Por unanimidade, a Corte Especial do STJ condenou o desembargador Évio Marques da Silva, do TJ/PE, à pena de quatro meses e 20 dias de detenção em regime aberto pela prática do crime de lesão corporal leve contra a ex-esposa, em contexto de violência doméstica e familiar.
O colegiado reconheceu a materialidade e a autoria do delito, com base na palavra da vítima e em laudos psicossociais que confirmaram danos físicos e emocionais, destacando a gravidade da conduta. Também foi fixada indenização mínima de R$ 30 mil por danos morais.
Entenda o caso
O MPF denunciou o magistrado pela prática do crime de lesão corporal, previsto no art. 129, §9º, do CP, ocorrido no contexto de violência doméstica e familiar, em 30/1/20, na cidade de Igarassu/PE.
Segundo a denúncia, o desembargador teria agredido a então esposa ao ser flagrado retirando dois celulares de dentro do carro dela. A vítima sofreu escoriações e equimoses constatadas por laudo pericial, e o caso resultou na concessão de medidas protetivas de urgência.
Em resposta, a defesa sustentou a incompetência do STJ, argumentando que o fato não se relacionava com o exercício do cargo, e pediu a rejeição da denúncia por ausência de provas. Também alegou que as lesões seriam inexistentes ou autoinfligidas, apresentando vídeos e publicações antigas nas redes sociais da vítima que demonstrariam boa convivência.
O relator, contudo, recebeu a denúncia e manteve o processamento do feito na Corte Especial, reconhecendo a competência do STJ para julgar desembargadores mesmo quando o crime não guarda relação com a função pública, a fim de preservar a imparcialidade do julgamento.
Violência física e psicológica
Representado pela subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, o MPF defendeu a condenação, afirmando que a vítima sofreu violência física e psicológica ao longo de 25 anos de relacionamento, marcado por abusos, controle e desequilíbrio de poder.
Ressaltou que a relação teve início quando a vítima tinha 15 anos e o réu já era juiz, o que evidencia a assimetria etária e institucional presente desde o começo da convivência. Para a subprocuradora, essa diferença refletiu-se em toda a dinâmica do casal, reforçando a posição de domínio do acusado e o contexto de dependência emocional e econômica da vítima.
A defesa reiterou a tese de inexistência de crime, afirmando que o réu apenas segurou o braço da ex-esposa durante a disputa por um celular funcional e que as testemunhas não relataram agressão física. Alegou, ainda, que o BO e o exame de corpo de delito foram lavrados tardiamente cinco dias após o fato, e que fragilizariam a narrativa acusatória.
Voto do relator
Ao analisar o caso, o relator Antonio Carlos Ferreira destacou que o delito deve ser interpretado à luz da lei Maria da Penha e das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instrumentos que orientam o Judiciário a considerar o contexto estrutural de desigualdade e vulnerabilidade da mulher.
Para o ministro, o bem jurídico tutelado pela norma “não é apenas individual, mas também social, pois cabe ao Estado resguardar a incolumidade física e mental da pessoa vítima de violência doméstica”.
A decisão reconheceu que a materialidade está comprovada por boletim de ocorrência, laudo traumatológico e laudos psicossociais, os quais evidenciam lesões físicas e sofrimento emocional. A autoria, por sua vez, resulta de forma segura do depoimento da vítima e de testemunhas que presenciaram a discussão.
O voto enfatiza a relevância da palavra da vítima em crimes de violência doméstica e familiar, desde que coerente e sustentada por outros elementos de prova. Conforme a jurisprudência do STJ, o retorno à convivência com o agressor ou contatos posteriores “não descaracterizam a violência, mas refletem o ciclo de dependência emocional e econômica comum a essas relações”.
O relator também rejeitou as teses de autolesão e de interesse patrimonial, considerando que tais argumentos “buscam transferir à vítima a responsabilidade pela agressão sofrida, reproduzindo estereótipos de gênero ainda presentes na sociedade e no sistema de Justiça”.
Do mesmo modo, afastou a alegação de que o lapso entre o fato e o registro do boletim de ocorrência indicaria falsidade, observando que atrasos na denúncia são comuns em casos de violência doméstica, o que tem sido reconhecido em precedentes da própria Corte.
Dosimetria
Ao dosar a pena, o ministro considerou a culpabilidade elevada, em razão do cargo público e do alto grau de escolaridade do réu, e aplicou a agravante do motivo fútil (art. 61, II, “a”, CP), por entender que a agressão decorreu de discussão “absolutamente desproporcional” sobre o uso de um celular funcional.
Fixou a pena-base em quatro meses de detenção, aumentada para quatro meses e vinte dias, em regime inicial aberto, sem substituição por restritiva de direitos nem suspensão condicional, por se tratar de crime praticado com violência à pessoa.
Na parte cível, aplicou o entendimento do Tema 983/STJ, segundo o qual o dano moral em casos de violência doméstica é presumido (in re ipsa), e fixou indenização mínima de R$ 30 mil. O valor, afirmou o relator, “deve refletir não apenas o sofrimento da vítima, mas também o compromisso do Estado em concretizar a igualdade material entre os gêneros”.
A Corte Especial acompanhou integralmente o relator, condenando o desembargador Évio Marques da Silva pela prática de lesão corporal leve em contexto de violência doméstica, com pena de quatro meses e 20 dias de detenção em regime aberto e indenização de R$ 30 mil à vítima.
- Processo: Anp 1079