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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
A participação do Estado no futebol é indesejada. Sua função deve se restringir à criação de um ambiente adequado para o seu desenvolvimento. Por isso devem ser encontrados meios para reduzir e, idealmente, eliminar as formas pelas quais o Estado se envolve com a administração e o financiamento do jogo no Brasil. Realmente, o futebol brasileiro, conforme se organiza, depende de intervenções estatais. A mais recente foi o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, instituído pela lei 13.155, de 4 de agosto de 2015 ("Profut"). Ao aderir ao Profut, o clube se beneficiou de um parcelamento de débitos1 na Secretaria da Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Banco Central do Brasil, bem como os previstos na subseção II, no Ministério do Trabalho e Emprego. Além de prazo longuíssimo para pagamento - 240 meses -, também se lhe ofereceu redução de 70% das multas, 40% dos juros e 100% dos encargos legais. Os programas de salvação não são a única forma de financiamento Estatal. Isenções e perdões, nos planos Federais e municipais, costumam compor a cesta de bondades. Há mais, ainda. Certos clubes também recebem por meio de patrocínio, protagonizado por empresas públicas ou de economia mista, que distribuem milhões de reais para decorar suas camisas. A Caixa Econômica, por exemplo, pagará a 12 times, ao longo de 2016, o expressivo montante de R$ 122.000.000,00. Esse modelo é perdedor. O Estado não tem competência técnica para criar um sistema futebolístico compassado com a complexidade organizacional e competitiva dos tempos atuais. E os recursos empregados criam uma "indústria" que se acomoda com a certeza do resgate e do tratamento diferenciado. A função, diante desse cenário, deve se limitar à criação do ambiente para o resgate e o desenvolvimento do futebol. E isso se alcança por meio do exercício de sua competência legislativa. Inclusive para prover uma solução à bilionária dívida de que é credor. Antes de se apresentar uma solução, faz-se um alerta. Ao se propor a atuação estatal por meio de produção legislativa, não se sugere, em hipótese alguma, estatizar o futebol. Ao contrário, o propósito é livrá-lo, como já revelado acima, do Estado- financiador. Também não se pretende, por outro lado, entregar o futebol ao mercado, para que dele extraia os lucros que o motivam, sem qualquer forma de controle ou limitação. O caminho ideal, ainda inédito no planeta - mesmo nos países europeus ocidentais que protagonizam o esporte mundial -, que não soube modular adequadamente os valores sociais, culturais e econômicos envolvidos, está na proposição de vias de direito que possam estancar e reverter a metástase sistêmica. Uma delas - que parte da premissa de que o clube constitua uma sociedade anônima do futebol ("SAF") para gerir o futebol profissional de modo autônomo e isolado de todas as demais atividades sociais e esportivas, sob um modelo de governação arquitetado para solucionar problemas do passado e construir os alicerces para o futuro - envolve o pagamento da dívida tributária com ações da SAF. Assim, num primeiro momento, clube e Estado seriam sócios, acionistas de uma mesma empresa, com fins lucrativos. O clube na qualidade de controlador da SAF e o Estado de acionista minoritário. Como consequência, um se livra da dívida e o outro recebe um ativo - ações -, em troca de um crédito tributário que se alonga há décadas. Essa solução somente se implementaria se houvesse convergência de vontades, não por imposição. A vontade do clube se manifestaria pela necessária aprovação dos associados, reunidos em assembleia geral; e o Estado somente converteria a dívida ou receberia ações em pagamento se o negócio se justificasse economicamente, na forma estabelecida em lei especial. Mas se deve aqui reconhecer uma segunda premissa. A manutenção da participação na SAF não é benfazeja ao Estado. Tampouco aos clubes ou a essas companhias, pois se veriam envolvidos em tramas políticas que não lhes tocam e que poderiam prejudicar o rendimento profissional. Por isso, a participação deve ser provisória, e não definitiva, apenas como via para pagamento da dívida tributária, em benefício do devedor e do credor. E como meio de libertação do Estado-financiador. A saída para o imbróglio é a obrigatoriedade da venda da participação, em determinado prazo e sob certas condições, por meio de leilões em bolsa de valores ou em mercado de balcão organizado, preferencialmente conforme regulação da Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). Venda essa que pode se realizar em bloco ou, ao contrário, com o propósito de pulverizar a participação entre milhares de pequenos torcedores-investidores, que passariam a manter uma relação patrimonial com o time (além da passional). Já existe, aliás, um normativo da CVM que trata da alienação de ações de propriedade de pessoas jurídicas de direito público e de entidades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público: a Instrução 286, de 31 de julho de 1998. Mas nada impede que a autarquia regule especificamente a situação da venda de participação futura no capital da SAF. O que falta, porém, é a lei especial que regule, em primeiro lugar, a criação da SAF, veículo para o surgimento do novo mercado do futebol e, em segundo, os mecanismos para transformação de dívida em participação acionária e, na sequência, para alienação no mercado. Esses são, aliás, alguns dos propósitos que justificam a apresentação do PL 5.082/16, que tramita no Congresso Federal. E que estabelece, em relação à conversão de dívida ou dação em pagamento com ações da SAF, o seguinte: "Art. 43. Lei especial deverá regular a participação da administração pública direta no capital da SAF, que somente será admitida no caso de subscrição de ações ou dação em pagamento, em ambos os casos decorrente de conversão ou de pagamento de débito da Associação ou da SAF com a administração. § 1º. A participação da administração pública direta será provisória, e deverá ser alienada, preferencialmente, mediante leilão, na forma da regulação da CVM. § 2º. A conversão ou o pagamento de que trata o caput deverá ser aprovado por acionistas que representem metade mais uma, no mínimo, das ações com direito de voto, dentre elas, necessariamente, as ações classe A, se maior quórum não for exigido pelo estatuto da SAF". __________ 1 A dívida dos clubes é estimada em R$ 4,8 bilhões.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Educação pelo futebol

Muitas teorias explicam a atual situação do futebol brasileiro. Algumas são convincentes, outras menos. Mas, sob qualquer que seja o ângulo de análise, todas convergem quanto à necessidade de mudanças. Dentre os aspectos que devem mudar, um dos mais relevantes, se não o mais, é a formação do jogador. Os clubes - em sua grande maioria - e o Estado não cumprem sua missão formadora. Desde cedo crianças são lançadas em um ambiente ultracompetitivo, que pretende gerar futuros jogadores para distribuição entre os principais clubes do país e, com sorte, exportá-los. A maioria, no entanto, fica pelo caminho. E assim se vai o sonho de uma vida melhor, para o jovem e para sua família. E emerge o pesadelo da insuficiência de formação, da falta de preparo para a vida fora dos campos, obrigando-o (o jovem), com muita frequência, a atuar em atividades que não exigem qualquer nível de escolaridade. Mesmo os meninos que vencem as barreiras iniciais e se projetam para o profissionalismo se tornam reféns de um sistema que os coisificam. E, invariavelmente, não os prepara para bem gerir suas conquistas, durante e após o término da carreira. É verdade que poucas carreiras emprestam tanto glamour como o futebol, alçando, em alguns casos, jogadores à posição de heróis. Também é verdade que alguns reúnem fortuna que supera as de bem-sucedidos empresários, profissionais liberais ou executivos de empresas, que carregam em seus currículos diplomas internacionais. Mas se fala da minoria. Esse cenário deve mudar. O futebol pode - e deve - cumprir uma função educadora, contribuindo para formação das crianças que se perderão pelo caminho e melhorando as condições daquelas que resistirão, tornando-as, assim, melhores profissionais. Os times peneiram e extraem, da sociedade, o que há de melhor no plano esportivo (ou o que há de mais resistente); e devem, em contrapartida, contribuir para a sociedade, exigindo e provendo uma formação compassada com os benefícios que dela extraem. Não se pode, também é verdade, fechar os olhos à posição dos clubes, que investem, desde a infância ou adolescência em meninos que, muitas vezes, não se tornam profissionais, esvaindo-se a expectativa de retorno do capital e do tempo investido. O interesse econômico do clube não pode, portanto, ser desconsiderado. Ao contrário: é fundamental que se pavimente a via que permitirá a adoção de um adequado modelo de governação, a captação de recursos e o incremento de investimentos, inclusive e especialmente para formação e educação de jogadores. Soluções podem ser construídas, no plano privado ou público. No primeiro, de modo isolado ou em conjunto. Por melhor concebida que seja uma proposta reformadora isolada, seu alcance é limitado. Não deve ser descartada ou desestimulada; é claro que não. Mas isso não afasta ações conjuntas, que podem, estas sim, ter o condão transformador. Ações conjuntas exigem um certo consenso. Algo que ainda falta ao futebol brasileiro. Os times deveriam admitir que, apesar de adversários em campo, são - ou deveriam ser - sócios fora dele. A força sistêmica fortalece os times, individualmente. Enquanto a união e a efetiva associação não se materializam, resta, então, ao Estado, no âmbito de sua competência legislativa, prover meios para que o futebol cumpra sua missão educadora. Talvez seja, aliás, por meio do futebol, o melhor caminho para atrair e manter crianças em sala de aula. Não se trata, é bom frisar, de movimento estatizante. Também não se trata de interferência do Estado no funcionamento do futebol. Muito pelo contrário. Trata-se de proposta de criação de um ambiente propício ao surgimento de um novo mercado do futebol, por meio de uma regulação que reconheça sua importância econômica e social. Em outras palavras, que liberte o futebol do Estado-financiador, tal qual se manifesta no Brasil, mediante iniciativa do Estado-Legislador. Esse é o propósito do Capítulo XVII do PL 5.082/16, que institui a sociedade anônima do futebol (SAF). Ele cria o programa de desenvolvimento educacional e social, por meio da celebração de convênios entre a SAF e escolas públicas. Os objetivos do convênio devem ser: (i) incentivo à assiduidade de crianças e jovens matriculados em escolas públicas; (ii) incentivo ao envolvimento e interesse dos alunos nas atividades educacionais promovidas pela escola; e (iii) formação de jovens atletas do futebol. Para que a SAF possa se beneficiar das contrapartidas previstas no PL 5.082/16, o convênio deve ser aprovado pelo Ministério da Educação. A aprovação depende da previsão de investimentos cumulativos, pela SAF: (i) na reforma ou construção, e manutenção, de quadra ou campo destinado à prática do futebol; (ii) na instituição de sistema de transporte das crianças e jovens qualificados à participação do convênio, quando a quadra ou campo não se localizar nas dependências da escola; (iii) na alimentação das crianças e jovens integrantes do convênio durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento; (iv) na capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para acompanhar as atividades no âmbito do convênio; e (v) na contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores-físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio. Por outro lado, para que a criança possa participar do convênio, ela deverá estar regularmente matriculada na instituição conveniada, manter um nível de assiduidade às aulas regulares e padrão de aproveitamento definidos pelo Ministério da Educação. Existe, portanto, um sistema de partidas e contrapartidas a todos os envolvidos. Neste sentido, também se oferece à SAF uma contrapartida: a possibilidade de deduzir, do lucro tributável para fins de apuração do imposto sobre a renda devido, o triplo das despesas comprovadamente realizadas no período base, em convênios desenvolvidos na forma do PL 5.082/16. Este modelo de dedução, aliás, já existe no sistema: foi concebido com base no Programa de Alimentação do Trabalhador, criado e mantido desde 1976, com o propósito de incrementar a dieta dos trabalhadores. Concluindo, o PL 5.082/16 não se limita a conceber uma via de direito para organização do futebol no Brasil. Ele também reconhece a importância do esporte no plano social e propõe um instrumento colaborativo, a fim de atrair crianças para sala de aula. E, assim, contribuir para sua formação.
Como o empresário financia a atividade empresarial? Mencionam-se, abaixo, três técnicas, possivelmente as mais adotadas no país. Essas técnicas, aliás, não se excluem, podendo ser utilizadas de modo simultâneo. A primeira consiste no emprego de capital próprio. Toda sociedade empresária dispõe, obrigatória e necessariamente, de um capital social. É condição de sua existência. Esse capital é fornecido pelos sócios, em caráter definitivo. Sua devolução - por meio de redução - somente pode se realizar em situações específicas, previstas em lei. Ao transferir o capital para sociedade, os sócios perdem aquela cifra; ela deixa de fazer parte de seu patrimônio, ingressando no da sociedade. Os sócios, em contrapartida, recebem ações (ou quotas) da própria sociedade. As ações (ou quotas) passam a fazer parte de seu patrimônio, em substituição ao capital transferido. Os recursos de sócios costumam ser limitados, de maneira que a sociedade usualmente recorre a outras fontes de financiamento de suas atividades empresariais. A segunda técnica consiste no empréstimo contratado junto a uma instituição financeira. Opera-se mediante a negociação de condições entre os contratantes. Uma boa contratação para o empresário é aquela em que o custo do empréstimo seja inferior ao retorno que se obterá com o emprego dos recursos emprestados. O problema, no Brasil, é que essa via de financiamento é proibitiva. Bancos, por aqui, por incrível que pareça, não têm vocação para emprestar. O risco é alto, e há outras formas de lucrar, com exposição menos importante. Além disso, a inexistência de um mercado competitivo, em planos municipal, estadual e federal, resulta em uma espécie de padronização de taxas, fixadas em patamares estratosféricos. E para completar, são requeridas garantias que nem sempre o demandante pode prover. Daí concluir-se que bancos não costumam ser a melhor via para financiamento da atividade empresarial. A terceira técnica, utilizada sobretudo pelas sociedades anônimas, é a emissão de valores mobiliários, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). São, geralmente, empréstimos que se realizam no mercado. Destacam-se, dentre eles, a debênture. A debênture é um título de dívida, que confere ao seu titular um direito de crédito contra a sociedade que a emitir. Seu custo costuma ser muito inferior ao custo de contratação de empréstimo a uma instituição financeira. O mercado brasileiro de debêntures vem amadurecendo nos últimos anos. A tabela abaixo indica o seu tamanho em cada um dos anos de 2010 a 2015: E como se financia o futebol? Ou melhor, qual dessas técnicas se presta, conforme o modelo atual do futebol brasileiro, a financiar a atividade desenvolvida pelos clubes? Aí está o problema: os clubes, com raras exceções, não são sociedades empresárias, mas associações civis, sem fins lucrativos. Seus associados não transferem recursos à associação com a finalidade de desenvolvimento de uma empresa, em troca de ações (ou quotas). Eles adquirem títulos patrimoniais, que lhes conferem direito de frequência e de participar da vida associativa. Os clubes também não se financiam no mercado de capitais, por meio de emissão de títulos de dívida, inclusive debêntures, porque não estão autorizados. Como regra, apenas sociedades anônimas, ou em certas hipóteses, sociedades limitadas, podem emitir tais títulos. E faz sentido: o mercado de dívida foi arquitetado para financiar a empresa, e não atividades sociais. Com isso o futebol brasileiro se afasta da técnica que, em princípio, é a mais atraente do ponto de vista econômico. Assim, se o capital próprio não é acessível e tampouco a emissão de títulos de dívida é permitida, restam os empréstimos bancários, que são os mais onerosos do ponto de vista financeiro. Para piorar o cenário, diante da atual situação econômica e patrimonial da maioria dos clubes, é comum encontrarem as portas fechadas para novos empréstimos. Ou, quando há instituições dispostas a emprestar-lhes, acabam se colocando de joelhos diante das exigências e das condições para realização do negócio. É pegar ou morrer. Valem, aqui, os seguintes parênteses: apesar das taxas altas, a postura dos bancos é compreensível diante da situação estrutural dos clubes e das políticas de governança, que não privilegiam a transparência, a modernização e a adoção de modelos compassados com a realidade empresarial da atividade que desenvolvem. O caminho para reversão dessa situação e para inserção num ambiente que permita o acesso a recursos para financiamento e desenvolvimento do futebol é a sociedade anônima do futebol ("SAF"). Trata-se de uma via de direito, prevista no PL 5.082/16, que oferece aos clubes os meios para, se e quando quiserem, criarem uma sociedade empresária, que poderá acessar não apenas o capital de seus acionistas, mas também aquele disponível no mercado. No caso específico da SAF, além da possibilidade de emitir os valores mobiliários "genéricos", regulados pela CVM, ela poderia, ainda, emitir um título especial, concebido especialmente para ela e para o desenvolvimento do futebol: a debênture-fut. Dentre outras características, e a fim de criar um mercado de títulos do futebol, prevê-se que os rendimentos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no país, sujeitem-se à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0%, quando auferidos por pessoa física; II - 15%, quando auferidos por pessoa jurídica. Aí está, enfim, parte da fórmula para o resgate e o crescimento do futebol brasileiro.
quarta-feira, 27 de julho de 2016

A administração no futebol brasileiro

Este texto trata da administração no futebol brasileiro. Entende-se por administração o conjunto de órgãos internos incumbidos da orientação, fiscalização e execução de atos ordinários e extraordinários dos clubes. Os órgãos desmembram-se, com bastante recorrência, em diretoria executiva, conselho deliberativo e conselho fiscal. E são compostos exclusivamente por associados. O exercício de cargo administrativo é voluntário e não remunerado. Trata-se, de um lado, de uma forma de contribuição do associado às coisas sociais com o propósito de manter e ampliar o patrimônio comum. Mas, de outro, de uma forma de exercício de algum - ou muito - poder, na esfera interna do clube, ou externa, perante os agentes que se relacionam ou gravitam ao seu redor. Esse poder se amplifica em função da importância social, econômica ou desportiva do clube, bem como da relevância e do tamanho da torcida de seu time de futebol. Não à toa que eleições, em alguns dos clubes, costumam ser acirradas e reproduzir, em menor escala, o modelo de campanha para cargos eletivos na esfera legislativa ou executiva. A principal diferença talvez seja a gratuidade da função. Enquanto políticos disputam vagas remuneradas, os associados de clubes lutam por cargos não remunerados. Os quais, no entanto, oferecem, como já dito, contrapartidas sociais ou pessoais, de distintas naturezas. Essa situação talvez não se mostre conflituosa no âmbito das relações puramente associativas que se produzem dentro do próprio clube. Mas revela um enorme desalinhamento quando esses clubes se envolvem em atividades econômicas complexas e competitivas, especialmente futebolísticas. E os seus interesses, assim como os interesses externos no clube e no time, extrapolam seus muros. É o caso, sem dúvida, das situações em que os clubes operam times de futebol que atuam profissionalmente e dispõem de torcedores não associados. Ora, há décadas o futebol deixou de ser uma atividade amadora, lúdica, como assim concebeu os seus organizadores e primeiros praticantes no país. Sua prática, ao contrário, envolve a adoção de técnicas empresariais e se passa num ambiente globalizado e sofisticado, que o trata como um negócio. A lei 13.155, de 4 de agosto de 2015, que criou o Profut, tentou dar um passo na forma de organização da administração do esporte e se coadunar com essa realidade. Nesse sentido, o art. 4o da mencionada lei estabelece que as entidades desportivas profissionais de futebol, para que se mantenham no Profut, cumpram certos requisitos, como: (i) a fixação do período do mandato de seu presidente ou dirigente máximo e demais cargos eletivos em até quatro anos, permitida uma única recondução; (ii) a comprovação da existência e autonomia do seu conselho fiscal; e (iii) a previsão, em seu estatuto ou contrato social, do afastamento imediato e inelegibilidade, pelo período de, no mínimo, cinco anos, de dirigente ou administrador que praticar ato de gestão irregular ou temerária. O problema é que o caminho adotado consiste na tentativa de melhoria do modelo existente, sem oferecer-se uma via alternativa para organização do futebol. Tentou-se exigir a adoção de certas condutas ou práticas consideradas de boa governança às associações civis, sem fins econômicos. Em outras palavras, tentou-se consertar o que não tem conserto. Apesar de bem-intencionada, a ideia produzirá apenas efeitos ilusórios. Ao final, tudo continuará como sempre esteve: clubes amadores, organizando atividades econômicas complexas, submetidas a políticas internas diversionistas, protagonizadas por pessoas que atuam voluntariamente, sem qualquer remuneração. Ainda mais: pessoas que não têm o dever de atuar com exclusividade nessas funções. E, por isso, dividem o tempo entre as coisas do clube, as coisas do futebol, e as suas atuações profissionais cotidianas. Daí se pode extrair a seguinte conclusão: no Brasil se convencionou que a administração do futebol não precisa de pessoas exclusivamente dedicadas a essa função, formadas e preparadas para lidar com o feixe de relações e situações inerentes a uma atividade que se torna cada vais mais complexa e competitiva. Explica-se, assim, o momento atual de penúria do futebol brasileiro. Explica-se, ainda mais, porque o país que dispunha dos mais apreciados produtos, ou seja, jogadores, times, campeonatos e a mística da seleção, está se transformando em um mero exportador de commodity. E nada explica os motivos pelos quais os sucessivos governos não se prestam a resolver, de uma vez por todas, a questão do futebol brasileiro, oferecendo-lhe uma via de direito compassada com o ambiente em que ele se insere. É possível que alguns governantes vejam no futebol apenas uma atividade esportiva, sem reflexos mais importantes. Outros, um instrumento de alienação ou apaziguamento das massas. Não é por aí. Sua potencialidade envolve a cultura e a economia. Esse esporte pode, como nenhuma outra atividade brasileira, integrar pessoas e contribuir para um sustentável desenvolvimento social e econômico. Aliás, essas características e oportunidades já foram sugeridas por Gilberto Freyre, para quem o "o desenvolvimento do futebol, não um esporte igual aos outros, mas uma verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura". Mas as oportunidades começam a se esvair. E mais grave: também começam a se dissipar os elementos irracionais que formaram a relação do brasileiro com o futebol e o tornaram belo, admirado e grandioso. Esse processo de autodestruição não se interromperá enquanto se continuar a defender que o futebol deve ser administrado de modo caseiro, altruísta e conforme um modelo jurídico criado para acomodar interesses puramente associativos.
quarta-feira, 20 de julho de 2016

Fusões e aquisições no futebol

O universo empresarial é palco permanente de negócios que afetam a propriedade societária. O mercado costuma referir-se a esses negócios como fusões e aquisições. A expressão vem do inglês: mergers and acquisitions. O Direito brasileiro regula certos negócios societários no Código Civil e na Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76). Vejam-se alguns. O art. 227 da lei 6.404/76 trata da incorporação, que é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra. Ao final, portanto, uma empresa "engole" a outra, sendo que o patrimônio da engolida passa a fazer parte da incorporadora. Os acionistas da incorporada deixam de ter participação nesta sociedade e recebem, em troca, participação da incorporadora. Verifique-se, abaixo, como isso funciona: Prosseguindo, o art. 228 da mesma lei trata da fusão. É a operação pela qual duas ou mais sociedades se unem, para formar uma nova. Resulta, assim, na extinção das fusionadas e na criação de uma nova sociedade. Os acionistas daquelas sociedades passam a deter participação apenas na sociedade que se cria. Do ponto de vista prático, trata-se de negócio que, no Brasil, quase nunca ocorre, justamente por promover a extinção das partes envolvidas. Com isso, a nova sociedade deve proceder a registros, atualizações, inscrições e praticar todos os demais atos inerentes ao início de uma atividade empresarial. De todo modo, resulta no seguinte esquema: Continuando, o art. 229 da lei 6.404/76 descreve a cisão. Expressa a operação pela qual a companhia transfere parcelas de seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a cindida se as versões envolverem todo o patrimônio; ou dividindo-se o seu capital, se a cisão for parcial. Esse negócio produz o seguinte efeito na cindida (no exemplo abaixo, envolvendo cisão parcial): A lei 6.404/76 também regula a alienação de controle. Esse tipo de negócio implica a transferência, direta ou indireta, de direitos de sócios que permitem o exercício do controle da sociedade. Não se encontra, nessa lei, a definição de controle; define-se, por outro lado, controlador. Controlador é a pessoa natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto que: (a) é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações sociais; e (b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento da administração. Outras operações são reguladas pela lei 6.404/76, como a transformação ou a aquisição de controle mediante oferta pública. Há, ainda, uma espécie de operação, não regulada especificamente, mas de ocorrência habitual: a aquisição de participação societária, sem envolver a transferência de controle. Nesse negócio, um ou mais sócios transferem, para outra pessoa, ações ou quotas de sociedade empresária, em número igual ou inferior à metade, menos uma, das ações votantes (ou das quotas) de sua emissão. O adquirente das ações passa à condição de sócio minoritário, ostentando os direitos previstos em lei ou negociados com o sócio controlador. Todas essas operações não se aplicam, como regra, aos principais clubes de futebol do Brasil. Porque eles não se organizam como sociedades empresárias; ou porque não criaram estruturas jurídicas, por eles controladas, que permitam sua inserção no ambiente dos negócios societários. Ao contrário: por essas bandas, manteve-se, sobretudo para os times mais importantes e tradicionais, o modelo secular e arcaico, que concentra nas associações civis, sem finalidade econômica, a operação e gestão da empresa futebolística. Mas não se deve comemorar a impossibilidade de ocorrência de negócios dessa natureza como se fosse uma qualidade do sistema. Aliás, a realidade, nos principais centros de prática do esporte, é outra. E, em relação aos negócios de fusão e aquisição, costumam ocorrer com certa frequência. Nesse sentido, vários negócios societários estamparam, recentemente, as manchetes dos principais jornais europeus, dentre os quais um envolvendo a Inter de Milão e, outro, o Atlético de Madri. No primeiro, o grupo chinês Suning adquiriu aproximadamente 70% do capital de uma sociedade empresária que opera a atividade futebolística do time milanês, com o propósito de "resgatar seu esplendor". O segundo teve como objeto a aquisição, pelo Atlético de Madri, de participação de 34,6% do time francês Lens, atualmente na segunda divisão do campeonato deste país. Pergunta-se, assim: e o Brasil com isso? Quais os reflexos e como deveria se posicionar? Primeiro, não existe um modelo europeu, mas vários. Cada país inseriu no seu sistema aquilo que atendia às suas demandas sociais e econômicas. Segundo, o Brasil deve refundar o seu modelo, visando a solucionar os seus problemas, e não copiar algum já existente - se bem que adaptações podem, e devem, sim, ser feitas, em relação a certas técnicas já consolidadas. Inclusive para lidar com situações de fusões e aquisições como as que envolveram Lens e Inter, sem perder de vista - e sem deixar de oferecer uma regulação adequada a - essa atividade (o futebol) que, além de suas características econômicas, carrega, para o brasileiro, uma enorme carga cultural e afetiva. Concluindo, o Brasil não suporta mais o anacronismo de sua estrutura, que direciona o seu futebol à periferia do esporte; de protagonista mundial a mero exportador de commodity. O Brasil reclama, portanto, um modelo que emancipe o futebol econômica e socialmente. E que o liberte, portanto, da escravidão a que times e jogadores permanecem submetidos1. E que regule, ademais, técnicas organizacionais e aquisitivas, e de exercício do controle societário, com o propósito de preservar esse seu patrimônio histórico e cultural. __________ 1 O parágrafo final foi inspirado em frase de Domenico Losurdo (A luta de classes. Uma História política e filosófica; tradução Silvia de Bernardinis - 1 ed. - São Paulo: Boitempo, 2015, p. 26).
Maicon, muito bom zagueiro do São Paulo Futebol Clube (SPFC), viveu um episódio que poderia ser incluído em uma hipotética refilmagem da obra-prima de Claude Lelouch, Retratos da Vida, em torno do futebol. Explica-se. Após a maior crise política da história do clube, que culminou com a renúncia, em 2015, do presidente eleito Carlos Miguel Aidar, seu sucessor, Leco, iniciou, em 2016, uma campanha futebolística marcada pela desconfiança. Torcida e imprensa questionavam a capacidade do time de protagonizar bons momentos, apesar de contar, em seu elenco, com alguns jogadores de grande qualidade. Leco decidiu, então, trazer para compor o grupo, por empréstimo de curta duração, um atleta radicado em Portugal, com certa idade e uma carreira marcada por altos e baixos: Maicon. Uma série de fatores contribui para que, apesar dos maus resultados nos campeonatos locais, o SPFC se projetasse e avançasse no torneio que sua torcida mais se identifica: a Copa Libertadores da América. No último jogo da fase classificatória, na altitude de La Paz, registraram-se momentos que ficarão na memória do torcedor: brigas, confusões e uma expulsão que levou o até então melhor jogador em campo, Maicon, a vestir a camisa de Denis, o goleiro, expulso ao final da segunda etapa. Como arqueiro, Maicon fez duas defesas que o lançaram - pelo conjunto da obra, é verdade - à candidatura ao posto de herói. Havia um problema, porém: o contrato de empréstimo se encerraria antes do início das semifinais da Copa Libertadores da América, interrompida por conta de um calendário desastroso que previa a realização de uma competição de seleções antes do término da competição de times. Encurralado, o presidente do São Paulo, homem sem dúvida alguma correto, sério e bem intencionado, havia de decidir entre manter o jogador e cultivar a esperança da torcida, ou sacrificar o caixa do clube. Importante lembrar que, em 2015, o SPFC encerrara o ano com uma dívida global de R$ 291 milhões. Para manter Maicon, o São Paulo haveria de desembolsar R$ 22 milhões. Uma fortuna, em qualquer situação. Sobretudo para um clube endividado, com poucas vias de financiamento de suas atividades - exceto as tradicionais, como patrocínio e direitos de transmissão -, e por jogador que já tinha certa idade e um futuro incerto. Novamente: Maicon é um muito bom jogador. E se mostrou, nos poucos meses em que comandou a defesa do time, uma peça essencial. Mesmo assim, o investimento se justificava? Como se ponderar o risco do investimento? E o seu retorno? O zagueiro veio. A torcida explodiu de alegria e lotou o Estádio do Morumbi para uma linda festa no primeiro jogo da semifinal. A confiança em seu novo capitão era absoluta. Mas não foi correspondida. Aos 28 minutos do segundo tempo, em uma atitude macunaímica, o quase-heroi se transformou no anti-heroi: um cartão vermelho o tirou do jogo. Não apenas daquele, mas do seguinte também, que se realizaria na casa do adversário. Pior: na sequência da expulsão, aproveitando-se da ausência do expulso - o que, de certa forma, revelou sua importância -, o SPFC tomou dois gols, tirando suas esperanças de prosseguir na competição - ou tornando a missão praticamente impossível. Maicon falhou. O que reforça sua condição de ser humano - negando o heroísmo que se pretendeu emprestar-lhe. Ele pode ser criticado pela infantilidade de seu gesto, mas jamais condenado. Talvez, até, ilustrado como mais uma vítima do modelo que precisa de heróis para se afirmar, se alimentar e se preservar. Criticar Leco pelo teatro do absurdo é, também, um absurdo. Ninguém poderia, jamais, imaginar tamanha dramaticidade. Talvez uma falha em campo, uma partida mal jogada por parte do novo contratado; mas não um retrato tão dramático da vida. Leco, assim como os demais presidentes sérios de clubes de futebol, são reféns do mesmo modelo que prioriza o amadorismo. E também o jeitinho. E as decisões passionais ou oportunistas, movidas pelos gritos das ruas. Mas não devem, por outro lado, ser tratados como vítimas; porque isso não são. São algozes de si próprios. E culpados - para usar uma expressão forte, é verdade, mas realística - pela passividade com que aceitam o modelo. E reverberam o dogma de que o futebol é diferente, que "a gestão de um clube de futebol não é semelhante à de uma empresa, pois envolve paixão". A decadência do jogador brasileiro, do clube brasileiro e da seleção brasileira não é obra do acaso. É obra de seres humanos, que não percebem a relevância de suas funções e a importância que o esporte tem nos planos educacionais, sociais e econômicos. Pode-se, no entanto, virar o jogo. Basta que essas pessoas se unam. Em torno de um projeto de futebol para o Brasil. E contra esse estado de coisas que escraviza os times brasileiros.
Rodrigo R. Monteio de Castro e Glauco Martins Guerra Em entrevista publicada na Folha do dia 2 de julho, Leonardo, ex-jogador da seleção brasileira, do São Paulo, do Flamengo e do Milan, dentre outros times, afirma que a salvação do futebol depende dos clubes. O peso de sua afirmação não se mede apenas por sua experiência nos gramados, mas, também - e especialmente - pelo seu conhecimento acumulado fora dele: além de técnico, Leonardo teve passagem na função de executivo de times importantes como o PSG. A afirmação é sem dúvida correta. Mas deve ser lida juntamente com outra sua proposição, contida na mesma matéria, que sustenta e justifica a primeira: a necessidade de mudança da estrutura jurídica dos clubes brasileiros. Dessas proposições extrai-se, portanto, o seguinte: enquanto os clubes brasileiros não tiverem força, continuarão a ser subjugados e se manterão no atual processo de apequenamento; e, enquanto forem associações civis, sem fins lucrativos, os clubes manterão uma visão e uma conduta política, pautada e comandada por seus dirigentes-políticos, que, segundo palavras de Leonardo, "nos impede de ser atuais". A saída para esse ciclo vicioso, que entrou numa espiral perdedora, em todos os planos - clubístico ou do selecionado nacional -, passa pela coragem na implementação de um novo modelo, que deve priorizar os aspectos esportivos e econômicos, em detrimento da politização amadora. Isso somente se resolve, no atual estágio do futebol brasileiro, por meio da criação de uma via jurídica que ofereça o ferramental necessário para a criação e o desenvolvimento de um ambiente que atraia agentes que, historicamente, se trataram como incompatíveis. A incompatibilidade é falsa, porém. Foi- e ainda é - dogmatizada justamente por esse discurso político, avesso à ruptura com o modelo arcaico que vige no país. E que pretende incentivar e reforçar o sentimento de incompatibilidade. Não existe, é bom repetir, incompatibilidade entre a tradição dos times e do jogo de bola, de um lado, e o capital, de outro. O que existe, isto sim, é um chassi regulatório inadequado - ou a falta dele. Um chassi regulatório que reconheça os aspectos fundamentais a serem tutelados, em nome da preservação histórica e cultural do futebol. E que, justamente por conta dessa motivação, ofereça os instrumentos necessários para financiamento desse propósito. Aí está, de modo simplista, a demonstração de que, ao contrário do que as poucas pessoas que se apoderaram da cultura de um povo pretendem reverberar, futebol e capital podem se atrair. E podem conviver, fortalecendo-se um com o outro. Desde que um não explore ou subjugue o outro. Esse foi o caminho percorrido por grande parte dos grandes times do planeta. E somente a partir do momento em que decidiram percorrê-lo, eles puderam defender e impor seus interesses, antes manipulados por entidades centralizadoras e monopolistas. Entidades que não tinham interesse no fortalecimento dos times. Pois a força os libertaria. Como de fato os libertou. A mesma liberdade que poderão ter os clubes brasileiros. E como fazê-lo? Aí está o problema. E a solução não é simples. Endividados, desacreditados, sujeitos a sistemas políticos internos incompatíveis com a atividade econômica que administram - e na qual se inserem -, os clubes não têm, atualmente, meios de reverter o jogo, sem o apoio de um agente superior. A ilusão não pode turvar a realidade. Os clubes se submetem, necessariamente, a um poder organizador que não se interessa pela reversão desse quadro. A força dos clubes implica enfraquecimento da CBF; inversamente, a crise clubística fortalece a CBF. Aí surgem algumas questões fundamentais. O futebol é um bem público? Ou será um "patrimônio nacional"? A CBF seria seu "agente regulador", do ponto vista da organização do Estado? Aqui não há dúvida: não. E como conjugar essas questões, algumas, inclusive, ainda não respondidas. O futebol possui um papel institucional que transcende, por sua história de conquistas e pelo enorme apelo popular, os limites do campo e da paixão, atingindo dimensões econômico-sociais que justificam uma regulação apropriada. A CBF é uma entidade tipicamente privada. Superavitária, estruturada para atingir os seus próprios interesses, detentora de algumas dezenas de marcas, já registradas ou em processo de registro (a exemplo de Taça de Ouro - registrada; Seleção Brasileira de Futebol - registrada; Copa do Brasil - registrada; Somos Todos Futebol - no aguardo de exame para registro; We are all Footbal - no aguardo de exame para registro). Todas as suas ações, condutas e atuações envolvem os nomes Brasil e Brasileiro. As cores que adota são as da Bandeira. O hino, o Nacional. Ela atua em nome do país em competições internacionais. E, novamente, organiza o futebol, um bem econômico em sentido estrito, no plano interno. Esse quadro mostra a importância e alcance que um ente jurídico do porte da CBF representa no cenário esportivo de uma das 10 principais economias atuais e a maior ganhadora de campeonatos mundiais da história do futebol. Como então compreender - ou melhor, aceitar - que essa entidade assuma características de uma verdadeira "Corporação de Ofício", no melhor estilo medieval do termo, auto regulamentando um mercado que, por suas características e dimensões, teria tudo para ser lucrativo, autônomo e independente, empresarialmente estruturado, inclusive em regras de governança e compliance, e eficiente, tanto social como economicamente? A única forma de reverter esse cenário é por meio da atuação de um poder maior, superior e legitimado a fazê-lo. O único poder que realmente tem a atribuição de, por meio de políticas públicas, zelar pela preservação da cultura de um povo: o Estado. E a função do Estado, no caso do futebol, não consiste em financiá-lo ou praticar ações intervencionistas em seu funcionamento. Definitivamente não. Cabe ao Estado criar os meios necessários à implantação de um ambiente que induza os clubes a deixarem de agir como clubes, e sim por meio de sociedades empresárias - as sociedades anônimas do futebol. Para que, nesse ambiente, as sociedades anônimas do futebol possam - caso queiram, é sempre bom destacar - captar recursos, investir em suas atividades, sobretudo na formação, educação, treinamento e manutenção de atletas, e gerar receitas. Dessas receitas, reinvestir parte em suas atividades. E outra parte reverter aos seus acionistas, clubes e investidores de mercado, que houverem acreditado na proposta modernizante. Esse toque de letra permitirá que o Estado deixe de financiar o amadorismo e a ineficiência e passe a legitimamente tributar a renda auferida pelas novas empresas econômicas, aumentando, assim, sua receita. Esse ciclo virtuoso parte - o craque Leonardo tem absoluta razão - do fortalecimento dos times. E, continuando na linha do seu raciocínio - com o qual, aliás, esta Coluna concorda e vem, desde a sua criação, enfatizando - somente se implementa mediante a imposição de um novo marco regulatório. Marco este que crie um mercado do futebol. Marco que não será proposto pela CBF, mas sim protagonizado pelos clubes que ousarem enfrentar o poder central - um poder privado -, algo que, diante da periclitante situação financeira da grande maioria, é improvável ocorrer nas atuais circunstâncias. De maneira que o Estado deve agir. O verbo é este mesmo: trata-se de um dever. E rápido. É caso de urgência e necessidade. A ação não pode repetir os erros do passado. Não se trata de simplesmente prever que clubes se transformem ou constituam sociedades anônimas do futebol. Isso já foi tentado, mutatis mutandis, com a Lei Zico e com a Lei Pelé, ambas rapidamente subjugadas pelo status quo auto regulatório da CBF, em sua incrível capacidade de controle entrópico. Não é por aí, portanto. O Estado deve reconhecer a necessidade de inclusão da formação do mercado do futebol na agenda prioritária de políticas públicas. O Estado deve orientar seus agentes, como a CVM, na implementação das ações necessárias para que o futebol possa servir como elemento de integração nacional, desenvolvimento social, cultural, educacional e econômico. O Governo que se mantiver inerte em relação a tamanha prioridade perderá uma oportunidade histórica de reconstruir o ludopédio, transformando as relações de suserania e vassalagem que hoje pautam o futebol brasileiro. *Glauco Martins Guerra é advogado.
quarta-feira, 29 de junho de 2016

O futebol e o mercado

Resgata-se na coluna de hoje o tema explorado no texto publicado semana passada. O ponto de partida é o mesmo: o projeto de lei 5.082/16, do deputado Federal Otavio Leite (PL 5.082/16), que propõe a criação da sociedade anônima do futebol (SAF) e de um mercado do futebol. Naquela oportunidade se viu que grupos de interesse que controlam o futebol brasileiro intensificam o dogma de que o modelo que se adota nos principais países praticantes do esporte em alto nível é incompatível com a história, a tradição e a cultura do país. Motivo pelo qual, segundo tais grupos, se deve defender a manutenção do status quo e repelir certas proposições que, na verdade, pretendem abrir caminho ao entreguismo da relíquia nacional. Essa defesa, cujos argumentos melhor se enquadram em uma espécie de filosofia do absurdo, torna-se ainda mais absurda quando se analisam os resultados alcançados - ou não - pelos donos do poder. Vejamos algumas referências e certos números. 1. O Brasil deixou de ser a maior potência do futebol mundial; ao contrário, vem encenando recentes e sucessivos vexames históricos. 2. Aliás, nem mesmo o protagonismo regional é capaz de exercer, conforme demonstram os fracassos nas duas últimas edições da Copa América. 3. Seus jogadores abandonam o país muito cedo, sem preparo, formação e condições para enfrentar o duro movimento migratório, malvisto sobretudo em uma Europa que volta a flertar com o nacionalismo - inclusive no futebol. 4. O êxodo decorre sobretudo da impossibilidade dos clubes de se financiarem e investirem na formação, na educação e na manutenção de atletas no país, o que impediria sua coisificação; ou, em outras palavras, sua equiparação, no plano econômico, ao conceito de commodity. 5. O resultado disso é a falta de identificação dos jogadores - e da própria seleção brasileira - com o seu povo. Algo inimaginável, anos atrás, quando movimentos de distintas ideologias se apropriaram ora para justificar o sistema de exceção - e a grandeza do seu povo -, ora para ilustrar e apoiar o fim deste mesmo sistema - e enaltecer as qualidades do mesmo povo. A lista poderia seguir por páginas e páginas. Mas se passa da retórica a alguns números, para, na sequência, retomar a importância do PL 5.082/16 e o risco de sua malversação, justamente pelos donos do poder. 1. Os 20 times que jogaram a primeira divisão do campeonato brasileiro de 2015 fecharam o ano com R$ 4,8 bilhões de dívidas. A dívida, 5 anos atrás, não atingia metade dessa cifra1. 2. O Flamengo, time que ostenta a maior torcida do país - e, portanto, que tem o maior mercado consumidor -, fechou 2015 com uma dívida de R$ 546 milhões; Atlético mineiro, com uma dívida de R$ 530 milhões; Corinthians, que carrega a maior torcida de São Paulo e a segunda do país, com R$ 363 milhões; e Internacional, com R$ 259 milhões2. 3. 85 clubes aderiram, em 2015, ao Profut, o programa de modernização da gestão e de responsabilidade fiscal do futebol brasileiro, criado para salvá-los da insolvência. Naquele momento, o montante da dívida dos clubes com o fisco era da ordem de R$ 3,83 bilhões. 4. Não satisfeito em financiar o futebol por meio de parcelamentos, isenções tributárias, redução de alíquotas e perdões de dívidas, o Estado ainda o financia, indiretamente, por meio da injeção de patrocínios da Caixa Econômica Federal a 12 times brasileiros, no valor de R$ 122 milhões em 2016, demonstrando a incapacidade dos clubes de exercerem suas atividades sem alguma forma de subvenção. 5. A receita agregada de 2015 dos 20 clubes que jogaram a primeira divisão foi de R$ 3,6 bilhões (ou 962,8 milhões de euros3 - 4). 6. Enquanto isso, a CBF, protegida por um estatuto privado que lhe confere o monopólio organizacional do futebol no país, apurou, nos anos de 2014 e 2015, receitas de R$ 519 milhões e R$ 518,9 milhões, respectivamente. 7. Do faturamento de 2015, 82%, ou seja, R$ 425,6 milhões, são provenientes apenas da seleção5, revelando o seu desinteresse ou sua falta de capacidade de ampliar receitas com campeonatos, copas ou outras atividades relacionadas aos clubes. Pegue-se, por fim, uma pequena série de números alcançados por times europeus6 e sua comparação com números dos brasileiros. 1. O Real Madrid apurou uma receita de 577 milhões de euros (R$ 2.157.345.300,00). 2. A receita do Barcelona, no mesmo período, foi de 560 milhões de euros (R$ 2.093.784.000,00). 3. O Manchester aparece em terceiro, com 519 milhões de euros (R$ 1.940.489.100,00). 4. Em quarto surge o PSG, com 480 milhões de euros (R$ 1.794.672.000,00). 5. E, completando o time dos 5 maiores, o Bayern, com 474 milhões de euros (R$ 1.772.238.600,00). 6. O trigésimo time da lista é o Napoli, com faturamento de 125 milhões de euros (R$ 467.362.500,00). 7. Nenhum time brasileiro comparece entre os 30 maiores. 8. A receita da CBF, em euros, a colocaria na 24ª posição, atrás de times como Aston Villa, Southampton, Galatasaray, West Ham United, Internazionale, AS Roma, Atlético de Madrid, Milan, Tottenham e Juventus. 9. A CBF é pouco mais de 10% maior do que o Napoli. 10. O Real Madrid e o Bayern, juntos, são maiores do que os 20 clubes brasileiros que disputaram a primeira divisão do campeonato nacional de 2015. 11. O Real Madrid e o Barcelona são maiores do que os 20 clubes e a CBF, juntos. Muito bem. O que a retórica inicial e os números apresentados indicam? A resposta é muito simples: o modelo brasileiro está esgotado. E ainda resiste apenas pelas ações políticas de um pequeno grupo de interesse que defende o seu próprio interesse. Não do futebol. Não dos times ou dos jogadores. Muito menos do torcedor. E que, por isso, recusa o debate sobre novos métodos de administração do esporte. Mas que, aparentemente, não hesita em se aproveitar de instrumentos de mercado, previstos e sugeridos no próprio PL 5.082/16, para reforçar o modelo existente e os seus interesses. É o que se extrai, por exemplo, da proposta de se estender aos clubes, organizados sob a forma de sociedades civis sem fins lucrativos, sujeitos a uma lógica associativa e amadora, com um sistema de governança que acomoda interesses de todas as áreas de prática esportiva e congregações sociais, o direito de emitir valores mobiliários, títulos de dívida e outros, para financiamento de suas atividades. Quer-se, com isso, a manutenção da arcaica modelagem que levou o futebol brasileiro à situação que se ilustrou acima e, ao mesmo tempo, o acesso a recursos financeiros - disponibilizados às empresas que se submetem a um regime jurídico distinto e que se regem por lógicas empresariais - com o propósito de manutenção e intensificação deste estado de coisas. Não é correto. Não é aceitável. É um absurdo. Ou se admite que o futebol é uma atividade de interesse público, a ser financiada pelo Estado - por meio de diversas técnicas, como isenções, renúncias, perdões, parcelamentos ou patrocínios - e praticada por entidades não econômicas - e se assume a condição de coadjuvante no ambiente global -; ou se reconhece que o Brasil carece de um modelo que lhe permita financiar a formação, a manutenção e o desenvolvimento do futebol, a exemplo da SAF, prevista no PL 5.082/16, e se parte para sua regulamentação e implementação (assim como ocorreu em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Áustria, Alemanha, Inglaterra, México, Colômbia e Chile). A SAF, é sempre bom ressaltar, deve se submeter a um novo sistema, um ecossistema sustentável, transparente, profissional e que realmente reconheça o futebol como bem cultural e, ao mesmo tempo, como atividade de enorme viabilidade econômica. __________ 1 Cf. Capelo, Rodrigo. 2 Idem. 3 Conforme taxa de cambio de fechamento do dia 27/6/16, de R$3,7389, adotada em todas as conversões realizadas neste texto. 4 Em ordem decrescente de faturamento: Cruzeiro, Flamengo, Palmeiras, São Paulo, Corinthians, Internacional, Atlético Mineiro, Grêmio, Vasco, Fluminense, Santos, Atlético Paranaense, Sport, Coritiba, Goiás, Ponte Preta, Figueirense, Chapecoense, Joinville e Avaí. Cf. Capelo, Rodrigo. 5 Capelo, Rodrigo. 6 Deloitte.
quarta-feira, 22 de junho de 2016

O futebol e o lucro

Já se mencionou, nesta coluna, a existência de um projeto de lei, do Deputado Federal Otavio Leite (PL 5.082/16), que propõe a criação da sociedade anônima do futebol (SAF). Um dos únicos argumentos - ou talvez o único - que foram suscitados contra a proposta consiste num possível conflito entre a natureza econômica da atividade desenvolvida pela SAF e a intransigência do torcedor, sempre motivado pelas vitórias e pelos títulos. De acordo com essa visão, tal relação conflituosa oporia a SAF e seus acionistas, que visariam ao lucro, ao torcedor, que, diante de um cenário de contas em dia e uma administração ética e profissional, de um lado, e a contratação de grandes jogadores e títulos, de outro, não hesitaria pela segunda. Com isso, clube e investidores também se posicionariam em possível situação conflituosa, pois aquele haveria de seguir o desejo do torcedor, mesmo à conta da saúde financeira da SAF, enquanto o investidor agiria de modo frio e calculista, visando apenas o lucro. Esse conjunto de coisas enalteceria a paixão pelo time como elemento diferenciador das empresas econômicas do futebol, manejadas pelas futuras SAF's, das empresas econômicas ordinárias, sujeitas apenas às inflexões de mercado. E representaria o motivo pelo qual, para alguns críticos, o futebol brasileiro deve permanecer sob a gestão de associações civis, sem fins lucrativos. Revela-se aí o suposto problema que, muito bem amplificado, sustenta a manutenção de um modelo que, de anos para cá, tornou-se indefensável. Daí a importância de sua desmistificação. Parte-se, neste breve artigo, de uma série de questões a respeito do funcionamento da sociedade anônima para, na sequência, abordar-se o tratamento da SAF. Os focos da breve investigação são a sistemática do lucro e o poder dos acionistas e administradores de agirem contra o interesse social. Vejamos, sob a forma de perguntas e respostas. 1. O acionista de uma sociedade anônima pode embolsar todo o lucro anual? O art. 202 da Lei 6.404/76 determina que o acionista tem direito de receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela de lucros estabelecida no estatuto. Se a previsão for de, por exemplo, 25%, é esse o montante que será distribuído. O restante será mantido em reserva da SAF. 2. E se o estatuto for omisso? Aponta-se, em primeiro lugar, que essa omissão é de rara ocorrência, justamente porque cria uma situação de imprevisibilidade, pouco desejada por quem destina recursos para aquisição de ações. O investidor, antes de adquiri-las, verifica a situação da companhia, suas perspectivas de crescimento e retorno, e sua capacidade de gerar excedentes e distribuir dividendos. Como ele é livre para investir onde quiser, se compra é porque vê boas perspectivas ou oportunidades, mesmo que, eventualmente, não se trate expressamente do montante mínimo a distribuir anualmente. Mas, caso uma companhia deixe de definir o dividendo obrigatório, o mesmo art. 202 estabelece critérios que devem ser observados, a fim de que não se prive o acionista de algum retorno. Funciona, resumindo, da seguinte forma: apura-se o dividendo mínimo pelo cálculo de metade do lucro líquido do exercício, diminuído ou acrescido dos seguintes valores: (a) importância destinada à constituição da reserva legal; e (b) importância destinada à formação da reserva para contingências e reversão da mesma reserva formada em exercícios anteriores. 3. Podem os acionistas de companhia cujo estatuto seja omisso reformá-lo para introduzir norma sobre a matéria? Sim. Mas, nestes casos, a lei 6.404/76 impõe um piso, para evitar que o acionista controlador defina percentual desprezível. De modo que a reforma não poderá contemplar número inferior a 25%. Note-se que a lei reconhece a importância do dividendo, que é, aliás, um direito essencial do acionista, mas, por outro lado, assume que nem todo lucro deve necessariamente ser distribuído, pois pode comprometer os planos empresariais ou, no limite, abalar a liquidez da companhia. 4. O que se pretende tutelar com esse conjunto de normas? Tutela-se o direito do acionista, não controlador, ao recebimento de dividendo. De algum dividendo. Ou seja, aquele previsto no estatuto ou, se omisso, indicado na lei 6.404/76. Por outro lado, inibe conduta do acionista controlador que, por algum motivo, queira preservar todos os recursos em caixa. Para o bem da companhia ou, em situações patológicas, para o seu proveito. 5. Qual a destinação dos lucros que excedam o dividendo obrigatório? A destinação será aquela deliberada pela assembleia geral dos acionistas. A deliberação será tomada por maioria. Caso não se distribua o excesso, o lucro será destinado a reservas, e os recursos correspondentes reforçarão o caixa da companhia. 6. Muito bem. E como fica a SAF diante dessas normas? Primeiro, esse conjunto normativo complementa o PL 5.082/16, por determinação de seu art. 2º, de modo que se aplicam igualmente à SAF, impondo, assim, um útil e necessário sistema de controle de decisões. Segundo, ao constituir a SAF, o clube definirá, em seu estatuto, o dividendo obrigatório. Caso defina, por exemplo, 15%, esse será, necessariamente, o montante a ser distribuído. Eventuais modificações deverão observar o PL 5.082/16, a lei 6.404/76 e o estatuto da SAF, e todos os seus procedimentos, evitando decisões apressadas e populistas, ou abusivas por parte de algum agente. Terceiro, se em algum exercício social o dividendo obrigatório se mostrar incompatível com a situação financeira da SAF, seus administradores darão notícia à assembleia geral, para deliberação a favor ou contra a proposta de pagamento. Quarto, e voltando para uma situação de normalidade financeira, pode um acionista minoritário, com propósitos puramente especulativos e imediatistas, sem qualquer vinculação com o time, exigir o pagamento de dividendos superiores ao obrigatório, afetando a situação financeira da SAF? Ele pode, sim, sugerir, mas exigir, não. E caso o tema vá para deliberação, prevalecerá a posição da maioria. Se o clube detiver a maioria, a deliberação não se toma sem a sua vontade. Quinto, podem surgir divergências entre clube e investidores, ambos atuando como acionistas? Claro que sim, da mesma forma que surgem em outras companhias, com objetos sociais diferentes. E como se resolvem? Como regra, pela deliberação da maioria. Se o clube detiver a maioria, irá nortear o resultado da deliberação. Se for acionista minoritário, haverá de se sujeitar à decisão majoritária (exceto em relação às matérias que, conforme o PL 5.082/16, ele dispuser de poder de veto). Sexto, mesmo que surjam conflitos entre acionistas, os órgãos de administração da SAF - que se desdobram em conselho de administração, cuja metade dos membros menos um, pelo menos, deve ser independente, e a diretoria, que deve ser profissional - saberão lidar com a situação e arbitrar no interesse da sociedade, e não de um ou outro acionista. O modelo obrigatório de governança da SAF fortalece a posição dos administradores e sua conduta no interesse social. Sétimo, caso o acionista controlador da SAF, seja ele o clube ou um investidor, pratique atos com abuso de poder, como o de orientar a SAF a fim estranho ao seu objeto social, ou induzir ou tentar induzir administrador a praticar ato ilegal, responderá pelos danos causados. Oitavo, os administradores que agirem, mesmo que dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto, respondem civilmente pelos seus atos. Essa estrutura traz a gestão do futebol para um plano que, além de não colidir com a tradição do futebol, o protege - ou criar instrumentos para protegê-lo - de atuações oportunistas, interessadas e amadorísticas. 7. Para concluir essas breves reflexões, como ficam os torcedores caso o clube constitua uma SAF? Ficam exatamente como estão. Assim como também ficaram os torcedores de Bayern, PSG, Sporting, Arsenal, Juventus, Roma, Milionários, Colo-Colo e dezenas de outros que romperam com o dogma da relação futebol/amadorismo. Ou, espera-se, ficarão em melhor posição, pois as decisões da SAF serão pautadas não apenas pela concepção imediatista do lucro, mas, também, pela necessidade de aproximação de seu público torcedor/consumidor. E quanto mais lucro gerar, maior será a capacidade investimento e atração de novos recursos, e maior será, provavelmente, o envolvimento do torcedor. E mais intensa será sua paixão. Aliás, o debate a respeito do modelo de futebol para o Brasil deve evoluir. Insistir no dogma de que o futebol é paixão, e a empresa razão, e, portanto, realidades inconciliáveis, não é correto. Talvez seja, até, desonesto. Como se cartolas amadores não negociassem jogadores, em momentos críticos ou às vésperas de situações importantes, em troca de lucro. Como se, alguns deles, não tomassem decisões que desestabilizam o ambiente de trabalho em defesa de interesses políticos ou pessoais. Como se fossem, todos, guardiões de uma relíquia nacional. O lucro não é incompatível com um modelo vencedor de futebol. O reconhecimento da natureza econômica da atividade futebolística não abala os alicerces do esporte. Decisões empresariais podem desagradar, em certos momentos e certas circunstâncias, parte dos torcedores; e, em muitos outros, agradá-los. Faz parte do jogo. Importa que tenha regras claras e se sujeite a uma regulação arquitetada para permitir sua evolução. Ignorar essas proposições e manter o discurso da preservação de uma raiz arcaica significa negar as irreversíveis tendências mundiais e afundar o país, cada vez mais, no modelo amadorístico que o está transformando em mero exportador de commodity.
quarta-feira, 15 de junho de 2016

A estrutura do futebol

1. No Mundo O futebol é organizado e regulado pela Fédération Internationale de Football Association - FIFA. A FIFA é uma associação sem fins lucrativos, com sede em Zurique, Suíça, regida pelas leis deste país. Seus objetivos são, sobretudo: promover e aprimorar o esporte; organizar suas competições internacionais; estabelecer normas e provisões para assegurar seu enforcement; e controlar as Associações filiadas1. A estrutura interna da FIFA é composta de três órgãos, com funções hierárquicas e complementares. O órgão supremo é o Congresso, que tem competência "legislativa". As funções executivas são desempenhadas pelo Comitê Executivo. Por fim, a Secretaria Geral incumbe-se de atos administrativos. Participam do Congresso os Membros da FIFA, que são as Associações nacionais admitidas, como associadas, pelo próprio Congresso. Atualmente integram este órgão 211 (duzentas e onze) Associações2. As Associações nacionais, a exemplo da CBF, no Brasil, têm como propósito a organização, supervisão e regulação do futebol, em todos os seus aspectos, em seus países de origem. A FIFA reconhece apenas uma Associação por país. Dentro desse modelo, portanto, cada Associação monopoliza a organização do esporte no respectivo território. Para ser reconhecida como Associação nacional, situação que lhe confere a posição de monopolista, ela deve, como condição, integrar-se a uma Confederação regional, igualmente reconhecida pela FIFA. A Confederação é um agrupamento de Associações nacionais pertencentes a um mesmo continente (ou a uma determinada região geográfica; esta variação decorre de acomodações políticas). A FIFA reconhece as seguintes Confederações: (a) Confederação Sul-Americana de Futebol - CONMEBOL; (b) Confederação Asiática de Futebol - AFC; (c) União das Associações Europeias de Futebol - UEFA; (d) Confederação Africana de Futebol - CAF; (e) Confederação do Norte, América Central e Caribe - CONCACAF; e (f) Confederação Oceânica de Futebol - OFC. As Confederações também monopolizam a organização e a regulação do esporte em suas regiões. O futebol é organizado, portanto, sobre um modelo verticalizado, que estabelece monopólios regionais: uma Confederação por continente ou região geográfica e, em cada país associado à Confederação, apenas uma Associação nacional. E a FIFA, organizadora do modelo, não tem concorrente no plano mundial. Nada impede que se crie uma associação - ou mesmo uma sociedade empresária - concorrente, para organizar campeonatos futebolísticos. Mas dificilmente terá adesão de alguma Confederação existente. Assim, também não atrairá Associações nacionais e seus Clubes. Um novo modelo talvez pudesse estabelecer um órgão central, mundial, com clubes associados. Ou mesmo com Associações locais. Mas, novamente, encontraria barreira no próprio poder da FIFA, que não aceitaria a participação de atletas em campeonatos ou copas integrantes de seu sistema. De modo que afasta o ímpeto criativo de qualquer estrutura concorrente. 2. No Brasil A Confederação Brasileira de Futebol - CBF é a Associação nacional organizadora do futebol no Brasil. Trata-se de entidade especializada, fundada em 1914, com o nome de Federação Brasileira de Sports, posteriormente alterado para Confederação Brasileira de Desportos e, finalmente, em 1979, para a nomenclatura atual. É uma pessoa jurídica de direito privado, especificamente uma associação, sem fins lucrativos, regida pelo Código Civil. Seu propósito é, dentre outros aspectos: administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar e fiscalizar a prática do futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional; coordenar a realização de competições de futebol, em qualquer de suas formas; manter a ordem desportiva e velar pela disciplina da prática do futebol; representar o futebol brasileiro no exterior; respeitar, cumprir e fazer cumprir as normas da FIFA e da CONMEBOL3. De acordo com o art. 20 do estatuto da CBF, sua estrutura interna é composta de poderes e órgãos4. São poderes: (i) assembleia geral; (ii) conselho fiscal; (iii) presidência (administração); (iv) secretaria geral; e (v) diretoria. A assembleia geral é o poder básico e de jurisdição máxima. Integram a CBF as entidades estaduais de administração do futebol - Federações - e as entidades de prática do futebol - Clubes. As Federações devem ser pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins econômicos, mediante o exercício de livre associação5. Ou seja, podem ser, pelo estatuto da CBF, sociedades empresárias. As Federações são consideradas filiadas diretas, com voto permanente nas assembleias da CBF. Os Clubes devem ser filiados às Federações. Replica-se, portanto, o modelo internacional, com a instituição de associações intermediárias, com atuação regional. De acordo com o Estatuto, somente os Clubes que integrarem a primeira divisão do campeonato brasileiro de futebol podem votar nas assembleias gerais. Regra que forma um colégio eleitoral equivalente à soma dos votos das Federações e destes Clubes. Porém, a lei 13.155, de 4 de agosto de 2015, que institui o Profut, aproveitou para reformar a Lei Pelé e acrescentar o parágrafo 2º ao art. 22, ampliando o direito de voto aos Clubes participantes da segunda divisão. Assim, o colégio eleitoral passou a ser a soma das Federações e dos Clubes de primeira e segunda divisões do campeonato nacional. Cada Federação e Clube, de primeira e segunda divisões, têm direito a apenas um voto nas deliberações em assembleia. 3. Reflexões finais O modelo do futebol, concebido pela FIFA, estabelece monopólios regionais, instituídos em cascata, verticalizando sua administração. Todas as associações que o integram amarram-se ao poder central. A contrapartida oferecida pela FIFA é, da mesma forma, a exclusividade na organização do esporte no território em que tiver sua base. Assim, mesmo que surgissem, no plano continental ou nacional, Confederações ou Associações que se propusessem a organizar de modo concorrente o futebol, elas se deparariam com uma barreira praticamente intransponível, protetora da hermética estrutura existente. Essa barreira é reforçada pela obrigatoriedade de reconhecimento e aceitação, por parte de todas as Associações, de um sistema próprio de solução de controvérsias, organizado e regulado pela Court of Arbitration for Sports - CAS. A CAS é uma corte independente, com sede em Lausanne, Suíça, que tem competência para resolver disputas entre quaisquer agentes integrantes do sistema FIFA. Na solução de controvérsias, aplicam-se, primariamente, as normas da FIFA e, secundariamente, o direito suíço. O hermético sistema organizacional do futebol impede, portanto, o surgimento de estruturas concorrentes. Enquanto não se quebrar esse modelo, seja por conta de atuações estatais que questionem a posição monopolista (mundial, regional ou local) ou pelo surgimento de agentes dispostos a criar uma atividade paralela - e concorrente -, a FIFA e suas "subsidiárias", regionais e nacionais, regerão, sem qualquer resistência ou controle, o futebol no planeta. __________ 1 O estatuto da FIFA. 2 O número de países associados à FIFA supera o de membros da ONU. São 211, como visto, contra 193. 3 O objeto é amplo e relaciona 29 incisos. Para conhecer a redação integral, v. o art. 5º do estatuto da CBF. 4 Os órgãos têm função auxiliar e de cooperação, e se desdobram em: conselho consultivo, conselho técnico, comissão de arbitragem, comissão de controle de doping, comitê de resolução de litígios e ouvidoria do futebol. 5 Cf. o art. 15, I, do Estatuto da CBF.
1. Introdução Estava programada para ontem uma Reunião Ordinária da Comissão Especial destinada a apresentar propostas de reformulação da Lei Pelé e outras leis que regulam temas relacionados ao futebol. O propósito era deliberar o requerimento 21/16, do deputado Vicente Cândido (PT/SP), que tem como objetivo colocar em audiência pública o Anteprojeto de Lei Geral do Futebol ("LGF"). É sobre essa LGF que se discorre a seguir. 2. Conteúdo da LGF e pertinência do tema A LGF trata de diversos temas relacionados ao futebol. Alguns relacionados à sua formação, outros ao seu desenvolvimento, e avança para regular, inclusive, temas que envolvem agentes auxiliares. A lista, não exaustiva, aborda (i) contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional de futebol, (ii) formação de atletas, incluindo registro de atleta em formação, bolsa formação, desligamento, transferência e indenização, (iii) prática de futebol profissional, (iv) regime especial de tributação aplicável às entidades de prática desportiva, constituídas como sociedades empresárias, (v) seguro de vida ou de acidentes para atletas, (vi) relações de trabalho do treinador profissional, (vii) direito de arena e imagem, (viii) gestão temerária nas entidades desportivas profissionais, (ix) ordem desportiva, (x) justiça desportiva e (xi) sociedades desportivas. Dentro desse emaranhado temático, destaca-se um, que será explorado neste texto: a criação das sociedades anônimas desportivas, denominadas, na LGF, Sades. Não resta dúvida, como sempre se defendeu nesta Coluna, que o Brasil precisa de uma legislação que o coloque no mesmo nível dos demais países que protagonizam o futebol mundial. E outros que, apesar de jamais terem se destacado, passaram a cumprir um papel de maior relevância. Na Europa, de oeste a leste, iniciando-se com Portugal, passando por Espanha, França, Itália e seguindo, até a Alemanha (dentre outros), já se debateu e se ofereceu ao jurisdicionado modelo que atendesse às necessidades locais. Aqui ao lado, em países como Chile e Colômbia, também existem soluções que colocaram a administração futebolística em outro patamar. E, talvez não por acaso, o futebol praticado nesses países deixou de ser secundário. Trata-se, portanto, de movimento inevitável, exceto aos centros de prática do esporte que pretendam posicionar-se na "periferia" do planeta, como simples exportadores de "mão-de-obra". Lutar contra essa realidade não trará qualquer benefício ao país, incluindo seus atletas, times, seleção e torcedores. Deve o Estado, portanto, oferecer uma regulação apta a atender à necessidade do futebol brasileiro. Mas não pode ser qualquer legislação. O modelo nacional deve olhar para realidade do país, para os seus problemas, e encontrar suas soluções. Preferencialmente de modo simples, aproveitando-se de institutos e técnicas já existentes no próprio sistema e que se mostram bem-sucedidos. E, sobretudo, com o propósito de criar um microssistema - um, digamos, ecossistema - equilibrado, que respeite os aspectos culturais do jogo de bola e a relação da torcida com o seu time, mas que, por outro lado, crie o ambiente necessário para formação de um mercado regulado, onde os times poderão encontrar os recursos necessários para investir, evoluir e crescer. Somente assim se formarão as condições para reduzir ou eliminar a dependência de agentes que não pretendem que o esporte evolua. 3. Princípios de uma lei reformadora do futebol Como já afirmei em outro texto1, talvez pudesse se afirmar que a LGF seja um avanço. Mas não é disso que o Brasil precisa. Outras leis, desde a Lei Zico, passando pela Lei Pelé até chegar, recentemente, à lei que introduziu o Profut, trouxeram avanços. Mas que não foram suficientes para resolver o problema do futebol. A situação do esporte no país confirma esta proposição. Importante recordar que, em relação à administração do futebol, vive-se momento atípico, extraordinário. A fragilidade do modelo existente, decorrente de escândalos internacionais de corrupção, prisões, crise com patrocinadores e outros eventos, oferece oportunidade histórica de se discutir e se introduzir uma nova forma societária para a organização do futebol. Porém, qualquer esforço legislativo não pode apenas trazer novos avanços. Não. Somente se justifica se vier para resolver os problemas existentes. Aliás, mais do que isso: se também não criar outros novos problemas. 4. A LGF Enumeram-se, abaixo, alguns pontos que devem ser objeto de profunda reflexão, para evitar o fracasso do projeto, e para que, como se disse antes, não tragam novos problemas para o futebol brasileiro. Ou, igualmente relevante: para que não representem obstáculos, voluntários ou involuntários, para complicar e esvaziar o debate. I. O art. 69 "estabelece o regime jurídico das sociedades anônimas desportivas (sades)". A criação de um novo tipo societário deve ser tida como um tema de direito societário, e não de direito esportivo. É evidente que deve existir profundo conhecimento e sintonia com esta disciplina, mas não uma apropriação conceitual. Neste sentido, e seguindo a fórmula adotada pelo Código Civil para regulação da sociedade anônima2, uma lei geral do futebol, que trata da criação de tipo societário, deve simplesmente prever, em um único artigo, que é admitida a sua constituição, na forma de lei especial. E deixar para esta lei especial a sua regulação. II. A técnica sugerida no item anterior permite isolar a discussão societária da esportiva. Além disso, evita que o trâmite seja afetado por conta de outras discussões, inegavelmente relevantes, mas que envolvem interesses próprios. Bem como de temas políticos que, certamente, influenciarão o debate. III. Assumindo-se que uma lei geral do futebol deva regular apenas o futebol, não faz sentido a criação da sociedade anônima desportiva (Sades). Esta tipificação deve ser eliminada para dar lugar ao objeto da lei geral: o futebol, sendo a sua forma societária a sociedade anônima do futebol3, e a sua regulação feita em lei especial. IV. Uma lei que pretende resolver problemas do futebol brasileiro pode - e deve - olhar, entender e importar certas soluções existentes em outros países. Mas não as copiar, sem as devidas adaptações. Este é um problema sério da LGF, ao adotar regras existentes no direito espanhol e, sobretudo, no português, que - novamente - fazem sentido para suas realidades. V. Uma lei que pretende ser definitiva deve ser concebida como um sistema integrado, harmônico e lógico. A LGF não segue este caminho. A racionalidade por trás dela consiste em misturar normas ibéricas com praticamente todas as propostas contidas no Projeto de Lei 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite - PSDB/RJ (a seguir definido como "PL 5.082/16"). VI. Ao tentar um exercício de encaixe de todas essas leis e projetos, somando-se outras disposições, produz-se uma lei sem integração, pouco harmônica e, em certos aspectos, ilógica. Talvez um ornitorrinco jurídico. VII. Vejam-se alguns exemplos: (a) o tratamento diferenciado que se dá a Sades, em função da forma como ela se constitui. No caso de constituição da Sades em decorrência da personalização jurídica das equipes, conforme termo empregado no art. 71, II, o clube fundador somente poderá deter, a qualquer tempo, no máximo 40% e, no mínimo, 15% do capital social. Um equívoco, que aniquilará o interesse do clube em constituir uma sociedade anônima, regulada pela LGF, pois, necessariamente, não a poderá controlar. Esta deve ser uma decisão exclusiva dele, clube, e não do legislador. (b) ainda no caso de personalização jurídica das equipes, o clube somente poderá integralizar sua parcela no capital em dinheiro. Mais um equívoco pois, se há algo relevante e único que pode ser contribuído pelo clube para formação da Sades é justamente o conjunto de ativos ligados ao futebol, tais como marcas, direitos econômicos de atletas e estádio. (c) outro equívoco consiste na interferência da autonomia da Sades de organizar-se, econômica e operacionalmente. Decorre, sobretudo, da imposição de limite, de 30% de seu orçamento anual, para pagamento ao clube, em contraprestação da utilização de instalações físicas (como estádios). Este não é, definitivamente, um tema de direito societário. E mais ainda: não se justifica por intervir em relação jurídica puramente privada: clube/Sades. (d) mais um equívoco, para fechar a lista trazida como mera amostragem, consiste na antecipação do destino de certos ativos na hipótese de extinção da Sades, sem guardar qualquer relação com a sua efetiva situação patrimonial e com a sua estrutura societária. De acordo com o art. 109, "quando tiver lugar a extinção de sociedade anônima desportiva, as instalações desportivas serão atribuídas ao clube desportivo fundador". Qual o motivo disso? Mas e se o clube deixar de ser acionista? Ou se detiver, por exemplo, 15% do capital social, e o estádio corresponder a 40% do patrimônio4? 4. Notas finais A LGF incorpora, no capítulo destinado à sociedade anônima desportiva, toda a estrutura da SAF, prevista no PL 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite; mas insere uma série de outros dispositivos, que abalam a coerência sistêmica. Como já se afirmou anteriormente, "para que se forme o mercado que o país precisa, que terá enorme potencial de contribuir para o seu desenvolvimento social e econômico, é recomendável que se adote um sistema próprio, sem a tentação de importar mecanismos que talvez se justifiquem em seus países de origem, mas não no Brasil. A exemplo do PL 5.082/16". E, ainda: "que sua discussão no Congresso, pela matéria envolvida, se separe da discussão de uma Lei Geral". Pois esta, sem dúvida, tem natureza esportiva; enquanto a sociedade anônima do futebol, natureza societária. __________ 1 Idem. 2 O Capítulo do Código Civil que trata das companhias se limita, em dois artigos, ao seguinte: "Art. 1.088. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir". E: "Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código". 3 Mesmo que se indique, no art. 70 da LGF, que a Sades se aplica primordialmente à prática do futebol, seu alcance, conforme o texto proposto, é muito mais amplo. E assim revela enorme potencial de gerar dúvidas interpretativas e de aplicação, podendo incrementar o nível de litigiosidade. Ou comprometer sua eficácia. Além de trazer para discussão pública agentes ligados a outras modalidades esportivas que, de modo legítimo, terão interesse em propor modificações pensando em suas modalidades de atuação, criando-se, assim, um ambiente diversionista - quando, na verdade, o que deve estar em discussão numa lei geral da modalidade é apenas esta modalidade. 4 Deve-se lembrar que, se o estádio passar à esfera patrimonial da Sades, esta terá pago por ele ou, então, terá recebido como integralização de capital. Em qualquer caso, o clube receberá sua contrapartida, seja na forma de preço ou de ações.
quarta-feira, 1 de junho de 2016

Abertura de capital da CBF - Parte IV

Tratou-se, nas edições de 27 de abril, 18 e 25 de maio de 2016 desta coluna, a respeito de estruturas jurídicas voltadas à abertura de capital da CBF. Apesar de existirem outras possibilidades, a sequência de artigos sobre o tema se encerra, por ora, com esta parte IV, na qual se apresenta mais um caminho no sentido sugerido. Lembre-se, apenas, que na parte III apresentou-se uma modelagem que preservava a CBF como associação civil e responsável pela seleção brasileira e, ao mesmo tempo, a posicionava como acionista de uma companhia organizadora de campeonatos, copas e outros temas. Desta vez, a associação civil será mantida, porém, sem qualquer vínculo, inclusive societário, com a companhia que será constituída para gerir, organizar e desenvolver todos os temas relacionados ao futebol, exceto a seleção brasileira. I. Estrutura O primeiro passo consiste no desmembramento, pelos associados da CBF, de suas atividades, resultando em duas entidades distintas, com propósitos também diferentes. Uma será designada "CBF Seleção" e, a outra, "CBF Demais Atividades". O resultado da deliberação é o seguinte: Note-se que os associados de ambas as associações são os mesmos, inexistindo qualquer participação associativa da CBF original na nova entidade. O passo seguinte envolve a atribuição de títulos patrimoniais da CBF Demais Atividades aos Clubes que, mantendo a sugestão prevista na Parte III (coluna de 25 de maio), integrarem as 4 principais divisões do campeonato brasileiro. Alternativamente, pode-se, também, atribuir títulos às Federações Regionais. Na sequência, os Clubes e, conforme o caso, as Federações, deliberam, em assembleia geral, a desmutualização da CBF Demais Atividades, de modo que os antigos associados passam a ostentar a condição de acionistas de uma nova companhia, a CBF Demais Atividades S.A. ("CBF S.A."). O organograma, após essa deliberação, é o seguinte: Por fim, os acionistas da CBF S.A. deliberam a abertura de capital da companhia, oferecendo ações ao público. A estrutura final é a seguinte: II. Reflexos A CBF Seleção permanece uma associação civil, sem fins lucrativos, com propósito de gerir o selecionado. Enquanto a CBF S.A. será uma companhia, com ações negociadas em bolsa de valores. Note-se, portanto, que, como já adiantado, não existe qualquer participação da CBF Seleção no capital da CBF S.A., chegando-se, então, a uma modelagem que estabelece uma nova relação de forças no âmbito do futebol, sem interferência direta da entidade vinculada à FIFA na organização de campeonatos, ligas, copas e atividades conexas. Por outro lado, as Federações e os Clubes que participam da primeira e segunda divisões do campeonato brasileiro continuam, em decorrência da Lei 13.155/15, a exercer o direito de voto em assembleias da CBF Seleção. III. Méritos do modelo O principal deles consiste na inexistência do conflito, verificado na Parte III, decorrente da participação direta de CBF Seleção em CBF S.A. Lembre-se que, em vista da situação de monopólio que aquela exerce e do "produto" que ela gere, com penetração em todo o Brasil e com um público seguidor e consumidor (praticamente) equivalente à população do país - sem contar sua exposição e atração no exterior -, inexistem incentivos para que a CBF Seleção dispenda recursos e tempo para o desenvolvimento da companhia controlada, sobretudo quando puder, de algum modo, interferir em seus negócios e nos seus planos de atuação. Aliás, conforme se defende nesta Coluna, quanto maior o desenvolvimento do futebol nacional e menor sua dependência de uma estrutura centralizada, menor será a importância da CBF (qualquer que seja o modelo e sua natureza jurídica) e, possivelmente, maior será a canalização de recursos para Clubes e atletas. Algo que, aparentemente, a atual CBF pretende evitar, justamente para manter seu poder sobre todo o sistema futebolístico. Outra vantagem do modelo reside no fato de que, partindo-se da premissa de que os Clubes serão os principais beneficiados com a abertura de capital, sua sujeição à CBF tende a diminuir e, em muitos casos, desaparecer, de maneira que poderão passar a atuar, na qualidade de associados da CBF Seleção (ou em decorrência do direito de voto que detêm) com liberdade, em prol do futebol nacional e da própria seleção, por ela gerida. Inverte-se, portanto, a lógica de poder. De maneira que a CBF Seleção se torna um veículo, sob a condução indireta de seus associados (e dos titulares de direito de voto), e não mais um fim em si mesma, uma entidade com poderes anômalos, que influencia inclusive os Poderes Constitucionais. E que, "de baixo para cima", por meio do exercício do poder de seus administradores, domina e controla seus associados e entidades votantes, subvertendo o centro decisório. IV. Possíveis críticas ao modelo A principal crítica envolve a perpetuação do "encastelamento" da seleção, em uma associação civil sem fins lucrativos. Com isso, perde-se a oportunidade de levar adiante sua desmutualização e a oferta, a toda a população, de ações de uma companhia que terá, como objeto, o principal símbolo nacional: sua seleção. Esta crítica talvez seja, para alguns - é bom registrar -, motivo de apoio ao modelo. Justamente pelo fato de que se pode entender que a seleção não deve ser tratada sob a lógica empresarial e de mercado. V. Conclusões O modelo que se apresentou na Parte III, apesar de viável estruturalmente, revelava um possível conflito que o tornava, à primeira vista, menos recomendável, mesmo se se estruturasse um sofisticado programa de governança. O novo modelo, sugerido nesta Parte IV, resolve o impasse, não por meio de técnicas de governança, mas pela sua própria estrutura. De maneira que, ao cabo, as entidades resultantes da reorganização não têm qualquer participação societária uma na outra, e não podem, assim, uma influenciar ou controlar a outra diretamente. Ele também tem o mérito de inverter a lógica de poder no âmbito da CBF, que se concentra, atualmente, em seus administradores, e não em seus associados (ou detentores de direito de voto). Estes cumprem papéis formais, confirmadores das indicações de vontade daqueles que, em tese, deveriam seguir seus comandos e orientações gerais. Mas, como apontado acima, tem o demérito de deixar passar uma oportunidade de impor uma reforma total, inclusive no âmbito da organização da seleção nacional.
quarta-feira, 25 de maio de 2016

Abertura de capital da CBF - Parte III

A proposição de abertura do capital da CBF foi inicialmente abordada na edição de 27 de abril de 2016 desta coluna. Posteriormente, voltou-se ao tema na edição de 18 de maio e, nela, apresentou-se um modelo alternativo, prevendo o desmembramento da CBF em duas associações: uma com o propósito de gerir e organizar a seleção brasileira e, outra, de comandar todas as demais atividades atualmente sob sua responsabilidade, especialmente campeonatos, copas e assuntos conexos. Após o desmembramento, as associações se transformariam em sociedades anônimas e, na sequência, abririam seus capitais ("Parte II"). Esse modelo se ilustra da seguinte forma: Retoma-se o tema nesta Parte III, para contemplar outro possível modelo de abertura de capital. Desta vez, mantendo a atual CBF como associação civil e responsável pela seleção brasileira, e acionista - não a única - de uma companhia organizadora de campeonatos, copas e outros temas. I. Estrutura O primeiro passo consiste na constituição, pela CBF, de uma nova associação (a "CBF Demais Atividades"), vertendo-lhe todos os ativos e atividades que integram seu patrimônio, exceto aqueles relacionados à seleção brasileira, resultando na seguinte estrutura: O segundo passo envolve a atribuição de títulos patrimoniais da CBF Demais Atividades aos Clubes que integrarem - como sugestão -, as 4 principais divisões do campeonato brasileiro. O resultado seria o seguinte: Alternativamente, pode-se atribuir títulos patrimoniais também às Federações Estaduais, resultando no organograma abaixo: Com isso, passam a existir e coexistir duas associações, com finalidades e objetos próprios, e com distintos interesses e associados. II. Reflexos A "CBF Seleção" permanece uma associação civil, sem fins lucrativos, com propósito de gerir o selecionado. Enquanto a CBF Demais Atividades será desmutualizada e abrirá seu capital. De modo que seus associados, ou seja, a CBF Seleções e os Clubes, num modelo, e, junto com esses grupos, as Federações, em outro, deliberam em assembleia a transformação da "CBF Demais Atividades" em sociedade anônima ("CBF S.A."), assumindo, a partir da deliberação, a condição de acionistas. Na sequência, deliberam a abertura de seu capital, resultando na seguinte estrutura acionária: III. Eventuais motivos para adoção desse modelo A revista The Economist aborda o tema da reforma do futebol mundial em artigo publicado na edição do dia 20 de fevereiro de 20161. O texto, denominado Reforming FIFA. Sec as parrot, propõe o deslocamento da FIFA para os Estados Unidos e a abertura de seu capital na Bolsa de Nova York. Aponta, no entanto, que essa passagem não deveria se operar sem a imposição de medidas protetivas, a fim de evitar que um "barão" do mercado assumisse o controle da companhia. E propõe, então, que uma associação sem fins lucrativos (cheritable arm) detivesse a maioria das ações votantes da companhia e, consequentemente, a controlasse. Aí está, portanto, um eventual argumento em defesa do modelo ora apresentado. III.i. Consequências práticas A adoção dessa estrutura no processo de reorganização da administração do futebol brasileiro pode, eventualmente, fortalecer ainda mais a CBF Seleção. Além dos recursos oriundos da exploração da seleção, ela passaria a contar com o produto dos excedentes distribuídos (dividendos) pela CBF S.A. para investir não apenas em suas atividades, mas para exercer seu protagonismo nos planos político e organizacional. Mitiga-se essa situação com a redução de sua participação no capital da CBF S.A., de maneira que seus votos sejam irrelevantes para formação da vontade social - e desde que ela não possa, por outros meios, pressionar ou influenciar a posição dos demais acionistas -, e os dividendos que se lhe paguem, por conta dos lucros, não representem parcela significante de suas receitas anuais. IV. Motivos para preocupação com o modelo O modelo talvez não resolva o conflito, indicado na Parte II, que atualmente impede o desenvolvimento do futebol e de campeonatos e copas nacionais. Lembre-se que lá se verificou que a receita oriunda da seleção é suficientemente confortável para manter a estrutura atual de poder da CBF, sem que se exija a elaboração e implementação de um plano "empresarial" para desenvolvimento de atividades ligadas aos campeonatos internos e, sobretudo, para fortalecimento dos Clubes. Ao contrário, quanto maior a fragilidade e a desorganização clubística, e mais intensa a insignificância econômica dos eventos de que participem, maiores serão os incentivos da CBF para direcionamento dos interesses para o manejo e controle da seleção. Assim, se uma hipotética CBF S.A. puder, de algum modo, afetar o projeto de dominação de sua acionista - a CBF Seleções -, está terá, então, motivos para atuar e agir em seu próprio interesse - ou de pretenso interesse maior, o da seleção -, em detrimento da CBF S.A., companhia na qual detém participação societária. De maneira que se chega a um paradoxo: apesar da separação patrimonial e administrativa, a influência que o acionista pode exercer na companhia, sobretudo se sua participação no capital for relevante - ou se puder, de algum modo, influenciar a decisão dos demais acionistas - revela um conflito que somente se resolve com a adoção de modernas técnicas de governação societária. V. Conclusões O modelo que se apresenta nesta Parte III, apesar de viável estruturalmente, sugere um possível conflito que o torna, à primeira vista, pouco recomendável. Mas que pode, com a imposição de técnicas de governança, ser contido e aprimorado. De todo modo, ele abre a perspectiva para uma nova variação estrutural, que será revelada na Parte IV dessa série sobre abertura de capital da CBF, a qual - adianta-se -, ao libertar a companhia que terá como propósito a organização interna da atividade futebolística do comando da CBF, oferece-lhe os meios para competir e equiparar-se às modernas ligas europeias e norte-americanas. _________ 1 The Economist.
Na edição de 27 de abril de 2016 desta coluna, discorreu-se sobre a abertura de capital da CBF ("Parte I"). Em breves linhas, foram abordados os seguintes aspectos: (i) natureza jurídica da Confederação; (ii) relação jurídica entre Federações e Clubes, de um lado, e a CBF, de outro; (iii) incentivos para sua "mutualização"; (iv) indicação de procedimentos para sua desmutualização; e, finalmente, (v) passos para abertura de seu capital. Conforme o modelo tratado e sugerido em Parte I - o qual, aliás, é exposto com detalhes no livro Futebol, Mercado e Estado ("Livro")1 - as Federações e os Clubes se tornam acionistas da CBF S.A. em decorrência de sua desmutualização. Esta nova companhia passa a gerir, então, todas as atividades atualmente organizadas pela CBF, tais como a seleção brasileira, calendário, patrocínios, campeonatos e copas. Com o registro de emissor e a oferta pública de ações no mercado, ato final do procedimento que se sugeriu, todos os acionistas, inclusive aqueles que adquirirem ações na oferta pública, participam dos resultados de todas as empresas econômicas sob a gestão da CBF S.A. Há, é importante registrar, outras estruturas que podem, eventualmente, ser adotadas a fim de direcionar o processo de abertura de capital da CBF. Aliás, uma alternativa foi exposta pelos mesmos autores do Livro, em Audiência Pública promovida pela Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito da Câmara dos Deputados, destinada a investigar e apurar denúncias sobre dirigentes da FIFA acusados de determinados crimes ("CPI Futebol"), realizada no dia 03 de maio. É sobre essa estrutura alternativa que se discorre a seguir. I. Alternativa A proposição parte da premissa de que a CBF pode, alternativamente, ser desmembrada, de modo que se reconheçam as distintas naturezas das atividades por ela geridas. Assim, separam-se a administração da seleção brasileira da organização e gestão dos campeonatos, copas e atividades afins. A ideia consiste, portanto, na criação, pelas entidades que atualmente dispõem de direito de voto na CBF (Federações e Clubes), de uma nova entidade, autônoma, que terá como propósito cuidar, gerir, desenvolver e aperfeiçoar os campeonatos e copas sob sua gestão, bem como temas e interesses relacionados. Com isso, passam a existir e coexistir duas associações, com finalidades e objetos próprios. A partir daí os procedimentos para abertura de capital são aqueles previstos em Parte I. II. Reflexos Os reflexos desse caminho se verificam, portanto, na existência de duas associações, que ostentam, no momento da criação da segunda, a mesma estrutura associativa da primeira. Seus "associados" deliberam, então, em assembleia de cada uma das associações, a criação e a atribuição de títulos patrimoniais a Clubes e Federações, que passam a deter ativos de ambas. Na sequência, os associados deliberam, nas respectivas assembleias de cada associação, a transformação delas em sociedades anônimas, assumindo, a partir das deliberações, a condição de acionistas de duas companhias distintas. Por fim, deliberam a abertura de capital de uma ou das duas, simultaneamente ou em momentos distintos. III. Eventuais motivos para desmembramento Esse modelo se justifica na hipótese de admitir-se que as atividades de gestão da seleção brasileira e de campeonatos e torneios nacionais são "produtos" distintos, que podem ter lógicas administrativas e empresariais próprias. Assim, cada companhia tem seu conselho de administração e sua diretoria, capital e orçamentos exclusivos, e propósitos específicos. E, consequentemente, patrocinadores, apoiadores, investidores e públicos próprios. A segregação também se justifica caso se reconheça que, no âmbito de uma mesma companhia, com as características da CBF, a aglutinação das atividades gera conflitos e, potencialmente, prejuízos aos agentes que, de algum modo, participam e detêm legítimos interesses no desenvolvimento autônomo de cada modalidade. Apesar de tratar-se de uma afirmação não conclusiva, e que pode ser relativizada em função da governança adotada pela companhia, sobretudo com a imposição de normas internas que protejam e isolem cada atividade, a forma como o futebol é gerido no país parece conduzir para a validação da hipótese. Mais do que isso: revela o conflito que opõe a CBF aos Clubes que participam, atualmente, de copas e campeonatos administrados por ela. De acordo com matéria publicada pelo Jornalista Rodrigo Capelo, "quatro em cada cinco reais arrecadados pela CBF em 2015 só chegaram ao caixa da entidade graças à popularidade da Seleção Brasileira. Dos R$ 518,9 milhões que a confederação teve em faturamento na temporada, R$ 425,6 milhões, ou 82%, estão ligados a contratos de patrocínios, direitos de transmissão e partidas realizadas pela equipe dirigida por Dunga de janeiro a dezembro"2. Em outras palavras, a CBF, aparentemente, privilegia a seleção em detrimento dos Clubes, campeonatos, copas e outras atividades correlatas. Ou, também de modo apenas opinativo e intuitivo, ela se satisfaz com essa disparidade de receitas, que são suficientes, dentro da lógica associativa e sem finalidade lucrativa atual, para manter a estrutura e os interesses de seus dirigentes. A despeito da vontade e dos interesses clubísticos. Os números individualizados e apresentados por Rodrigo Capelo parecem, efetivamente, confirmar, de algum modo, essas premissas: do total da receita de patrocínio, 96% decorrem da seleção (R$ 326 milhões); e dos direitos de transmissão, 61% (R$ 68,6 milhões) são produzidos pelo time nacional. Além desses montantes, arrecadaram-se outros R$ 31 milhões com amistosos e outras atividades da seleção. O valor remanescente, que se produz por conta de campeonatos, copas e temas relacionados, é, com efeito, frustrante, tanto quando se analisa o potencial do futebol brasileiro, como no âmbito da própria receita da Confederação, visto que representa apenas 13% do total3. IV. Comparações A discussão a respeito da concentração de atividades já se operou em outros países e o reflexo de seu direcionamento se nota na estrutura administrativa adotada em alguns dos principais centros de prática do futebol. Casos de, exemplificando, Inglaterra, Espanha e Alemanha. Neles, as Confederações continuam a gerir suas seleções, enquanto as atividades de organização de campeonatos e copas se deslocaram para Ligas, as quais, de modo autônomo, defendem os interesses de seus participantes. A análise dos resultados dessas Ligas revela possíveis indicativos do acerto do modelo (levando-se em conta que, por lá, ainda não se partiu para um modelo de concentração de todas as atividades por uma única entidade, de natureza econômica, conforme modelo sugerido em Parte I). Com base nos números de 2014, as cinco principais ligas europeias (inglesa, alemã, espanhola, italiana e francesa) faturaram, em conjunto, 11,3 bilhões de euros, sendo que a maior delas, a inglesa, representa 3,9 bilhões e a menor, a francesa, 1,5 bilhões4. Lembre-se que essas ligas não administram ou operam suas respectivas seleções nacionais, o que torna o resultado da CBF, quando confrontado com seus números, ainda mais preocupante. E, do ponto de vista econômico, quase desprezível. V. Conclusões A abertura de capital da CBF é um caminho que deve ser seriamente avaliado pelo Estado. Sua função seria estabelecer incentivos, sobretudo fiscais, para que Federações e Clubes pratiquem os atos necessários à sua implementação. Sob a ótica dos agentes que podem impor essa mudança, de acordo com a legislação vigente e o estatuto da CBF, o destino final se atinge por caminhos distintos. Um deles, apresentado em Parte I, prevê a concentração de todas as atividades em uma única companhia. Outro, indicado neste texto, admite a separação de atividades, e a transformação em duas companhias, que se sujeitarão a administrações próprias, disporão de capitais e recursos exclusivos, e seguirão seus caminhos em função de seus planos e suas estratégias, com o propósito de valorizar e desenvolver seus objetivos. __________ 1 Editora Quartier Latin, 2016, de autoria de José Francisco C. Manssur e Rodrigo R. Monteiro de Castro. 2 Época. 3 Somam-se às receitas da seleção (82%) e de competições (13%), outas lançadas como "eventuais". 4 Cf.: Annual Review of Football Finance Highlights, da Deloitte; acesso em 17/12/2015.
A elite política, formadora das bases conservadoras e, de certa forma, reacionárias do pensamento contemporâneo brasileiro, é responsável pela crise de identidade do país. A idolatria e a subserviência aos cânones doutrinários que forjaram nações ditas desenvolvidas, sem terem passado, por estas bandas, pelo necessário teste de tropicalização e pertinência, justificam o descompasso nos planos político, econômico e cultural. O xis do problema reside, justamente, nessa inconcebível padronização e equiparação de manifestações naturalmente díspares, inconciliáveis e indomáveis: com efeito, a cultura de um povo não pode ser medida por valores e padrões globais e globalizados, baseados em poder econômico e supremacia política. A apropriação econômica da cultura implica, portanto, a mediocridade conceptiva e produtiva de grande parte das nações contemporâneas, centrais ou periféricas. Essa lógica se revela em especial no Brasil, e na apropriação teórica e metodológica de seu maior bem cultural: o futebol. E explica o papel periférico e secundário que o quarto maior país do planeta e, até pouco tempo, 7a economia do mundo, cumpre no ambiente globalizado. Entender, recuperar e alçar o futebol ao seu papel de protagonismo na economia contemporânea é fundamental para que o país não apenas reverta as crises econômicas e políticas que o afundam, mas, principalmente, para que passe a cumprir sua função transformadora no plano universal. Sua irrelevância atual, portanto, é função da disposição - voluntária, sob um ângulo entreguista; ou involuntária, sob ângulo não menos perverso, que se materializa com a inépcia e incompetência na formulação de políticas públicas e privadas, no manejo e na administração - de seu maior produto. Aí está a fórmula para o renascimento tardio do país: a aceitação de sua origem formadora, multirracial e cultural, disponível e por vezes exageradamente displicente, mas sempre pronta à cooperação e à solução dos problemas que se apresentam. Estas características, aliás, diferenciam o Brasil de nações dominadoras e colonizadoras, que mantêm, há séculos, seus propósitos expansionistas, e que envolvem, nos tempos atuais, a (des)apropriação, direta ou indireta, do futebol. Não por outra razão que está em curso o movimento multilateral, porém formalmente desorganizado, para impedir o surgimento de uma nova superpotência, cuja grande arma não se produzirá em fábricas e não derramará sangue; ao contrário, que enaltecerá a relação pacífica dos povos, a partir de um código comunicacional universal, e exercerá sua condição de prevalência pelo simples jogo de bola. Nesse ambiente, nada representa melhor a capacidade de afirmação e prevalência do Brasil do que o seu futebol. Essas ideias não são novas. Estão aí há décadas, difusas, disformes, mas latentes. Sócrates, o Brasileiro, soube lançá-las: "[o] futebol é nossa maior riqueza enquanto nação. É através dele, nosso grande teatro popular que podemos nos entender. Discutindo como nosso jogo é construído, estamos realizando uma autêntica terapia coletiva. (...) Nós, se tivéssemos gente melhor preparada para enxergar e difundir as coisas do futebol, teríamos encaminhado, há muito, e de forma mais coerente e profunda, as questões mais caras ao nosso povo. (...)". Sócrates, o Futebolista, integrante de uma geração de heróis macunaímicos, não acreditou que ele fazia parte dessa gente melhor capaz de interpretar e cumprir seu destino transformador e prevalente, e sucumbiu à pressão do discurso dominante, que se materializa na (in)feliz apropriação da figura do vira-lata, ser inferior no plano formacional, intelectual e atlético. Ali, em 1982, esse conflito se pôs como em poucos momentos ou cenários recentes na história civilizatória. Não se disputava um simples jogo de futebol. O duelo não era puramente estético, contrapondo a poética brasileira à dura prosa italiana, nas palavras de Pasolini. Não. O embate era ético, universal, e transcendia os dilemas que afligiam o povo brasileiro. Era seu futuro, não apenas no plano político interno, mas sobretudo como "nação apta a assumir o papel de protagonista no plano mundial", que estava em jogo. Os conflitos existenciais e a energia que se direcionava para reverter um regime de exceção talvez expliquem o fracasso. Que deve ser encarado como reversível e, provavelmente, necessário para confirmação, a posteriori, de suas verdadeiras vocações. A "nossa gente", apropriando-se de expressão corrente em João Saldanha, é, sim, capaz de entender os fatores que, no momento atual, insistem em fragilizar a confiança do brasileiro e negar sua capacidade transformadora e de protagonismo no destino universal. José Miguel Wisnik protesta contra essa postura histórica de subserviência; mais do que isso, contra essa complacência com a recusa de reconhecimento e valorização dos elementos verdadeiramente brasileiros (como, aliás, também se vê em Sócrates, o Brasileiro): "(...) em vez de dizer que o Brasil se faz reconhecer pelo seu poderio futebolístico mas não pelas coisas de fato importantes, é o caso de reconhecer que talvez seja difícil alguma coisa 'de fato importante' acontecer se não formos sequer capazes de compreender o sentido da importância que o futebol ganhou no país". Ou melhor, é importante realçar: que sempre teve, para aproximação de uma sociedade democrática, sobretudo racial, inclusiva do ponto de vista social e capaz de instituir elementos para formação de uma "indústria" pujante e sem concorrentes. Essas características foram há muito detectadas pelas nações prevalentes, que não economizaram esforços para impor seus interesses, (i) pela importação descontrolada de jogadores - produtos acabados e preciosos - a preço de commodity -; (ii) pelo desprezo com o processo adaptativo desses jogadores em ambientes naturalmente opostos; (iii) também pela submissão desses jogadores brasileiros a campanhas difamatórias, quanto às suas qualidades humanas, intelectuais e esportivas, para lembrá-los de que, apesar do efêmero sucesso profissional e econômico, representam uma raça inferior e comedora de bananas; e (iv) finalmente, pela imposição, aos resistentes e insistentes, de padrões táticos escolásticos criados para superar a falta de qualidades técnicas e de improvisação, de que não padecem, matando-lhes as características inatas que os distinguem dos demais. No plano interno, a apropriação do jogo de bola por pessoas que ostentam interesses próprios, geralmente econômicos ou políticos, e que não raro desconhecem os fundamentos básicos do esporte, contribuem e justificam a capitulação da nação. A nação de chuteiras está, na verdade, descalça, e não sobre um campo de várzea: mas de joelhos, sobre o asfalto, pedindo benção e perdão, a todos, pelas suas virtudes. Desde 1982 o futebol brasileiro vem sendo exposto a toda sorte de expiação, interna e externa, que o conduz à posição que se quer vê-lo - e como, de fato, se viu, no Mineirão, em 2014: dominado, inerte, inanimado. As raras exceções, protagonizadas por jogadores fenomenais, que se formam ao acaso (e apesar da falta de estrutura básica formal, privada ou pública) remetem, no entanto, à origem da formação do país, que nega Caio Prado Júnior e, de algum modo, tributa a Gilberto Freyre a potencialidade reprimida, mas inata, do brasileiro - e, sobretudo, do seu futebol. Gritou-se independência em 1822; em ato formal, libertou-se o escravo em 1888; bradou-se a República em 1889; depois, em mais de 120 anos, o país conviveu com inúmeros movimentos políticos ou econômicos, uns mais ou menos nacionalistas, outros mais ou menos liberalizantes. Em seu projeto de formação do Novo Estado Nacional, Getúlio construiu os alicerces para formação da indústria brasileira, mas não se atentou à importância do jogo das elites e do povo. Os governos impostos pelo Regime Militar apropriaram-se do esporte como elemento de propaganda, negando-lhe, porém, qualquer possibilidade de libertação e desenvolvimento. Nos anos que se seguiram à Constituição de 1988, muitos projetos surgiram, alguns se institucionalizando; mas nenhum, até hoje, teve o mérito de resolver o problema revelado por Sócrates, o Brasileiro: o reconhecimento de que o futebol não é circo, mas ciência; e seus agentes, os jogadores, numa visão pouca romântica, tecnologia. É assim que o Governo, o Congresso e os agentes que pretendem discutir um novo modelo para o futebol devem encará-lo: como o seu maior bem, cultural e econômico.
quarta-feira, 4 de maio de 2016

A sociedade anônima do futebol

O deputado Otavio Leite (PSDB/RJ) apresentou à Câmara dos deputados, no mês de abril, o projeto de lei 5.082, que cria a sociedade anônima do futebol (SAF) e estabelece "procedimentos de governança e de natureza tributária para modernização do futebol". Trata-se de uma elogiável iniciativa que pode colocar o Brasil no caminho de recuperação e do desenvolvimento deste esporte que é um elemento crucial da cultura do país. Discorre-se, a seguir, a respeito de alguns aspectos do PL. A SAF é um tipo especial de sociedade empresária, que se rege, prioritariamente, por sua lei própria. Porém, a ela se aplica, de modo complementar e naquilo que não for expressamente tratado no projeto, o disposto na lei 6.404/76. Ela deve ter seu capital dividido em ações, e a responsabilidade de seus acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas. Constitui-se a SAF: pela transformação de um clube; pelo clube, com a transferência de ativos relacionados ao futebol para formação do capital; pela iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas que assumam direitos de clube existente; ou pela transformação de sociedade empresária que tenha por objeto a prática de futebol e que participe de competições desportivas profissionais. Seu capital social poderá ser formado em dinheiro ou em qualquer espécie de bem, suscetível de avaliação em dinheiro. Neste caso, o bem deve ser avaliado por empresa especializada. Pode ser acionista da SAF (i) pessoa natural residente no país ou (ii) pessoa jurídica ou fundo de investimentos, constituído, em qualquer destas hipóteses, de acordo com as leis brasileiras e que tenha sua sede no território brasileiro. A pessoa jurídica ou fundo de investimentos que detiver participação igual ou superior a 10% do capital deverá, no prazo de cinco dias, informar à SAF e comunicar ao público o nome da pessoa física que lhe for controladora. As ações de emissão da SAF podem ser ordinárias ou preferenciais. O número de ações preferenciais sem direito a voto não pode ultrapassar 50% do total das ações emitidas. As ações ordinárias poderão ter uma ou mais classes. A SAF emitirá, necessariamente, ação ordinária classe A, que somente poderá ser subscrita pelo Clube que a constituir. Enquanto o Clube detiver pelo menos 10% do capital social, a deliberação de determinadas matérias, como a prática de qualquer ato de reorganização, dependerá do seu voto positivo. Ademais, enquanto detiver ao menos uma ação classe A, a deliberação das seguintes matérias exigirá, igualmente, o voto afirmativo do Clube: (i) modificação da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe profissional, incluindo símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; (iii) utilização de estádio ou arena, em caráter permanente, distinto daquele utilizado pelo Clube; (iv) mudança da sede para outro município; e (v) reforma do estatuto que altere qualquer condição, direito ou preferência da ação classe A. A SAF deverá ter, necessariamente, um conselho de administração e uma diretoria. Não podem fazer parte desses órgãos, por exemplo, membros de qualquer órgão administrativo do Clube ou integrantes de órgão administrativo de outra SAF. Enquanto o Clube for o único acionista da SAF, seu conselho deverá ser composto de metade menos um, no mínimo, de conselheiros independentes. Além disso, o estatuto poderá estabelecer requisitos necessários para o exercício do cargo de conselheiro. Os membros da diretoria deverão ser remunerados e dedicar-se à administração da SAF com exclusividade. Esse novo tipo societário terá um conselho fiscal de funcionamento permanente, formado por no mínimo três integrantes. Enquanto o clube for acionista único da SAF, pelo menos a maioria de seus membros será independente. Não poderá integrar o conselho fiscal pessoa que seja empregada ou que exerça qualquer cargo no clube, inclusive eletivo. As demonstrações financeiras da SAF serão auditadas por empresa de auditoria, com registro na CVM. A SAF não poderá participar do capital de outra SAF. De modo análogo, o Clube que constituí-la também não poderá participar do capital de outra SAF. O associado do Clube, acionista da SAF, terá direito de preferência para subscrever ações no caso de registro de emissor, pela SAF, e realização de oferta pública. A subscrição também poderá ser feita de modo menos oneroso, conforme critérios estabelecidos na oferta. A SAF poderá promover todas as publicações previstas na lei 6.404/76 exclusivamente em sítio próprio na internet, devendo mantê-las nesse local pelo prazo de dez anos. Mais um ponto interessante do PL: a previsão de emissão de debêntures especiais do futebol (debênture-fut). Esse valor mobiliário deverá ser remunerado por taxa de juros prefixada, que não poderá ser inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitindo-se a estipulação cumulativa de remuneração variável, vinculada às atividades ou ativos da SAF. Além da debênture-fut, a SAF poderá emitir qualquer outro valor mobiliário, na forma da Lei 6.404/76 ou conforme regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O projeto tem, ainda, um capítulo que regula a tributação da SAF. Oferece-se, de modo muito perspicaz, um regime especial e transitório (o re-fut), que permite ao futebol migrar do modelo amador, gerido por associações civis sem fins lucrativos, para o de mercado, como ocorre nos principais centros de prática futebolística do mundo. O re-fut, de todo modo, é voluntário, podendo a SAF, se preferir, adotar a sistemática aplicável às sociedades empresárias em geral (lucro presumido ou real). Por fim, um elogiável aspecto social do PL: a instituição do programa de desenvolvimento educacional e social. Trata-se de mecanismo de convênio entre a SAF e instituições públicas de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimentos da educação por meio do esporte, e do esporte por meio da educação. Os objetivos do convênio são incentivar (i) a assiduidade de crianças e jovens matriculados em escolas públicas, (ii) o envolvimento e o interesse dos alunos nas atividades educacionais promovidas pela escola e (iii) a formação de jovens atletas do futebol. Aí está, portanto, uma descrição abreviada do instrumento legislativo, de autoria do deputado Otavio Leite, que oferece ao país o veículo adequado para formação de um enorme e pujante mercado, com inegável potencial econômico e social.
quarta-feira, 27 de abril de 2016

Abertura de capital da CBF - Breves notas

Neste texto se discorre, de modo sucinto, em itens, a respeito das premissas e das vantagens da regulação, por via legislativa, de incentivos à abertura de capital da CBF. I - Natureza jurídica da CBF e poder de voto 1. A CBF é uma associação, sem fins lucrativos, regida pelo art. 53 e seguintes do Código Civil. 2. O Estatuto da CBF determina que votam nas assembleias da CBF as Federações Estaduais e os Clubes que participam da 1a divisão do campeonato nacional. 3. A lei 13.155/15, que criou o Profut, estende o voto nas assembleias da CBF aos Clubes participantes da 2a divisão do campeonato nacional. 4. Não existe, no Estatuto ou na Lei, relação entre voto e posição de associado da CBF. 5. Assim, não se pode afirmar, com certeza, quais são os associados da CBF. Mas se afirma, sem dúvida, que o voto em assembleia não tem relação com a condição de associado ou de detentor de títulos patrimoniais. II - Incentivos para "Mutualização" 6. O caminho para uma nova CBF é a abertura de seu capital. 7. Para que se atinja esse objetivo, deve-se, antes, implementar alguns passos. 8. O primeiro deles é a proposição de incentivos, por via legislativa, para que Federações Estaduais e Clubes deliberem, em assembleia da CBF, a criação e a atribuição, para cada um deles, de títulos patrimoniais da CBF. 9. Os títulos criados serão atribuídos em função de critérios objetivos, tais como títulos de campeonatos internacionais e nacionais e tamanho da torcida. 10. Com isso, os beneficiados - Federações Estaduais e Clubes -, passam a deter ativos, que são os mencionados títulos patrimoniais da CBF. Cria-se riqueza, pois os ativos terão, com a desmutualização, valor. Eventualmente, muito valor. 11. A atribuição desses títulos deve ser tratada de forma especial pelo Estado, pois se está a construir os pilares de um novo mercado, que albergará novas relações jurídicas, passíveis de criação de riquezas aos agentes envolvidos com o futebol, e de aumento de arrecadação por parte do fisco. 12. Recomenda-se, portanto, a edição de uma lei que isente as Federações Estaduais e os Clubes dos ganhos auferidos com a atribuição de títulos patrimoniais. 13. Apesar de, num primeiro momento, haver um inegável benefício, este será de algum modo compensado, sob a ótica do fisco, no momento em que o beneficiado alienar suas ações da CBF desmutualizada, como se verá adiante. III - Desmutualização 14. Atribuídos títulos patrimoniais a Clubes e Federações Estaduais, o passo seguinte consiste na desmutualização da CBF. Trata-se, a desmutualização, do ato transformador da natureza jurídica. De modo que a CBF deixa de ser uma associação sem fins lucrativos e passa a ser uma sociedade empresária. Idealmente, uma sociedade anônima. 15. Isto feito, as Federações Estaduais e os Clubes tornam-se acionistas e proprietários de ações da CBF ("CBF S.A."). 16. Podem, assim, alienar suas participações societárias, conforme critérios que vierem a ser estabelecidos no estatuto da CBF S.A., recolhendo, em contrapartida, os tributos decorrentes do ganho de capital. 17. Esse ganho também pode ter um tratamento especial, com alíquotas diferenciadas por conta da importância cultural do futebol; ainda mais: pelo fato de estar-se criando e estruturando, como já apontado, um novo mercado, com enorme potencial social e econômico. 18. Em qualquer hipótese, o fisco ganha, pois se recolherão tributos que, atualmente, não se recolhem; o Clube ganha, pois encaixará recursos que podem ser utilizados para investimentos ou pagamentos de dívidas; as Federações Estaduais ganham porque terão recursos para o desenvolvimento do futebol no plano regional; o torcedor também pela expectativa de que seu time tenha mais condições de investir, formar e disputar títulos; e os jogadores pela segurança de celebrar contratos com Clubes mais robustos economicamente. 19. Ninguém perde. IV - Abertura de capital 20. O grande passo se daria com a abertura de capital da CBF S.A. Isso significa que a CBF S.A., inicialmente com capital dividido entre Clubes e Federações Estaduais, passaria a ter ações negociadas em bolsa de valores. 21. Com esse passo os Clubes e as Federações Estaduais participam da valorização e do crescimento de uma companhia bem organizada. Quanto mais se valorizar, mais ganham por conta da participação societária decorrente da desmutualização. 22. Mas, se preferirem, podem alienar suas ações em mercado, beneficiando-se, economicamente, da operação. 23. No caso de abertura de capital, sugere-se que o estatuto da CBF S.A. estabeleça que: (i) nenhum acionista, exceto Federações Estaduais ou Clubes originários, detenha participação superior a determinado percentual, por exemplo de 1, 3 ou 5%. Com isso, impede-se que uma ou poucas pessoas controlem a CBF S.A.; (ii) todo acionista seja residente no Brasil ou empresa brasileira; (iii) no caso de acionista empresa brasileira, deve-se abrir o nome do controlador final pessoa física, seja ele brasileiro ou estrangeiro, sempre que a empresa atingir, na CBF S.A., o percentual acionário máximo admitido ou outro número definido no estatuto; (iv) a administração se componha de um conselho, com membros independentes, e de uma diretoria profissional, remunerada e que deva dedicar-se, com exclusividade, aos temas da CBF S.A.; (v) os mandatos dos membros da administração sejam de no máximo 3 anos, permitidas reeleições; (vi) exista um conselho fiscal, de funcionamento permanente; (vii) as demonstrações financeiras sejam auditadas por empresa registrada na CVM; (viii) se publiquem as demonstrações financeiras no sítio eletrônico da CBF S.A. 24. Esses cuidados estimularão a participação de um número expressivo de pessoas no capital da CBF S.A., necessariamente residentes no país ou empresas brasileiras. V - Mais um incentivo 25. A fim de estimular a participação do povo brasileiro no capital da CBF S.A., atingindo-se, assim, o objetivo de que a seleção seja ou possa ser de todos (basta querer investir, mesmo que valor pouco expressivo, representativo de uma ação), sugere-se a edição de uma lei que trate especialmente do ganho de capital do investidor pessoa física. 26. A ideia é incentivar a manutenção da propriedade da ação, por pessoas físicas, por prazos maiores. A alíquota decorrente do ganho de capital decresceria anualmente até que, ao cabo de, por exemplo, 5 anos, seria zerada. De modo que se premiaria o acionista, pessoa física, que mantivesse o investimento com uma expectativa não especulativa, mas associada ao futebol do Brasil. VI. Conclusão 27. Sugere-se a proposição de uma lei que incentive a desmutualização e a abertura de capital da CBF, criando-se estímulos para que Clubes e Federações Estaduais deliberem a atribuição de títulos patrimoniais e, na sequência, a transformação em sociedade anônima. Depois, a abertura de seu capital. 28. O processo gerará riquezas aos Clubes e, mais importante, contribuirá para o fortalecimento do futebol brasileiro. E, ainda mais relevante: permitirá a participação de milhares e milhares de brasileiros, quem sabe milhões, no capital da CBF.
Olhar para o que fazem outros países, especialmente aqueles que apresentam avanços em seus sistemas jurídicos, é sempre recomendável. O que não significa que se deva importá-los. Ou, se forem importados, que não se deva, antes, proceder às devidas adaptações. No âmbito do Direito Societário vemos, nos últimos 20 anos, a insistente prática de internalização de técnicas de governança que fazem sentido em seus países de origem, mas não necessariamente por aqui. E o motivo é fenomenológico. Sim, adotam-se soluções idênticas para fenômenos diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a doutrina da governação pretende proteger o investidor dos administradores; enquanto, no Brasil, a tensão se coloca sobretudo na relação sócio controlador e demais sócios. Daí o fracasso de modelos toscamente copiados e introduzidos em certas companhias brasileiras. A mesma lógica se aplica em relação às soluções legislativas para imposição de técnicas de governo do futebol. A realidade brasileira é única, e seu modelo, portanto, também deverá reconhecer esta característica. Confirma essa proposição a limitada lista de times que, nos principais campeonatos mundiais, disputaram - e continuam a disputar - os respectivos títulos nacionais. Veja-se, inicialmente, o caso de Portugal. Desde 1995, apenas dois times - Benfica e Porto - competem pela hegemonia futebolística, havendo um terceiro - o Sporting - que se intromete, de tempos em tempos, nesse duopólio1: A situação no outro país ibérico - este, aliás, verdadeiro protagonista do futebol contemporâneo - não é muito diferente. Repetindo a estrutura lusitana, o campeonato espanhol também é dominado por dois times - Barcelona e Real Madrid -, e conta com um penetra reincidente - o Atlético de Madrid - que, a exemplo do Sporting, estraga, eventualmente, a festa2: O futebol alemão apresenta os mesmos traços dos anteriores. Apesar de alguns times terem conquistado o campeonato nacional ao longo das últimas duas décadas, apenas dois times - Bayern e Borussia Dortmund - efetivamente rivalizam pela liderança3: No país da origem do futebol, também três times se projetam - Manchester United, Chelsea e Arsenal -, surgindo, recentemente, um quarto - Manchester City4: Por fim, a França. Neste país, uma situação atípica: vários times sem tradição em copas europeias revezando-se em primeiro, com o surgimento, em dois intervalos, de supercampeões: o Lyon e o Paris Saint-Germain5: Apresentados esses dados a respeito de cinco importantes campeonatos europeus, resta, então, a seguinte pergunta: em que o campeonato brasileiro difere deles? A tabela plotada abaixo responde: no mesmo período, 10 times sagraram-se campeões6. E o que é ainda mais estimulante: várias potências regionais e nacionais, como Internacional, Atlético Mineiro e Palmeiras não fazem parte da lista. E, não menos relevante: outros times, com importantes torcidas regionais, como Bahia (3,4 milhões de torcedores), Vitória (2,6 milhões), Sport (2,4 milhões), Santa Cruz (2 milhões) e Ceará (1,6 milhões)7, além de não aparecerem na mesma lista de campeões, apresentam, se bem estruturados e administrados, potencial para nela figurarem. O Brasil é, seguramente, o único país que se caracteriza pela existência de quase duas dezenas de potências nacionais. E um número ainda maior de potências regionais. Daí seu incomparável potencial econômico no plano futebolístico. Esses motivos justificam um modelo legislativo único, próprio e arquitetado para resgatar e desenvolver o futebol no Brasil, em seus mais relevantes aspectos culturais e econômicos. Um modelo que olhe, compreenda e se aproveite, naquilo que for realmente fundamental, dos sistemas comparados, mas que não feche os olhos para a sua realidade. E para suas necessidades, sociais e econômicas. Daí, inclusive, nossa proposta de criação da Sociedade Anônima do Futebol, já apontada nesta Coluna e que será, em breve, apresentada em seus detalhes. __________ 1 Futebol português. 2 Futebol espanhol. 3 Futebol alemão. 4 Futebol inglês. 5 Futebol francês. 6 Futebol brasileiro. 7 ESPN.
quarta-feira, 13 de abril de 2016

Governo e (des)governo no futebol

O vexaminoso resultado da partida entre Brasil e Alemanha, na Copa do Mundo de 2014, provavelmente jamais voltará a se repetir. E em favor de qualquer uma das seleções. Não pelo distanciamento organizacional e estrutural, mas pela raridade de resultados elásticos entre times tradicionais, sobretudo em ambientes competitivos. Indica, por outro lado, que, enquanto a Alemanha soube aproveitar uma grande crise, simbolizada no fracasso de 2000 - ano em que foi desclassificada na primeira fase da Eurocopa -, para criar um novo ambiente para o cultivo do futebol; para o Brasil, até agora, a catástrofe nada lhe ensinou, e sua crise - persistente - não o direciona a um caminho de luzes. O ponto de partida para reversão desse crítico estado de coisas é o fortalecimento dos clubes, por meio, como apresentado, ainda de modo preliminar no texto inaugural desta coluna, de uma regulação que estruture o mercado da bola e da institucionalização da sociedade anônima futebolística. Clubes fracos, sem ambiente para captação de recursos, incapazes de formar novos e muitos talentos, de explorar comercialmente suas marcas, inclusive para exportação, implicam fraqueza do esporte nacional. Daí extrair-se a máxima de que uma seleção será forte se a base que a alimenta for igualmente robusta. Sem times robustos, a poesia do futebol brasileiro, cantada e decantada por Pier Paolo Pasolini, passará ao plano da ficção. Teorias e modelos de governança ajudam a explicar o fenômeno. E demonstrar que os 7x1, conquanto excepcionais no plano prático ou estatístico, não ocorreram por acaso. Faz-se, então, uma comparação entre os modelos de governação do Bayern de Munique e do São Paulo Futebol Clube. Este ainda se rege pelo modelo secular da associação sem fins lucrativos. Seus administradores são amadores por definição, pois proibidos de receber remuneração. Assumem o encargo por paixão ou oportunidade. Não podem, como regra, dar-se ao luxo de abandonar suas profissões ou transferir suas empresas a sucessores. Dividem-se, portanto, entre o emprego ou trabalho diário e os temas do clube do coração. Essa discrição combina, sem dúvida, com a atuação em clubes puramente associativos, que não operam empresas econômicas de vulto, envolvidas em relações empresariais e negociais complexas, inclusive internacionais. Também chama atenção sua estrutura orgânica. A assembleia é, em qualquer associação ou sociedade, o órgão máximo. No São Paulo, não tem esse tratamento. Ela se reúne apenas a cada período de seis anos, para eleger e dar posse a um terço dos seus membros. O Poder soberano, pelo estatuto, é conferido ao Conselho Deliberativo. Este órgão tem a incumbência de representação dos associados. É composto de 240 membros, sendo 2/3 vitalícios. Estes 2/3 são eleitos e empossados pelo próprio Conselho. O outro terço, como visto acima, é renovado em períodos de seis anos pela assembleia. Dentre as atribuições do Conselho destacam-se a eleição e a posse do presidente da Diretoria. Também integram a estrutura orgânica: o Conselho Consultivo, responsável pela manutenção das tradições éticas, filosóficas e históricas; e o Conselho Fiscal, composto por cinco membros, dentre os membros do Conselho Deliberativo. A Diretoria do clube é composta de presidente, seis vice-presidentes e 18 diretores. Presidente e vices devem ser membros do Conselho Deliberativo. É dentro e por essa complexa estrutura que se opera o futebol profissional. E sujeito a esses órgãos que o presidente, mais qualificado que seja, atua. E deve, além das sofisticadas relações que se operam no plano futebolístico, ocupar-se com a piscina, as quadras de tênis, o squash, o salão de snooker, o tênis de mesa, pistas de bocha, os bares e restaurantes, salão de festas e festas temáticas, a sauna, o salão e mesas de carteado... O Bayern não abandonou sua natureza associativa. Mas operou uma separação do plano social da empresa econômica. De modo que suas atividades profissionais do futebol são operadas por uma sociedade empresária cujo capital é distribuído entre o clube Bayern (75%) e três transnacionais: Adidas, Allianz e Audi (cada uma detentora de 8,33%). No plano orgânico, adota uma estrutura dualistas, composta de Diretoria (executive board) e um Conselho (supervisory board). A Diretoria é formada por um presidente, um vice e três diretores. O Conselho é integrado por nove membros, sendo um presidente (Chairman), quatro vices e cinco sem designação especial. O presidente do Conselho é indicado pelo Bayern eV (isto é, pelo clube Bayern, e é, também, o presidente do clube); os vices são nomeados pelos outros acionistas, sendo que um é presidente da Adidas (CEO), outro presidente do Conselho da Audi (Chairman) e o último conselheiro da Allianz. Os demais membros do Conselho ocupam, em suas atividades profissionais, as funções de: Chairman da Telekom AG, Vice-Presidente Senior do Bayern Ev (novamente, do clube); 1o Ministro da Bavária; membro do conselho do Unicredit Bank; e Chairman da Volkswagen. Compete ao Conselho definir a orientação geral dos negócios. A Diretoria tem poderes de execução e representação. E deve, esta, empregar todos os seus esforços para atingir os objetivos do Bayern. E apenas isso. Ser diversionismo. Em troca de devida remuneração. Esse modelo não criou fissuras entre time e torcedores; também, aparentemente, não foi interpretado como ato de traição, rompimento com a história, tradições ou algo semelhante. Essa proposição se comprova pelo ranking mundial dos programas de sócio torcedor, liderado justamente pelo Bayern, com 258.000 participantes, o maior dentre todos os times do planeta. Apresentadas essas realidades, torna-se mais fácil compreender o resultado da Copa do Mundo de 2014. Isto porque o hiato não se restringe aos modelos adotados como referência, estendendo-se a todos os planos em que se envolve o futebol: começando pelo Estatal, que não provê, no Brasil, um ambiente para formação de um mercado e atração de recursos; passando pela CBF, que não tem interesse em fortalecer e luta pela fraqueza dos clubes; e dos próprios clubes, vítimas e responsáveis pelo atual estado de coisas.
A ideologia impede o desenvolvimento do futebol no Brasil. Os puristas ainda clamam pelo retorno de um jogo que ficou em suas memórias - ou nas velhas transmissões desbotadas, com jogadores vestindo mantos sem qualquer indicação empresarial. Por outro lado, reforçam-se os gritos de abertura do esporte para investimentos, como forma de resgate do tempo perdido. Para se chegar ao melhor modelo para o futebol brasileiro - que se fixará com uma regulação estatal visando à criação de um mercado próprio -, e o encontro de um ponto de equilíbrio, conforme as tradições e as necessidades locais, deve-se, antes, compreender a nova ordem. O modelo associativo, sem fins lucrativos, gerido por pessoas qualificadas em suas áreas de atuação, mas amadoras no segmento futebolístico - e, por isso, impedidas de receber qualquer remuneração - foi superado, com raras exceções, nos atuais centros mais desenvolvidos, por modelos que contemplam alguma forma de relação com o mercado. Vejam-se algumas variações. A estrutura do Bayern de Munique indica a separação do clube amador da atividade econômica do futebol, com a criação de uma sociedade empresária (empresa) e a atração de investidores. A composição acionária desta sociedade é a seguinte: FC Bayern Munchen eV 75% Adidas 8,33% Audi Ag 8,33% Allianz Se - 8,33% 8,33% - 100% O principal time francês da atualidade, o Paris St. Germain (PSG), segue um modelo mais agudo: inexiste relação ou participação de alguma associação ou mesmo de alguma pessoa, física ou jurídica, francesa. Trata-se de uma empresa, cujo capital foi integralmente adquirido, em 2012, pelo Qatar Sports Investments, operado pelo Fundo Soberano do Qatar. Um terceiro modelo, que se espalha nos principais centros de prática do esporte, inclusive na América Latina, expõe a decisão de abertura efetiva ao mercado, oferecendo-se ações à negociação em bolsa de valores. Nestes casos, geralmente, o clube constitui uma sociedade empresária com ativos do futebol e, na sequência, delibera a abertura do seu capital. Arsenal, Borussia Dortmund, AS Roma, Juventus, Sporting e Porto seguiram este caminho. Na América Latina, listam-se Colo-Colo, Universidad Católica e Universidad de Chile. A participação que o clube detém da companhia aberta, com ações negociadas em bolsa, depende do interesse, das necessidades e da estrutura de governação pretendidos pelo próprio clube, no ato de abertura. O modelo é estabelecido, portanto, de modo casuístico. Veja-se, a propósito, a estrutura acionária do Borussia Dortmund, em 30 de junho de 20151: Evonik Industries AG 14,78% Bernd Geske 8,8% Ballspielverein Borussia 09 e.V. Dortmund 5,53% SIGNAL IDUNA 5,43% PUMA SE 5% Free float2 60,46% - 100% Na contramão desses modelos, citam-se os casos de Barcelona e Real Madrid, fieis às suas históricas naturezas associativas clubísticas. De todo modo, qualquer seja a forma jurídica adotada, o país, e a tradição da prática do jogo, um elemento comum se destaca em todos os exemplos mencionados: a capacidade de atração de recursos e de geração de receitas, por meio de modernos e sofisticados sistemas de governação. Conforme números de 2014, o Real Madrid faturou 549,3 milhões de euros e o Barcelona 484,6 milhões de euros. Na Alemanha, Bayern faturou 528,7 milhões de euros e Borussia Dortmund 261,5 milhões de euros. O PSG arrecadou 474,2 milhões de euros no mesmo período3. Enquanto isso, no Brasil, terra do futebol, o Estado ainda não foi capaz de prover uma via de direito que incentive a passagem do modelo amadorista para o de mercado. E que estimule a implantação de uma governança compassada com os tempos modernos. O resultado dessa política (ou ausência dela) é revelador: em 2014, o maior clube brasileiro em receitas, o Flamengo, ocupava a 40ª posição no cenário mundial, com 101,4 milhões de euros, seguido por Corinthians, na 47ª, com 67,3 milhões de euros, e pelo São Paulo, na 49ª, com 65,8 milhões de euros. As três potências nacionais foram superadas por times sem expressão ou provenientes de países menos tradicionais como: Cardiff City, Hull City, Fenerbach, Sunderland, Olympique de Marselha, Copenhagen e Napoli4. Aliás, note-se que o faturamento agregado dos três os colocaria numa decepcionante 12ª posição mundial, atrás, os 3 juntos, de Borussia, Juventus, Liverpool, Arsenal, Chelsea, Manchester City, PSG, Barcelona, Bayern, Manchester United e Real Madrid. Alguns motivos justificam essa situação. Do ponto de vista regulatório, todas as tentativas, desde a Lei Zico, passando pela Lei Pelé e chegando ao recente Profut, naufragaram pela aridez material. E vaticinam, desafortunadamente, a carência de uma moldura regulatória indutora da formação de um pujante mercado do futebol, arquitetado para atrair recursos para emprego nesta atividade esportiva que é, sim, a preferência nacional. Emerge aí, portanto, o caminho para solução do problema: a criação de um mercado, com regulação própria, que preserve o jogo de bola como bem cultural e patrimônio do brasileiro, mas que o estimule e o reconheça como fenomenal bem econômico. E, também, a instituição da sociedade anônima futebolística, instrumento essencial para atuação nesse mercado. __________ 1 Cf.www.equitystory.com/.../borussia/.../BVBGB2015_ENG_net_RZs.pdf; acesso em 15/3/2016. 2 Conceito de free float: "todas as ações emitidas pela companhia, excetuadas as ações detidas pelo acionista controlador, por pessoas a ele vinculadas, por administradores da companhia, e aquelas em tesouraria". 3 Cf. Capelo, Rodrigo. Receitas do Futebol. Como 150 Clubes Arrecadam Dinheiro. 4 Idem.