Sociedades empresárias, emoções cruéis e comunicação não-violenta
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Atualizado em 30 de setembro de 2025 16:50
Infelizmente, precisamos dizer aos corações jovens: apesar de serem um espaço de encontro, as sociedades, simples ou empresárias, podem ser tornar cenários de guerra. Os seres humanos são assim e, em meio à proposta de tocar uma advocacia propositiva, edificadora, podemos ser arrastados para a selvageria hobbesiana: homo lupus homini. Estupefatos, vimos isso acontecer em algumas situações: fervendo no caldeirão, a porção desanda e dá-se o horror: o que seria magia de boa tecnologia societarista, torna-se caos. A clássica cena de Mickey em Fantasia (Disney, 1940), ao som do poema sinfônico de Paul Dukas (1865/1935), compositor parisiense: L'apprenti sorcier (O Aprendiz de Feiticeiro). Era apenas para limpar o lugar, mas chega-se a uma terrível inundação. Só quem já viveu tais reviravoltas sabe do que falamos. Como as doenças e injúrias médicas, só quem as padeceu sabe efetivamente o que experimentou, os sustos, os medos, os malefícios.
Bem a propósito da metáfora, estávamos a nos recordar que já dissemos alhures que o litígio nasce quando o Direito não funciona; o processo (judicial ou arbitral) é um tratamento para a doença ou injúria do Direito; se tudo corresse bem, se se realizasse como deveria ser (ah! o dever-ser kelseniano nos paga uma visita!), não haveria litígio. Olhe ao redor: é o comum, o comezinho: as relações jurídicas realizam-se em conformidade com o sistema que as sustenta; o conflito é a exceção; graças a Deus! Por isso tememos tanto a guerra e rezamos/oramos pela paz: a esperança que a vida se revele tranquila, satisfatória: que tudo dê certo e, enfim, que o conflito não se revele, embora saibamos que está por aí, em meio ao que parece normal e promissor, mas querendo erguer seu véu. Triste, mas verdadeiro. A experiência o ensina para quem, pela sabedoria, não o concluiu pela simples cogitação.
Quer ver um caso? Linhas gerais, está bem? Afinal, há o dever ético de sigilo. Era uma sociedade fantástica, constituída para uma empresa promissora. Tudo indo nos melhores dos mundos até que, sem mais, sem menos, um dos sócios dá um cavalo-de-pau societário. Começou por dizer que ele, sim, saberia como deveria ser feito e não seria do jeito dos outros. Depois, chegou a dizer que não iriam tirar o que era seu por direito: a chance de ficar rico (e bem rico). O que parecia Shangrilá tornou-se o Vale das Sombras. As cinco partes (os sócios) revelavam um equilíbrio que era, em si, uma vantagem corporativa. Dois se juntaram e, enfim, cooptaram um terceiro. Se nos perguntarem o que se passou, seremos obrigados a pedir ajuda aos universitários... de psicologia, quiçá psiquiatria.
A verdade é que golpes corporativos não são raros. Não chegaremos ao pessimismo exacerbado e dizer que são a regra. Não é verdade. No entanto, não há como negar que são comuns. "If they say: why, why? Tell 'em that it's human nature" (John Bettis/Steven Porcaro: Human Nature; gravação de Michael Jackson para o álbum Thriller, Épico/CBS, 1983; a produção musical foi de Quincy Jones). Como se sai dessa? No caso, as batalhas começaram pelo manejo das cláusulas do contrato social, o pé-de-ferro dos quóruns previstos. Quando o contrato não diz, vai-se ao CC. A peleja avançou por disputas junto a parceiros, vitimando a empresa. Tudo terminou na arbitragem. Entre vencedores e vencidos, todos perderam, considerando o que poderia ser. Infelizmente, os seres humanos, incluindo sócios de empresas, tendem a fazer contas psicológicas em lugar de matemáticas. Quase nunca contadores e auditores concordam com aquele que se julga vencedor. É mais satisfação emocional do que ganho econômico. Advogados precisam aprender isso ou irão se deixar levar por essa corrupção tola: equações econômico-empresariais desnaturarem-se em equações emocionais-psicológicas. Um horror.
Uma das virtudes indispensáveis para trabalhar com Direito Societário é saber que, embora a suavidade seja coisa rara, nem sempre a força bruta é efetivamente vencedora; pode prevalecer, sim; mas será isso sinônimo de vencer? É sutil, sabemos. Há tantos vencedores por aí que são, intrínseca ou extrinsecamente, pobres coitados que arrastam a derrota consigo, como se fosse um casco de tartaruga. Na empresa A, o majoritário impôs sua vontade, mas os resultados econômicos são terríveis, vive-se uma crise. Na empresa B, os sócios discutiram e compuseram uma solução; não era bem o que o majoritário queria, mas julgou melhor ceder, comungar; os resultados foram soberbos. O que é vencer? Não é tão simples; afinal, há uma resposta que se dá logo após a reunião ou assembleia de sócios; há outra que se dá ao fim do exercício, examinando o balanço e as demonstrações financeiras. Ainda assim, fica o registro: não é incomum observar que a vitória está justo na prevalência da opção pelo pior; mas o pior que corresponde a um exercício de poder; mais do que isso: a um exercício regular de poder.
Recomendamos a quem pensa sobre os pontos que estamos levantando que não deixe de considerar seu ponto-de-vista. O parágrafo anterior é um, sob a perspectiva da Ciência da Administração de Empresas; entrementes, é outro, sob a perspectiva do Direito. Há outras perspectivas, como psicológica, sociológica, econômica. A perversão corporativa tem expressão mais formalista quando o vértice do exame está no Direito (Direito Empresarial, Direito Societário), ao passo que às outras disciplinas não toque o pudor de fugir à questão do mérito. No plano jurídico, coloca-se não só a questão do exercício do poder de voto, mas igualmente a necessidade de se considerar o poder discricionário privado que, embora pouco teorizado, compõe a principiologia do Direito Societário. Percebe-se que resolvemos abrir o espectro antes de volver àquele arranca-rabo que descrevemos acima.
Em fato, com reservas à tormentosa questão do voto ilícito (inclusive quando caracterizado o abuso do direito de voto, o voto em conflito de interesses etc), o poder de voto que corresponde às quotas ou ações é, sim, discricionário: o que o sócio (quotista ou acionista) compreende como melhor para a sociedade, o que não exclui, é bom frisar, sua compreensão de mundo, seu ideário. Não é ilícito o voto ambientalista, como não é ilícito o voto negacionista (desde que não expresse ilicitude em face à legislação positivada e o entendimento da jurisprudência); mesmo o voto que acredita expressar uma vontade divina, se não desrespeita o sistema jurídico, é lícito. Mais do que isso, não é ilícito a fruição do poder dado por quotas ou ações, individualmente ou somando-se a outros sócios, por meio do qual se exerce o controle da sociedade. Mas há limites; reiteramos: o abuso no exercício da faculdade jurídica, voltado para prejudicar a sociedade e/ou os demais sócios, é um ato ilícito. E isso também ocorre e não é raro, lastimavelmente.
Há momentos em que as sociedades experimentam as semelhanças; há momentos em que experimentam as diferenças; e não será correto valorar aqueles como positivos e esses como negativos. A semelhança pode ser desastrosa quando a diferença é necessária. A empresa não se salva por haver concordância se há comunhão em opção que, ao final, mostrou-se desastrosa. O mercado não é complacente, mas efetivo; não dá a mínima à harmonia societária. Pelo contrário, pode ser que se mostre correta e extremamente lucrativa a solução que resultou de um pega-pra-capar entre os sócios, reações emocionais fortes e, alfim, um bisonho acordo que, nem para lá, nem para cá, aceitou que se fosse para acolá. Vai daí que erra o microlegislador corporativo (o advogado que redige o ato constitutivo e outras plataformas normativas) que almeja criar um sistema de concordâncias; deve atentar-se para os méritos das anuências (cujo máximo é a difícil unanimidade), mas, por igual, atentar-se para os méritos das discordâncias, embora atento para o poder deletério das emoções impulsivas, dos comportamentos desenfreados, das ações que podem romper com o tecido societário.
Esperar docilidade é correr o risco da utopia; o bom senso desaconselha; mas, sejamos sinceros, são advertências que quase ninguém escuta. A esmagadora maioria dos atos constitutivos brasileiros simplesmente passa ao largo do desafio óbvio do conflito societário, salvo a previsão do foro para dirimir controvérsias ou, um pouco mais sofisticado, o estabelecimento de cláusula compromissória. São intervenções jurídicas (e advocatícias) de baixa tecnologia jurídica; pouco escudo para tantas flechas e lanças, teremos que convir. Mais do que isso, pensando na preservação da corporação e da empresa, bem como nos direitos de todos os sócios, são disposições inábeis para enfrentar os riscos dos sussurros da Discórdia (deusa a que os gregos chamavam Eris, filha primogênita da Noite - Nyx - e irmã de Ares, o deus da guerra, chamado Marte pelos romanos). A Discórdia sabe muito bem que os seres humanos nunca se livram do cárcere das paixões e, assim, dos arroubos, dos impulsos, do egoísmo, da ambição desenfreada. Um bom advogado societarista não pode ser tão ingênuo ou inábil ao ponto de ignorá-la.
Logo no princípio de "O Retrato de Dorian Gray" (ah! as emoções cruéis! ah! o narcisismo!), Oscar Wilde, pela "voz" de Lord Henry, diz: "certas criaturas têm a mania de dar bons conselhos, precisando tanto deles para si... É o que chamo o cúmulo da generosidade." Dá-se justo o mesmo conosco e, por ousar dar pitacos, nossas desculpas são devidas. Contudo, pensamos que melhor andaria a estrutura jurídica da corporação se na plataforma normativa que lhe dá a principal sustentação (o ato constitutivo: no caso, um contrato social), ou em pacto parassocial regulador (uma plataforma normativa acessória, secundária), houvesse disposições cuidando de mecanismos alternativos ao litígio, nomeadamente conciliação e/ou mediação, com expressa previsão de se tratar de procedimento instrutório à eventual instauração da arbitragem. Percebeu o alcance disso? Será bom debruçar-se sobre a proposição.
Vamos lá: a preservação da corporação e, consequentemente, da empresa, deve contar com uma posição de prestígio nas preocupações dos investidores (sócios) e de seus advogados. Assim, deveríamos considerar insuportável o silêncio do ato constitutivo e/ou de pactos parassociais (plataformas normativas acessórias) sobre o tema. Ao cuidar de uma sociedade empresária, o advogado (ou banca de advocacia) deve pressentir os perigos que a discórdia expõe a corporação (e a empresa), fazendo sua defesa, no varejo e no atacado. Acreditamos que isso se faça, antes de mais nada, impedindo que as desavenças prováveis se tornem litígio: briga, disputa, fuzuê, banzé. É preciso haver foros corporativos de diálogo que funcionem regularmente como válvulas que controlem a pressão interna e, assim, evitam a explosão. Afinal, é pouco provável que o ambiente seja suportável depois do quebra-pau. Há que se evitá-lo ou, no mínimo, evitar que se agrave e torne a dissolução um caminho sem volta.
Veja que é um discurso incomum ao Direito Societário; o conflito encontra páginas e páginas de doutrina e jurisprudência; a boa convivência - e as condições objetivas para a manutenção da boa convivência - é matéria bissexta. Compreendemos, sim, que conflitos são naturais ou, no mínimo, corriqueiros (cf. "Semiologia do Direito". 3.ed. Atlas, 2009); mas o compreendemos pela perspectiva da lide e do processo (judicial ou arbitral); há quem pense que o Direito nasce do conflito; na verdade, é o processo quem nasce do conflito; o Direito pode nascer do encontro: contrato e negócio são exemplos claros disso. Daí o mérito de perspectivas e tecnologias que estão se achegando ao Direito Empresarial: comunicação não-violenta, conciliação, mediação, gestão de relações (entre sócios, com investidores, entre colaboradores etc). Estamos aprendendo que a disposição de regras para a melhor convivência é matéria jurídica e, mais, matéria de qualidade jurídica.
É neste contexto que se assiste ao aumento no número de atos constitutivos (plataforma normativa primária) ou pactos parassociais (plataformas normativas acessórias ou secundárias) em que se ajusta a obrigação de as partes se submeterem à conciliação e/ou mediação, havendo mesmo aquelas que consideram tratar-se de momento pré-processual (à jurisdição judiciária ou arbitral) ou, indo ainda além, atribuindo às suas atas e demais documentos o caráter de elementos de instrução para eventual litígio: um meio para se aferir intenções, demonstrar e avaliar boa-fé, dar parâmetro e dimensão ao conflito. Coisas que são absolutamente desnecessárias a quem quer brigar, tomar, conquistar; mas essenciais a quem deve compreender o drama para poder julgar melhor: aferir os ânimos, aquilatar interesses, colher detalhes como ambições, futilidades, venenos, tolices, inconsistências e, se seguirmos, a lista ficará enorme.
Por isso escrevemos no "Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios" (8.ed. Atlas, 2024): "O contrato social pode trazer cláusula compromissória, hipótese na qual a contestação se fará por tal meio. Também é possível haver cláusula de mediação e/ou conciliação como requisito preliminar à ação judicial ou procedimento arbitral. Os procedimentos de mediação e conciliação têm se mostrado riquíssimos para a preservação da empresa e harmonização dos interesses dos sócios. Cuida-se de alternativa que merece ser prestigiada." E, entre os modelos de cláusula que estão ali previstos, listamos alguns sobre a matéria; por exemplo: "Os conflitos societários serão obrigatoriamente antecedidos pela instauração de procedimento extrajudicial de mediação." Mais um exemplo do que consta do livro; outro modelo de cláusula sugerido: "O procedimento de mediação será instaurado em no máximo ... (....) dias e não excederá ... (...) dias, contados de sua instauração, salvo se as partes aceitarem prorroga-lo. Vencido esse prazo, qualquer dos interessados poderá instaurar o procedimento contencioso para a solução do conflito."
O que importa, na conclusão deste ensaio, é chamar atenção para uma perspectiva incomum diante dos desencontros corporativos: em lugar de pensá-los como gatilhos inexoráveis da demanda, compreendê-los como parte de um processo organizacional a recomendar procedimentos de diálogo e composição. Negociar em lugar de partir para o ringue: advogados que se compreendem como atores do ajuste e não como meros galos de rinha. O advogado pode ser uma das peças das engrenagens da empresa, para seu melhor futuro, para seu desenvolvimento e sucesso. Não apenas litigando, mas sendo vetor do melhor cenário. É pouco usual pensar na formação jurídica como meio para proporcionar soluções e não apenas decisões favoráveis. Mas há cada vez mais empresas que compreendem os impactos positivos que insumos jurídicos podem carrear para suas estruturas organizacionais e suas cadeias produtivas.
Pode ainda não ser o normal; mas veja: computadores pessoais são normalidade recente, coisa de quarenta anos; celulares eram ficção científica há sessenta anos; inteligência artificial há menos tempo. A nova posição que pode - e deve - ser ocupada pela advocacia é, por igual, algo incomum, considerando as ladainhas comuns das salas de aula: peticionar, argumentar, embargar, recorrer e por aí vai. Sempre houve quem fizesse seus dias negociando e redigindo contratos, distratos e acordos, estatutos e regulamentos, assessorando a realização de reuniões e assembleias de sócios; sempre houve advogados proativos que se dedicam a construir e não apenas combater. A diferença é que o espaço para a atuação desses se alarga: as lides se revelam custosas e, salvo aventureiros, pouco lucrativas. Uma chance para não se perder, pensamos. Há espaço para muitos outros advogados de construção e não apenas combate. Aliás, a República, sua economia e seus atores mercantis precisam de muitos outros.

