O Brasil será julgado, de forma inédita, pela CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, nesta sexta-feira, 26, em razão da morte de 96 bebês entre 1996 e 1997 na Clipel - Clínica Pediátrica da Região dos Lagos, em Cabo Frio/RJ.
Na época, a instituição privada atendia o SUS e, segundo as denúncias, os óbitos decorreram de infecções hospitalares provocadas por falhas sanitárias.
A denúncia foi apresentada ao Sistema Interamericano ainda no ano 2000 por um grupo de mães, com apoio da ONG Justiça Global.
Esse é o primeiro processo internacional em que o país pode ser responsabilizado por violações sistemáticas ao direito à saúde de recém-nascidos e de seus familiares.
Reparação
O julgamento ocorrerá em Assunção, no Paraguai, e contará com depoimentos de oito famílias, parte deles por escrito.
A defesa sustenta que o caso não se limita às mortes, mas expõe o sofrimento prolongado dos parentes e a ausência de responsabilização estatal.
As mães comparecerão vestidas de branco, como ato simbólico, e reforçam um lema que mantêm desde o início da mobilização: "ninguém solta a mão de ninguém".
Omissões
As mortes foram denunciadas ao MP/RJ em 1997, mas até hoje ninguém foi responsabilizado.
Na época, investigações apontaram condições precárias na clínica, como uso inadequado de jalecos, falta de higienização e superlotação.
Mesmo assim, perícias oficiais concluíram que a unidade cumpria normas de higiene, o que levou à absolvição de oito médicos indiciados por homicídio culposo em 2003 - decisão confirmada pelo TJ/RJ em 2005.
Um laudo paralelo, solicitado pela médica e então deputada estadual Lúcia Souto, demonstrou que a taxa de mortalidade da Clipel era três vezes superior ao aceitável, com dezenas de óbitos relacionados à bactéria Klebsiella pneumoniae.
Segundo o jornal O Globo, o ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania afirma que, em caso de condenação, o Estado brasileiro deverá cumprir a sentença, que terá reflexos diretos na política pública de saúde.
Dimensão estrutural
Segundo a Justiça Global, ONG que acompanha o caso desde 2000, o julgamento ultrapassa o mérito jurídico das mortes ocorridas na Clipel e alcança a raiz do problema: a persistente negligência estatal na área da saúde materno-infantil.
A organização lembra que, embora o Brasil tenha reduzido significativamente a mortalidade infantil nas últimas décadas, a taxa de óbitos neonatais segue elevada e desigual, sobretudo nas regiões mais pobres e entre crianças negras.
Dados da pesquisa Nascer no Brasil II (2020–2023), da Fiocruz, apontam que as desigualdades raciais e regionais ainda marcam a assistência, além da persistência de práticas como violência obstétrica, cesarianas desnecessárias e falhas de segurança hospitalar.
Para a entidade, o julgamento representa uma oportunidade de a Corte IDH exigir medidas estruturais de não repetição, como protocolos de segurança em UTIs neonatais, fortalecimento da atenção primária, combate à violência obstétrica e fiscalização mais rigorosa sobre prestadores privados conveniados ao SUS.
Nota da clínica
Em comunicado divulgado nas redes sociais, a direção da Clipel afirmou que os fatos em análise ocorreram há quase 30 anos, em uma antiga unidade que já não existe mais, sob outra gestão, estrutura e proposta de atendimento.
A clínica destacou que atualmente não possui UTI Neonatal e funciona apenas como pronto atendimento infantil, realizando transferências quando há necessidade de internação hospitalar.
A nota ressalta ainda que todos os profissionais envolvidos na época foram absolvidos pela Justiça brasileira em todas as instâncias, não havendo processos em andamento.
Por fim, reafirmou seu compromisso com um atendimento pediátrico "seguro, ético e humanizado".