A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou nesta sexta-feira, 26, em Assunção, a primeira audiência do caso “Mães de Cabo Frio x Brasil”, que apura violações de direitos humanos relacionadas à morte de 96 recém-nascidos entre junho de 1996 e março de 1997, na Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), em Cabo Frio/RJ.
O julgamento ocorre após denúncia apresentada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2024, que acusa o Brasil de violar os direitos à vida, à convivência familiar, às garantias judiciais, à proteção judicial, à igualdade perante a lei e os direitos das crianças previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).
Relembre o caso
Entre 1996 e 1997, cerca de 96 bebês morreram na UTI neonatal da Clipel, onde relatórios apontaram surtos de infecção hospitalar por agentes como Klebsiella.
As mortes mobilizaram familiares, que fundaram a associação Mães de Cabo Frio.
O caso passou por investigações locais e denúncias contra médicos, mas todos foram absolvidos por falta de nexo causal. Em 2000, as famílias recorreram ao Sistema Interamericano. Em 2022, a CIDH concluiu que o Brasil violou direitos fundamentais, e em 2024 o caso foi submetido à Corte IDH.
Linha do tempo:
- 1996–1997: mortes UTI neonatal
- 1997–1999: investigações e denúncias locais
- 2000: petição ao Sistema Interamericano
- 2003–2007: absolvições na Justiça brasileira
- 2022: CIDH conclui que houve violações
- 2024: envio do caso à Corte IDH
- 2025: audiência em Assunção
Pedido de desculpas
Durante a audiência, o Brasil reconheceu falhas e pediu desculpas às famílias. A AGU admitiu que a clínica, embora recebesse recursos públicos, funcionava sem as devidas autorizações e inspeções.
Segundo a advogada da União Ílina Pontes, a omissão “representa uma violação da obrigação estatal de garantir a proteção das crianças, sobretudo as que se encontram em instalações hospitalares, ainda que privadas”.
Também foi formalizado pedido de desculpas pelas manifestações discriminatórias do Ministério da Saúde na época, que, de acordo com Pontes, incorporaram estereótipos de gênero. “Por esse motivo, o Estado brasileiro pede, de maneira solene, desculpas às Mães de Cabo Frio e aos seus familiares”, afirmou.
Defesa brasileira
Apesar das desculpas, o Brasil contestou algumas acusações. A AGU alegou que:
- A maioria dos fatos ocorreu antes da adesão do Brasil à jurisdição da Corte IDH, em dezembro de 1998, o que impediria julgamento retroativo.
- A Corte não teria competência para analisar supostas violações ao direito à saúde em casos concretos.
Ainda assim, representantes do Estado ressaltaram que reconhecem as violações de direitos humanos e reafirmaram disposição em dialogar com familiares para buscar um acordo consensual.
Avanços e políticas públicas
Na audiência, o governo destacou ações implementadas nas últimas décadas para reduzir a mortalidade materna, infantil e neonatal. A delegação brasileira defendeu que as políticas públicas adotadas tiveram impactos concretos e mensuráveis, alinhados aos parâmetros internacionais de saúde pública e direitos humanos.
O procurador da União Boni Soares afirmou que o reconhecimento de violações fortalece a credibilidade do país:
“Um país como o Brasil só será efetivamente comprometido com o respeito e a garantia a direitos humanos na medida em que reconhecer os seus erros e reparar as violações cometidas por seus agentes.”
Dimensão estrutural
Segundo a Justiça Global, ONG que acompanha o caso desde 2000, o julgamento ultrapassa o mérito jurídico das mortes ocorridas na Clipel e alcança a raiz do problema: a persistente negligência estatal na área da saúde materno-infantil.
A organização lembra que, embora o Brasil tenha reduzido significativamente a mortalidade infantil nas últimas décadas, a taxa de óbitos neonatais segue elevada e desigual, sobretudo nas regiões mais pobres e entre crianças negras.
Dados da pesquisa Nascer no Brasil II (2020-2023), da Fiocruz, apontam que as desigualdades raciais e regionais ainda marcam a assistência, além da persistência de práticas como violência obstétrica, cesarianas desnecessárias e falhas de segurança hospitalar.
Para a entidade, o julgamento representa uma oportunidade de a Corte IDH exigir medidas estruturais de não repetição, como protocolos de segurança em UTIs neonatais, fortalecimento da atenção primária, combate à violência obstétrica e fiscalização mais rigorosa sobre prestadores privados conveniados ao SUS.
Decisão
As partes têm até 28 de outubro para apresentar alegações finais escritas. A sentença será divulgada nas semanas seguintes.
Se condenado, o Brasil poderá ser obrigado a pagar indenizações, oferecer assistência psicológica às famílias, reabrir investigações e adotar medidas para prevenir novas mortes em UTIs neonatais.