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Inteligência artificial nas decisões empresariais: Entre problemas novos e dilemas antigos

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Atualizado em 31 de julho de 2025 15:27

A tentativa de explicar os fundamentos do direito societário pelo critério econômico é antiga. Seja a partir de uma visão contratualista, institucionalista ou integracionista, a busca pela compatibilização da maximização do lucro para o acionista com valores externos à sociedade tem permeado séculos de discussão sobre o interesse social das empresas e influenciado o desenvolvimento das teorias de governança corporativa.

Em estudo recente para no grupo de pesquisa "Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp)" da UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora, discutiu-se sobre possíveis intersecções da utilização da IA na tomada de decisão empresarial e seus riscos, especialmente se pautados em uma lógica estritamente econômica, orientadas, por exemplo, em teorias como shareholder value e stakeholderism.

Existem possíveis implicações sobre o uso de IA em decisões empresariais que consideram a antiga premissa de que os agentes econômicos racionais, ainda que de maneira inconsciente, buscam a maximização da riqueza. Assim, parece crível a afirmação de que a IA, utilizada para tomada de decisão empresarial, induza escolhas preponderantemente voltadas para a eficiência econômica, que tenham como efeito o progressivo abandono de medidas de médio e longo prazo, sobretudo quando tais decisões implicarem aumento de custos ou se relacionarem diretamente com a internalização de outros interesses que não os dos próprios acionistas.

Sendo assim, apesar de a ideia da utilização da inteligência artificial abrir novas possibilidades de estudos e debates no direito empresarial e societário, até o momento, a novidade tem resgatado problemas antigos e ainda não resolvidos pela área. A exemplo disso, merece destaque o debate sobre a ontologia da sociedade e os destinatários dos deveres fiduciários.

De um lado, a teoria do shareholder value postula que a função primordial da sociedade é maximizar o valor das ações para os acionistas. Essa visão tem suas raízes nos anos de 1930, com Adolf A. Berle defendendo a exclusividade dos acionistas como beneficiários, e foi reforçada por Milton Friedman em 1970, para quem "a única responsabilidade social das companhias é a de aumentar seus lucros". Na mesma linha, em 2001, Hansmann e Kraakman reconheceram, no importante artigo The end of history for Corporate Law, que a ideologia dominante, decorrente da primazia do acionista, dificilmente será desfeita e que o seu sucesso representa "o fim da história" para o direito societário.

De outro lado, as organizações passaram por uma mudança significativa de perspectiva, não se limitando mais à busca exclusiva pelo retorno dos acionistas e investidores, passando a considerar um conjunto mais abrangente de stakeholders (termo utilizado para definir "qualquer grupo ou indivíduo que afeta ou é afetado pelo alcance dos objetivos da companhia" cf FREEMAN, 1984). Assim, a Stakeholder Theory busca expandir a compreensão da governança corporativa para além da primazia do acionista.

Não obstante a doutrina focada na redução dos custos de agência e na maximização do valor para os acionistas tenha se consolidado como majoritária, crises financeiras, como a de 2008, evidenciaram os riscos do short-termism e da preferência por retornos lucrativos imediatos em detrimento de estratégias de longo prazo. Isso porque a possibilidade de a shareholder value gerar externalidades negativas e altos custos sociais, ao incentivar o apetite por risco dos administradores, parece se contrapor ao crescimento da atividade de forma sustentável com foco na adoção de políticas para a internalização, ainda que gradativa, dos múltiplos interesses, dependentes em grande parte da cooperação e contribuição dos stakeholders.

A IA, nesse cenário, parece adicionar uma nova camada de complexidade à discussão, na medida em que sua utilização, em alguns casos, tem demonstrado a intensificação dos problemas ocasionados por decisões orientadas pela lógica do shareholder value e do short-termism. É o que parece ter ocorrido com a Klarna, uma fintech sueca que popularizou o modelo "compre agora, pague depois", apostando na redução de cerca de 40% de sua força de trabalho como um suposto movimento de inovação e eficiência. A decisão da gestão foi divulgada de forma a exaltar os ganhos trazidos pela utilização da IA, incluindo um avatar virtual do próprio CEO apresentando os resultados trimestrais. Contudo, a substituição humana por IA nos setores de marketing e atendimento ao cliente - anunciada aos investidores como um salto de produtividade -, além de gerar reclamações, foi responsável pela queda na avaliação pública e pelo desgaste reputacional, comprometendo, inclusive, os planos de IPO da companhia. Como resultado, a fintech está revertendo sua decisão e reconhecendo que a política adotada prioritariamente a partir de critérios econômicos comprometeu a qualidade do negócio1.

Apesar de vários estudos abordarem os múltiplos usos da IA nas operações de uma companhia, a análise específica sobre seus impactos na estrutura da governança corporativa ainda é incipiente e pode ser resumida a partir de dois temas: o uso de um conjunto de tecnologias isoladas que adotam parcialmente técnicas de automação computacional e a utilização de IA em conselhos de administração (GOUVÊA, 2022).

Mesmo quando se trata de usos mais básicos da IA, como a automação de processos, existem aspectos que precisam ser considerados, e,g, a perda de postos de trabalho e os impactos para as relações de emprego, possíveis danos reputacionais pelo comprometimento da qualidade do negócio como o ocorrido no caso Klarna, o problema dos vieses etc. Tais questões têm sido recorrentemente apontadas como centrais na governança socioambiental, sobretudo em um cenário de crescente preocupação com o estabelecimento de políticas de evidência a partir da divulgação de relatórios de impacto, de materialidade e dupla materialidade para avaliação de métricas de ESG.

Já a utilização de IA em conselhos de administração tem sido muito estimulada diante do fato de que avaliar e tomar decisões sob o arcabouço tradicional de governança se tornou uma tarefa um tanto desafiadora, considerando que a ausência de probabilidades claras torna difícil avaliar os resultados e gerenciar adequadamente os riscos. Nesse sentido, argumenta-se que o uso de IA pode minimizar a paralisia decisória no âmbito das empresas em questões cruciais por meio da delegação de decisões sobre questões complexas.

A utilização da IA pode, por exemplo, colaborar na avaliação da qualidade das reuniões dos conselhos, correlacionar as boas práticas de governança com o desempenho da empresa e até auxiliar o julgamento humano a mitigar problemas decorrentes de assimetria informacional, demonstrando que a utilização da IA pelas companhias certamente apresenta vantagens.

Contudo, em estudos recentes sobre a função de monitoramento dos conselhos que usam IA, Steves Kourabas e Cheng Yu (2025) analisam criticamente como a automação ou aumento da tomada de decisões tem o potencial de ajudar a solucionar ou agravar "falhas institucionais". Segundo os autores, apesar de algumas vantagens, como o aumento da eficiência dos conselhos, o uso da IA pode minar mecanismos que buscam incutir nos conselheiros um senso de responsabilidade e accountability pelo exercício de seus poderes. Isso porque o funcionamento dos sistemas de IA como uma "caixa-preta", somado à propensão das pessoas à adoção de decisões automatizadas sem questionamento, pode dificultar ainda mais a atribuição efetiva de responsabilidade a indivíduos (KOURABAS; TSANG, 2025).

No caso Australian Securities and Investments Commission vs. Healy (2011 FCA 707), argumentou-se que não existiria violação de deveres fiduciários quando falhas de membros do conselho de administração tivessem sido causadas por significativo volume de informações e documentos que não poderiam ser lidos por uma pessoa física. A corte australiana entendeu que o argumento não era válido e, por isso, o caso relativamente antigo tem servido como precedente internacional sobre o tema reforçando a ideia de que, embora os conselhos possam utilizar IA para apoiar suas decisões e mitigar um problema de assimetria, seus membros permanecem responsáveis pelas decisões finais.

Para garantir que esses indivíduos cumpram suas obrigações legais, a governança precisará assegurar que medidas como auditabilidade e explicabilidade das decisões apoiadas por IA sejam combinadas com uma obrigação legal de informar quando sistemas de IA forem utilizados pela administração, além do compromisso do órgão sobre a precisão das informações provenientes desses sistemas.

Auditores externos de IA podem ser envolvidos em auditorias regulares e ad hoc para garantir o cumprimento das obrigações legais. Talvez assim seja possível a supervisão regulatória adequada do uso de IA no contexto corporativo, o que exigirá dos tomadores de decisão o conhecimento sobre como os sistemas de IA escolhidos operam e efetivamente decidem sobre assuntos mais amplos, que envolvam não apenas questões econômicas, mas outros interesses que podem e devem ser incorporados e considerados nas decisões empresariais. E aqui voltamos para a discussão inicial, ainda não superada.

Ao que parece, a utilização da IA, seja para a adoção de técnicas de automação computacional, seja para apoio na tomada de decisão por conselhos de administração, não deve ser pautada exclusivamente em questões de eficiência econômica. Até porque falar em governança significa dar atenção a parâmetros mínimos de admissão em certos mercados, sendo fundamental identificar, diante das discussões que envolvem a utilização da IA nas suas diversas possibilidades, quais são esses parâmetros e como a governança e os responsáveis pelo seu emprego podem atuar no equilíbrio entre o interesse dos acionistas e demais partes interessadas e impactadas pela atividade empresarial.

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1 Disponível aqui.

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FRAZÃO, Ana. Função Social da empresa: repercussões sobre responsabilidade civil dos controladores e administradores das S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

Capitalismo de stakeholders e investimentos ESG. JOTA. 28 abr. 2021. Disponível aqui.

FRIEDMAN, Milton. The social responsibility of business is to increase its profits. New York Times Magazine, New York, 1970.

FREEMAN, Edward R. Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston: Pitman, 1984.

GOUVÊA, C. P. A estrutura da governança corporativa. São Paulo: Quartier Latin, 2022.

HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for Corporate Law. Georgetown Law Journal, Washington, D.C., v. 89, n. 2, p. 439-468, jan. 2001.

KOURABAS, Steve; TSANG, Cheng-Yun (CY). The board monitoring function: artificial intelligence in the era of heightened accountability. European Corporate Governance Institute, Bruxelas, 2025.