Captação de recursos e a regulação do equity crowdfunding para startups
terça-feira, 15 de julho de 2025
Atualizado em 14 de julho de 2025 11:13
O financiamento das startups no Brasil passou, na última década, por inequívoca metamorfose, mesmo antes da promulgação do marco legal das startups e do empreendedorismo inovador (LC 82/211) pois fundadores e investidores, almejando acelerar a formação de capital, passaram a recorrer a instrumentos alternativos de captação, entre os quais se sobressai o financiamento coletivo de participação societária (equity crowdfunding), concebido como via democrática de acesso ao mercado de capitais.
A disciplina inaugural, fixada pela Instrução CVM 588/172, revelou-se, todavia, insuficiente para um ecossistema em franca maturação, de sorte que a resolução CVM 88/223a revogou e se tornou o atual marco jurídico destinado a reconfigurar integralmente a modalidade, elevando os tetos de captação, densificando as obrigações de divulgação de informações e introduzindo categorias de investidores, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava os requisitos de governança das plataformas e se alinhava a experiências estrangeiras de ambientes regulatórios experimentais.
Não obstante tais avanços, subsistem interrogações acerca da pertinência dessa normatividade às necessidades específicas das rodadas de investimento intituladas "semente" e "Série A", quadro que a presente pesquisa enfrenta ao perscrutar os efeitos concretos do novo regime na práxis societária das empresas inovadoras em estágio inicial (startups). Com efeito, a amplitude conferida pela resolução CVM 88/22 pode colidir com o arcabouço geral das ofertas públicas de valores mobiliários, sobretudo diante da ascensão simultânea de títulos digitais lastreados em valores mobiliários e de notas conversíveis simplificadas, figuras que tensionam a tipologia clássica e, por conseguinte, suscitam riscos de erosão da segurança jurídica dos investidores, impondo-se a sistematização de critérios que promovam efetiva convergência regulatória.
Entre as inovações dignas de nota figura o "investidor líder", definido no art. 2º, III, da resolução CVM 88/22 como a "pessoa natural ou jurídica com comprovada experiência de investimento" e "autorizada a liderar sindicato de investimento participativo", ao qual se atribui não apenas a função de diligência prévia, mas também a sinalização da qualidade do empreendimento, exigindo-se, para tanto, aporte mínimo equivalente a dez por cento do montante pretendido, solução que atenua assimetrias informacionais e guarda similitude com mecanismos de precificação de demanda utilizados nas ofertas públicas iniciais, embora mereça exame acurado quanto a seus reflexos na governança interna das sociedades emergentes.
Igualmente relevante foi a criação do registro automático das ofertas, operacionalizado pelo sistema eletrônico da CVM, suprimindo-se a análise prévia do regulador e reduzindo-se, em consequência, tempo e custos, o que aproxima o modelo brasileiro da experiência britânica4; tal desburocratização, entretanto, transfere ônus acrescido às plataformas, que passam a responder por robusta estrutura de conformidade regulatória. Tais entes, reclassificados como operadores de mercado de balcão organizado, devem implementar políticas rigorosas de identificação da clientela, manter equipes técnicas aptas a monitorar operações suspeitas de lavagem de capitais, segregar recursos de terceiros e submeter-se a auditorias periódicas, exigências que, embora reforcem a integridade do sistema, ampliam custos fixos e podem afastar empresas de tecnologia financeira de menor porte, evidenciando o desafio de equilibrar inovação e segurança.
As rodadas semente, realizadas por meio do financiamento coletivo, enfrentam particularidades decorrentes do elevado grau de incerteza tecnológica que permeia as startups nesse estágio; conquanto a nova resolução não imponha demonstrações contábeis auditadas, recomenda práticas contábeis regulares, circunstância que, muitas vezes, supera a capacidade estrutural dos fundadores e gera tensões entre imposições normativas e realidade operacional, convertendo a capacitação empreendedora em fator decisivo ao êxito. Nas captações destinadas à Série A, surgem dilemas adicionais, pois investidores profissionais demandam direitos preferenciais e cláusulas de proteção que a resolução 88, embora admita participações preferenciais com voto restrito, limita ao vedar certas prerrogativas estruturais típicas do capital de risco, razão pela qual alguns agentes optam por contratos de subscrição privados, tornando mais complexa a articulação contratual, embora se tratem de instrumentos de investimento típicos, porquanto previstos expressamente no art. 5º, §1º, I, do marco legal das startups.
O intervalo previsto para a fase de precificação de demanda tem por escopo engajar a base de investidores, mas alonga em demasia o ciclo de captação, comprometendo a agilidade estratégica requerida em mercados altamente competitivos; daí a conveniência de ajustes que, sem sacrificar a transparência, abreviem o procedimento. No cenário internacional, a lei norte-americana (jumpstart our business startups - JOBS Act, de 2012)5 e as subsequentes alterações promovidas pela Securities and Exchange Commission, que elevaram o limite de captação para 5 milhões de dólares, oferecem parâmetro comparativo, entretanto, a fragmentação normativa nacional permanece problemática: distintos órgãos repartem a competência sobre aspectos correlatos do financiamento coletivo, havendo, inclusive, superposição com o Banco Central no tocante às contas de pagamento, o que incrementa os custos de transação e revela a necessidade de um estatuto unificado que mitigue conflitos inter-agências.
No domínio da tokenização de valores mobiliários, a blockchain emerge como fenômeno disruptivo ao possibilitar a emissão de títulos digitais registrados de forma segura e robusta, realidade recentemente reconhecida pela CVM, que, por meio do parecer de orientação 40/246, submeteu tais ativos ao regime da lei 6.385/1976 e permitiu sua oferta em plataformas de financiamento coletivo. Contudo, as exigências tecnológicas introduzem novos contornos de risco: vulnerabilidades de programação podem ocasionar danos irreversíveis, o que faz sobrelevar a discussão sobre a responsabilidade solidária ao emissor e ao desenvolvedor7, ao passo que a jurisdição brasileira ainda carece de precedentes robustos sobre a matéria, reforçando a relevância de auditorias formais.
Quanto à liquidez, os tokens viabilizam negociação em mercados secundários globais, expondo as startups a investidores estrangeiros e suscitando conflitos de competência jurisdicional; por outro lado, a exigência, pela CVM, de negociação em plataformas autorizadas colide com a natureza transnacional da tecnologia, impondo soluções que restrinjam o acesso de residentes em determinadas jurisdições. No campo contábil, a mensuração pelo valor justo mostra-se desafiadora diante da volatilidade dos criptoativos, e a adoção de marcação a mercado pode inflacionar balanços, ensejando receios de maquiagem contábil e justificando controles adicionais.
A securitização mediante tokens promete reduzir custos de emissão ao dispensar intermediários tradicionais de escrituração e custódia; entretanto, substitui-se gasto financeiro por investimento em infraestrutura de carteiras digitais, cujo ponto de equilíbrio depende do valor médio da oferta, o que conduz à inexorável constatação de que estimativas econométricas podem sugerir vantagem apenas acima das operações de milhões de reais.
As notas conversíveis simplificadas, por sua vez, condicionam a futura conversão a limites de avaliação ou deságios, cláusulas passíveis de automação por contratos algorítmicos on-chain. Nesse sentido, a integração entre tais notas digitais e o financiamento coletivo cria estrutura híbrida cuja qualificação jurídica permanece controvertida. De outro lado, quando emitida no âmbito do financiamento coletivo, a nota conversível deve observar integralmente os limites da resolução 88, refletindo, no quadro societário, os direitos potenciais de conversão, pois a falta de transparência pode constituir vício informativo; cabe às plataformas exigir modelagens de cenários suficientes para assegurar a plena informação do investidor.
A emissão de tokens ainda guarda vínculo direto com o Direito Societário tradicional, reclamando deliberação corporativa prévia, seja em assembleia geral extraordinária, no caso das sociedades anônimas, seja por alteração contratual nas limitadas, sob pena de nulidade do ato; já o mercado secundário de tais títulos enfrenta desafios relacionados a flutuações especulativas, mas que podem ser minoradas mediante mecanismos de formação de mercado, ainda carentes de regulamentação. No mais, a interoperabilidade entre notas conversíveis e tokens fomenta arcabouço financeiro inédito, no qual a promessa de conversão se materializa em token não fungível, incrementando transparência e rastreabilidade, embora dependa da padronização de contratos on-chain.
Em conclusão, a modernização do financiamento coletivo de participação societária constitui passo irreversível na consolidação de um ecossistema de inovação robusto; todavia, seu alinhamento com instrumentos híbridos exigirá normatividade complementar, pois a proteção do investidor não pode sucumbir à mera retórica inovadora. Impõe-se, assim, regulação tecnologicamente neutra, orientada por princípios e proporcional aos riscos, ao mesmo tempo em que o mercado cultiva genuína cultura de conformidade, premissa indispensável para a edificação de ambiente inclusivo, sustentável e juridicamente seguro.
1 BRASIL. Lei Complementar n.º 182, de 1.º de junho de 2021. Institui o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador e dispõe sobre o ambiente regulatório experimental. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 2 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
2 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução CVM n.º 588, de 13 de julho de 2017. Dispõe sobre a oferta pública de distribuição de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno porte. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 18 jul. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
3 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Resolução CVM n.º 88, de 27 de abril de 2022. Dispõe sobre a oferta pública de valores mobiliários de emissão de sociedade empresária de pequeno porte. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 28 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
4 No Reino Unido, a Financial Conduct Authority (FCA) adotou, desde o Policy Statement PS14/4 (2014), um regime em que as plataformas de financiamento coletivo de participação societária, uma vez autorizadas, podem hospedar ofertas públicas de valores mobiliários sem submissão prévia de cada emissão ao crivo do regulador, assumindo integralmente o dever de diligência, de verificação da adequação do investidor e de divulgação das informações essenciais; como contrapartida, o investidor de varejo fica sujeito a limites de aplicação (máximo de 10 % do seu patrimônio investível) e deve firmar declaração de compreensão dos riscos, enquanto o emissor se beneficia da dispensa de prospecto para captações dentro de certos limites pecuniários, o que reduz custos e prazos operacionais e serve de paradigma para o sistema de "registro automático" recentemente instituído pela CVM no Brasil. REINO UNIDO. Financial Conduct Authority. The FCA's regulatory approach to crowdfunding over the internet, and the promotion of non-readily realisable securities by other media: feedback to CP13/13 and final rules. Policy Statement PS14/4. London: FCA, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
5 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Securities and Exchange Commission. Jumpstart Our Business Startups (JOBS) Act. Washington, D.C.: SEC, 21 jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
6 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Parecer de Orientação CVM n.º 40, de 11 de outubro de 2022: Os Criptoativos e o Mercado de Valores Mobiliários. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 14 out. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25.
7 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A responsabilidade civil de programadores e desenvolvedores de software: uma análise compreensiva a partir do conceito jurídico de 'operador de dados'. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 809-834.