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Migalhas de Direito das Organizações

Os desafios enfrentados por diferentes tipos de pessoas jurídicas, públicas e privadas, aproximando questões tratadas de forma isolada pelas disciplinas do Direito Civil, Empresarial e Administrativo.

Kelly Cristine Baião Sampaio, José Luiz de Moura Faleiros Júnior, Fabrício de Souza Oliveira, Renato Chaves Ferreira e Nelson Rosenvald
Infelizmente, precisamos dizer aos corações jovens: apesar de serem um espaço de encontro, as sociedades, simples ou empresárias, podem ser tornar cenários de guerra. Os seres humanos são assim e, em meio à proposta de tocar uma advocacia propositiva, edificadora, podemos ser arrastados para a selvageria hobbesiana: homo lupus homini. Estupefatos, vimos isso acontecer em algumas situações: fervendo no caldeirão, a porção desanda e dá-se o horror: o que seria magia de boa tecnologia societarista, torna-se caos. A clássica cena de Mickey em Fantasia (Disney, 1940), ao som do poema sinfônico de Paul Dukas (1865/1935), compositor parisiense: L'apprenti sorcier (O Aprendiz de Feiticeiro). Era apenas para limpar o lugar, mas chega-se a uma terrível inundação. Só quem já viveu tais reviravoltas sabe do que falamos. Como as doenças e injúrias médicas, só quem as padeceu sabe efetivamente o que experimentou, os sustos, os medos, os malefícios. Bem a propósito da metáfora, estávamos a nos recordar que já dissemos alhures que o litígio nasce quando o Direito não funciona; o processo (judicial ou arbitral) é um tratamento para a doença ou injúria do Direito; se tudo corresse bem, se se realizasse como deveria ser (ah! o dever-ser kelseniano nos paga uma visita!), não haveria litígio. Olhe ao redor: é o comum, o comezinho: as relações jurídicas realizam-se em conformidade com o sistema que as sustenta; o conflito é a exceção; graças a Deus! Por isso tememos tanto a guerra e rezamos/oramos pela paz: a esperança que a vida se revele tranquila, satisfatória: que tudo dê certo e, enfim, que o conflito não se revele, embora saibamos que está por aí, em meio ao que parece normal e promissor, mas querendo erguer seu véu. Triste, mas verdadeiro. A experiência o ensina para quem, pela sabedoria, não o concluiu pela simples cogitação. Quer ver um caso? Linhas gerais, está bem? Afinal, há o dever ético de sigilo. Era uma sociedade fantástica, constituída para uma empresa promissora. Tudo indo nos melhores dos mundos até que, sem mais, sem menos, um dos sócios dá um cavalo-de-pau societário. Começou por dizer que ele, sim, saberia como deveria ser feito e não seria do jeito dos outros. Depois, chegou a dizer que não iriam tirar o que era seu por direito: a chance de ficar rico (e bem rico). O que parecia Shangrilá tornou-se o Vale das Sombras. As cinco partes (os sócios) revelavam um equilíbrio que era, em si, uma vantagem corporativa. Dois se juntaram e, enfim, cooptaram um terceiro. Se nos perguntarem o que se passou, seremos obrigados a pedir ajuda aos universitários... de psicologia, quiçá psiquiatria. A verdade é que golpes corporativos não são raros. Não chegaremos ao pessimismo exacerbado e dizer que são a regra. Não é verdade. No entanto, não há como negar que são comuns. "If they say: why, why? Tell 'em that it's human nature" (John Bettis/Steven Porcaro: Human Nature; gravação de Michael Jackson para o álbum Thriller, Épico/CBS, 1983; a produção musical foi de Quincy Jones). Como se sai dessa? No caso, as batalhas começaram pelo manejo das cláusulas do contrato social, o pé-de-ferro dos quóruns previstos. Quando o contrato não diz, vai-se ao CC. A peleja avançou por disputas junto a parceiros, vitimando a empresa. Tudo terminou na arbitragem. Entre vencedores e vencidos, todos perderam, considerando o que poderia ser. Infelizmente, os seres humanos, incluindo sócios de empresas, tendem a fazer contas psicológicas em lugar de matemáticas. Quase nunca contadores e auditores concordam com aquele que se julga vencedor. É mais satisfação emocional do que ganho econômico. Advogados precisam aprender isso ou irão se deixar levar por essa corrupção tola: equações econômico-empresariais desnaturarem-se em equações emocionais-psicológicas. Um horror. Uma das virtudes indispensáveis para trabalhar com Direito Societário é saber que, embora a suavidade seja coisa rara, nem sempre a força bruta é efetivamente vencedora; pode prevalecer, sim; mas será isso sinônimo de vencer? É sutil, sabemos. Há tantos vencedores por aí que são, intrínseca ou extrinsecamente, pobres coitados que arrastam a derrota consigo, como se fosse um casco de tartaruga. Na empresa A, o majoritário impôs sua vontade, mas os resultados econômicos são terríveis, vive-se uma crise. Na empresa B, os sócios discutiram e compuseram uma solução; não era bem o que o majoritário queria, mas julgou melhor ceder, comungar; os resultados foram soberbos. O que é vencer? Não é tão simples; afinal, há uma resposta que se dá logo após a reunião ou assembleia de sócios; há outra que se dá ao fim do exercício, examinando o balanço e as demonstrações financeiras. Ainda assim, fica o registro: não é incomum observar que a vitória está justo na prevalência da opção pelo pior; mas o pior que corresponde a um exercício de poder; mais do que isso: a um exercício regular de poder. Recomendamos a quem pensa sobre os pontos que estamos levantando que não deixe de considerar seu ponto-de-vista. O parágrafo anterior é um, sob a perspectiva da Ciência da Administração de Empresas; entrementes, é outro, sob a perspectiva do Direito. Há outras perspectivas, como psicológica, sociológica, econômica. A perversão corporativa tem expressão mais formalista quando o vértice do exame está no Direito (Direito Empresarial, Direito Societário), ao passo que às outras disciplinas não toque o pudor de fugir à questão do mérito. No plano jurídico, coloca-se não só a questão do exercício do poder de voto, mas igualmente a necessidade de se considerar o poder discricionário privado que, embora pouco teorizado, compõe a principiologia do Direito Societário. Percebe-se que resolvemos abrir o espectro antes de volver àquele arranca-rabo que descrevemos acima. Em fato, com reservas à tormentosa questão do voto ilícito (inclusive quando caracterizado o abuso do direito de voto, o voto em conflito de interesses etc), o poder de voto que corresponde às quotas ou ações é, sim, discricionário: o que o sócio (quotista ou acionista) compreende como melhor para a sociedade, o que não exclui, é bom frisar, sua compreensão de mundo, seu ideário. Não é ilícito o voto ambientalista, como não é ilícito o voto negacionista (desde que não expresse ilicitude em face à legislação positivada e o entendimento da jurisprudência); mesmo o voto que acredita expressar uma vontade divina, se não desrespeita o sistema jurídico, é lícito. Mais do que isso, não é ilícito a fruição do poder dado por quotas ou ações, individualmente ou somando-se a outros sócios, por meio do qual se exerce o controle da sociedade. Mas há limites; reiteramos: o abuso no exercício da faculdade jurídica, voltado para prejudicar a sociedade e/ou os demais sócios, é um ato ilícito. E isso também ocorre e não é raro, lastimavelmente. Há momentos em que as sociedades experimentam as semelhanças; há momentos em que experimentam as diferenças; e não será correto valorar aqueles como positivos e esses como negativos. A semelhança pode ser desastrosa quando a diferença é necessária. A empresa não se salva por haver concordância se há comunhão em opção que, ao final, mostrou-se desastrosa. O mercado não é complacente, mas efetivo; não dá a mínima à harmonia societária. Pelo contrário, pode ser que se mostre correta e extremamente lucrativa a solução que resultou de um pega-pra-capar entre os sócios, reações emocionais fortes e, alfim, um bisonho acordo que, nem para lá, nem para cá, aceitou que se fosse para acolá. Vai daí que erra o microlegislador corporativo (o advogado que redige o ato constitutivo e outras plataformas normativas) que almeja criar um sistema de concordâncias; deve atentar-se para os méritos das anuências (cujo máximo é a difícil unanimidade), mas, por igual, atentar-se para os méritos das discordâncias, embora atento para o poder deletério das emoções impulsivas, dos comportamentos desenfreados, das ações que podem romper com o tecido societário. Esperar docilidade é correr o risco da utopia; o bom senso desaconselha; mas, sejamos sinceros, são advertências que quase ninguém escuta. A esmagadora maioria dos atos constitutivos brasileiros simplesmente passa ao largo do desafio óbvio do conflito societário, salvo a previsão do foro para dirimir controvérsias ou, um pouco mais sofisticado, o estabelecimento de cláusula compromissória. São intervenções jurídicas (e advocatícias) de baixa tecnologia jurídica; pouco escudo para tantas flechas e lanças, teremos que convir. Mais do que isso, pensando na preservação da corporação e da empresa, bem como nos direitos de todos os sócios, são disposições inábeis para enfrentar os riscos dos sussurros da Discórdia (deusa a que os gregos chamavam Eris, filha primogênita da Noite - Nyx - e irmã de Ares, o deus da guerra, chamado Marte pelos romanos). A Discórdia sabe muito bem que os seres humanos nunca se livram do cárcere das paixões e, assim, dos arroubos, dos impulsos, do egoísmo, da ambição desenfreada. Um bom advogado societarista não pode ser tão ingênuo ou inábil ao ponto de ignorá-la. Logo no princípio de "O Retrato de Dorian Gray" (ah! as emoções cruéis! ah! o narcisismo!), Oscar Wilde, pela "voz" de Lord Henry, diz: "certas criaturas têm a mania de dar bons conselhos, precisando tanto deles para si... É o que chamo o cúmulo da generosidade." Dá-se justo o mesmo conosco e, por ousar dar pitacos, nossas desculpas são devidas. Contudo, pensamos que melhor andaria a estrutura jurídica da corporação se na plataforma normativa que lhe dá a principal sustentação (o ato constitutivo: no caso, um contrato social), ou em pacto parassocial regulador (uma plataforma normativa acessória, secundária), houvesse disposições cuidando de mecanismos alternativos ao litígio, nomeadamente conciliação e/ou mediação, com expressa previsão de se tratar de procedimento instrutório à eventual instauração da arbitragem. Percebeu o alcance disso? Será bom debruçar-se sobre a proposição. Vamos lá: a preservação da corporação e, consequentemente, da empresa, deve contar com uma posição de prestígio nas preocupações dos investidores (sócios) e de seus advogados. Assim, deveríamos considerar insuportável o silêncio do ato constitutivo e/ou de pactos parassociais (plataformas normativas acessórias) sobre o tema. Ao cuidar de uma sociedade empresária, o advogado (ou banca de advocacia) deve pressentir os perigos que a discórdia expõe a corporação (e a empresa), fazendo sua defesa, no varejo e no atacado. Acreditamos que isso se faça, antes de mais nada, impedindo que as desavenças prováveis se tornem litígio: briga, disputa, fuzuê, banzé. É preciso haver foros corporativos de diálogo que funcionem regularmente como válvulas que controlem a pressão interna e, assim, evitam a explosão. Afinal, é pouco provável que o ambiente seja suportável depois do quebra-pau. Há que se evitá-lo ou, no mínimo, evitar que se agrave e torne a dissolução um caminho sem volta. Veja que é um discurso incomum ao Direito Societário; o conflito encontra páginas e páginas de doutrina e jurisprudência; a boa convivência - e as condições objetivas para a manutenção da boa convivência - é matéria bissexta. Compreendemos, sim, que conflitos são naturais ou, no mínimo, corriqueiros (cf. "Semiologia do Direito". 3.ed. Atlas, 2009); mas o compreendemos pela perspectiva da lide e do processo (judicial ou arbitral); há quem pense que o Direito nasce do conflito; na verdade, é o processo quem nasce do conflito; o Direito pode nascer do encontro: contrato e negócio são exemplos claros disso. Daí o mérito de perspectivas e tecnologias que estão se achegando ao Direito Empresarial: comunicação não-violenta, conciliação, mediação, gestão de relações (entre sócios, com investidores, entre colaboradores etc). Estamos aprendendo que a disposição de regras para a melhor convivência é matéria jurídica e, mais, matéria de qualidade jurídica. É neste contexto que se assiste ao aumento no número de atos constitutivos (plataforma normativa primária) ou pactos parassociais (plataformas normativas acessórias ou secundárias) em que se ajusta a obrigação de as partes se submeterem à conciliação e/ou mediação, havendo mesmo aquelas que consideram tratar-se de momento pré-processual (à jurisdição judiciária ou arbitral) ou, indo ainda além, atribuindo às suas atas e demais documentos o caráter de elementos de instrução para eventual litígio: um meio para se aferir intenções, demonstrar e avaliar boa-fé, dar parâmetro e dimensão ao conflito. Coisas que são absolutamente desnecessárias a quem quer brigar, tomar, conquistar; mas essenciais a quem deve compreender o drama para poder julgar melhor: aferir os ânimos, aquilatar interesses, colher detalhes como ambições, futilidades, venenos, tolices, inconsistências e, se seguirmos, a lista ficará enorme. Por isso escrevemos no "Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios" (8.ed. Atlas, 2024): "O contrato social pode trazer cláusula compromissória, hipótese na qual a contestação se fará por tal meio. Também é possível haver cláusula de mediação e/ou conciliação como requisito preliminar à ação judicial ou procedimento arbitral. Os procedimentos de mediação e conciliação têm se mostrado riquíssimos para a preservação da empresa e harmonização dos interesses dos sócios. Cuida-se de alternativa que merece ser prestigiada." E, entre os modelos de cláusula que estão ali previstos, listamos alguns sobre a matéria; por exemplo: "Os conflitos societários serão obrigatoriamente antecedidos pela instauração de procedimento extrajudicial de mediação." Mais um exemplo do que consta do livro; outro modelo de cláusula sugerido: "O procedimento de mediação será instaurado em no máximo ... (....) dias e não excederá ... (...) dias, contados de sua instauração, salvo se as partes aceitarem prorroga-lo. Vencido esse prazo, qualquer dos interessados poderá instaurar o procedimento contencioso para a solução do conflito." O que importa, na conclusão deste ensaio, é chamar atenção para uma perspectiva incomum diante dos desencontros corporativos: em lugar de pensá-los como gatilhos inexoráveis da demanda, compreendê-los como parte de um processo organizacional a recomendar procedimentos de diálogo e composição. Negociar em lugar de partir para o ringue: advogados que se compreendem como atores do ajuste e não como meros galos de rinha. O advogado pode ser uma das peças das engrenagens da empresa, para seu melhor futuro, para seu desenvolvimento e sucesso. Não apenas litigando, mas sendo vetor do melhor cenário. É pouco usual pensar na formação jurídica como meio para proporcionar soluções e não apenas decisões favoráveis. Mas há cada vez mais empresas que compreendem os impactos positivos que insumos jurídicos podem carrear para suas estruturas organizacionais e suas cadeias produtivas. Pode ainda não ser o normal; mas veja: computadores pessoais são normalidade recente, coisa de quarenta anos; celulares eram ficção científica há sessenta anos; inteligência artificial há menos tempo. A nova posição que pode - e deve - ser ocupada pela advocacia é, por igual, algo incomum, considerando as ladainhas comuns das salas de aula: peticionar, argumentar, embargar, recorrer e por aí vai. Sempre houve quem fizesse seus dias negociando e redigindo contratos, distratos e acordos, estatutos e regulamentos, assessorando a realização de reuniões e assembleias de sócios; sempre houve advogados proativos que se dedicam a construir e não apenas combater. A diferença é que o espaço para a atuação desses se alarga: as lides se revelam custosas e, salvo aventureiros, pouco lucrativas. Uma chance para não se perder, pensamos. Há espaço para muitos outros advogados de construção e não apenas combate. Aliás, a República, sua economia e seus atores mercantis precisam de muitos outros.
sexta-feira, 15 de agosto de 2025

O problema do controle na lei das S.A.

O conceito de controle societário, conforme delineado pela lei 6.404/1976, art. 116 e parágrafo 2º do art. 243, constitui derivado do poder, refletindo a capacidade de influenciar ou determinar a conduta de outrem no contexto organizacional. No âmbito jurídico, o controle pode assumir significações diversas, ora como processo de vigilância e verificação da atividade própria ou alheia, com vistas à prevenção ou correção de eventuais desvios, ora como poder de dominação e direção, conforme o sentido anglo-saxônico de "control", aplicado à relação entre sociedade controladora e controlada. É mais corrente na literatura especializada brasileira a adoção da acepção de controle enquanto poder político e de domínio sobre as deliberações assembleares, a eleição da maioria dos administradores e a determinação dos rumos da sociedade, evidenciando a personalização do poder exercido pelo acionista controlador. O poder de controle societário, longe de se limitar à mera autoridade formal, carrega consigo a funcionalidade jurídica de fiscalização e direcionamento da companhia, vinculando o controlador ao cumprimento do objeto social e da função social da empresa. Conforme o parágrafo único do art. 116 da lei das S/A, ao acionista controlador compete não apenas conduzir os negócios sociais e orientar os órgãos da sociedade, mas também atuar de forma a prevenir e corrigir sua própria conduta, fiscalizando os administradores e garantindo a observância dos interesses da companhia, de seus acionistas minoritários, dos empregados e da comunidade em que está inserida. Tal perspectiva funcionalista do controle, evidencia a assimilação do poder pelo Direito, condicionando-o a deveres de lealdade e responsabilidade jurídica, sob pena de responsabilização do controlador por desvios de finalidade ou uso oportunístico de seu poder-dever. No contexto da estabilidade do controle acionário, o Direito Societário brasileiro distingue formas estáveis e instáveis de controle, com base na previsibilidade de transferência do poder. O controle majoritário e o controle por mecanismos legais são considerados estáveis, pois sua transferência depende da vontade do acionista controlador, enquanto o controle minoritário e o administrativo (não previsto entre nós) configuram formas instáveis, suscetíveis a aquisições hostis ou mudanças na composição societária. Entretanto, ainda que questão antiga no Direito das Sociedades, a classificação das formas de controle previstas no Direito das Companhias brasileiro suscita alguma dúvida diante da complexidade regulatória e dos arranjos organizacionais que envolvem as companhias. O professor Eric Hilt1 comentando o clássico "The Modern Corporation and Private Property"2 afirma que a obra inicia com uma caracterização surpreendente do mundo empresarial da década de 1930 (em referência à realidade estadunidense): "Crescendo até proporções enormes, pode-se dizer que evoluiu um 'sistema corporativo' - assim como outrora existiu um sistema feudal." Berle e Means argumentaram que o surgimento desse sistema transformou fundamentalmente o papel da companhia na sociedade, e que essas estruturas haviam se tornado tão grandes e influentes que seu comportamento impactava "a vida do país e. de cada indivíduo". No entanto, sua escala enorme significava que eram financiadas pela "riqueza de inúmeros indivíduos", quase todos os quais se tornaram investidores completamente passivos, sem qualquer papel em sua governança: a propriedade estava separada do controle. Para Berle e Means, isso significava que os conceitos tradicionais de sociedade não eram mais adequados. Um novo conceito de corporação era necessário - um conceito que pudesse implicar que os interesses da comunidade deveriam ser incorporados à conduta corporativa. A partir desse diagnóstico, Berle e Means identificam a tão conhecida separação entre controle e propriedade. Mas ao identificarem esse fenômeno, constatam que a sua intensidade não se manifesta no mesmo grau em todas as companhias. Essa foi a chave para que desenvolvessem o seu sistema de classificação das formas de controle: caminhando entre formas que apresentam com maior intensidade a dissociação entre propriedade e controle, como é o caso do controle administrativo, e formas onde essa intensidade é menor, como ilustra o controle por meio da propriedade quase total. Esse pensamento nos influencia até os dias de hoje de maneira que cuidaremos agora de classificar as formas de controle previstas no Direito das S.A. brasileiro a partir do esquema classificatório proposto por Berle e Means. Não descuramos, outrossim, da contribuição dada ao Direito brasileiro pela obra "O poder de controle na sociedade anônima"3, de Fábio Konder Comparato e atualizações de Calixto Salomão Filho. a) Controle majoritário O controle majoritário - aquele em que o acionista controlador é titular de mais de cinquenta por cento das ações com direito de voto -, segundo a análise seminal de Berle e Means, representa o estágio inicial na histórica separação entre propriedade e controle societário, fenômeno que posteriormente se revelou como a raiz dos conhecidos problemas de agência na governança corporativa. Nessa modalidade, o poder de conduzir os negócios sociais transita da minoria para a maioria acionária, ensejando a necessidade de regulação jurídica que estabeleça deveres de lealdade, responsabilização dos controladores e mecanismos de invalidação de deliberações assembleares.  Tal configuração evidencia a relação de agência entre acionistas controladores e minoritários, na medida em que os primeiros, ainda que não detenham poder de disposição sobre os bens sociais, preservam o comando sobre as atividades da companhia, sobretudo em razão da amplitude de matérias submetidas à deliberação da assembleia geral, conforme preceitua o art. 121 da lei 6.404/1976. No âmbito do Direito Societário brasileiro, cumpre salientar que a caracterização do controlador, para fins do art. 116 da lei das S/A, distingue-se do mero acionista majoritário, haja vista que a titularidade isolada ou coletiva de mais de cinquenta por cento do capital votante não se apresenta como requisito imprescindível e suficiente. Em consonância, o acionista controlador deve ser entendido como aquele detentor de direitos societários que lhe assegurem, de maneira permanente, preponderância nas deliberações sociais e poder de eleger a maioria dos administradores, independentemente da posse da maioria absoluta das ações. Tal concepção evidencia que o controle societário se ancora na efetividade do poder de decisão e na capacidade de influenciar os rumos da companhia, mais do que na titularidade numérica de ações. Ademais, a compreensão do controle majoritário deve considerar as especificidades dos mecanismos legais que estruturam o poder na sociedade anônima, notadamente a adoção de ações ordinárias simples e ações com voto plural, bem como a coexistência de ações ordinárias e preferenciais. Essas estruturas, ao mesmo tempo em que consolidam o poder do controlador, permitem distinguir entre controle majoritário estável e outras formas de controle, assegurando a adequada funcionalização do poder em conformidade com os deveres de lealdade e responsabilidade previstos na legislação societária.  b) Controle por mecanismo legal O controle por mecanismos legais revela-se como instrumento sofisticado para a manutenção do domínio societário em grandes empreendimentos, permitindo aos acionistas fundadores ou empreendedores exercerem preponderância decisória sem a necessidade de deter a maioria das ações votantes. Tal estratégia encontra respaldo em estruturas societárias ou contratuais, que se materializam, dentre outras formas, na constituição de holdings ou na celebração de acordos de voto, conforme preceitua o art. 118 da lei 6.404/1976, ensejando o denominado controle piramidal ou em cascata. Este modelo de organização corporativa encontra fundamentação legal expressa no parágrafo 2º do art. 243 da lei das S/A, ao dispor que a sociedade controlada é aquela em que a controladora, direta ou indiretamente, detém direitos societários que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações e o poder de eleger a maioria dos administradores, consolidando-se como mecanismo de concentração de poder decisório. Outrossim, a adoção de estrutura dual de ações constitui outra via legal de controle societário por mecanismo legal, englobando as ações ordinárias com voto plural e as ações preferenciais sem direito de voto. A introdução do voto plural no ordenamento jurídico brasileiro, mediante a lei 14.195/21, que alterou os arts. 16 e 110-A da lei 6.404/76, confere aos titulares de tais ações a prerrogativa de exercer controle decisório desproporcional à participação acionária detida. Tal inovação, ainda que reconhecida como instrumento de preservação de estratégias de longo prazo pelos fundadores, suscita debates sobre sua eficácia e risco de descompasso entre os interesses dos insiders e os acionistas externos, refletindo dilema clássico da governança corporativa contemporânea quanto à proteção do interesse social versus exercício de controle personalista. Por derradeiro, o controle por mecanismo legal ainda se manifesta quando há a emissão de ações preferenciais sem direito de voto representando mecanismo adicional pelo qual minoritários podem exercer controle decisório, uma vez que a lei admite a emissão de tais ações até o limite de cinquenta por cento do total de ações emitidas. Dessa forma, mesmo sem possuir a maioria do capital social, determinados acionistas podem consolidar influência significativa sobre as deliberações societárias, evidenciando a complexidade e sofisticação do controle legalmente estruturado nas companhias. Tais instrumentos legais, embora legítimos, exigem análise atenta quanto aos deveres de lealdade e à mitigação de eventuais conflitos de agência, reafirmando a centralidade do equilíbrio entre autonomia de gestão e proteção dos interesses coletivos da sociedade e dos acionistas minoritários. c) Controle minoritário O controle minoritário no contexto societário brasileiro tem sido objeto de análise doutrinária, especialmente em função da dispersão acionária observada nas últimas décadas. A partir da segunda metade dos anos 2000, o mercado acionário presenciou, após trinta anos, a primeira tentativa de aquisição hostil. Naquele período, as empresas vinham negociando o controle societário e incorporando defesas contra aquisições em seus estatutos sociais, evidenciando transformações na governança corporativa. Paralelamente, a fusão da Bovespa com a BM&F (atual B3), contribuiu para impulsionar o mercado de capitais e reforçou a tendência de dispersão acionária, suscitando debates sobre a possibilidade de aproximação do controle administrativo brasileiro (problemático entre nós, como se verá) com modelos internacionais, em especial o estadunidense. A doutrina nacional tem questionado a aplicação da classificação de Berle e Means ao contexto local, enfatizando a necessidade do caráter permanente e autônomo para que se configure o poder de controle. Atributos que faltariam ao controle minoritário. Há quem sustente que, enquanto o controle majoritário implica deveres específicos, o controle minoritário não estaria sujeito às mesmas obrigações, pois carece de constância e independência para dirigir a sociedade de forma autônoma, conforme dispõe o art. 116 da lei 6.404/1976.  Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho argumentam que a lei das S/A admite implicitamente o controle minoritário, observando, para tanto, as normas jurídicas que se impõem sobre a instalação e o funcionamento da assembléia-geral. Afirmam, em conclusão, que "teoricamente, portanto, um só acionista, detentor de uma única ação, pode constituir a assembléia."4 A exceção fica por conta das matérias previstas nos incisos do art. 136 da lei 6.404/1976, em que se exige a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, do total de votos, se maior quorum não for exigido pelo estatuto da companhia cujas ações não estejam admitidas à negociação em bolsa ou no mercado de balcão.5 Entretanto, entendemos que o controle minoritário é previsto na lei das S.A. brasileira ante a sua operacionalidade, conforme entendem Berle e Means, manifestando-se quando nenhuma outra parcela de ações possui força suficiente para constituir núcleo capaz de reunir maioria de votos, sugerindo que, no Brasil, mesmo uma minoria acionária poderia influenciar decisivamente o funcionamento da companhia por meio das deliberações sociais. d) Controle administrativo O controle administrativo se caracteriza pela elevada dispersão acionária, situação em que nenhum indivíduo ou pequeno grupo detém participação suficiente para dominar isoladamente a assembleia. Quando o maior interesse isolado representa fração ínfima, como 1% do capital, nenhum acionista possui poder relevante para influir decisivamente sobre a administração ou para consolidar maioria de votos capaz de exercer controle efetivo. Esse fenômeno representa o ápice da separação entre propriedade e controle descrita por Berle e Means, sendo posteriormente identificado por Jensen e Meckling6, a partir da década de 1970, como a gênese de problemas de agência, que surgem da divergência entre os interesses dos proprietários e os comportamentos dos administradores. A literatura especializada dedica atenção considerável aos custos decorrentes da dissociação entre propriedade e controle, bem como às políticas capazes de mitigá-los. Adam Smith já apontava que, nessa configuração, os administradores não possuiriam incentivos naturais para conduzir os negócios de forma eficiente, diferentemente dos administradores-proprietários. Jensen e Meckling consolidaram tal percepção ao caracterizar a relação acionista-administrador como um problema agencialista, no qual os acionistas assumem o papel de principais e os administradores o de agentes, que maximizam utilidade pessoal. A análise agencialista identifica custos de monitoramento, de vinculação dos agentes e perdas residuais resultantes de desvios de comportamento, mesmo na presença de mecanismos incentivadores, constituindo a primeira abordagem estruturada para compreender a separação entre propriedade e controle. Além da relação direta entre acionistas e administradores, a literatura moderna reconhece a atuação de outros atores capazes de monitorar e limitar os agentes, tais como detentores de debêntures, advogados, órgãos reguladores como a CVM e participantes do mercado, inclusive potenciais adquirentes de valores mobiliários. No âmbito do Direito brasileiro, o controle administrativo não possui previsão expressa, uma vez que o art. 116 da lei das S/A define o controlador com base no status acionário. Os problemas de agência deste gênero são, portanto, entre nós, regulados especialmente pela seção IV da lei 6.404/1976, sendo ressaltado o dever de lealdade imposto aos administradores pelo art. 155, que orienta a conduta destes em conformidade com os interesses da companhia. e) Controle externo O controle externo caracteriza-se, em regra, pelo exercício do poder de influência sobre a companhia por meios distintos do direito de voto. Em determinadas situações, o controlador externo pode também ser acionista, mas o seu poder não se concretiza através da votação, valendo-se de instrumentos externos, tais como cláusulas contratuais, condicionantes decorrentes do endividamento societário ou da intervenção estatal na economia. Conforme salientam Comparato e Salomão Filho, "[h]á, assim, em primeiro lugar, toda uma série de hipóteses em que o controle externo resulta de uma situação de endividamento da sociedade."7 Todavia, assim como ocorre no controle administrativo, a definição legal de controlador prevista no art. 116 da lei 6.404/1976 não contempla essa modalidade de controle. Em consequência, não se aplicam a ele as obrigações de lealdade previstas no parágrafo único do referido dispositivo, que recaem sobre o acionista controlador. Apesar disso, o controlador externo está sujeito às normas gerais de responsabilidade civil, especialmente àquelas que impõem o dever de reparação de danos a quem, por ato ilícito comissivo ou omissivo, nos termos dos arts. 186 e 187 do CC, ou por exercer atividade de risco nos moldes do parágrafo único do art. 927 do mesmo diploma, cause prejuízo a outrem. Em nota conclusiva, destacamos que o fenômeno do controle societário das Sociedades Anônimas é complexo e desafia juristas na medida em que o controlador, enquanto agente de governança, conduz direta ou indiretamente os negócios sociais, influenciando e às vezes determinando a organização, devendo conformar-se à padrões jurídicos e éticos. Recomendamos para um aprofundamento deste debate a leitura do nosso texto "Deveres de Lealdade do Controlador".8 ______________________________ 1 HILT, Eric. The Berle and means corporation in historical perspective. Seattle UL Rev., 2018, 42: 417. 2 BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. The modern corporation and private property. Rev. ed. New York: Harcourt, Brace & World, Inc., 1967. (Original publicado em 1932). 3 COMPARATO, Fábio Konder et al. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 4 COMPARATO, Fábio Konder et al. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 5 Ibid. 6 JENSEN, Michael C.; MECKLING, William H. Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Costs and Ownership Structure. In: CORPORATE Governance: Values, Ethics and Leadership. London: Gower, 2019. p. 77-132. ISBN 9781315191157. 7 COMPARATO, Fábio Konder et al. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 8 OLIVEIRA, F. de S. Deveres de lealdade do controlador. Revista Jurídica da UFERSA, [S. l.], v. 9, n. 17, p. 272-322, 2025. DOI: 10.21708/issn2526-9488.v9.n17.p272-322.2025. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2025.
A tentativa de explicar os fundamentos do direito societário pelo critério econômico é antiga. Seja a partir de uma visão contratualista, institucionalista ou integracionista, a busca pela compatibilização da maximização do lucro para o acionista com valores externos à sociedade tem permeado séculos de discussão sobre o interesse social das empresas e influenciado o desenvolvimento das teorias de governança corporativa. Em estudo recente para no grupo de pesquisa "Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp)" da UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora, discutiu-se sobre possíveis intersecções da utilização da IA na tomada de decisão empresarial e seus riscos, especialmente se pautados em uma lógica estritamente econômica, orientadas, por exemplo, em teorias como shareholder value e stakeholderism. Existem possíveis implicações sobre o uso de IA em decisões empresariais que consideram a antiga premissa de que os agentes econômicos racionais, ainda que de maneira inconsciente, buscam a maximização da riqueza. Assim, parece crível a afirmação de que a IA, utilizada para tomada de decisão empresarial, induza escolhas preponderantemente voltadas para a eficiência econômica, que tenham como efeito o progressivo abandono de medidas de médio e longo prazo, sobretudo quando tais decisões implicarem aumento de custos ou se relacionarem diretamente com a internalização de outros interesses que não os dos próprios acionistas. Sendo assim, apesar de a ideia da utilização da inteligência artificial abrir novas possibilidades de estudos e debates no direito empresarial e societário, até o momento, a novidade tem resgatado problemas antigos e ainda não resolvidos pela área. A exemplo disso, merece destaque o debate sobre a ontologia da sociedade e os destinatários dos deveres fiduciários. De um lado, a teoria do shareholder value postula que a função primordial da sociedade é maximizar o valor das ações para os acionistas. Essa visão tem suas raízes nos anos de 1930, com Adolf A. Berle defendendo a exclusividade dos acionistas como beneficiários, e foi reforçada por Milton Friedman em 1970, para quem "a única responsabilidade social das companhias é a de aumentar seus lucros". Na mesma linha, em 2001, Hansmann e Kraakman reconheceram, no importante artigo The end of history for Corporate Law, que a ideologia dominante, decorrente da primazia do acionista, dificilmente será desfeita e que o seu sucesso representa "o fim da história" para o direito societário. De outro lado, as organizações passaram por uma mudança significativa de perspectiva, não se limitando mais à busca exclusiva pelo retorno dos acionistas e investidores, passando a considerar um conjunto mais abrangente de stakeholders (termo utilizado para definir "qualquer grupo ou indivíduo que afeta ou é afetado pelo alcance dos objetivos da companhia" cf FREEMAN, 1984). Assim, a Stakeholder Theory busca expandir a compreensão da governança corporativa para além da primazia do acionista. Não obstante a doutrina focada na redução dos custos de agência e na maximização do valor para os acionistas tenha se consolidado como majoritária, crises financeiras, como a de 2008, evidenciaram os riscos do short-termism e da preferência por retornos lucrativos imediatos em detrimento de estratégias de longo prazo. Isso porque a possibilidade de a shareholder value gerar externalidades negativas e altos custos sociais, ao incentivar o apetite por risco dos administradores, parece se contrapor ao crescimento da atividade de forma sustentável com foco na adoção de políticas para a internalização, ainda que gradativa, dos múltiplos interesses, dependentes em grande parte da cooperação e contribuição dos stakeholders. A IA, nesse cenário, parece adicionar uma nova camada de complexidade à discussão, na medida em que sua utilização, em alguns casos, tem demonstrado a intensificação dos problemas ocasionados por decisões orientadas pela lógica do shareholder value e do short-termism. É o que parece ter ocorrido com a Klarna, uma fintech sueca que popularizou o modelo "compre agora, pague depois", apostando na redução de cerca de 40% de sua força de trabalho como um suposto movimento de inovação e eficiência. A decisão da gestão foi divulgada de forma a exaltar os ganhos trazidos pela utilização da IA, incluindo um avatar virtual do próprio CEO apresentando os resultados trimestrais. Contudo, a substituição humana por IA nos setores de marketing e atendimento ao cliente - anunciada aos investidores como um salto de produtividade -, além de gerar reclamações, foi responsável pela queda na avaliação pública e pelo desgaste reputacional, comprometendo, inclusive, os planos de IPO da companhia. Como resultado, a fintech está revertendo sua decisão e reconhecendo que a política adotada prioritariamente a partir de critérios econômicos comprometeu a qualidade do negócio1. Apesar de vários estudos abordarem os múltiplos usos da IA nas operações de uma companhia, a análise específica sobre seus impactos na estrutura da governança corporativa ainda é incipiente e pode ser resumida a partir de dois temas: o uso de um conjunto de tecnologias isoladas que adotam parcialmente técnicas de automação computacional e a utilização de IA em conselhos de administração (GOUVÊA, 2022). Mesmo quando se trata de usos mais básicos da IA, como a automação de processos, existem aspectos que precisam ser considerados, e,g, a perda de postos de trabalho e os impactos para as relações de emprego, possíveis danos reputacionais pelo comprometimento da qualidade do negócio como o ocorrido no caso Klarna, o problema dos vieses etc. Tais questões têm sido recorrentemente apontadas como centrais na governança socioambiental, sobretudo em um cenário de crescente preocupação com o estabelecimento de políticas de evidência a partir da divulgação de relatórios de impacto, de materialidade e dupla materialidade para avaliação de métricas de ESG. Já a utilização de IA em conselhos de administração tem sido muito estimulada diante do fato de que avaliar e tomar decisões sob o arcabouço tradicional de governança se tornou uma tarefa um tanto desafiadora, considerando que a ausência de probabilidades claras torna difícil avaliar os resultados e gerenciar adequadamente os riscos. Nesse sentido, argumenta-se que o uso de IA pode minimizar a paralisia decisória no âmbito das empresas em questões cruciais por meio da delegação de decisões sobre questões complexas. A utilização da IA pode, por exemplo, colaborar na avaliação da qualidade das reuniões dos conselhos, correlacionar as boas práticas de governança com o desempenho da empresa e até auxiliar o julgamento humano a mitigar problemas decorrentes de assimetria informacional, demonstrando que a utilização da IA pelas companhias certamente apresenta vantagens. Contudo, em estudos recentes sobre a função de monitoramento dos conselhos que usam IA, Steves Kourabas e Cheng Yu (2025) analisam criticamente como a automação ou aumento da tomada de decisões tem o potencial de ajudar a solucionar ou agravar "falhas institucionais". Segundo os autores, apesar de algumas vantagens, como o aumento da eficiência dos conselhos, o uso da IA pode minar mecanismos que buscam incutir nos conselheiros um senso de responsabilidade e accountability pelo exercício de seus poderes. Isso porque o funcionamento dos sistemas de IA como uma "caixa-preta", somado à propensão das pessoas à adoção de decisões automatizadas sem questionamento, pode dificultar ainda mais a atribuição efetiva de responsabilidade a indivíduos (KOURABAS; TSANG, 2025). No caso Australian Securities and Investments Commission vs. Healy (2011 FCA 707), argumentou-se que não existiria violação de deveres fiduciários quando falhas de membros do conselho de administração tivessem sido causadas por significativo volume de informações e documentos que não poderiam ser lidos por uma pessoa física. A corte australiana entendeu que o argumento não era válido e, por isso, o caso relativamente antigo tem servido como precedente internacional sobre o tema reforçando a ideia de que, embora os conselhos possam utilizar IA para apoiar suas decisões e mitigar um problema de assimetria, seus membros permanecem responsáveis pelas decisões finais. Para garantir que esses indivíduos cumpram suas obrigações legais, a governança precisará assegurar que medidas como auditabilidade e explicabilidade das decisões apoiadas por IA sejam combinadas com uma obrigação legal de informar quando sistemas de IA forem utilizados pela administração, além do compromisso do órgão sobre a precisão das informações provenientes desses sistemas. Auditores externos de IA podem ser envolvidos em auditorias regulares e ad hoc para garantir o cumprimento das obrigações legais. Talvez assim seja possível a supervisão regulatória adequada do uso de IA no contexto corporativo, o que exigirá dos tomadores de decisão o conhecimento sobre como os sistemas de IA escolhidos operam e efetivamente decidem sobre assuntos mais amplos, que envolvam não apenas questões econômicas, mas outros interesses que podem e devem ser incorporados e considerados nas decisões empresariais. E aqui voltamos para a discussão inicial, ainda não superada. Ao que parece, a utilização da IA, seja para a adoção de técnicas de automação computacional, seja para apoio na tomada de decisão por conselhos de administração, não deve ser pautada exclusivamente em questões de eficiência econômica. Até porque falar em governança significa dar atenção a parâmetros mínimos de admissão em certos mercados, sendo fundamental identificar, diante das discussões que envolvem a utilização da IA nas suas diversas possibilidades, quais são esses parâmetros e como a governança e os responsáveis pelo seu emprego podem atuar no equilíbrio entre o interesse dos acionistas e demais partes interessadas e impactadas pela atividade empresarial. _______  1 Disponível aqui. _______  FRAZÃO, Ana. Função Social da empresa: repercussões sobre responsabilidade civil dos controladores e administradores das S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. Capitalismo de stakeholders e investimentos ESG. JOTA. 28 abr. 2021. Disponível aqui. FRIEDMAN, Milton. The social responsibility of business is to increase its profits. New York Times Magazine, New York, 1970. FREEMAN, Edward R. Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston: Pitman, 1984. GOUVÊA, C. P. A estrutura da governança corporativa. São Paulo: Quartier Latin, 2022. HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for Corporate Law. Georgetown Law Journal, Washington, D.C., v. 89, n. 2, p. 439-468, jan. 2001. KOURABAS, Steve; TSANG, Cheng-Yun (CY). The board monitoring function: artificial intelligence in the era of heightened accountability. European Corporate Governance Institute, Bruxelas, 2025.
O financiamento das startups no Brasil passou, na última década, por inequívoca metamorfose, mesmo antes da promulgação do marco legal das startups e do empreendedorismo inovador (LC 82/211) pois fundadores e investidores, almejando acelerar a formação de capital, passaram a recorrer a instrumentos alternativos de captação, entre os quais se sobressai o financiamento coletivo de participação societária (equity crowdfunding), concebido como via democrática de acesso ao mercado de capitais. A disciplina inaugural, fixada pela Instrução CVM 588/172, revelou-se, todavia, insuficiente para um ecossistema em franca maturação, de sorte que a resolução CVM 88/223a revogou e se tornou o atual marco jurídico destinado a reconfigurar integralmente a modalidade, elevando os tetos de captação, densificando as obrigações de divulgação de informações e introduzindo categorias de investidores, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava os requisitos de governança das plataformas e se alinhava a experiências estrangeiras de ambientes regulatórios experimentais. Não obstante tais avanços, subsistem interrogações acerca da pertinência dessa normatividade às necessidades específicas das rodadas de investimento intituladas "semente" e "Série A", quadro que a presente pesquisa enfrenta ao perscrutar os efeitos concretos do novo regime na práxis societária das empresas inovadoras em estágio inicial (startups). Com efeito, a amplitude conferida pela resolução CVM 88/22 pode colidir com o arcabouço geral das ofertas públicas de valores mobiliários, sobretudo diante da ascensão simultânea de títulos digitais lastreados em valores mobiliários e de notas conversíveis simplificadas, figuras que tensionam a tipologia clássica e, por conseguinte, suscitam riscos de erosão da segurança jurídica dos investidores, impondo-se a sistematização de critérios que promovam efetiva convergência regulatória. Entre as inovações dignas de nota figura o "investidor líder", definido no art. 2º, III, da resolução CVM 88/22 como a "pessoa natural ou jurídica com comprovada experiência de investimento" e "autorizada a liderar sindicato de investimento participativo", ao qual se atribui não apenas a função de diligência prévia, mas também a sinalização da qualidade do empreendimento, exigindo-se, para tanto, aporte mínimo equivalente a dez por cento do montante pretendido, solução que atenua assimetrias informacionais e guarda similitude com mecanismos de precificação de demanda utilizados nas ofertas públicas iniciais, embora mereça exame acurado quanto a seus reflexos na governança interna das sociedades emergentes. Igualmente relevante foi a criação do registro automático das ofertas, operacionalizado pelo sistema eletrônico da CVM, suprimindo-se a análise prévia do regulador e reduzindo-se, em consequência, tempo e custos, o que aproxima o modelo brasileiro da experiência britânica4; tal desburocratização, entretanto, transfere ônus acrescido às plataformas, que passam a responder por robusta estrutura de conformidade regulatória. Tais entes, reclassificados como operadores de mercado de balcão organizado, devem implementar políticas rigorosas de identificação da clientela, manter equipes técnicas aptas a monitorar operações suspeitas de lavagem de capitais, segregar recursos de terceiros e submeter-se a auditorias periódicas, exigências que, embora reforcem a integridade do sistema, ampliam custos fixos e podem afastar empresas de tecnologia financeira de menor porte, evidenciando o desafio de equilibrar inovação e segurança. As rodadas semente, realizadas por meio do financiamento coletivo, enfrentam particularidades decorrentes do elevado grau de incerteza tecnológica que permeia as startups nesse estágio; conquanto a nova resolução não imponha demonstrações contábeis auditadas, recomenda práticas contábeis regulares, circunstância que, muitas vezes, supera a capacidade estrutural dos fundadores e gera tensões entre imposições normativas e realidade operacional, convertendo a capacitação empreendedora em fator decisivo ao êxito. Nas captações destinadas à Série A, surgem dilemas adicionais, pois investidores profissionais demandam direitos preferenciais e cláusulas de proteção que a resolução 88, embora admita participações preferenciais com voto restrito, limita ao vedar certas prerrogativas estruturais típicas do capital de risco, razão pela qual alguns agentes optam por contratos de subscrição privados, tornando mais complexa a articulação contratual, embora se tratem de instrumentos de investimento típicos, porquanto previstos expressamente no art. 5º, §1º, I, do marco legal das startups. O intervalo previsto para a fase de precificação de demanda tem por escopo engajar a base de investidores, mas alonga em demasia o ciclo de captação, comprometendo a agilidade estratégica requerida em mercados altamente competitivos; daí a conveniência de ajustes que, sem sacrificar a transparência, abreviem o procedimento. No cenário internacional, a lei norte-americana (jumpstart our business startups - JOBS Act, de 2012)5 e as subsequentes alterações promovidas pela Securities and Exchange Commission, que elevaram o limite de captação para 5 milhões de dólares, oferecem parâmetro comparativo, entretanto, a fragmentação normativa nacional permanece problemática: distintos órgãos repartem a competência sobre aspectos correlatos do financiamento coletivo, havendo, inclusive, superposição com o Banco Central no tocante às contas de pagamento, o que incrementa os custos de transação e revela a necessidade de um estatuto unificado que mitigue conflitos inter-agências. No domínio da tokenização de valores mobiliários, a blockchain emerge como fenômeno disruptivo ao possibilitar a emissão de títulos digitais registrados de forma segura e robusta, realidade recentemente reconhecida pela CVM, que, por meio do parecer de orientação 40/246, submeteu tais ativos ao regime da lei 6.385/1976 e permitiu sua oferta em plataformas de financiamento coletivo. Contudo, as exigências tecnológicas introduzem novos contornos de risco: vulnerabilidades de programação podem ocasionar danos irreversíveis, o que faz sobrelevar a discussão sobre a responsabilidade solidária ao emissor e ao desenvolvedor7, ao passo que a jurisdição brasileira ainda carece de precedentes robustos sobre a matéria, reforçando a relevância de auditorias formais. Quanto à liquidez, os tokens viabilizam negociação em mercados secundários globais, expondo as startups a investidores estrangeiros e suscitando conflitos de competência jurisdicional; por outro lado, a exigência, pela CVM, de negociação em plataformas autorizadas colide com a natureza transnacional da tecnologia, impondo soluções que restrinjam o acesso de residentes em determinadas jurisdições. No campo contábil, a mensuração pelo valor justo mostra-se desafiadora diante da volatilidade dos criptoativos, e a adoção de marcação a mercado pode inflacionar balanços, ensejando receios de maquiagem contábil e justificando controles adicionais. A securitização mediante tokens promete reduzir custos de emissão ao dispensar intermediários tradicionais de escrituração e custódia; entretanto, substitui-se gasto financeiro por investimento em infraestrutura de carteiras digitais, cujo ponto de equilíbrio depende do valor médio da oferta, o que conduz à inexorável constatação de que estimativas econométricas podem sugerir vantagem apenas acima das operações de milhões de reais. As notas conversíveis simplificadas, por sua vez, condicionam a futura conversão a limites de avaliação ou deságios, cláusulas passíveis de automação por contratos algorítmicos on-chain. Nesse sentido, a integração entre tais notas digitais e o financiamento coletivo cria estrutura híbrida cuja qualificação jurídica permanece controvertida. De outro lado, quando emitida no âmbito do financiamento coletivo, a nota conversível deve observar integralmente os limites da resolução 88, refletindo, no quadro societário, os direitos potenciais de conversão, pois a falta de transparência pode constituir vício informativo; cabe às plataformas exigir modelagens de cenários suficientes para assegurar a plena informação do investidor. A emissão de tokens ainda guarda vínculo direto com o Direito Societário tradicional, reclamando deliberação corporativa prévia, seja em assembleia geral extraordinária, no caso das sociedades anônimas, seja por alteração contratual nas limitadas, sob pena de nulidade do ato; já o mercado secundário de tais títulos enfrenta desafios relacionados a flutuações especulativas, mas que podem ser minoradas mediante mecanismos de formação de mercado, ainda carentes de regulamentação. No mais, a interoperabilidade entre notas conversíveis e tokens fomenta arcabouço financeiro inédito, no qual a promessa de conversão se materializa em token não fungível, incrementando transparência e rastreabilidade, embora dependa da padronização de contratos on-chain. Em conclusão, a modernização do financiamento coletivo de participação societária constitui passo irreversível na consolidação de um ecossistema de inovação robusto; todavia, seu alinhamento com instrumentos híbridos exigirá normatividade complementar, pois a proteção do investidor não pode sucumbir à mera retórica inovadora. Impõe-se, assim, regulação tecnologicamente neutra, orientada por princípios e proporcional aos riscos, ao mesmo tempo em que o mercado cultiva genuína cultura de conformidade, premissa indispensável para a edificação de ambiente inclusivo, sustentável e juridicamente seguro. 1 BRASIL. Lei Complementar n.º 182, de 1.º de junho de 2021. Institui o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador e dispõe sobre o ambiente regulatório experimental. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 2 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 2 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução CVM n.º 588, de 13 de julho de 2017. Dispõe sobre a oferta pública de distribuição de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno porte. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 18 jul. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 3 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Resolução CVM n.º 88, de 27 de abril de 2022. Dispõe sobre a oferta pública de valores mobiliários de emissão de sociedade empresária de pequeno porte. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 28 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 4 No Reino Unido, a Financial Conduct Authority (FCA) adotou, desde o Policy Statement PS14/4 (2014), um regime em que as plataformas de financiamento coletivo de participação societária, uma vez autorizadas, podem hospedar ofertas públicas de valores mobiliários sem submissão prévia de cada emissão ao crivo do regulador, assumindo integralmente o dever de diligência, de verificação da adequação do investidor e de divulgação das informações essenciais; como contrapartida, o investidor de varejo fica sujeito a limites de aplicação (máximo de 10 % do seu patrimônio investível) e deve firmar declaração de compreensão dos riscos, enquanto o emissor se beneficia da dispensa de prospecto para captações dentro de certos limites pecuniários, o que reduz custos e prazos operacionais e serve de paradigma para o sistema de "registro automático" recentemente instituído pela CVM no Brasil. REINO UNIDO. Financial Conduct Authority. The FCA's regulatory approach to crowdfunding over the internet, and the promotion of non-readily realisable securities by other media: feedback to CP13/13 and final rules. Policy Statement PS14/4. London: FCA, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 5 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Securities and Exchange Commission. Jumpstart Our Business Startups (JOBS) Act. Washington, D.C.: SEC, 21 jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 6 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Parecer de Orientação CVM n.º 40, de 11 de outubro de 2022: Os Criptoativos e o Mercado de Valores Mobiliários. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 14 out. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10/7/25. 7 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A responsabilidade civil de programadores e desenvolvedores de software: uma análise compreensiva a partir do conceito jurídico de 'operador de dados'. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 809-834.
terça-feira, 1 de julho de 2025

Por que pesquisar sobre Teoria da Agência?

Este pequeno texto é fruto de um projeto de pesquisa mantido pela UFJF sobre o Direito das Organizações (públicas e privadas). Dele resulta a coluna do Migalhas -  Migalhas de Direito das Organizações - que coordeno juntamente com professores da instituição e de outras parceiras. Inicio a reflexão com uma afirmação recorrente em textos influenciados pela Teoria da Agência quando afirmam o escopo do Direito Societário: "The role of the law is to reduce agency cost by ensuring that agentes act in the interests of principals rather than in their own personal interest. Law does this by providing for the enforcements os contracts, facilitating contracting through disclosure and by reducing the cost of contracting through the provision of default rules."1 O que paira por trás desse pensamento? Buscar responder à essa questão nos conduz não somente a um mergulho sobre os fundamentos do agencialismo, mas, também, à analogia histórica entre as companhias e os trusts, aos limites dessa analogia, ao debate existente no Direito Anglo-Americano entre posições contratualistas e posições do direito fiduciário e, ao fim e ao cabo, às pesquisas sobre os limites teóricos da Teoria da Agência. Enfim, como compreender nos dias de hoje normas jurídicas e cogentes que conformam os comportamentos dos chamados agentes de governança? Normas econômicas seriam suficientes para refrear comportamentos egoístas e oportunísticos? Ao nosso ver, pesquisas que se proponham a investigar tanto aspectos teóricos e explicativos do agencialismo, quanto pesquisas que desafiem a teoria analisando os efeitos práticos de suas propostas são necessárias. Se de um lado, ao longo das últimas décadas, o potencial analítico da teoria se mostra útil especialmente para entendermos os conflitos de interesses advindos da estrutura societária, de outro lado, seus limites devem ser testados. É nesse processo que uma teoria é substituída ou ganha sofisticação. Por isso apresentamos uma pequena provocação. A teoria da agência, como uma vertente neoclássica do pensamento econômico, compreende a empresa como uma mera ficção jurídica, cuja essência reside na confluência de múltiplas relações contratuais, decorrentes dos fatores de produção ou do mercado de bens e serviços. Assim concebida, a empresa não se configura como uma hierarquia dotada de poder de comando, mas sim como uma estrutura contratual análoga ao mercado, destituída de autoridade disciplinar, o que decorre do princípio da neutralidade do vínculo contratual. Nessa perspectiva, a gestão empresarial é compreendida como um processo contínuo de renegociação contratual, no qual a parte insatisfeita preserva a faculdade de rescindir o vínculo estabelecido. O substrato comportamental dessa abordagem repousa na premissa de que os agentes econômicos racionais, ainda que inconscientemente, resolvem problemas em sua busca pela maximização da riqueza. À luz da intensa competição e da capacidade adaptativa dos agentes, apenas os arranjos contratuais mais eficientes sobrevivem, de acordo com uma lógica inspirada na seleção natural. Tal pressuposto se vincula diretamente à dinâmica de mercado formulada pela economia clássica, sendo emblemático o aforismo de Adam Smith, segundo o qual não se deve esperar o jantar da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro, mas sim de seu interesse próprio. Essa abstração sustenta que o altruísmo não é o motor das relações econômicas, mas sim o amor-próprio - elemento fundante da divisão do trabalho e da cooperação via trocas voluntárias. Embora as proposições neoclássicas apresentem certa continuidade com as teorias administrativas precedentes - notadamente no que concerne à relevância das forças de mercado -, distinguem-se por sua maior sofisticação analítica. A essas forças, agora, agregam-se os mecanismos de preço nos mercados de fatores, de valores mobiliários e de contratos de gestão. Entretanto, ao se afirmar que os contratos celebrados entre atores de mercado são bilaterais e livres, o poder hierárquico outrora atribuído aos administradores perde sua força, já que, num arranjo contratual entre partes igualmente livres, ambas têm o direito de buscar novos parceiros contratuais. Tal abordagem reducionista circunscreve a função do direito societário a um papel quase residual. O direito das sociedades, nessa acepção, não constitui um instrumento de legitimação do poder hierárquico, mas sim um mero componente contratual da estrutura de capital. Partindo-se da premissa de que apenas os modelos mais eficientes perduram, presume-se que o contrato societário opera uma partilha ideal de riscos, tornando-se dispensável qualquer forma de intervenção estatal para salvaguarda dos interesses dos acionistas. A referida concepção aproxima-se das formulações mais extremadas do contratualismo na medida em que sustenta uma crença na autorregulação por meio do mecanismo de preços - razão pela qual é classificada como uma variante forte. Logo, as relações societárias deveriam ser reguladas por normas dispositivas e facilitadoras da contratação ou da extinção dos contratos. Normas cogentes devem ser evitadas: normas econômicas dariam conta dos conflitos potencialmente existentes. Percebe-se que há no agencialismo tanto uma proposta positiva, no sentido de descrever a realidade, quanto uma proposta normativa. Ao conceber os contratos como a essência da estrutura empresarial, o paradigma agencialista acentua a primazia da autorregulação contratual e minimiza o papel do Estado, convertendo o direito societário em um simples mecanismo habilitador, composto por normas dispositivas. A teoria da agência, sob esse prisma, considera prescindíveis as normas imperativas - como os deveres fiduciários - concebidas para coibir abusos na gestão e no controle societário, uma vez que as forças de mercado seriam suficientes para compelir os gestores a atuarem em consonância com os interesses dos acionistas.2 Historicamente, os administradores eram concebidos como fiduciários, cujas obrigações atuavam como limites à sua discricionariedade. Com o advento da teoria da agência formulada por Jensen e Meckling, parte da doutrina norte-americana passou a esvaziar o conteúdo dos trusts e a reduzir os deveres fiduciários a simples estipulações contratuais. No entanto, tais tentativas desfiguram os fundamentos históricos e conceituais do direito fiduciário. Os contratos e os deveres fiduciários diferem profundamente quanto à sua gênese e alcance: os contratos derivam da common law e se baseiam na vontade das partes, enquanto os deveres fiduciários emergem da equity e podem, inclusive, contrariar essa vontade. Além disso, aspectos normativos essenciais ao trust, como a vedação de cláusulas exonerativas de responsabilidade, revelam-se inconciliáveis com os princípios contratuais, evidenciando a impropriedade da assimilação reducionista proposta pelas abordagens agencialistas. Sob outra perspectiva, analisa-se a estrutura societária a partir da analogia com os trusts, no contexto do direito anglo-americano. Tal comparação é construída sobre características jurídicas partilhadas por ambas as figuras: a separação patrimonial, que impede que os credores dos sócios alcancem os bens sociais; a natureza não exigível do capital social, que protege a sociedade contra os próprios sócios; a limitação da responsabilidade dos sócios perante credores sociais; a capacidade processual autônoma; e a discricionariedade gerencial. Com base em investigação histórico-comparativa, John Morley conclui que os trusts incorporavam quase todas as características doutrinárias atribuídas às sociedades por ações, sendo acessíveis de forma ampla tanto a súditos britânicos quanto a cidadãos norte-americanos.3 Todavia, há argumentos que fragilizam a analogia entre trusts e companhias. Embora o direito societário tenha assimilado princípios fiduciários, existem diferenças estruturais relevantes. Os administradores societários exercem a gestão dos bens da companhia sem deter sua propriedade, e gozam de maior discricionariedade, em virtude da amplitude dos fins sociais, contrastando com os objetivos específicos dos trusts, geralmente estipulados nos instrumentos fiduciários. Ainda assim, os trusts demonstraram eficácia histórica como alternativa à constituição de sociedades. Durante o século XIX, mesmo após a promulgação de estatutos gerais de incorporação, grande parte das empresas permaneceu estruturada sob a forma fiduciária. No Reino Unido, quando da edição do primeiro estatuto geral de incorporação em 1844, os trusts superavam em mais de dez vezes o número de sociedades constituídas. Notavelmente, apenas quatro das 882 grandes empresas constituídas como trusts optaram pela conversão à forma societária, ilustrando uma resistência à solução societária.4 Contudo, essa realidade não se reproduziu no contexto jurídico brasileiro, no qual o instituto do trust não teve protagonismo similar. Essa ausência de paralelismo histórico e normativo levanta dificuldades adicionais à analogia entre as companhias brasileiras e os trusts anglo-americanos, mas não a impede. Em notas conclusivas, pensamos que pesquisas podem entregar resultados interessantes quando contextualizem a Teoria da Agência nas discussões pertinentes ao local de sua concepção, o Direito Anglo-Americano, analisando a sua proposta inserida no debate entre proposições fundadas no direito fiduciário e aquelas outras baseadas no direito contratual, testando não somente os fundamentos da proposta teórica, mas também os limites práticos da sua aplicação no direito brasileiro. Apesar das convergências e divergências mencionadas, as teorias agencialistas acabam por dissolver qualquer vínculo entre o direito societário e as obrigações fiduciárias. __________ 1 CHELER, Eva. Company law: a real entity theory. Oxford:: Oxford University Press, 2021. p. 5. 2 HILL, Jennifer G. Hidden fallacies in the agency theory of the corporation. European Corporate Governance Institute-Law Working Paper, 2024, 799. 3 MORLEY, John. The Common Law Corporation: The Power of the Trust in Anglo-American Business History. Columbia Law Review, Yale, v. 116, n. 8, 25 jan. 2017. 4 MORLEY, John. The Common Law Corporation: The Power of the Trust in Anglo-American Business History. Columbia Law Review, Yale, v. 116, n. 8, 25 jan. 2017.