protelatórios os embargos sucessivos, hipótese em que rejeita o recurso de plano e autoriza a execução imediata da pena - como no recente caso de Carla Zambelli.

Outra via possível é o habeas corpus, que pode ser impetrado ao Plenário para questionar eventual ilegalidade ou constrangimento.

O espaço de acolhimento, entretanto, é restrito: o Supremo não admite o HC como substituto de recurso próprio, aceitando-o apenas em casos de flagrante ilegalidade ou abuso de poder.

Em momento posterior, após o trânsito em julgado, a defesa pode ajuizar revisão criminal, ação autônoma prevista no CPP para situações de erro judiciário, surgimento de provas novas ou injustiça manifesta da condenação. Esse recurso já foi manejado em processos de grande repercussão, como no Mensalão e na Lava Jato.

Por fim, há ainda a possibilidade de recurso a instâncias internacionais, como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, alegando violação ao devido processo legal ou a garantias fundamentais. Embora essa via não suspenda a decisão no Brasil, pode gerar responsabilização internacional do Estado brasileiro.

Assim, mesmo diante das restrições impostas pela jurisprudência aos embargos infringentes, a defesa de Bolsonaro ainda dispõe de uma gama limitada de alternativas, cujo êxito dependerá de hipóteses muito específicas.

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