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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Resumo O artigo aprofunda a discussão acerca dos Fundos de Investimento sob uma perspectiva do Direito Civil, do Direito Notarial, dos Registros Públicos e do Processo Civil, especialmente em razão do fato de essa matéria ter sido inserida no Livro de Direito das Coisas do Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019). Aborda também os principais julgados do STJ sobre fundos de investimento. Fundo de investimento é ente despersonalizado e configura um condomínio de natureza especial em que os cotistas são os condôminos. A finalidade dos cotistas é "investir" seu dinheiro adquirindo cotas do fundo de investimento, que, a seu turno, buscará o lucro por meio de operações de investimento guiadas por especialistas (capítulos 2 e 8). Como o fundo de investimento é um condomínio de natureza especial, não se aplicam as regras próprias do condomínio tradicional ou do condomínio edilício (art. 1.368-C, § 1º, do CC), do que dá exemplo o fato de que o cotista não teria legitimidade para, sozinho, propor ação para defender bens do fundo (capítulo 8.3.). A disciplina dos fundos de investimento atípicos está nos arts. 1.368-C ao 1.368-F do CC e em atos infralegais da CVM (especialmente a Instrução Normativa CVM nº 555/2014). Há, porém, fundos de investimento típicos, assim entendidos os que possuem uma disciplina legal ou infralegal própria, a exemplo do Fundo de Investimento Imobiliário. As regras gerais do CC se aplicam subsidiariamente aos fundos típicos por força do art. 1.368-F (capítulo 3). A responsabilidade do cotista pelas dívidas do fundo é, em regra, ilimitada. A exceção corre à conta de previsão, no regulamento do fundo, de responsabilidade limitada ao valor da cota, conforme art. 1.368-D, I, do CC (capítulo 4). Mudança no regulamento para tornar limitada a responsabilidade dos cotistas só alcançam dívidas nascidas posteriormente, tudo em respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, conforme art. 1.368-D, § 1º, do CC (capítulo 5). A CVM é autarquia criada para, em suma, proteger os investidores de "golpistas" e de "aventureiros". O CC reconheceu o papel regulamentar dela ao entregar-lhe a incumbência de regulamentar e de registrar os fundos de investimento, consoante o seu art. 1.368-C, §§ 2º e 3º (capítulo 6). O fundo de investimento nasce com o registro do regulamento na CVM. Antes do registro, o regulamento apenas prova um "fundo de fato", que, na prática, deve ser considerado como um mero contrato (capítulo 7). O fundo de investimento tem autonomia pessoal, patrimonial, processual e obrigacional em relação aos cotistas e aos prestadores de serviço, como o administrador, o gestor e o custodiante (capítulos 7 e 9). O fundo de investimento não é pessoa jurídica, e sim um ente despersonalizado, e, nessa condição, pode figurar como titular de bens no Registro de Imóveis e como parte em contratos e em processos judiciais. Pode, inclusive, sofrer dano moral, apesar de haver quem entenda pelo descabimento de dano moral contra entes despersonalizados (capítulo 8). Antes da Lei da Liberdade Econômica, havia dúvida jurídica razoável acerca da possibilidade de o fundo de investimento figurar como o titular de bens nos Registros Públicos e como parte em contratos e em processos judiciais. Havia quem entendesse que o nome do administrador é que deveria ser levado em conta. Entendemos ser viável a retificação dos registros públicos, do polo contratual e do polo judicial para colocar o fundo de investimento no lugar do administrador (capítulo 13.1.). No caso do Fundo de Investimento Imobiliário (FII), a sua lei específica (Lei nº 8.668/1993) está em aparente conflito com o CC (após sua alteração pela Lei da Liberdade Econômica em 2019) relativamente à natureza jurídica de ente despersonalizado do fundo de investimento, pois prevê que o registro dos bens do fundo deverá ser feito em nome do administrador na condição de titular da propriedade fiduciária. Entendemos que, à luz do diálogo das fontes, deve prevalecer as regras do CC, de maneira que os registros públicos, os contratos e os processos judiciais em nome do administrador anteriormente à Lei da Liberdade Econômica devem ser atualizados para que fazer constar o nome do fundo (capítulo 13.2.). Os prestadores de serviço do Fundo de Investimento só respondem civilmente por dolo ou má-fé, desde que estejam atuando de acordo com as regras de funcionamento do fundo. Se, porém, atuarem contrariamente às regras de funcionamento, a sua responsabilidade civil se satisfaz com a mera presença de culpa. Essa é a interpretação restritiva mais adequada do art. 1.368-E do CC. Há tendência da jurisprudência em incluir a culpa grave no conceito de dolo. O regulamento, porém, pode endurecer ou aliviar esse regime de responsabilidade dos prestadores de serviço, caso em que estes poderão se recusar a prestar o serviço ou aumentar a remuneração para absorver financeiramente o maior risco (capítulos 10 e 11). No caso de Fundo de Investimento Imobiliário, o art. 8º da sua lei específica (Lei nº 8.668/1993) responsabiliza o administrador no caso de "má gestão, gestão temerária, conflito de interesses, descumprimento do fundo ou determinação da assembleia de quotistas". Entendemos que esse dispositivo deve ser interpretado em harmonia com o art. 1.368-E do CC, de maneira que, se o administrador tiver agido dentro das regras de funcionamento do fundo, ele só responderá por dolo ou má-fé (capítulo 13.3.). Não há solidariedade entre os prestadores de serviço por danos causados aos investidores, salvo se eles, por ato próprio de vontade, assim pactuarem. É insuficiente a mera previsão no regulamento da solidariedade. Essa é a interpretação que reputamos mais adequada ao inciso II do art. 1.368-D do CC (capítulo 10). Embora a responsabilidade civil seja subjetiva, os prestadores de serviço estão sujeitos à responsabilização administrativa perante a CVM, que fiscaliza a atividade deles e que pode aplicar-lhes punições no caso de condutas negligentes, de maneira que a absolvição na esfera civil não afasta necessariamente eventual responsabilização administrativa (capítulo 10). Mesmo antes de o CC passar a disciplinar os fundos de investimento, o STJ firmara sua jurisprudência no sentido de negar pretensões indenizatórias formuladas por investidores que alegavam ter sofrido prejuízo com alguma operação malograda do administrador ou do gestor dos fundos de investimento, salvo se tivesse havido comprovação de gestão temerária ou se tivesse havido violação do dever de informação. Há, porém, uma presunção de ciência pelo investidor dos riscos de insucessos do fundo de investimento, pois, se o investidor não quisesse riscos, contentar-se-ia com os rendimentos mais modestos da poupança (capítulo 11). O regulamento pode fixar regime de patrimônio de afetação em favor de classes específicas de cotistas (capítulo 12). A cota do fundo de investimento é um bem móvel por determinação legal, o que afasta a incidência de ITBI ou a exigência da autorização conjugal do art. 1.647 do CC no caso de sua negociação (capítulo 13.4.). A cota é um bem do cotista e, por isso, por inexistir proibição legal, poderia ser objeto de atos voluntários de alienação e de oneração bem como de atos involuntários, como a penhora ou a sucessão causa mortis. Na prática, porém, com suporte em atos infralegais da CVM, os regulamentos do fundo costumam proibir atos voluntários de alienação, restringindo o poder do cotista ao de resgatar ou não suas cotas. Apesar de essa situação ser lícita, é desejável que o legislador reflita sobre a conveniência de mudar essa parcial indisponibilidade voluntária das cotas. Isso vale mesmo para a cessão fiduciária de cota de fundo de investimento em garantia de locação urbana, pois a lei específica exige autorização do regulamento do fundo para sua pactuação (art. 88, §§ 6º e 7º, Lei nº 11.196/2005 e art. 37, IV, da Lei nº 8.245/91). Entendemos, porém, estar implícita no CC a proibição de o regulamento vedar atos involuntários de transmissão da cota, como os decorrentes de sucessão causa mortis ou os decorrentes de penhoras judiciais (capítulo 13.5.). Urge que o legislador adapte a legislação à realidade contemporânea de desmaterialização da propriedade. Na prática, o patrimônio de inúmeros indivíduos é majoritariamente incorpóreo, e a legislação não está adequadamente preparada para essa nova realidade desmaterializada (capítulo 13.6.). O banco que orienta seus clientes a adquirem cotas de fundo de investimento não responde por insucessos futuros, salvo se violarem o dever de informação (não esclarecendo o cliente acerca dos riscos) ou se fizerem a aquisição da cota sem o consentimento do cliente. O STJ tem julgados nesse sentido (capítulo 13.7). Os Fundos de Investimento em Direito Creditório são instituições financeiras e, como tal, pode cobrar juros além do limite da Lei de Usura e pode exigir fiança como garantia das cessões de crédito pro solvendo. Esse é o entendimento do STJ (capítulo 13.8.). Clique aqui e confira a íntegra do texto.
A lei 14.382, publicada em 28 de junho de 2022, oriunda da conversão da Medida Provisória 1.085/2021, além de criar o "Sistema Eletrônico dos Registros Públicos" (SERP), promoveu relevantes alterações nas leis 4.591/64, 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP), 6.766/79, 8.935/94, 10.406/2002 (Código Civil), 11.977/09, 13.097/2015, e 13.465/17. O projeto gestado inicialmente no Ministério da Economia tem por objeto principal promover a integração entre as especialidades das delegações extrajudiciais (CF, art. 236), buscando concentrar o acesso pelos utentes desses serviços públicos de notável repercussão social no ambiente eletrônico e com interoperabilidade entre eles.     Sem embargo, após idas e vindas no processo legislativo, a lei 14.382/22 foi publicada com relevantes alterações para os Ofícios de Registro de Imóveis, ganhando notável destaque o tema da incorporação imobiliária. O legislador houve por bem revolver a intricada e complexa questão atinente ao adequado tratamento registral dado para as frações ideais do terreno que corresponderão às unidades futuras quando da fase de incorporação de um empreendimento imobiliário (Lei 4.591/64). Como a lei, antes da reforma, em nenhuma passagem havia dado uma diretriz concreta a respeito do tema, no âmbito das normatizações administrativas dos Estados, sobretudo das Corregedorias Gerais da Justiça, descortinaram-se duas posições bem delineadas: a primeira, que sustentava a impossibilidade de abertura de matrícula própria para as unidades em construção, pautando-se principalmente em sua inexistência físico-jurídica e eventuais consectários negativos de o empreendimento não progredir;1 e a segunda, que sustentava a plena possibilidade de se promover o descerramento de matrículas para as unidades futuras, após o registro da incorporação imobiliária, com arrimo em sua existência jurídica sob a ótica das frações ideais, ainda que por ficção legal.2 A primeira orientação, mais conservadora, é adotada de há muito pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo que criou a interessante e complexa sistemática das fichas complementares para serem escrituradas por ocasião da fase de incorporação imobiliária. A ideia fundamental é a segregação dos atos relativos apenas às unidades autônomas determinadas, em fichas individualizadas para cada uma delas, sem, no entanto, que isso implique em abertura de matrícula na fase de incorporação imobiliária. De tal modo, as fichas complementares ficam vinculadas à matrícula mestra do imóvel incorporado, de sorte que após a averbação da construção, com o registro da instituição e especificação do condomínio edilício, as mencionadas fichas complementares convolam-se, ipso facto, em matrículas autônomas; circunstância esta que é devidamente publicizada em cada uma das respectivas fichas através de averbação enunciativa.3      A redação das Normas de Serviço da Corregedoria paulista é bem ilustrativa e permite melhor visualização da sistemática de escrituração engendrada: 221.1. Independentemente da ficha auxiliar a que se refere o item 220, quando do ingresso de contratos relativos a direitos de aquisição de frações ideais e de correspondentes unidades autônomas em construção, serão abertas fichas complementares, necessariamente integrantes da matrícula em que registrada a incorporação. 221.2. Nessas fichas, que receberão numeração idêntica à da matrícula que integram, seguida de dígito correspondente ao número da unidade respectiva (Ex.: Apartamento: M.17.032/A.1; Conjunto: M.17.032/C.3; Sala: M.17.032/S.5; Loja: M.17.032/L.7; Box: M.17.032/B.11; Garagem: M.17.032/G.15, etc.), serão descritas as unidades, com nota expressa de estarem em construção, lançando-se, em seguida, os atos de registro pertinentes (modelo padronizado). 221.3. A numeração das fichas acima referidas será lançada marginalmente, em seu lado esquerdo, nada se inserindo no campo destinado ao número da matrícula. 221.4. Eventuais ônus existentes na matrícula em que registrada a incorporação serão, por cautela e mediante averbação, transportados para cada uma das fichas complementares. 222. Uma vez averbada a construção e efetuado o registro da instituição e especificação do condomínio, proceder-se-á à averbação desse fato em cada ficha complementar, com a nota expressa de sua consequente transformação em nova matrícula e de que esta se refere a unidade autônoma já construída, lançando-se, então, no campo próprio, o número que vier a ser assim obtido (modelo padronizado). 222.1. Antes de operada a transformação em nova matrícula, quaisquer certidões fornecidas em relação à unidade em construção deverão incluir, necessariamente, a da própria matrícula em que registrada a incorporação. 223. Para os cartórios que, na forma da determinação emergente do item 221, já adotem a prática rigorosa de registrar todos os atos relativos a futuras unidades autônomas na própria matrícula em que registrada a incorporação, será facultativa a adoção do sistema estabelecido nos itens 221.1 a 221.4, 222 e 222.1.  De outro bordo, a segunda orientação, adotada pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, autoriza o Oficial de Registro de Imóveis a proceder de plano, após o registro da incorporação imobiliária, a abertura de matrículas para as unidades autônomas que serão construídas, conforme descritivo constante do memorial de incorporação. A autonomia jurídico-registral das unidades, cada qual com seu fólio real próprio, parece atender com mais eficiência os princípios da unicidade matricial e da publicidade, facilitando sobremaneira a expedição de certidões. Simbolicamente, confira-se a redação da normativa fluminense: Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas. § 1º. Com o registro da incorporação imobiliária, a qualquer tempo é facultado ao incorporador requerer a abertura de tantas matrículas quantas sejam as unidades decorrentes do registro da incorporação realizada, entendida aí a descrição da futura unidade autônoma.  Argumenta-se a favor dessa corrente a necessidade de visão mais contemporânea e funcional do direito de propriedade, que não necessariamente - consideradas as vicissitudes sociais e econômicas próprias dos dias correntes -, devem respaldar o espelhamento no fólio real apenas de bens ou direitos tangíveis, concretos ou com lastro territorial determinado. É dizer, as inúmeras relações jurídicas emanadas da vida em sociedade e que, por força de lei refletem nos direitos reais sobre imóveis, como é o caso do direito real de laje, da multipropriedade imobiliária (time sharing) e dos multifacetados regimes condominiais (edilício - seja de casas, de apartamentos -, de lotes, urbano simples, etc.)4 merecem tutela registral mais eficiente; o que se alcança com descerramento de matrículas próprias para a laje, para a fração de tempo e para as unidades em construção, etc. Há ainda importante argumento atrelado à Análise Econômica do Direito (AED): ao se deferir a abertura de matrícula para cada unidade em construção de um empreendimento, esta providência gera indissociável redução da assimetria informacional, permitindo-se que os players do mercado imobiliário possam contratar com mais segurança e eficiência sobre referidas unidades. Ainda hoje se observa que a vinculação das unidades autônomas em construção à matrícula-mãe gera certo atravancamento das negociações, dificultando liberações de crédito e concessões de financiamentos imobiliários. Em suma, ao se descerrar matrículas para as unidades individualmente, corrobora-se para evidente redução dos custos de transação, o que é extremamente positivo para o mercado imobiliário e, ao fim e ao cabo, para a economia nacional.   Foi exatamente com esse espírito que o legislador, através da lei 14.382/22, resolveu inovar sobre a matéria incluindo na Lei de Registros Públicos a possibilidade de abertura de matrículas para as unidades autônomas em construção após o registro da incorporação. Eis a redação do art. 237-A, § § 4º e 5º, da LRP: § 4º É facultada a abertura de matrícula para cada lote ou fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma, após o registro do loteamento ou da incorporação imobiliária.   § 5º Na hipótese do § 4º deste artigo, se a abertura da matrícula ocorrer no interesse do serviço, fica vedado o repasse das despesas dela decorrentes ao interessado, mas se a abertura da matrícula ocorrer por requerimento do interessado, o emolumento pelo ato praticado será devido por ele. É certo que os dispositivos gozam de patente heterotopia. Sua alocação em parágrafos de norma geral que trata de emolumentos não foi a mais feliz. No entanto, isso não lhes retiram a importância enquanto inovação legislativa para o sistema registral imobiliário, consolidando-se a ideia - é bom que se diga uma vez mais: já ventilada anterior e indiretamente por outras leis reformadoras - de que o princípio da unitariedade matricial não só existe como é a viga-mestra do sistema registral brasileiro, mas deve partir da premissa de que o objeto retratado na matrícula é um imóvel (ou direito a ele correlato), enquanto unidade econômica e não mais como unidade física, atrelada exclusivamente ao solo.  Na busca da melhor técnica registral, boa providência para descerrar a matrícula para cada unidade autônoma na fase de incorporação é promover sua descrição no preâmbulo matricial tal como apresentada no memorial da incorporação e, em ato subsequente, lançar a averbação noticiando que se trata de unidade em fase de construção. A ideia do averbamento enunciativo é informar que se trata efetivamente de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada. Tal providência permite melhor graficidade da matrícula, mormente quando, por ocasião do término das obras, for promovida a averbação da construção e a instituição do condomínio. Assim, ao final, não constará do preâmbulo da matrícula a expressão "em construção" ou outra congênere, evitando-se de modo mais eficiente interpretações equivocadas por parte dos consulentes do fólio. Bem vistas as coisas, os dispositivos em testilha são harmônicos com as introduções feitas pela lei 14.382/22 na lei 4.591/64 ao criar um regime de condomínio especial que vigora temporariamente e com termos bem definidos: do registro do memorial de incorporação até a instituição do regime de condomínio edilício. Note-se que referido condomínio de frações ideais é peculiar, próprio do seu gênero, e não se confunde com o regime final, desejado, do condomínio edilício. Por esse motivo o legislador expressamente declarou no art. 32, § 1º-A, da lei 4.591/64 que "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos".5 Na mesma medida, à luz da atual redação da lei 4.591/64, esse regime especial e intermediário de frações ideais (que corresponderão às futuras unidades) nasce com o registro do memorial de incorporação, (art. 32, caput), sendo certo que sua constituição é efeito automático daquele registro (art. 32, § 15). Em outras palavras, não se faz necessário qualquer providência registral adicional nesta fase de incorporação.6 Aqui reside a harmonia autorizante da abertura de matrículas para as unidades em construção, após o registro da incorporação imobiliária. Coloca-se em evidência que este regime condominial especial,7 congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro (leia-se: de condomínio de frações ideais para o condomínio edilício). Noutras palavras, o registro da incorporação, que antecede a edificação do prédio e serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, em nada se relaciona com o nascimento jurídico das unidades em regime de condomínio edilício, ainda não instituído.8 Por possuírem naturezas e efeitos jurídicos distintos, o registro da incorporação não se presta a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial.9 Assim, simultaneamente ao ato de averbação da construção, deve ser feito o registro da instituição e especificação do condomínio, a fim de que, a partir desse instante, as unidades autônomas edilícias passem a existir juridicamente. Há, assim, contemporaneidade necessária entre o ato de registro da instituição condominial e o ato de averbação da construção do edifício. Se este último tem o efeito jurídico da individualização e discriminação das unidades autônomas, insta, à evidência, que essas mesmas unidades, naquele instante, existam jurídica e registrariamente, o que só se dá com o registro da instituição e especificação do condomínio.10 Tal conclusão não necessita de qualquer esforço hermenêutico, e pode ser haurida sem dificuldade da simples leitura do art. 7º da lei 4.591/1964.11 Demais disso, a própria Lei de Registros Públicos no seu art. 167, I, nº 17, exige o registro da instituição do condomínio edilício com autonomia em relação ao registro da incorporação.12 Este é o entendimento consolidado na Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo há, ao menos, quatro décadas: Ora, é translúcido que, como, por hipótese, a construção não está ainda concluída, não havendo excogitar sequer da realidade física dos apartamentos, os negócios jurídicos só podem respeitar a direitos de aquisição, concernentes às acessões em obras e às respectivas frações ideais de terreno. A esses atos jurídicos é que a Lei se refere no exemplificar os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas (art. 32, § 1º, da Lei 4.591/64). Jamais poderiam entender com as unidades autônomas, no seu rigoroso sentido técnico, que se trata de realidades jurídicas por nascerem de providências consequentes, ou seja, do registro da instituição condominial. Nem mesmo sob a vigência do Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, se controverteu que o exsurgimento jurídico do condomínio em edifício, ou propriedade horizontal, depende do registro do título constitutivo e individuante das unidades autônomas (cf. SERPA LOPES, "Tratado dos Registros Públicos", Freita Bastos, 5ª ed., 1962, vol. IV, págs. 274 e 275, nº 680). E incisiva, no particular, a disposição do art. 7º, cc. art. 44 e §§, da Lei 4.591/64, que assentou o princípio de que "o registro é requisito formal ad substantiam, e, que sem ele, não há condomínio por unidades autônomas" (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, "Condomínio e Incorporações", Forense, 1ª ed., 1965, pág. 98, nº 54. Grifos do original)'. Tem-se, pois, que até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios, situação que, aliás, foi considerada pelo legislador ao dispor no item 3 da Tabela II da Lei Estadual nº 11.331/02 que: "Com respeito à aquisição de frações ideais de terreno vinculadas a futuras unidades autônomas, no regime de incorporação, a cobrança de emolumentos será feita em duas etapas. Quando do registro de alienações de frações ideais do terreno, os emolumentos serão calculados sobre o valor da fração ideal do terreno, constante da escritura ou seu valor venal correspondente, o que for maior. Efetivada a instituição do condomínio especial, sem prejuízo dos emolumentos devidos por este ato, serão cobrados emolumentos referentes a cada unidade autônoma, considerando o valor derivado da edificação realizada ou do negócio jurídico celebrado, o que for maior"13  Dito de outro modo, o contrato de incorporação extingue-se com a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações e sua entrega aos adquirentes em condição de habitabilidade. Bem se vê, destarte, que o registro da incorporação imobiliária não pode se prestar a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial. Consoante já se observou, este último registro é, afinal, aquele que dá existência jurídica às unidades autônomas construídas. Sem ele, pois, não se terá mais que uma realidade física, se muito, representada pela edificação, mas não levada ao registro. Vale lembrar, ainda, que o art. 1.332 do Código Civil também é claro ao disciplinar a instituição do condomínio edilício como instituto diverso e autônomo à incorporação imobiliária: Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III - o fim a que as unidades se destinam.  Na mesma diretriz é a didática lição de Ademar Fioranelli: Ledo engano pensar que o condomínio nasça com o registro da incorporação; no entanto, sem ele, obviamente não se chega àquele. Trata-se de um procedimento inicial de efeito temporário cuja principal finalidade é proteger os aderentes do empreendimento, desde que se faça o arquivamento no Registro de Imóveis competente de toda documentação elencada no artigo 32 da lei 4.591/64, até a efetiva entrega das unidades autônomas.14  Em arremate, com a reforma legislativa perpetrada pela lei 14.382/22, pode-se concluir que optando o empreendedor pelo regime de incorporação imobiliária e todos seus benefícios subjacentes: (i) exsurge com o seu registro a possibilidade de alienar as unidades futuras em construção (art. 32, caput); (ii) unidades futuras essas que poderão contar desde logo com matrícula própria, distinta da matriz registral do empreendimento (LRP, art. 237-A, §§ 4º e 5º), já que o registro da incorporação gera, ope legis, um condomínio especial sobre as frações ideais (Lei 4.591/1964, art. 32, §1º-A e § 15); (iii) sendo indispensável, após a expedição do "habite-se", a averbação da construção e o registro em sentido estrito da instituição e especificação do condomínio edilício (Lei 4.591/1964, art. 7º c.c. LRP, art. 167, I, nº 17).  _______________ 1 A título de ilustração, esta diretriz era traçada, dentre outros, nos Estados de São Paulo e do Paraná. Confira-se a redação da normativa paulista a este respeito: "221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas". 2 Já adotavam este entendimento, dentre outras, as normativas estaduais de Goiás, do Rio Grande do Sul e do Rio de janeiro. Ilustre-se a intelecção com a redação da norma goiana: "Art. 1.060. Antes de concluída a obra, poderão ser abertas matrículas para as unidades autônomas, a pedido o incorporador ou em razão do registro de contratos, transportando-se os eventuais ônus existentes. Parágrafo único. Na hipótese de que trata o caput, deverá constar averbação expressa de que se trata de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada".  3 Importa salientar que esta sistemática é de adoção facultativa pelo registrador de imóveis que, por técnica de registro, pode optar, na fase de incorporação, pelo lançamento de todos os atos de registro ou de averbação, referentes a todas as unidades do empreendimento, na matrícula matriz. No entanto, não é difícil imaginar que a manutenção de única matriz tabular para lançamento de atos relativos a todas as unidades de empreendimentos que possuem centenas delas gera uma complexidade imensa de controle da disponibilidade e, na mesma medida, dificulta a publicidade registral. 4 Registre-se que a lei 14.382/22, em espírito inovador, houver por bem criar interessante regime híbrido entre as modalidades de parcelamento do solo e a incorporação imobiliária. Eis a nova disciplina do art. 68 da Lei 4.591/1964: "Art. 68. A atividade de alienação de lotes integrantes de desmembramento ou loteamento, quando vinculada à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 desta Lei ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, caracteriza incorporação imobiliária sujeita ao regime jurídico instituído por esta Lei e às demais normas legais a ele aplicáveis. § 1º A modalidade de incorporação de que trata este artigo poderá abranger a totalidade ou apenas parte dos lotes integrantes do parcelamento, ainda que sem área comum, e não sujeita o conjunto imobiliário dela resultante ao regime do condomínio edilício, permanecendo as vias e as áreas por ele abrangidas sob domínio público.  § 2º O memorial de incorporação do empreendimento indicará a metragem de cada lote e da área de construção de cada casa, dispensada a apresentação dos documentos referidos nas alíneas e, i, j, l e n do caput do art. 32 desta Lei. § 3º A incorporação será registrada na matrícula de origem em que tiver sido registrado o parcelamento, na qual serão também assentados o respectivo termo de afetação de que tratam o art. 31-B desta Lei e o art. 2º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, e os demais atos correspondentes à incorporação. § 4º Após o registro do memorial de incorporação, e até a emissão da carta de habite-se do conjunto imobiliário, as averbações e os registros correspondentes aos atos e negócios relativos ao empreendimento sujeitam-se às normas do art. 237-A da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos)". 5 O discrímen fica evidente quando a mesma lei 14.382/22, no que toca ao regime das retificações de registro, e a necessidade de anuência ou notificação dos confinantes, deliberou que no caso de condomínio edilício será de rigor sua representação pelo síndico; já no caso do condomínio de frações ideais sua representação será pela comissão de representantes (LRP, art. 213, § 10, II). Fosse o mesmo condomínio tratado pelo legislador, à evidência, não haveria necessidade da distinção.  6 Art. 32, § 15, da lei 4.591/64. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.  7 De ver-se que o § 15 do art. 32 não cuida propriamente de novidade. O legislador apenas incorporou no texto da norma aquilo sempre existiu como efeito jurídico do registro da incorporação imobiliária. Veja-se passagem emblemática da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo a este respeito: "O registro da instituição e especificação do condomínio, portanto, é essencial para que deixe de existir o regime de comunhão em frações ideais sobre o terreno e passe a existir o instituto do condomínio edilício que importa em coexistência de propriedade exclusiva sobre as unidades autônomas (apartamentos, lojas, garagens etc.) e copropriedade sobre o todo do terreno e sobre as partes do edifício de uso comum dos condôminos" (CGJSP - Processo 0029914-40.2017.8.26.0576, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.26/04/2019).  8 "Como é curial, e claramente depreendido dos termos do art. 32 da lei 4.591, o registro da incorporação serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, com garantia e segurança dos adquirentes. Evidentemente, tal registro em nada se relaciona com o nascimento jurídico destas unidades do condomínio, ainda não instituído. A situação da incorporação é por natureza efêmera, pois não vai além da conclusão da edificação. A incorporação reveste índole de transitoriedade, exaurindo-se com o término da edificação" (CGJSP - Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994).  9 A instituição de condomínio é fase superveniente à construção e se destina à individualização das unidades autônomas a que são vinculadas as frações ideais relativamente ao terreno e às partes comuns do edifício e à indicação do fim a que se destinam, constituindo, assim, autêntico procedimento divisório entre os comunheiros, como ensinam Nisske Gondo e Nascimento Franco: "Como se vê, a especificação do condomínio, com a atribuição aos condôminos, de partes ideais do terreno, áreas e coisas de uso comum, é um autêntico procedimento divisório entre os comunheiros" (FRANCO, João Nascimento; GONDO, Nisske. Condomínio em edifícios. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 27).  10 CGJSP - Processo 1005346-86.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.09/02/2021.  11 Art. 7º da lei 4.591/64. O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dele constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade.  12 Art. 167, I, nº 17, da LRP. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio. 13 CGJSP - Processo 1014097-36.2020.8.26.0309, Des. Ricardo Mair Anafe, j.06/10/2021. Nesse sentido é farta a jurisprudência paulista, que vem sendo reiterada há décadas: CSMSP - Apelação Cível 1.176-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.28/06/1982; CSMSP - Apelação Cível 1.846-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.19/04/1983; CSMSP - Apelação Cível 2.145-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.04/04/1983; CSMSP - Apelação Cível 286.693, Rel. Des. Humberto de Andrade Junqueira, j.17/12/1979; CGJSP - Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994; CGJSP - Processo 511/2005, Des. José Mário Antonio Cardinale, j.15/09/2005; CGJSP - Processo 1004386.56.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.11/02/2021; 14 FIORANELLI, Ademar. Condomínio Edilício Incorporação Imobiliária: Registro de Atribuição de Unidades Autônomas. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra e Gilberto Carlos Maistro Júnior, coordenadores. Direito Imobiliário. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. p. 272. _____________ *Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é registrador de Imóveis no Estado de São Paulo. Exerce atualmente a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR) nos departamentos de Direito e Economia e de Registro de Imóveis. Professor de Direito Notarial e Registral em cursos de graduação e pós-graduação. Autor da obra "Alienação Fiduciária de Bens Imóveis", pela Editora Thomson Reuters - RT, atualmente em sua 2ª edição (2022).  
Introdução  O sistema de crédito brasileiro possui garantias jurídicas pessoais e reais. As garantias pessoais são a fiança e o aval. E as garantias previstas no código civil são, a hipoteca, a anticrese, o penhor e a fidúcia para bens móveis. A legislação extravagante trouxe a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis prévia ao atual código civil em 1997, a Lei 9.514 do citado ano. O patrimônio rural em afetação é a novidade legislativa entre as garantias reais trazida pela chamada, Lei do Agro, lei 13.986/2020. O sistema de garantias serve para assegurar o cumprimento de obrigações, mediante diminuição de imprevisibilidade. O adimplemento de qualquer obrigação é cercado por infinitas variáveis, tanto de cunho subjetivo, como de cunho natural e, para que credores tenham seus negócios adimplidos, foi pensado um sistema de garantias. Na atualidade, as garantias se mostram necessárias, sendo importantes objetos para o fomento de atividades específicas. No setor do agronegócio, a garantia para financiamentos, seja por pessoas jurídicas ou físicas, se mostra fundamental para a diminuição dos custos financeiros. Portanto, antes do advento da lei 13.986 de 2020, tínhamos, apenas como garantias reais, como dito, a hipoteca, a anticrese, o penhor e a alienação fiduciária. Em 2020 foi criado pela lei 13.986, concomitante à Cédula Imobiliária Rural (CIR), o Patrimônio Rural em Afetação (PRA), para ser utilizado como meio de garantia ao adimplemento de obrigações advindas da CIR e da Cédula de Produto Rural (CPR). O sistema de crédito O crédito pode ser definido como uma ampliação da troca ou escambo, ou seja, como uma ferramenta para multiplicar trocas sendo muito mais amplo sua aplicabilidade para criar recursos que a própria moeda circulante1. A palavra crédito deriva do latim creditum. A origem de creditum vem de credere, que em tradução livre seria confiança, fé.2 O credor, portanto, tem confiança que o devedor lhe restituirá o que recebeu em empréstimo. Desde a idade média, o título de crédito, seria uma operação com a qual o proprietário de um bem (credor) cede a propriedade (de determinado valor, crédito, bens) para outra pessoa (devedor) em troca de uma contraprestação diferida de natureza pecuniária3. O termo "crédito", portanto, deriva precisamente da crença (confiança, crença) do proprietário do ativo que o devedor cumprirá por conta própria obrigação.4 A prestação do credor pode ser constituída pelo ativo que o devedor deseja ou (mais frequentemente) de algo com o qual ele possa obtê-lo, ou seja, um bem disponível líquido ou facilmente conversível em dinheiro. Nesse sentido, o bem conversível líquido por excelência é a moeda corrente do país, cujo poder de compra é imediatamente utilizável. Menor grau de liquidez há em outros "créditos" ou "bens", cuja conversão em dinheiro requer mais ou menos tempo e não sem risco; entre eles, em ordem decrescente de facilidade de monetização, títulos de dívida pública, recebíveis de terceiros (títulos de crédito entre particulares), empréstimos e ativos a prazo.5 Nas palavras de Maria José Villaça, liquidez é: "...  uma questão de grau que se aplica a todos os ativos negociáveis ou àqueles sôbre os quais os indivíduos têm o direito de propriedade e dêles podem dispor, transformando-os em caixa. A liquidez seria, pois, a propriedade de um ativo, governada pela relação entre o tempo e o preço alcançado, considerando-o livre de todos os custos decorrentes da venda. O seu preço total seria o conseguido após um dado período de tempo, uma vez que certas medidas fossem tomadas no preparo de sua venda. Quanto menor o espaço de tempo decorrido, uma vez admitido um período ótimo para se alcançar o preço total, quando certas medidas são tomadas no preparo da venda, menor será a contrapartida conseguida na troca."6 As primeiras formas de crédito, consistiam principalmente em contratos de empréstimos pecuniários e de câmbio7; outros instrumentos de crédito são gradualmente adicionados. Sob o estímulo de diferentes necessidades, os operadores do mercado de capitais (desde a idade média) tendem a experimentar novas operações de crédito, cuja difusão está ligada à sua disciplina jurídica e a segurança que possa dar ao credor em ter algum lucro com o "bem" emprestado. Para que novas formas de crédito sejam adotadas em larga escala, elas devem ter uma fisionomia definida por lei; no entanto, esse processo é muito longo, porque a configuração de novos institutos de crédito não pode se limitar a eventuais evoluções legislativas. O mercado é ágil e resolve sempre a frente do direito seus "problemas"8. A legislação sempre corrige eventuais falhas ou abusos do mercado. Tem sido assim desde a idade média. Tulio Ascarelli leciona que "sem os títulos de crédito a vida econômica moderna seria incompreensível"9. Com esta breve análise sobre o nascimento do sistema de crédito e de seu instrumento mais usual na idade média, em grande salto histórico adentrar-se-á a breve estudo somente dos sistemas de garantias para o pagamento de dívidas e posteriormente às cédulas, à alienação fiduciária, o patrimônio rural em afetação para compreensão da aplicação das regras sobre a alienação fiduciária em garantia aos PRA's.  O patrimônio rural em afetação O patrimônio rural em afetação foi criado e instituído no nosso ordenamento jurídico pela lei 13.986/2020, regulamentado nos artigos 7° ao 16, como uma modalidade de direito real de garantia que incide sobre imóveis rurais a serem vinculados à Cédulas Imobiliárias Rurais (regulamentadas nos artigos 17 ao 29 da lei 13.986/2020) ou à Cédulas de Produtos Rurais (previstas na Lei 8.929/1994). Pode se dar sobre totalidade do imóvel ou ainda, sobre parcela ou fração específica. O proprietário do imóvel, pessoa natural ou jurídica, é quem pode dar o seu imóvel ou fração dele em regime de afetação. São alcançados por este regime o terreno, as benfeitorias e eventuais acessões existentes, com exceção das lavouras, bens móveis e semoventes. A sua constituição se dá de forma prévia à emissão de qualquer dessas Cédulas, através de registro junto à matrícula do imóvel vinculado (artigo 9°, caput da Lei 13.986/2020 combinado com artigo 167, I, alínea 47 da Lei 6.015/1973, ambos com redações dadas pela lei 14.421/2022). Não podem ser submetidos a este regime especial: a) a pequena propriedade rural, prevista na alínea 'a' do inciso II do caput do artigo 4° da lei 8.629/92; b) os imóveis já gravados com algum ônus real ou que tenha inscrito no seu fólio real quaisquer das hipóteses previstas no artigo 54 da lei 13.097/2015; c) área de tamanho inferior à fração mínima para o parcelamento; d) o bem de família, com exceção ao que está disposto no artigo 4°, §2° da lei 8.009/90. Percebe-se que, de todas as garantias reais existentes em nosso ordenamento jurídico, apenas o patrimônio rural em afetação tem proibição expressa acerca da pré-existência de qualquer outra espécie de garantia real inscrita no fólio real. O regime especial das Incorporações Imobiliárias, por exemplo, previstos nos artigos 31-A a 31-F, da lei 4.591/64, não possuem essa rigidez10. Uma questão interessante aqui, diz respeito aos previstos no artigo 12, I, 'd', e nos incisos IV e V da do mesmo artigo, da lei 13.986/2020. Em uma leitura atenta e sistemática, devemos entender que, para a constituição do regime de afetação a que alude a lei, será necessário que o imóvel rural esteja especializado objetivamente, através do sistema de Georreferenciamento, em sua totalidade, mesmo que a vinculação vá se dar apenas em parcela do imóvel. Além desse tipo de especialização em sua totalidade, também deverá se dar sobre a parcela a ser afetada, caso não recaia sobre a totalidade. Em ambos os casos será necessário, também, a certificação do INCRA, atestando que não ocorre sobreposição sobre demais imóveis rurais georreferenciados (artigo 9°, §1° do decreto Federal  4.449/2012 combinado com artigo 12, I, 'd', IV e V da lei 13.986/2020). No artigo 9°, § 2º da lei 13.986/2020, com redação acrescida pela lei 14.421/2022, temos a previsão de que, quando a afetação se der sobre parcela do imóvel, deverá se fazer a especialização da área afetada, tendo a mesma previsão do artigo 12, I, 'd', da mesma lei. A novidade, nessa redação, foi a previsão da necessidade de se fazer também a especialização da área remanescente e, aqui, também entendemos que será através do Georreferenciamento. Não faz sentido especializar a área afetada por um sistema e não se adotar o mesmo para a área remanescente. Então, na visão do legislador, o imóvel deve estar inicialmente georreferenciado para se submeter ao regime de afetação; e, se a afetação se der sobre parcela do imóvel, deve-se georreferenciar essa área e, também a remanescente. Nesse último caso, após o registro do patrimônio rural em afetação junto a matrícula do imóvel, faz-se averbação da descrição da área remanescente, com fundamento no artigo 246 da lei 6.015/73 combinado com o artigo 9°, § 2° da lei 13.986/2020, já citado.   Agora, como um direito real de garantia em que se submete o imóvel ou parte dele à um regime especial, o legislador tomou o cuidado de estabelecer algumas regras que deem mais segurança jurídica a operação financeira que dará ensejo as emissões da Cédula Imobiliária Rural ou Cédula de Produto Rural. Observa-se no disposto no artigo 10 da lei 13.986/2020: Art. 10. Os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos, nas seguintes condições: I - desde que vinculado o patrimônio rural em afetação a CIR ou a CPR; II - na medida das garantias expressas na CIR ou na CPR a ele vinculadas. § 1º Nenhuma garantia real, exceto por emissão de CIR ou de CPR, poderá ser constituída sobre o patrimônio rural em afetação. § 2º O imóvel rural, enquanto estiver sujeito ao regime de afetação de que trata esta Lei, ainda que de modo parcial, não poderá ser objeto de compra e venda, doação, parcelamento ou qualquer outro ato translativo de propriedade por iniciativa do proprietário. § 3º O patrimônio rural em afetação, ou parte dele, na medida da garantia vinculada a CIR ou a CPR: I - não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela a qual esteja vinculado; e II - é impenhorável e não poderá ser objeto de constrição judicial. § 4º O patrimônio rural em afetação ou a fração destes vinculados a CIR ou a CPR, incluídos o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no terreno, exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes: I - não são atingidos pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural; e II - não integram a massa concursal. § 5º O disposto neste artigo não se aplica às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural. Há, portanto, expressa blindagem patrimonial com a constituição desta nova garantia, sendo verdadeira medida de segurança para realizações de tráfego negocial relativo a créditos rurais, semelhante ao regime previsto na Lei de Incorporações Imobiliárias, regulamentada pela lei 4.591/1964 nos artigos 31-A e seguintes. Nos ensina aqui, Claudinei Antonio Poletti (pag. 36, 2021, 'A Nova Lei do Agro', Ed. Contemplar), "Por outro lado, uma vez constituído e vinculado a um dos dois títulos que lhe são permitidos, o patrimônio rural em afetação se torna incomunicável com o restante do patrimônio do constituinte, e, por consequência, não responde por outras dívidas ou obrigações de qualquer natureza, exceção às de origem 'trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural'. Torna-se, também, inalienável, não podendo ser vendido, parcelado ou realizado qualquer outro tipo de ato translativo, por iniciativa do proprietário. Da incidência das regras referentes a alienações fiduciárias em garantia Conforme dito anteriormente, quando tratamos do conceito do regime especial objeto do presente estudo, vimos que o patrimônio rural em afetação é constituído com a finalidade de servir como direito real de garantia vinculada a uma Cédula de Produto Rural ou da Cédula Imobiliária Rural. Falamos também que a constituição dessa garantia real, se dá através do registro prévio junto à matrícula do imóvel. Uma vez constituído, seus efeitos ficam condicionados à emissão de uma das Cédulas Rurais mencionadas. Vale dizer, servirá como direito real de garantia e, sofrerá a blindagem a que alude o artigo 10 da lei 13.986/2020, apenas quando, efetivamente, for emitido um dos referidos títulos de crédito vinculantes. Agora, questão interessante diz respeito as regras específicas de cada Cédula objeto desse artigo. Para as Cédulas de Produtos Rurais, veremos que o legislador admitiu a constituição de quaisquer garantias reais previstas em lei, a ser inserida no título (artigo 5° da lei 8.929/1994). Então, além do próprio patrimônio rural em afetação, permite-se que este tipo de título de crédito tenha, em seu bojo, outras garantias reais. Diferentes são as regras relativas as Cédulas Imobiliárias Rurais.  Estas, não tem nenhuma outra garantia real a não ser o próprio patrimônio em afetação. Percebe-se assim, um tratamento diferenciado, por opção do legislador, a depender do tipo de financiamento e Cédula emitida. No que tange as Cédulas Imobiliárias Rurais, temos uma previsão que foi alvo de severas críticas quando do seu surgimento. Trata-se do disposto no artigo 17, II da lei 13.986/2020, que traz a disposição de que, quando de sua emissão, deve-se inserir uma cláusula obrigatória de entrega, em favor do credor, do imóvel rural ou de parte dele que esteja afetado a garantia da operação de crédito contratada, nas hipóteses em que não houvesse o pagamento até a data do vencimento. Aqui, a crítica se consubstanciava no fato do legislador não ter estabelecido qual seria o instituto jurídico a ser aplicado e nem eventuais regras que possibilitassem a purgação de mora sem a ocorrência drástica de perda da propriedade. Seria uma modalidade de expropriação particular. O legislador veio a corrigir isso, agora, com a lei 14.421/2022. Fez uma importante modificação na norma, a trazer a aplicação das regras relativas à alienação fiduciária em garantia de bem imóvel prevista na Lei 9.514/1997, para os patrimônios rurais em afetação, inserindo o parágrafo terceiro ao artigo 7° da Lei do Agronegócio. Nesse diapasão, temos o entendimento de que o previsto no artigo 17, II, deve ser interpretado em conjunto com o citado artigo 7°, §3°, ambos da lei 13.986/2020. Uma vez verificado pelo credor o inadimplemento das obrigações pelo emitente devedor, deverá aplicar as regras executórias previstas nos artigos 26 e seguintes da lei 9.514/1997. O credor não será proprietário fiduciário do imóvel quando da emissão da cédula. Não foi essa a intenção do legislador. O objetivo aqui foi de oferecer as regras executórias da Lei. No que tange as Cédulas de Produtos Rurais, como falamos anteriormente, já havia a previsão da possibilidade de se constituir a Alienação Fiduciária em Garantia de Bem Imóvel no próprio título. O que se deve observar aqui, com cautela, é que o legislador trouxe regras que mitigam a aplicação da lei 9.514/1997, na própria lei 8.929/1994. Se olharmos o artigo 5° da Lei 8.929/1994, veremos que o legislador dispôs que se aplicam as regras referentes as garantias instituídas, naquilo que não conflitar com a referida lei. Temos, também, a previsão do artigo 16 desta mesma norma, prevendo que a busca e apreensão ou o leilão do bem alienado fiduciariamente, promovidos pelo credor, não elidem posterior execução, inclusive da hipoteca e do penhor constituído na mesma cédula, para satisfação do crédito remanescente. O parágrafo único dispõe ainda que o credor poderá cobrar eventual dívida remanescente através de uma ação própria. Vejamos, a título de exemplo, que, nesses casos, não incide a regra do artigo 27, §5° da lei 9.514/97, não ocorrendo a quitação da dívida, caso o maior lance oferecido e aceito em eventual segundo leilão, não alcance o valor total da dívida. Justamente, pelo disposto no artigo 16 da Lei 8.929/1994, acima citada. Conclusão Trouxemos este artigo com objetivo de construção de um debate, a respeito da aplicação das regras referentes as alienações fiduciárias de imóveis aos patrimônios rurais em afetação. Nosso entendimento esposado é no sentido de serem aplicadas apenas as regras executórias da lei 9.514/1997, no caso de patrimônios rurais em afetação, vinculadas as Cédulas Imobiliárias Rurais. No que tange aos casos de Cédulas de Produtos Rurais, aplicar-se-ão apenas as regras executórias quando a própria cédula tiver outro tipo de garantia. Nos casos em que a AFG for objeto de garantia cedular, aí, aplicam-se todas as regras da lei 9.514/97, com a ressalva do disposto no artigo 5º da lei 8.929/1992. A individualização de parte do imóvel, por exemplo e o ato registral de gravá-lo com o patrimônio rural em afetação, facilitando enormemente a execução, pode muito bem ser descrito como uma forte garantia, ou como chamamos, uma SUPER GARANTIA REAL. Pensar diferente, seria desvirtuar as naturezas jurídicas de tais títulos de crédito, e estes passariam a ter uma forte natureza contratual e não mais a garantia acessória, no caso a AFG. Para chegarmos a esse raciocínio, foi necessário tratarmos, mesmo que de en passant do sistema de crédito e das diversas garantias reais previstas no nosso ordenamento jurídico, do patrimônio rural em afetação, dispondo sobre a sua natureza jurídica, instituição e especialização, para depois tratarmos, aí sim, do objetivo central deste artigo. Ficam ainda muitas questões em aberto, e o debate com futuros estudos deverão aprofundar o tema.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 2 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. "Títulos de Crédito". 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 3. 3 FERRO JR, Izaias Gomes. Introdução aos Títulos de Crédito e o Protesto de Títulos. Salvador: Juspodivm, 2020, apud EL DEBS, Martha e FERRO JR, Izaias Gomes. O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívidas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 235. 4 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 5 VILLAÇA, Maria José. O Conceito de Liquidez. Rev. adm. empres. vol.9 no.1 São Paulo Jan./Mar. 1969, acesso em 31 jul 2022. 6 VILLAÇA, Maria José, ibid. 7 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 8 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 9 ASCARELLI, Tulio. Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Trad. Nicolau Nazo. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva, 1943, p.3 10 Conceitualmente, o vocábulo "afetação" nas duas leis, 4.591/64 e 13.986/2020, parece ser o mesmo. Em verdade, afetar nestes termos, significa, separar, empregar de forma única, proteger algo ou alguém. A submissão da incorporação imobiliária ao regime de "afetação imobiliária" fará a separação daquele bem, ao restante do patrimônio do construtor, ou incorporador e este terá destinação exclusiva visando única e exclusivamente a construção do empreendimento imobiliário e a entrega das futuras unidades aos adquirentes. Na legislação de afetação urbana há separação, e não é espécie de garantia real. Já a lei 13.986/2020 trouxe, claramente uma nova garantia, que chamamos de SUPER GARANTIA, que é a destinação do patrimônio total ou parcial, a prestar garantias em operações de crédito junto aos bancos, cooperativas, e instituições financeiras em geral. Resumindo, na incorporação, a finalidade é já apartar o patrimônio, com sua matrícula própria, em nome do incorporador, ou construtor, averbada a AFETAÇÃO, visando proteção dos futuros adquirentes das unidades autônoma. O patrimônio de afetação do imóvel rural serve como uma SUPER GARANTIA REAL, vez que previamente já georreferencia o imóvel todo ou parte dele facilitando a execução, calcada na lei 9.514/94.
Já tivemos oportunidade de tratar do novo procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória dos contratos preliminares integralmente quitados. Hoje a nossa atenção se volta para o mesmo contrato, mas agora sob a ótica de sua rescisão. De fato, se quem pagou todas as parcelas de um compromisso, pode exigir fora do âmbito do poder judiciário que lhe seja transmitido coativamente o domínio, não seria natural que esse contrato preliminar seja da mesma forma desfeito e seu registro cancelado quando a pessoa deixa de pagar as prestações? Parece ser intuitivo que a resposta seja sim. Como se sabe, no âmbito da alienação fiduciária já é um grande sucesso a sua execução extrajudicial. Também é muito utilizada a usucapião extrajudicial para a titulação de pessoas que exercem posse durante anos a fio. E também é possível a rescisão extrajudicial do compromisso de compra e venda, no âmbito dos loteamentos de imóveis urbanos (art. 32, §1º, lei 6.766/1979). Todavia, o art. 251-A da Lei 6.015/73 é uma novidade que deve ser festejada, pois admite a rescisão do contrato registrado, sem a necessidade se recorrer ao poder judiciário, não apenas nos casos de loteamentos, mas em todos os casos de promessa de venda de imóveis cujas prestações não sejam pagas. Hoje, quando alguém quer vender um imóvel com o pagamento em parcelas, normalmente estabelece uma cláusula de "condição resolutiva", que o poder judiciário tem predominantemente entendido que ainda assim requer uma ação para obter a rescisão. Outra opção é garantir essa dívida com a alienação fiduciária, que exige a realização de leilões antes que o credor possa ficar com o bem. Porém, agora é possível que o contrato de promessa de vendaregistrado na matrícula do imóvel seja rescindido e o seu registro cancelado, em caso de não pagamento das prestações, tudo isso rapidamente e sem necessidade de se mover uma ação judicial. A nova disposição legal permite que o prejudicado com a falta de pagamento requeira ao oficial do registro de imóveis que intime o devedor para que, em 30 dias, coloque os pagamentos em dia com todos os seus acessórios, diretamente no cartório. Se o pagamento for feito, o valor é logo repassado ao credor, o contrato fica mantido e tudo seguirá normalmente. Mas, se nesse prazo a dívida não for paga, o contrato será considerado rescindido e o seu registro será definitivamente cancelado em seguida. Observe-se que, em poucas semanas, é possível a solução extrajudicial dessa pendência, que geralmente onera quem aliena seu imóvel, talvez seu único bem, mas não consegue receber o que lhe é devido. Outro ponto que merece destaque á que a certidão de cancelamento do registro da compra e venda é prova suficiente para que se requeira, até mesmo liminarmente, a reintegração de posse do imóvel, esta sim, em processo judicial. Com essa mudança, que valoriza a boa-fé que deve ter nos contratos, pensamos que é mais vantajoso para quem vende um imóvel com pagamento parcelado utilizar-se de uma promessa de venda e seu registro na matrícula, do que a compra e venda com condição resolutiva. A primeira opção permite desfazimento rápido, em caso de falta de pagamento, sem intervenção judicial. Já em relação à segunda (art. 474 do Código Civil) predomina o entendimento de que é preciso recorrer à justiça para desfazer o negócio, arrostando o interessado a lentidão e a imprevisibilidade da decisão definitiva. É verdade que há um precedente do Superior Tribunal de Justiça, da 4ª Turma, no julgamento do Recurso Especial 620.787, Rel. ministro Marco Buzzi, considerando que nas vendas com condição resolutiva também não é necessária a desconstituição judicial do negócio. Mas, ante a dúvida de qual será o entendimento da justiça a respeito da condição resolutiva, melhor contar com a certeza da inovação legal, que permite a rescisão de toda e qualquer promessa de compra e venda em que não são feitos os pagamentos, desde que tenha sido o devedor constituído em mora e tido oportunidade para colocar em dia os pagamentos. É importante dizer que, apesar da inovação legal ser recente, ela pode ser utilizada desde já até mesmo para os contratos celebrados anteriormente e não apenas para os que forem feitos a partir de agora. Se algum adquirente que tiver o negócio desfeito dessa nova forma considerar que tem algum direito, como a devolução de parte do valor que pagou, poderá discutir em juízo, mas sem que isso impeça a rescisão do contrato e a imediata retomada do bem pelo proprietário. Assim, os direitos de ambos os contratantes são plenamente respeitados. Com essa inovação legal, fica reforçado o princípio de que os contratos devem ser cumpridos como foram previstos, sem que a pessoa possa protelar a solução da falta de pagamento. Isso favorece o ambiente dos negócios, reforça a responsabilidade de quem contrata e protege as pessoas que são cumpridoras de seus deveres. É mais uma injeção a revigorar a combalida economia tupiniquim. Por fim, embora o compromisso de compra e venda possa ser feito por instrumento particular, preferencialmente com a assistência de um advogado, recomenda-se o uso da forma mais segura e solene da escritura pública, com a assistência jurídica imparcial de um tabelião, que em algumas unidades da Federação têm custas com descontos para esses casos em que a forma pública é opcional. Resta agora que as pessoas com melhor orientação jurídica utilizem mais o compromisso de compra e venda do que a venda com condição resolutiva. Com aquele contrato, se as prestações forem pagas e o dono não quiser outorgar a escritura, há para o prejudicado a adjudicação compulsória extrajudicial. Se, ao contrário, as prestações não forem pagas, poderá o prejudicado obter a rápida rescisão extrajudicial com o cancelamento do registro, de forma segura, rápida, barata e eficaz.
Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, trago à consideração dos nossos leitores um caso muito interessante de curioso monumento paleográfico de extração notarial. Grosso modo, a palavra paleografia se origina de paleo (antigo) + grafia (escrito) e significa simplesmente "qualquer forma antiga de escrita, tanto em documentos como em inscrições", como registra Houaiss. Os antigos protocolos notariais eram lavrados a mão. Os tabeliães e seus escreventes manuscreviam os atos com canetas-tinteiro numa cifra que hoje nos parece tão longínqua quanto os escritos notariais medievais. São escritos vazados numa caligrafia que se diversificou ao longo dos séculos, não raro com adendos, interpolações, coisas que ocorriam naturalmente numa época em que as retificações de meros erros representavam um problema técnico de difícil solução. Eis que nos foi apresentada a registro certidão extraída, em forma reprográfica, diretamente do protocolo notarial manuscrito. O título foi recepcionado e protocolado na Serventia e a pretensão foi obstada pelo seguinte: Escritura de compra e venda ilegível. Prejudicado o exame do título. Necessária a apresentação da escritura lavrada em 1949, pelo Tabelião de Notas desta Capital, [...] em forma legível e integral, sem emendas ou rasuras, em atendimento ao princípio da segurança jurídica e eficácia dos atos registrais (art. 1º da lei 8.935/94). O interessado pugnou pelo registro aduzindo as razões que se acham expressas nos autos. Observações preliminares O título achava-se protocolado e a prenotação em vigor. Embora o título estivesse prenotado, o seu conteúdo não fora apreciado, de modo que a sua registrabilidade se achava pendente de qualificação. Nos cingimos, então, a responder à provocação do interessado. E elas foram formuladas por ele alternativamente: a) Determinação para que o Notário que expeça certidão da escritura "de forma legível,  constando todos os dados da escritura manuscrita, no prazo máximo de 5 (cinco) dias". b) Não entendendo o Juízo cabível o requerimento da alínea "a", o interessado "requer desde já Ofício ao 5° Registro de Imóveis para que seja realizado a regularização com a documentação pertinente e já entregue em respeito ao princípio da continuidade registrária" [...] devido a não disponibilização da escritura pelo 08 Registro de Notas".  A questão foi posto sob a apreciação de duas corregedorias permanentes - a dos ofícios de notas (ilustre 2ª Vara de Registros Públicos) e a dos ofícios registrais (respeitável 1ª Vara de Registros Públicos. Traslado, certidão e a moderna reprografia Traslado é o instrumento mais comum e tradicional que os Registros Imobiliários recebem diuturnamente. É o "duplo do que o oficial pôs nas suas notas: passa-se para outro papel, traslada-se, aquilo a que se deu forma pública", segundo Pontes de Miranda1. Já certidão é uma declaração do notário, dotada de fé pública, de que enuncia o que consta de suas notas. O mesmo Pontes de Miranda fará a distinção: "Enquanto o traslado é cópia e tem a eficácia de cópia, de duplo, a certidão é declaração do oficial público de que o que ele enuncia, ou transcreve, consta das suas notas, ou dos autos. A responsabilidade do oficial público, no traslado, é a de quem afirma a fidelidade da cópia; na certidão, é a de quem empenha a afirmação de fidelidade do que reproduz, pela certeza que assegura. O conteúdo do traslado é o que foi copiado: o conteúdo da certidão é o fato que se certifica. Se o oficial público certifica de inteiro teor, traslada, mas acrescenta que certifica; se o oficial público somente traslada, apenas afirma a fidelidade da cópia. Se ao oficial público se pede o traslado da escritura, não mais pode fazer que copiá-la, duplicá-la; se ao oficial público se pede a certidão sem ser de inteiro teor, o oficial público apenas diz que aquilo de que se trata consta, ou não consta, ou que ocorreu, ou não ocorreu". Tradicionalmente, as certidões dos livros notariais resumiam-se a dois tipos: integrais, isto é transcrição verbo ad verbum do ato notarial lavrado nas notas, e parcial, positiva ou negativa, relativas a destaques rogados pelo interessado[2]. Com o advento de novas tecnologias reprográficas, as certidões em forma reprográfica ganharam destaque. O decreto-lei 2.148/40 previu: "Art. 2º As certidões de inteiro teor, bem como as públicas-formas de qualquer natureza podem ser extraídas por meio de reprodução fotostática, devendo as cópias conter, para possuírem valor probante em juízo ou fora dele, a autenticação da autoridade competente, que certificará, em declaração expressa, se acharem iguais ao original". Embora o referido decreto-lei dispusesse de forma ampla acerca da utilização da certidão reprográfica, emprestando-lhe o mesmo valor probante em juízo ou fora dele, a sua aceitação foi posta em questão. GILBERTO VALENTE DA SILVA, em decisão proferida ainda quando se achava à frente da 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo, decidiu que a certidão em forma reprográfica "não poderia ser aceita, porque a lei de registros públicos, que lhe é posterior, não contempla cópia reprográfica como título hábil a ser registrado"3. De fato, o inc. I do art. 221 da LRP prevê unicamente o registro de "escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros". Entretanto, Afrânio de Carvalho já propunha, nos alvores da nova lei, exegese ampliativa do dispositivo legal contido na LRP vigente. Diz que são admitidas as escrituras públicas, "lavradas em livros de tabeliães e transladadas ou certificadas em avulso para o fim do registro"4. A doutrina foi recolhida pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo que disciplinou a matéria no processo CG 17.848/96. Aprovando excelente parecer do magistrado Francisco Eduardo Loureiro, fixou o entendimento de que se admite "a expedição de certidões pelo meio reprográfico que abrange a fotocópia, a xerocópia, a microfilmagem e a computação, entre outros"5. Atualmente, as certidões podem ser expedidas em vários modos - inclusive "sob a forma de documento eletrônico, em PDF/A, ou como informação estruturada em XML (eXtensible Markup Language), assinados com Certificado Digital ICP-Brasil" (NSCGJSP item 198 do CAP. XVI). As mesmas NSCGJSP assim dispõe sobre o tema: 148. Os traslados e certidões serão impressos em papel de segurança, facultada a reprodução por mecanismos que não dificultem a visualização e a leitura do documento. 148.1. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo Tabelião de Notas ou seu substituto legal. A faculdade de se expedir certidões utilizando-se de instrumentos tecnológicos "que não dificultem a visualização e a leitura do documento", será comentada logo abaixo. Atos notariais manuscritos O caso enfrentado apresentava um certo grau de dificuldade. Tratava-se de ato notarial lavrado no longínquo ano de 1949 de forma manuscrita. Há um elevado grau de dificuldade para a leitura e perfeita compreensão do inteiro teor da peça apresentada ao Registro. É preciso treino e perícia na interpretação segura de peças tabeliônicas paleográficas. Não é razoável que se expeça uma certidão que representa grau elevado de dificuldade de legibilidade e interpretação para qualquer interessado. Antes de servir ao Registro de Imóveis, a certidão deve servir aos próprios interessados. O registro de imóveis igualmente mantém livros manuscritos e muitos deles revelam atos que ainda produzem efeitos jurídicos, relativos a imóveis que ainda não realizaram o début no sistema da matrícula da Lei 6.015/1973. E nem por isso os registradores expedem cópias reprográficas de seus livros, mas produzem certidões das transcrições e inscrições, poupando aos interessados e destinatários da publicidade registral o árduo trabalho interpretativo. As certidões devem revelar clareza e segurança. Vicente de Abreu Amadei, em precedente da CGJSP, já deixava claro que "somente se pode admitir a forma reprográfica da certidão, quando for possível observar os pressupostos da clareza da redação escrita e da segurança jurídica, que informam o direito registral"6. É certo que tratava de certidões de registro de imóveis, mas a advertência é procedente. Conclusão O tabelião tem em mãos a fonte primária da informação. Acha-se à sua disposição o próprio livro de notas, fonte original de onde se deve extrair a certidão. Com o livro diante de si, pode cotejar, apreciar as entrelinhas (que as há naquele ato notarial), decifrar as passagens mais obscuras e difíceis. Pode até mesmo utilizar como guia o traslado que o próprio interessado disponibilizou e que se achava acostado nos autos. Aliás, a forma de expedição da certidão, como se sugeriu, era justamente a prática adotada por aquele mesmo tabelionato. Podia-se contemplar às fls. dos autos uma certidão extraída do mesmo livro - X, fls. Y - relativa ao mesmo ato notarial que os interessados agora pretendiam, passados 73 anos da sua celebração, apresentar a registro. A expedição de certidão clara e segura representa um múnus de todo aquele que lida com fontes de informação vazada em formas diversificadas de grafia e expressão. Colocamo-nos à disposição dos interessados para tentar interpretar a peça, cientes de que será uma espécie de "certidão de certidão", como referiu PONTES DE MIRANDA (loc. cit.), com eventual risco no processo de transliteração. Addendum Às fls. 49/97 a parte interessada, em breve síntese, informou ao Juízo que apresentou a escritura ao 5º RI, e que, em virtude da demora da entrega da certidão do traslado pelo 9º Tabelionato de Notas, as certidões de propriedade das circunscrições anteriores acabaram vencendo o prazo de validade, ocasionando-lhe prejuízos. Por essa razão, requereram que se determinasse ao Registro que aceitasse as certidões emitidas e já entregues anteriormente. Andamento do título É preciso remontar o andamento do título no cartório para compreender o processo: 1) Prenotação X de 21/2/22. Examinado, o título foi posto em exigência em virtude de sua ilegibilidade (fls. 69). Status: Prenotação cancelada em virtude de não cumprimento das exigências. 2) Prenotação Y de 6/4/22. O prazo de vencimento foi tornado indeterminado em razão do pedido de providências. Em data de 26/5/22, nos seria entregue, pessoalmente, a certidão do traslado da escritura - informação prestada nos autos. Status: Em vigor. Nas duas ocasiões em que o título foi apresentado a registro, as certidões e demais documentos juntados aos autos não foram apresentados. Portanto, até aquele presente momento o título não fora formalmente examinado. Calham, entretanto, algumas observações. Certidões acostadas nos autos - fls. 59/62 Compulsando o processo, vê-se às fls. 60 a certidão da Transcrição X, de 19/11/1909, expedida em 15/2/12 pelo 1º RI, de propriedade de JOF, domiciliado nesta capital, proprietário. Às fls. 59, 61 e 62 referem-se às certidões negativas das demais circunscrições. Rezam as NSCGJSP no item 54, Capítulo XX: 54. A matrícula será aberta com os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior. Se este tiver sido efetuado em outra circunscrição, deverá ser apresentada certidão expedida há no máximo 30 (trinta) dias pelo respectivo cartório, a qual ficará arquivada, de forma a permitir fácil localização. Esta é a razão pela qual a atualização das certidões é exigida. Qualificação em estado de suspensão O título foi apresentado sem as certidões e demais documentos acostados às fls. dos autos - especialmente documentos pessoais e da administração pública municipal. Os documentos (ou parte deles) foram apresentados perante o Juízo - possivelmente em atenção às exigências de fls. 67-68 dos autos. Tão logo apresentada a certidão extraída das Notas, o cartório entrou em contato telefônico com os interessados, solicitando fossem apresentadas as ditas certidões atualizadas e demais documentos atualizados e autenticados para que o título fosse afinal examinado. Todavia os interessados postularam diretamente perante o Juízo a dispensa (fls. 49-50), in verbis: "Dessa maneira, requer que o 5ª tabelião de notas dessa Capital [SIC] aceite as certidões emitidas e já entregues anteriormente para o regular andamento das averbações na matricula do imóvel". Entretanto, os títulos e documentos acessórios devem ser apresentados ao registrador, a quem incumbe, originariamente, qualificar e imperar o registro - ou a sua denegação. Somente a partir daí se pode impugnar legitimamente as razões de eventual denegação de registro, deduzindo sua pretensão perante o R. Juízo competente, nos termos do art. 198 da LRP. Não tendo sido apresentadas as certidões, acompanhadas dos documentos anexados aos autos, a qualificação ainda se acha na dependência de tais providências - fato já informado a Vossa Excelência na manifestação de fls. 45. Para não deixar passar a oportunidade, consigno que já se vislumbram alguns problemas. Na transcrição X do 1º RISP (fls. 60), por exemplo, a qualificação do proprietário se revela muito precária, o nome é muito comum. Será necessário investigar (e comprovar) tratar-se da mesma pessoa que comparece na escritura doando o imóvel (fls. 51/58). Afinal, o título dormitou nas gavetas do interessado por longos 70 anos. Seja como for, superada a questão central - apresentação do título de forma legível - aguardamos a apresentação dos documentos acessórios para a submissão do título ao processo de exame e cálculo, nos termos do art. 12 da LRP. Conclusão O pedido de providências foi julgado improcedente. As razões podem ser apreciadas na r. decisão da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo: RECLAMAÇÃO - QUALIFICAÇÃO REGISTRAL. NOTA DEVOLUTIVA - EXIGÊNCIAS. TÍTULO MANUSCRITO - ILEGIBILIDADE. CERTIDÃO - PRAZO DE VALIDADE. TRASLADO. CERTIDÃO. CÓPIA REPROGRÁFICA. PP 0018212-94.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 18/7/2022, Dje 20/7/2022, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui. _____ 1 PONTES DE MIRANDA. Tratado. São Paulo: RT, 1983, T. III, p.429-430, § 350. 2 RIBEIRO. Zeferino. I Tabelionato. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 22. VASCONCELOS. Julenildo Nunes. XRUZ. Antônio Augusto Rodrigues. Direito Notarial - teoria e prática. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 70, n. 4. 3  Processo 54/1979, j. 28/11/1979, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis, 3ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1982, p. 278-9. 5 Processo CG 17.848/1996, São Bernardo do Campo, decisão de 6/2/1997, DJ 14/2/97, Des. Márcio Martins Bonilha. Disponível aqui. 6 Processo CGF 23/1992, Novo Horizonte parecer de 6/2/1992, Dr. Vicente de Abreu Amadei. Disponível aqui.
Este artigo tem objetivo tratar o tema publicidade registral imobiliária, como informação. Não se tratará da publicidade comercial, porém o leitor terá uma breve noção do assunto. Pode-se definir concisamente a publicidade como uma tentativa de influenciar o comportamento usando meios especiais de comunicação. Daí a importância de se estudar o conteúdo da informação como forma publicística, comunicativa. As clássicas três dimensões dos direitos fundamentais, liberdade, igualdade e fraternidade, conhecidas e amplamente estudadas são ampliadas para novas dimensões, uma quarta1 onde novos direitos como biotecnologia, bioética seriam incluídos como direitos fundamentais, uma quinta2 englobaria como novos direitos os de acesso à tecnologia de informação, ciberespaço, e neste ponto incluir-se-ia a publicidade, entre outros direitos conexos, conforme Antônio Carlos Wolkmer3, e até mesmo uma sexta dimensão, dos direitos fundamentais, que corresponderia à democracia, à liberdade de informação, ao direito de informação e ao pluralismo político.4  Estes direitos são pontuados apenas para fins didáticos, como novos direitos. O objeto deste estudo será a comunicação no que concerne os direitos reais imobiliários no Brasil e o que exsurge desta, a publicidade registral imobiliária (e até mesmo de outras especialidades registrais e notarial) por seus diferentes meios. Uma brevíssima análise sobre o tema, se iniciaria pelo trabalho de Shannon e Weaver, mas não poderíamos neste espaço descrevê-lo a contento, porém num salto temporal, a comunicação será vista pela teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann5. 1.  Publicidade. Aspectos Gerais A palavra "publicidade" normalmente é entendida como publicidade comercial. Entretanto, a publicidade jurídica é que interessa neste texto. Ambas têm sentidos próximos, ou seja, a publicidade comercial e a jurídica, porém não são coincidentes6 e muito afastados em sua teleologia, pois enquanto na publicidade comercial existe liberdade artística e criativa, a publicidade legal ou jurídica é formal. A professora Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias em sua obra Publicidade e Direito, leciona que: "A palavra 'publicidade' está ligada ao termo latino publicus, mas, distante da conhecida dicotomia entre publicus/privatus, tão própria do direito público para diferenciar as coisas do Estado daquelas do particular, ela deve ser entendida muito mais no sentido de propagação geral de algo; como 'levar a todos', 'tornar de conhecimento geral'".7 Este conceito, de efeitos essencialmente publicitários é, sem dúvida, de enorme alcance económico e social. É, no entanto, de pouca relevância para a nossa investigação, que se centrará nos aspectos jurídicos da publicidade registral imobiliária. A publicidade jurídica, restritamente, é o mecanismo a partir do qual permite exteriorizar uma situação jurídica de modo a dar-lhe conhecimento geral, erga omnes, diante da oponibilidade afirmada em lei8. A publicidade jurídica ou legal, portanto, tem escopo de afirmar situações que envolvam segurança jurídica. 2.    Publicidade Jurídica. Pela narrativa anteriormente apresentada, percebe-se que existe tanto interesse individual quanto interesse público sobre a publicidade comercial e não seria diferente com a jurídica. O vocábulo publicidade, como termo jurídico, compreende realidades diversas, tanto no direito público quanto no direito privado, podendo ser obrigatória ou facultativa. Walter Ceneviva, há tempos, esclarece a publicidade jurídica, e com nossas homenagens trazemos breves linhas de seu pensamento: A lei reconhece a existência de atos e fatos jurídicos que devem ser conhecidos por todos ou, pelo menos, conhecíveis, sob forma de divulgação inconfundível com a propaganda comercial. A divulgação provida de autenticidade, segurança e eficácia distingue-se da destinada a divulgar fatos, serviços ou produtos de interesse privado. Publicar, enquanto serviço público, é ação de lançar, para fins de divulgação geral, ato ou fato juridicamente relevante em livro ou papel oficial, indicando o agente que neles interfira (ou os agentes que interfiram), com referência ao direito ou ao bem da vida mencionado.9 A ciência jurídica do processo, por exemplo, objetiva através de suas políticas sociais igualitárias, desobstruir os canais de acesso à justiça, quer sob a ótica social, implementando igualdade social, quer sob a ótica formalista própria do direito, com seus cânones herméticos, porém seguros. O direito à informação jurídica é um direito essencial à ordem pública. Estão vinculados a conceitos jurídicos essenciais para o exercício da democracia em uma sociedade igualitária. A Informação é o alicerce à comunicação, pois sobre seu pilar são transferidos dados de um comunicador a um receptor, que deve compreendê-los para que se configure a comunicação. A teoria da informação e da comunicação, que aprecia o mundo simbólico e o caráter reflexivo da comunicação humana é um dos principais pilares do programa teórico de Luhmann. Desde a criação do modelo de transmissão de dados (emissor-mensagem-receptor), por Shannon e Weaver10, até às questões que envolvem a "cibercomunicação", a teoria da informação tem estabelecido um marco na compreensão de sistemas sociais.11 A comunicação jurídica é um sistema neste ambiente (jurídico), conforme Luhmann explica ao longo de sua obra. Contudo, como bem arguido por Celso Fernandes Campilongo: "em que medida o direito de informação (de informar e ser informado) é conciliável com os objetivos da Justiça?" E complementa: "o direito de ser informado é compatível com a proteção da privacidade das partes processuais?12 Não respondendo diretamente, mas colaborando com o tema comunicação, elucida Tércio Sampaio Ferraz Junior13: "Comunicação é entendida (Watzlawick) como troca de mensagens no sentido de que ela ocorre quando a seletividade de uma mensagem é compreendida, isto é, pode ser usada para a seleção de outra situação sistémica. Isso implica (Luhmann):a) noção de complexidade (possibilidades comunicativas maiores que as efetiváveis);b) noção de seletividade (redução das possibilidades por mensagens efetivas);c) noção de contingência de ambos os lados, isto é, dupla contingência ou possibilidade de rejeição de ofertas de seleção comunicadas. Essas possibilidades não podem ser eliminadas como tais (ver Watzlawick). Oras, a comunicação da rejeição e a tematização da rejeição, nos sistemas sociais, é conflito. Donde todo sistema social é potencialmente conflitivo. O que muda, de sistema para sistema, é sua medida de atualização, o que varia conforme o grau de diferenciação e evolução." O tema informação, portanto, é o alicerce a comunicação e a publicidade como fim e uma noção sobre o sistema publicístico teórico é apresentado neste artigo introdutório ao tema. 2.1 Publicidade processual A publicidade dos atos e das atividades estatais é valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o, com expressa ressalva para algumas situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais (cf. art. 5º, LX, c/c art. 37, caput, c/c art. 93, IX e X todos da CF/8814 e exemplificando, na legislação infraconstitucional, art. 16 e ss da lei de registros públicos, art. 8º do CPC, art. 792 do CPP, entre outros). Portanto, todos os atos processuais provenientes dos órgãos do Poder Judiciário deverão ser públicos, tanto os administrativos, quanto os judiciais (com a ressalva das situações excepcionadas pelo próprio texto constitucional que, em certos casos, admite que a lei imponha limites à garantia de publicidade).15 Ensina Fredie Didier Júnior que o direito fundamental a um processo público "visa permitir o controle da opinião pública sobre os serviços da justiça, máxime sobre o poder de que foi investido o órgão jurisdicional"16. Para Humberto Theodoro Júnior, mais do que o interesse privado defendido pelos litigantes, está presente um interesse público na "garantia da paz e harmonia social, procurada através da manutenção da ordem jurídica", portanto, necessária se fazer público, cada traço do procedimento judicial e mesmo os extrajudiciais, razão pela qual todos, e não apenas os participantes da demanda ou do procedimento, têm direito de conhecer e acompanhar os trâmites processuais e extrajudiciais17. Desta feita, os três poderes estatais devem publicizar sua atuação, e mais ainda o poder judiciário, pois a transparência é própria dos princípios democráticos (salvo exceções legais). Diz-se, então, que publicidade e transparência, têm relação biunívoca nos conjuntos específicos de bens jurídicos. O poder judiciário, dentro desta esfera maior, igualmente deve ser transparente. Os magistrados e membros do ministério público, são pessoas concursadas e aptas a exercer parcela do poder estatal, devem igualmente prestar contas de suas atribuições jurisdicionais e administrativas. Registradores e notários, igualmente, dentro de suas funções com as pouquíssimas exceções que guardam sigilo. Magistrados, invariavelmente, publicizarão suas decisões e estas terão acesso a todos (salvo exceções previstas legalmente como segredo de justiça). Darão conhecimento de seu modo de proceder, e o porquê das decisões, referente as questões submetidas a sua análise. A garantia da publicidade processual está associada à exigência de controle democrático dos atos judiciais. Portanto, a prestação de contas à sociedade é condição sine qua non para efetivar a publicidade exercida pelos membros do poder judiciário e do ministério público. Este artigo não se estenderá mais ao tema, publicidade processual, pois o trouxe apenas como breve noção da questão publicística. A questão publicista procedimental extrajudicial, notarial e registral imobiliária será vista nos próximos tópicos. 2.2 Publicidade Notarial O princípio da publicidade tem por objetivo dar transparência a atividade notarial e de registro. A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.18 A sociedade e o indivíduo devem estar sempre informados, ou dados colocados à disposição, para exercerem livremente as liberdades e garantias públicas. A função notarial é pública. outorgada pelo Estado, conforme artigo 236 da atual Constituição Federal, porém exercida em caráter privado. No escopo de dar transparência e cognição aos seus atos, há nítido interesse de toda a coletividade. Note que a publicidade notarial está ligada à transparência total dos atos emanados pelo tabelião, ou seja, qualquer um poderá ter acesso aos mesmos através da expedição de certidões.19 A lei de registros públicos (lei 6.015/73) enfatiza a ampla publicidade no Brasil e informa a desnecessidade do solicitante informar o motivo ou o interesse no pedido de qualquer certidão. Leticia Franco Maculan Assumpção arremata o tema de forma precisa: Conforme previsão legal, a publicidade é vetor axiológico aplicável aos Serviços Extrajudiciais. Nesses termos, deve o Oficial ou o Tabelião fornecer certidões, mediante solicitação, que não precisa ser motivada. A publicidade da função notarial é substrato do princípio da publicidade administrativa, previsto no art. 5º, inc. XXXIII, da CF/88, postulado que estabelece o direito de todos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Assim, em regra, deve o Oficial ou o Tabelião portar-se como um facilitador dessa informação ao usuário do serviço. Todavia, a publicidade, como princípio, não se aplica de forma absoluta, devendo ceder espaço à aplicação de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88), o direito à privacidade (art. 5º, X e LX, da CR/88) ou o interesse social exigir (art. 5º, LX, da CR/88). É a chamada técnica de ponderação.20 Carolina Noura de Moraes Rego bem define os motivos da obrigação de a respeitar: "A dignidade da pessoa humana é uma qualidade inseparável e constitutiva de cada ser humano, que, por isso, deve ser respeitada e levada em consideração por parte do Estado e da sociedade".21 Vê-se que a ampla publicidade encontra limites razoáveis, sempre no condão de preservar a dignidade da pessoa humana.22 2.3 Publicidade registral A lei de registros públicos, lei 6.015/73, representou um marco histórico no sistema publicista pátrio. Baseou-se no sistema de fólio real, ou seja, baseado na "folha da coisa", no imóvel. En passant, com a inauguração do atual sistema jurídico de registro de direitos, os direitos reais estão alicerçados na matrícula imobiliária.23 Salienta-se ab initio que o Sistema Registral Imobiliário Brasileiro tem como base sólida a publicidade imobiliária, pois sobre o valor fundante da mesma ergue-se o pilar sobre o qual se assenta a veracidade das informações registradas no fólio real. É a publicidade, portanto, suporte para a "Fé Pública Registral". Por meio da publicidade, como uma base sólida, alicerça-se o ambiente que contém o subconjunto do sistema publicista registral e neste sistema (conforme aplicação direta da teoria luhmanniana), assentam-se princípios que norteiam a segurança jurídica registral imobiliária, como os princípios da unitariedade da matrícula, da inscrição, da prioridade, da legalidade, da especialidade (objetiva e subjetiva), da continuidade, da constitutividade, da disponibilidade, da fé pública, dentre outros. Outro aspecto a ser analisado brevemente neste item, refere-se a "Fé Pública Registral". Esta somente tomou contornos eficazes em nossa legislação registral, a partir da lei 13.097/15 em seus arts. 54 e seguintes, sendo introduzida recentemente de forma inequívoca no ordenamento pátrio, ao contrário de países como a Alemanha e Espanha, historicamente já a utilizam. A segurança da titularidade da propriedade imobiliária passa pela confiança da população no que está inscrito em cada certidão de matrícula, quer física ou eletrônica, impressa ou simplesmente visualizada. Está aí o fascínio por este estudo. Repetir apenas textos legais ou doutrina repisadas sobre o tema, não traria uma contribuição efetiva. Corroborando com o tema e estudo, Marcelo Saraloli de Oliveira, em seu livro Publicidade Registral Imobiliária, contribui ao longo do mesmo de forma clara e apenas para extrair um trecho, o autor cita Salvatore Pugliatti que se opta para trazer a este texto: "publicidade é o conjunto de mecanismos predispostos pelo ordenamento jurídico, a fim de tornar possível a todos aqueles que desejarem, com muita facilidade e suficiente certeza, o conhecimento de atos jurídicos". Para gerar efeitos jurídicos, a publicidade tem como escopo dar conhecimento jurídico a uma determinada situação que, com seu registro gere mudança no mundo jurídico, pois só são eficazes situações jurídicas conhecidas, quer por sentenças judiciais, registros públicos, ou mesmo meros cadastros públicos24. Estes "conjuntos de mecanismos" citado por Pugliatti, são bem compreendidos dentro da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, como se verá pequeno excerto a seguir. 2.4  Aspectos da teoria de Niklas Luhmann aplicados a comunicação Luhmann teoriza em sua obra "Teoria dos Sistemas Sociais" que a comunicação tem o papel de regular as relações entre o sistema e o ambiente.  (Trecho que o autor traz em inúmeros textos). Traz a ideia de transferência de informação e afirma que há, ou haverá, interferência na mensagem emitida pelo emissor até chegar ao receptor. O receptor, via de regra, não recebe uma informação da mesma maneira que é emitida. Shannon e Weaver estudaram o aperfeiçoamento matemático desta ideia, porém Luhmann desmistifica a noção matemática daqueles, centrando seu trabalho na comunicação, opondo-se radicalmente ao modelo linear sequencial de "emissor-mensagem-receptor". No processo de comunicação, essa informação é multiplicada. Ele aplica esse erro ao excesso de ontologia, ao supor que a informação propagada é a mesma adquirida. Em 1994, Luhmann apresentou uma exposição sobre a realidade dos meios de comunicação. Num primeiro momento de sua elaboração teórica, o projeto epistemológico de Luhmann consistia em uma proposta antirreducionista e levava em conta o indeterminismo dos fenômenos sociais complexos.25 Sua teoria levava em consideração a contraposição à tendência nomológica-dedutiva que tendia à adoção de leis universais para se explicar os fenômenos sociais e às filosofias sociais que possuíam uma orientação normativa e uma inspiração humanística26. A Título de Futuras Discussões A distinção sistema/ambiente que Luhmann descreve ao longo de sua obra é tema central e fundamental, porque utilizada para explicar tudo entre o que pertence ao sistema (inerente ao sistema publicista) e ao ambiente (tudo que externo ao sistema publicista, porém o contendo), e por dedução lógica deste autor, pode-se aplicar dentro do próprio sistema registral imobiliário ou mesmo em outros sistemas de registros públicos. Para Luhmann, sociedade é a sociedade global, isto é, todos seres humanos que a compõem. Porém, sem comunicação não haveria sociedade. A comunicação, para Luhmann, circula de várias formas, ou seja, dentro do ambiente comunicação. Porém há vários sistemas, como o econômico, o jurídico, o religioso etc.,27 que influenciarão o sistema registral publicista. O estudo que Niklas Luhmann faz sobre sua teoria dos sistemas sociais, abordando a comunicação foi trazido a este artigo. Objetivou-se contribuir com o tema "publicidade registral imobiliária" que para a maioria dos juristas é tido como hermético, obscuro, afeto apenas a uma categoria de juristas, ou seja, registradores e notários. O que se espera da publicidade imobiliária é a que se abram novos caminhos, e o sistema registral encontre soluções que a sociedade aceite e use de forma simples e sem sentir que, até mesmo, a está usando. Que o processo seja natural. A tecnologia atual e, futuramente mais ainda, será orientativa para cortar caminhos, otimizar gastos, tempo28 sem descuidar da publicidade registral imobiliária, alma mater da segurança jurídica imobiliária. Este autor pretende dar continuidade aos estudos sobre o tema "informação-comunicação-publicidade". Incluir-se-á neste estudo, Habermas, Bauman e outros autores para formar a base científica da "informação interna, externa e forma de sua publicização". _____ 1 São os "novos" direitos referentes à biotecnologia, a bioética e a regulação da engenharia genética. Trata dos direitos específicos que tem vinculação direta com a vida humana, como a reprodução humana assistida (inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intra-uterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética ("clonagem"), contracepção e outros. 2 Antônio Carlos Wolkmer citando Luís Carlos Olivo: São os "novos" direitos advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral. A passagem do século XX para o novo milênio reflete uma transição paradigmática da sociedade industrial para a sociedade da era virtual. É extraordinário o impacto do desenvolvimento da cibernética, das redes de computadores, do comércio eletrônico, das possibilidades da inteligência artificial e da vertiginosa difusão da internet sobre o campo do Direito, sobre a sociedade mundial e sobre os bens culturais do potencial massificador do espaço digital. Observa Luís Carlos C. de Olivo que as mudanças substantivas confirmam que estamos na Era Digital, um novo período histórico não mais, baseado em bits, mas em Momos ou em coisas corpóreas. Esta e, então, a época do computador, do celular, do conhecimento, da informação, da realidade virtual, do ciberespaço, do silício, dos chips e microchips, da inteligência artificial, das conexões via cabo, satélite ou radio, da Internet e da intranet, enfim, da arquitetura em rede". OLIVO, Luís Carlos Cancellier de. Aspectos jurídicos do comercio eletrônico. In: ROVER, Aires Jose (Org.). Direito, sociedade e informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. p. 60. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos "novos" direitos. in: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/viewFile/593/454. Acesso em 29 de mai de 2022, p. 134. 3 Ibid, p. 133. 4 BULOS. Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pgs. 529-530. 5 Niklas Luhmann é considerado o sociólogo mais importante e influente da Alemanha na segunda metade do século XX. Ao lado de Talcott Parsons, ele é chamado de fundador da teoria dos sistemas. Desde o início de sua carreira acadêmica no início dos anos 1960, Luhmann publicou uma quantidade espantosa de artigos e livros ano após ano. No momento de sua morte, sua lista de publicações compreendia mais de 550 artigos e 50 livros, todos surgidos do laboratório de teoria de Luhmann. Ele foi um dos mais destacados sociólogos do século XX e um dos últimos defensores de uma 'grande teoria' que defendeu ao longo de seus quarenta anos de trabalho acadêmico. 6 Apesar de não ser termo polissêmico, que representa um conjunto de sentidos diferentes, mas guardam relação entre si tendo conjunto semântico análogo, o termo publicidade também não é ambíguo, pois refere-se a uma mesma situação genérica, ou seja, tornar público algo. 7 DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 25 8 RODRIGUES, Marcelo. Tratado de registros públicos e direito notarial. Atlas, 2013, VitalBook file. Disponível aqui, p. 265. Acesso restrito à universidade. Em 20 de mai de 2022. 9 CENEVIVA, Walter, Ata notarial e os cuidados que exige. In: Ata notarial. MORAES E SILVA NETO, Amaro et al. Coord. Leonardo Brandelli. Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil: S.A. Fabris, 2004, p. 26. 10 "O problema fundamental da comunicação é o de reproduzir em um ponto dado, exatamente ou aproximadamente, uma mensagem selecionada em um outro ponto", afirmou o engenheiro matemático Claude Shannon, em um artigo publicado em 1948. Shannon e Weaver buscaram uma resposta para esse problema e desenvolveram um novo ramo da matemática: A Teoria da Informação. 11 STOCKINGER Gottfried. Para uma teoria sociológica da comunicação. Publicação eletrônica: Facom/UFBa 2001. in: https://www.facom.ufba.br/Pos/gottfried.pdf Acesso em 20 de mai de 2022. 12 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p 159. 13 FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões Sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas. 2002. p. 37 14 "A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" e "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação". 15 Disponível aqui.  16 DIDIER JR Fredie. Curso de Direito Processual Civil v. 1: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 56. 17 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. v. I. 50 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 52 18 PEREIRA, Fábio Zonta. Dos princípios de regência dos serviços notariais e de registro. Disponível aqui.  19 Ressalta-se que testamentos públicos lavrados por notários podem conter expressa disposição de não se fornecer certidão enquanto o testador permanecer vivo, sendo exceção única na atividade notarial a ampla publicidade. 20 ASSUMPÇÃO, Letícia Franco Maculan. Da possibilidade de restrição à publicidade de atas notariais. Disponível aqui.  21 REGO, Carolina Noura de Moraes. O direito fundamental à vida privada e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na era digital. Cadernos Jurídicos da Faculdade de Direito de Sorocaba, SP, Ano 1, n. 1 p. 49-61, 2017, p. 54. in: https://www.fadi.br/revista/index.php/cadernosjuridicos/article/view/17/9 acesso em 02 de jun de 2022. 22 Ingo Wolfgang Sarlet, neste mesmo sentido entende que "(...) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade." SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 62.  23 Apenas em breve comentário, o Registro Civil das Pessoas Naturais no Brasil tem ampla cognição, desde que não afete dados sensíveis do cidadão, como informação sobre a situação de ser filho ser adotivo, pessoa transgênero, troca de nome pela exposição ao ridículo, proteção à testemunha em situação de troca de nome. 24 OLIVEIRA, Marcelo Salaroli. Publicidade Registral Imobiliária.  São Paulo: Saraiva, 2010, p 9, in: PUGLIATTI, Salvatore. La Transcrizione. In: CICU, Antônio; MESSINEO, Francesco, (Org) Trattato de diritto civile e commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1957. v. 14, p. 180.  25 PIOVESAN, Lucas Zimmermann. A Teoria dos Sistemas de Luhmann, a Comunicação e a Incumbência Do Direito. 2018. Disponível aqui.  26 QUEIROZ, Marisse Costa de. O Direito Como Sistema Autopoiético: Contribuições Para A Sociologia Jurídica. Trabalho apresentado no Congresso Internacional DIREITO, JUSTIÇA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO - Florianópolis/agosto de 2002.Revista Seqüência, 46, jul. de 2003, p. 77-91. 27 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Thomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: RT, 2013, p. 115. 28 A otimização do tempo com relação a atos registrais é tema que pode ser iniciado pelo acesso à justiça.
Os mecanismos de identificação proporcionam uma "segurança jurídica" na formação das relações negociais e existenciais. Com o passar dos anos, tais mecanismos foram alterados, com a inserção de novas tecnologias que nos permitem, com margem de engano muito menor, identificar pessoas. São exemplos disso a identificação biométrica em diversas formas (leitura facial, íris, impressão digital, curvatura das mãos, voz), além das certificações digitais - avançada, qualificada e simples - lei 14.063/2020. O desenvolvimento e a implantação dessas tecnologias tornaram obsoletas ou pelo menos defasadas, as formas analógicas e pouco seguras de identificação. Por esse motivo, as alterações normativas que visam a facilitar ajustes registrais, sem que isso gere insegurança jurídica - pelo contrário -, acabam gerando um encadeamento eletrônico registral. O art. 109, da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), prevê a possibilidade de que o assento seja retificado, devendo o juiz ordenar a expedição de mandado específico para isso. O art. 56 da lei 6015/73 autorizava sua modificação em um prazo decadencial de 1 ano, após a pessoa atingir a maioridade. No entanto, é importante salientar que a ideia de imutabilidade do nome alterou-se sensivelmente nos últimos anos. Nessa senda, é importante analisar o tema dos direitos da personalidade com vetor axiológico constitucional do supra princípio da dignidade da pessoa humana. Para o STJ, inclusive, as exceções ao princípio da imutabilidade do nome expressas na Lei de Registros Públicos (6.015/1973) são meramente exemplificativas. É possível que o juiz determine a modificação, se entender que existe o constrangimento ou exposição ao ridículo. A análise indubitavelmente subjetiva deve ser realizada sob a perspectiva do próprio titular do nome. Em estudo do saudoso notário Zeno Veloso, no site portal do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), tivemos a oportunidade de tratar desse tema, defendendo a necessidade releitura da alteração do nome. Logo de início, é importante estabelecermos que o nome civil da pessoa natural é um direito da personalidade que deve ser analisado pelo vetor axiológico da dignidade da pessoa humana, conforme a Constituição Federal, o que causa uma releitura do princípio da sua imutabilidade. O fato é que esse princípio vem sendo corretamente mitigado. O princípio hoje deve ser considerado como da mutabilidade motivada, pois diversos julgados do STJ têm feito a relativização da imutabilidade, já é um movimento quase que unânime de mitigação desse princípio, baseado numa análise principiológica do ordenamento jurídico. Conforme destacado inicialmente, a Lei de Registros Públicos, do já distante ano de 1973, previa a possibilidade de alteração do prenome no período de um ano a partir da maioridade, sem tanta necessidade de fundamentação para essa mudança. Também existe a possibilidade de mudança em casos de filiação socioafetiva de enteado, adoção, casamento e união estável, prenome imoral ou de exposição ao ridículo, nome notório ou pseudônimo, entre outras situações. Mais recentemente, é preciso destacar o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que possibilitou a alteração de prenome e gênero sem necessidade de cirurgia, tratamento hormonal ou mesmo de judicialização. Essa releitura vem sendo desenvolvida há tempos pelo professor Anderson Schreiber no tocante aos pedidos de modificação do nome, sustentando ele que se trata de medida isonômica a possibilidade de alteração de nome em outros casos. Segundo o especialista, não é o acolhimento, mas a rejeição ao pedido de alteração que depende de motivo suficiente, sempre observando o respeito à personalidade e à autodeterminação pessoal. Estudos e artigos recentes também apontam a necessidade de legislação específica e atualizada sobre o tema. E foi exatamente o que aconteceu com a lei 14.382 de 27 de junho de 2022. Em que pese alguns afirmarem equivocadamente que há risco para a segurança jurídica na alteração do nome, não nos parece ser assim, pois é sabido que nossa Lei de Registros Públicos é de 1973. Era um momento totalmente diferente para a identificação civil e também para a tecnologia disponível. Além disso, há recurso disponível para afastar insegurança jurídica, como o Cadastro de Pessoa Física - CPF, meio eficaz de identificação da pessoa natural, o que afasta as narrativas de potenciais fraudes contra credores ou prejuízos a terceiros, ainda mais hoje em que o CPF é atribuído nos primeiros dias ou primeiras horas de vida da pessoa natural! Não é demais lembrar que a alteração legislativa só permite, em regra, uma única mudança do nome, só que agora sem limitar essa possibilidade ao primeiro ano da maioridade, quando a pessoa não raro não tem a maturidade e conhecimento necessários para isso. Agora, pode essa única mudança extrajudicial ocorrer a qualquer tempo, uma vez só, salvo decisão judicial em contrário. Portanto, com toda essa salvaguarda, é forçoso convir que a alteração não traz insegurança jurídica. Ao contrário, ela concretiza direitos fundamentais, pois todos precisamos nos reconhecer com a nossa identidade, da qual o nome faz parte, entalhando-se uma nova fase, a mutabilidade extrajudicial. Mas, caso ainda paire dúvida sobre os riscos da alteração e suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. Com efeito, aconselha-se apresentação de certidões do requerente, lembrando que o CPF continuará o mesmo, afastando hipótese de prejuízo para terceiros, deslocando mais uma importante função para os registros públicos, a verificação da identidade. Por fim, cabe prognóstico registral na medida em que a alteração pode reverberar em outros assentos registrais, após a finalização do procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico, além de observar assim as retificações, anotações e comunicações específicas em todos outros atos, para assim, evitar riscos e conflitos registrais.
O bom nome vale mais do que muita riqueza; ser estimado é melhor do que ter prata e ouro. Provérbios 22:1-9 NTLH O padrão universal e incontestável de um preceito jurídico tão arraigado na sociedade desde tempos imemoriais, faz pensar nas razões sociais que se apegam certos valores sociais. O nome da pessoa natural é um destes valores e sua imutabilidade outro. Incomodar-se com tais situações faz surgir novas perspectivas neste nosso horizonte limitado. De fato, o nome1 é o principal elemento de identificação de uma pessoa, sendo um direito inerente à personalidade2. Apesar dessa classificação, o nome é escolhido, por razões óbvias, pelos pais do registrado ou por aquele que declare seu nascimento3, e não pelo seu próprio portador. No dizer do Professor Limongi França: "O nome, de modo geral, é elemento indispensável ao próprio conhecimento, porquanto é em torno dele que a mente agrupa uma série de atributos pertinentes aos diversos indivíduos, o que permite a sua rápida caracterização e o seu relacionamento com os demais."4 É de interesse do Estado que a pessoa mantenha o nome. Disso resulta que a pessoa deva permanecer com o seu nome por toda vida, e até mesmo depois da morte, como identificador no meio social. Além disso, a regra da imutabilidade, ainda que relativa, impediria a mudança indiscriminada de nomes que prejudicaria a identificação das pessoas, mas com a significativa alteração da lei 6.015/73 (lei de registros públicos), pela lei 14.382/225, ocorreram alterações profundas nesta sistemática jurídica. Historicamente, o princípio da imutabilidade sempre andou de mãos dadas com o direito ao nome pois, já que o nome serviria para identificar a pessoa, ele deveria ser sempre o mesmo, a fim de que não se fizesse confusão e nem houvesse dúvida a respeito de seu portador. Portanto, em princípio, o nome era imutável, imutabilidade relativa que fosse, pois a mutabilidade era restrita a poucos casos. Ainda neste contexto histórico, a regra da imutabilidade do nome não estava presente no decreto 9.886, de 7 de março de 1888, que tratava dos registros públicos, e nem no Código Civil de 1916. Foi o art. 72 do decreto 18.542/28, que trouxe expressamente a regra da imutabilidade do nome (prenome) e suas primeiras exceções. Antes das alterações sofridas na lei de registros públicos pela lei 14.382/22, a alteração do nome somente seria permitida em determinados casos devidamente justificados, e as exceções à imutabilidade do nome, via de regra, deveriam ser processadas em juízo a seguir elencadas: a) Prenome ridículo do portador do nome - antigo art. 55 da lei dos registros Públicos, b) Acréscimo de apelido público e notório ao prenome -- antigo art. 58 da lei dos registros públicos; c) tradução de nome estrangeiro - arts. 43 e 44 da lei 6.815/80; d) homonímia; e) reconhecimento ou negatório da paternidade; f) proteção de vítimas e testemunhas de crimes - antigo art. 57 da lei dos registros públicos; g) adoção - art. 47, §5º da lei 12.010/09. Por conseguinte, serão a seguir estudadas as alterações e retificações que dependam da qualificação registraria, decorrentes de um juízo prudencial, dentro do procedimento extrajudicial, que para nós tem natureza jurídica de jurisdição voluntária que foram alteradas pela novel legislação alteradora da lei 6.015/73. Acompanhando os novos anseios da sociedade, a imutabilidade do nome deu espaço à mutabilidade controlada, pois tanto a lei quanto os tribunais superiores passaram a admitir várias exceções em que seria possível alterá-lo - o que faz bastante sentido, visto a qualidade de direito inerente à personalidade dada ao nome e sua íntima ligação com a dignidade da pessoa humana. O jurista argentino Adolfo Pliner já atentava para a relativização da imutabilidade do nome: "... a regla da inmutabilidad del nombre es um principio jurídico de caráter dogmático. Constituye uma regla que responde simultaneamente a la satisfaccion de interesses públicos y privados, em cuanto apunta al orden y a la seguridade jurídica, que son los fines de la norma y las razones que la hacen valiosa. Pero la regla no puede considerarse absoluta, carácter que acomoda muy raramente a las creaciones del hombre, y mucho menos em matéria de ordenamentos normativos de la conducta humana."4 Porém, esse contexto deu lugar a uma nova realidade com entrada em vigor da lei 14.382/22, o princípio da imutabilidade do nome (ou mutabilidade controlada) simplesmente deixou de existir, dando lugar a plena possibilidade de alteração do nome da pessoa sem qualquer motivo ou prova. E mais: o requerimento pode ser feito diretamente no registro civil - ou seja, não há necessidade de provimento judicial para tanto, conforme art. 56 e parágrafos da LRP7. A novidade pôs fim a uma realidade experimentada há anos pela sociedade e causou estranheza inclusive entre os registradores civis e outros profissionais da área. Porém, tendo em vista a classificação do nome como um direito da personalidade, a nova previsão é bastante acertada e se coaduna com a constitucionalização do direito, que busca, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana. Vale ressaltar que apesar da liberdade experimentada, há limite de gozo de tal direito: a pessoa pode alterar o prenome de forma imotivada e administrativa somente uma vez. Para tanto, necessário que ela tenha atingido a maioridade (art. 56, §1º, da lei 6.015/73, alterado pela lei 14.382/22). Importante atentar para a significativa alteração legislativa, pois foi suprimido o prazo decadencial de um ano após o atingimento da maioridade civil para o exercício do direito potestativo, ou seja, a partir da publicação da lei, qualquer um poderá alterar seu nome após a maioridade. A lei trouxe também novidades na composição do sobrenome da pessoa, que poderá ser alterado com mais facilidade, conforme o novo texto do art. 57 da lei 6.015/738. O sobrenome, ou patronímico, ainda tem a função de identificar a que núcleo familiar aquela pessoa pertence, porém, há agora várias formas de inserção e exclusão de sobrenomes. Se antes a pessoa casada tinha oportunidade de adquirir o sobrenome do cônjuge no momento do casamento, agora ela poderá fazê-lo a qualquer momento - e também retirá-lo, caso tenha se arrependido da alteração, mesmo durante a constância do casamento. Anteriormente, a exclusão e a inserção dos sobrenomes eram possíveis, porém dependiam de decisão judicial e, em muitos casos, de prova. Como exemplo, o STJ recentemente julgou ação em que possibilitou que uma mulher retirasse o sobrenome do marido, adquirido com o casamento, e voltasse a usar o nome de solteira, mesmo durante a constância do casamento. Para isso, ela teve de fazer provas contundentes e demonstrar prejuízo decorrente da aquisição do novo nome. Com a nova lei, tal pedido poderia ser feito diretamente no registro civil, sem maiores formalidades nem intervenção judicial ou necessidade de se constituir advogado. A mesma dificuldade se dava com a alteração de prenome. O ordenamento até passou a prever possibilidades em que a alteração seria possível de forma administrativa, como no caso do transgênero[9]. Desde a publicação do provimento 73 do CNJ, o transgênero pode alterar seu prenome para algum que se enquadre na sua designação. Porém, a possibilidade de alteração ainda não era aberta a todos. Em que pese a facilitação para a mudança de nome por transgênero, a mesma facilidade não era dada às demais pessoas. Em decisão do STJ, foi negado a uma mulher que tinha como prenome Tatiane a alteração para Tatiana (REsp 1.728.039/SC). Tal decisão não se coaduna com a natureza do direito ao nome, como dito, de direito da personalidade, pois negou seu pleno exercício pela requerente. Hoje, a Tatiane pode alterar seu nome para Tatiana sem maiores problemas, dirigindo-se diretamente ao registro civil. Em recente caso notório, o STJ permitiu a alteração de nome de uma criança que havia recebido o mesmo nome dado a uma marca de anticoncepcional (REsp 1.905.614/SP). Na ocasião, a corte entendeu que ocorreu rompimento unilateral do acordo estabelecido entre os pais da criança acerca de seu nome (os genitores combinaram outro nome; o pai foi sozinho no cartório de registro civil e escolheu nome diverso do combinado - conforme sustentou a mãe, ele escolheu como nome da criança o mesmo da marca de anticoncepcional utilizado pela mulher, como vingança pela gravidez indesejada). Hoje, tal imbróglio também poderia ser resolvido no âmbito administrativo: o novo texto do art. 55, §5º, da lei 6.015/73 prevê que pode ser apresentada, em até 15 dias, ao registro civil, "oposição fundamentada ao prenome e sobrenomes indicados pelo declarante, observado que, se houver manifestação consensual dos genitores, será realizado o procedimento de retificação administrativa do registro, mas, se não houver consenso, a oposição será encaminhada ao juiz competente para decisão." Porém, nem toda possibilidade de alteração de nome será permitida, pois, apesar de larga liberdade, a lei também trouxe algumas regras. Por exemplo: recentemente o STJ apreciou pedido de um artista para que se alterasse seu sobrenome de Brito para Britto, para haver identificação entre a forma como é conhecido e seu sobrenome real. Porém, o STJ entendeu a alteração inviável, pois tal discrepância não foi considerada motivo justificado para a almejada alteração (REsp 1.729.402/SP). Com a nova lei, também não será possível esta modificação, pois o sobrenome permanece exercendo a função de identificar um núcleo familiar. Importante frisar que é possível que se faça alteração de sobrenome administrativamente, porém, para acrescer nome de família (somente acrescer, e não retirar); incluir ou retirar nome de cônjuge durante o casamento; retirar sobrenome de ex-cônjuge; e incluir ou excluir sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação (art. 57 da lei 6.015/73). Outras situações permanecem obscuras ou sujeitas à apreciação do Judiciário. Vejamos: se houver inclusão de sobrenome em situação que houver agnome (junior, filho, neto, etc), não está claro se este será ou não suprimido. Em um caso concreto apreciado pelo STJ, a mãe havia pedido a inclusão de seu sobrenome ao do filho, e a exclusão do agnome. A corte entendeu pela não possibilidade, visto que a ausência de sobrenome materno não causa constrangimento à pessoa, além de não ser função do nome de família estreitar ligação afetiva, de modo que não havia motivo para tal alteração (REsp 1.731.091/SC). Hoje, não há mais que se apreciar justo motivo, de forma que este pedido é prontamente atendido. Porém, não está claro se o agnome será suprimido quando da inclusão de mais um sobrenome. Certo é que não haverá mais idêntica correspondência entre o nome do ascendente e do descendente, de modo que o agnome não será mais necessário. Porém, em casos concretos, é possível que este agnome já seja inerente à identificação daquela pessoa, sendo parte integrante de sua personalidade. Apesar das novidades, o legislador não revogou o art. 58 da lei 6.015/73, que dispõe que "o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios". Porém, apesar da menção expressa ao princípio da imutabilidade do nome continuar no texto, fica difícil defender sua permanência no ordenamento quando há tantas possibilidades de alteração, acessíveis a qualquer pessoa e de forma imotivada. Assim, percebe-se que a lei 14.384/22, vendida pela mídia como lei de "modernização dos cartórios", trouxe muito mais do que prever a digitalização do acervo e o atendimento online (o que, diga-se de passagem, já existiam há anos nas serventias extrajudiciais), provocando uma verdadeira revolução em um dos mais importantes direitos existenciais da pessoa. Atualmente, apesar da importância do nome, o indivíduo é identificado também por outras formas, como pelo número do CPF - este sim até hoje imutável (ou quase, pois há alteração de CPF em raríssimas situações, como é o caso da adoção de menor, em que o cancelamento do registro original é acompanhado do cancelamento do CPF, sendo cadastrado um novo, quando do novo registro de nascimento). Percebe-se, portanto, que as pessoas estão sendo cada vez mais identificadas por números e cadastros, principalmente no âmbito da vida negocial, deixando o nome relegado à identificação social do indivíduo. Assim, mesmo com a alteração, ficam devidamente identificadas e individualizadas, sem possibilidade de confusão quanto a suas identidades, ficando garantida, portanto, a segurança jurídica. As novidades vão ao encontro da busca pela desburocratização e da desjudicialização, pois se antes seria necessário a pessoa buscar o Judiciário - e às vezes até as cortes superiores - para exercer seu direito à personalidade referente ao nome, hoje ela o fará facilmente no cartório de registro civil. Por óbvio que a nova lei, no tocante à alteração de nome, necessita de regulamentação. Por isso, espera-se que o CNJ ou mesmo as corregedorias dos tribunais locais o façam por meio de provimentos, o que será bem-vindo, pois é interessante que haja padronização na exigência de documentos e certidões exigidas para o exercício do novo direito. A citação trazida inicialmente em provérbios deverá ser relida, pois apesar do nome ser o núcleo profano do versículo bíblico, o sagrado será a honradez do cidadão e isto, nem alterando o prenome, deixará de ser valorado. Assim, por mais estranhamento que possa causar, já que o operador do direito há anos está acostumado com a imutabilidade do nome, as novidades devem ser vistas com bons olhos, ao passo que aproximam cada vez mais o direito ao nome aos direitos da personalidade. Com isso, fica garantida, de forma ampla, a dignidade, e, ao mesmo tempo, resguardada a segurança jurídica, já que, apesar da alteração, o nome fica lastreado ao CPF e a outros cadastros, evitando-se, portanto, fraudes e prejuízos a terceiros. ______ 1 Conforme Limongi França, o nome, no sentido mais geral, é a expressão pela qual se identifica e distingue uma pessoa, animal ou coisa. É o gênero, do qual o nome de pessoa, conceituado por Cícero, é uma espécie" FRANÇA, Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: RT, 1958, p. 21. 2 O nome é obrigatório a todas as pessoas naturais e em qualquer ordenamento dos países do mundo, portanto, conforme Leonardo Brandelli, "... ao lado do interesse privado de identificação, tem o nome uma carga de interesse público muito grande, dado que a sociedade tem a necessidade de individuar os seus membros por questões de segurança jurídica e social. BRANDELLI, Leonardo. Nome civil da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 117. 3 Artigo 54, 4º, da Lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos. Disponível aqui. 4 FRANÇA, Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: RT, 1958, p. 22 5 Lei 14.382/2022. Disponível aqui. 6 PLINER, Adolfo. El nombre de las personas. 2ª Ed. actualizada. Ed Astrea de Alfredo Y Ricardo De Palma: Buenos Aires, 1989, p 281. 7 Art. 56. A pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.§ 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 2º A averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 3º Finalizado o procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao TSE, preferencialmente por meio eletrônico. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. (Incluído pela lei 14.382/22) 8 Art. 57. A alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial, a fim de: (Redação dada pela lei 14.382/22)I - inclusão de sobrenomes familiares;(Incluído pela lei 14.382/22)II - inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;(Incluído pela lei 14.382/22)III - exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas;(Incluído pela lei 14.382/22)IV - inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 1º Poderá, também, ser averbado, nos mesmos termos, o nome abreviado, usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional. (Incluído pela lei 6.216/75).§ 2º Os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas. (Redação dada pela lei 14.382/22)§ 3º-A O retorno ao nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira será realizado por meio da averbação da extinção de união estável em seu registro. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 7º Quando a alteração de nome for concedida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, o juiz competente determinará que haja a averbação no registro de origem de menção da existência de sentença concessiva da alteração, sem a averbação do nome alterado, que somente poderá ser procedida mediante determinação posterior, que levará em consideração a cessação da coação ou ameaça que deu causa à alteração. (Incluído pela lei 9.807/99)§ 8º O enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, poderá requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família. (Redação dada pela lei 14.382/22) 9 Note que diversos países já permitiam a alteração no nome do transgênero, o consagrando como direito há décadas, como as legislações, sueca, alemã, holandesa, italiana, de certos estados dos Estados Unidos e do Canadá. Outros países o reconhecem diretamente, como a Dinamarca, Finlândia, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Suíça, Turquia, Portugal, França, Peru Colômbia, e finalmente o Brasil, in: VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Editora RT, 2008, p. 233.
1.    A Proteção aos Idosos O envelhecimento é um fato da natureza e porque não dizer, um direito natural, personalíssimo e deve ser protegido pela família, sociedade e por fim pelo Estado, pois é condição normal, natural que toda pessoa almeja alcançar, com saúde, segurança, dignidade e afeto. A dignidade da pessoa humana, protegida constitucionalmente logo no artigo 1º inciso III da Constituição Federal Brasileira, prevê seu proeminente papel entre os fundamentos do Estado brasileiro, como um dos vetores principais da formação do Estado Brasileiro, núcleo axiológico, considerado como valor constitucional supremo. O Estado deve criar as condições para promover a proteção da dignidade da pessoa humana, principalmente com relação a crianças e idosos. Fato é que a dignidade da pessoa humana em relação aos idosos, no Brasil, é desrespeitada. Este paper discutirá apenas uma situação dos idosos, o instituto da senexão. Portando, a Constituição Federal conferindo tratamento diferenciado e prioritário aos idosos1, consagrou direitos específicos, como o benefício previdenciário2 e proteção assistencial3, além de impor à família, à sociedade, e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na sociedade, defendendo sua dignidade, e bem-estar, e garantindo-lhes o direito à vida, conforme artigo 230 da Constituição Federal. A proteção aos idosos é encarada como direito pré-existente e nem deveria ser discutido, se a solidariedade4 imperasse nas sociedades. Entretanto, analisando o fato social, isto não ocorreu no passado e não ocorre no presente, sendo papel dos estados protegê-los. O aprimoramento legislativo neste ponto, no mínimo, é um alerta social. A discussão midiática traz uma nova situação a ser debatida e conhecida. O Estado brasileiro, tardiamente, trouxe proteção aos idosos com a lei 10.741/03 - Estatuto do Idoso, que inaugurou tratamento diferenciado ao direito previamente previsto constitucionalmente. O Estatuto estabeleceu sistema de proteção integral e de absoluta prioridade ao idoso. Os artigos 3º e 4º desse diploma estabelecem tais princípios protetivos. A pessoa idosa, portanto, é detentora de direitos que devem ser protegidos e assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo poder público. Esses direitos requerem observância proporcional ao aumento da taxa de envelhecimento do Brasil, O fenômeno "abandono" das pessoas idosas pelo próprio núcleo familiar5, tem evidente aspecto negativo, tornando indispensável que as situações que os envolvam tenham direcionamento legal e não fiquem à mercê da discricionariedade dos operadores do direito, como bem explicado por Elizabeth Futami.6 O problema social revela profundo desrespeito a quem já produziu, laborou em prol da sociedade e quando ocorre alguma situação que o impeça de trabalhar com o mesmo vigor da juventude, a família, a sociedade o abandona. O Estado entrega parcela financeira mínima para seu sustento7, que por certo, serão consumidos com remédios, revelando-se injusto de toda forma. 2.    A Senexão Etimologicamente, o termo "Senexão", tem seu significado extraído da palavra de raiz latina "senex" que corresponde ao idoso. Decorre deste, os termos, "seni; senilis; senio; senior; seniores; senatus"8. Adicionando-se o prefixo "ão" que corresponde ao conceito de pertencimento, obtém-se a palavra "senexão". O termo, portanto, corresponderia, gramaticalmente, ao que pertence aos idosos, mas atualizando-o, seria mais correto, ainda que de forma introdutória, dizer sobre os direitos dos idosos. Entretanto, no contexto do Projeto de Lei, deve ser analisado como tais direitos são ali pretendidos. O tema é inédito. Muito diferente da adoção de filho, não há previsão da adoção do idoso, apesar de Projetos de Lei neste sentido, como os PL 956/19, 5475/19 e 5532/19, alterando as lei 10.741/03 - Estatuto do Idoso e lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, que teriam como previsão, a discussão a adoção de idosos. Não é objetivo discutir a adoção do idoso neste paper. Patrícia Novais Calmon traz razões para o acolhimento do novel instituto: A própria abertura semântica proporcionada pela parte final do art. 1.593 do Código Civil, ao estabelecer que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem", já viabiliza a formação de parentesco através de outras modalidades. É justamente isso que dispõe o enunciado nº 103, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (I JDC/CJF), ao consignar que a filiação pode decorrer de outras formas, como, por exemplo, a proveniente de técnicas de reprodução assistida heteróloga.9 Portanto, fundamento jurídico há. Necessidade igualmente, pois o envelhecimento populacional no mundo chegou a tal ponto que não se consegue mais negligenciar. A Organização das Nações Unidas - ONU, reconhece e recomenda que os países tratem o tema com máxima atenção10. Portanto, a conscientização da população sobre essa etapa da vida, que todos passarão, não deveria ser encarada como problema social e os governos deveriam dar mais importância a esse grupo etário. Imprescindível, por consequência, a conservação e implementação de políticas públicas de proteção ao idoso de forma conjunta à família, implementando efetivamente o art. 230 da CF/88. Fato é que a cada ano, há aumento substancial na taxa de envelhecimento da população de praticamente todos os países. Preocupante é a habitação das pessoas idosas, vítimas da própria sociedade em termos de acolhimento, conforme relatório da própria ONU, anteriormente citado. Conforme citado projeto de lei 105/20, a Senexão seria a colocação de pessoa idosa em lar substituto, sem mudança em seu estado de filiação, sendo ato irrevogável e com registro no cartório de registro de pessoas (naturais, sugerido por nós alterando o PL), em livro próprio (Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, porém o PL não mencionou a alteração da lei 6.015/73). As partes envolvidas, seriam o senectado (termo semelhante ao curatelado ou adotado), enquanto a pessoa receptora seria senector (termo semelhante ao curador). Por certo o instituto diferirá muito da adoção ou da curatela, mas se colocam estes termos apenas para comparação terminológica. Tal instituto difere da curatela11, pois estes são sempre deferidos em benefício da pessoa vulnerável, sendo registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais competente e tem aspectos majoritariamente patrimoniais. Difere igualmente da guarda, e da tutela. A guarda é uma forma de colocação do menor em família substituta consistente na prestação de assistência material, moral e educacional, à criança ou adolescente e o instituto da guarda convive com o poder familiar, destinando-se a situações peculiares, como a falta eventual dos pais ou responsáveis. Já a tutela assemelha-se a guarda no aspecto de colocação da criança ou adolescente em família substituta, porém a família natural perderá o poder familiar.12 Outro instituto análogo é o apadrinhamento afetivo de menores. O CNJ o determinou como um programa voltado para crianças e adolescentes que vivem em situação de acolhimento ou em famílias acolhedoras, com o objetivo de promover vínculos afetivos seguros e duradouros entre eles e pessoas da comunidade que se dispõem a ser padrinhos e madrinhas. Nem um destes institutos assemelham-se a senexão, porém, em todos há um núcleo comum, "o bem-estar do ser humano, preservando sua dignidade". A senexão, portanto, terá aspectos principalmente relacionados ao afeto e confiança existente entre as partes. Nossos tribunais, a exemplo do TJ/SP, ainda não estão concedendo este tipo de conexão afetiva, diferente da curatela13 e tal tema tem repercussão, pois as pessoas não entendem como não podem cuidar do idoso e ter relação afetiva, com amplo cuidado e inclusão em seus planos de saúde, apenas para citar um exemplo.14   3.    Críticas e questões ainda controversas ao PL 105/20. O projeto de lei, ao pretender regulamentar questões atinentes ao tratamento de saúde, trouxe uma ampliação semântica perigosa ao prever que "competirá ao senector a decisão a respeito de "quaisquer atividades do senectado, em caso de impossibilidade de decidir".15 Questiona-se se este poder decisório será livre ou terá alguma fiscalização pelo Estado. Analogamente a "Adoção à Brasileira", conhecida como adoção ilegal, onde a família biológica entrega o menor a outra família e esta o registra como se seu filho fosse sem qualquer procedimento judicial16, poderia ocorrer o "reconhecimento de paternidade ilegal de maior", como se pai fosse (raramente poderia ser a mãe17). Eventualmente alguém sem paternidade registral, poderá pedir que seja reconhecida por algum idoso, com diferença de idade superior a 16 anos, como forma de burla a lei, apenas para ter cuidados com este idoso. Ilegal tal situação, evidentemente, mas a busca por proporcionar dignidade a alguém com vínculos afetivos e evitar que fosse levada a instituições de acolhimento, entre outras motivações, deveria o legislador atentar-se ao instituto da senexão e rapidamente acolhê-lo. Quanto ao procedimento adotado, cumpre destacar que a judicialização pode torná-lo moroso. Ante a idade, normalmente avançada do senectado, ideal seria que, a exemplo da filiação socioafetiva - procedimento que corre junto ao Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, para os maiores de 12 anos -  revelar-se-ia célere, e com custo muito baixo, pelas tabelas de custas desta especialidade registral em todo o Brasil. O procedimento seria iniciado junto ao Oficial de Registro Civil, ato seguinte a coleta dos dados, encaminhado ao Ministério Público para análise e parecer, com exame psicológico e imprescindível realização de estudo psicossocial, aliado ao fato de aferição das condições psicoafetivas, capacidade e preparo para a senexão, pelo senector. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, deveria receber emenda para alteração deste artigo específico, Art. 55 H, prevendo que correrá inicialmente junto as serventias registrais civis das pessoas naturais com a seguinte redação: Art. 55 H. A senexão será iniciada e concedida extrajudicialmente, ouvido o Ministério Público, com parecer conclusivo, com acompanhamento multidisciplinar da vara que cuide de idosos, devendo ter total preferência de processamento e a maior brevidade possível. Parágrafo primeiro. Caso o parecer ministerial seja contrário à senexão, as partes serão encaminhadas ao Juízo competente em suas funções administrativas para sentença. Parágrafo segundo. Em caso de negativa, as partes ainda poderão socorrer-se de decisão jurisdicional em processo autônomo, mas servindo o procedimento administrativo, como base a nova análise. A lei de Registros Públicos, lei 6.015/73 igualmente deveria ser alterada com a seguinte redação: Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: inciso IX - O procedimento da Senexão, em conformidade com a Lei ... (PL105/2020) CAPÍTULO X Da Emancipação, Interdição e Ausência e da Senexão. Art. 89. No cartório do 1° Ofício ou da 1ª subdivisão judiciária de cada comarca serão registrados, em livro especial, as sentenças de emancipação, bem como os atos dos pais que a concederem, em relação aos menores nela domiciliados. Parágrafo único: O procedimento da Senexão será igualmente registrado no Livro "E". Entretanto, o Projeto exige a judicialização do procedimento, atribuindo exclusivamente ao juízo dotado de competência para tramitação e julgamento das demandas envolvendo idosos, o poder de conceder Senexão, mediante acompanhamento por equipe multidisciplinar, o que, como dissemos anteriormente, um erro no projeto de lei. Considerações finais. O projeto de lei 105/20 ainda tem questões controversas e ainda enfrentará alterações, mas é um avanço na proteção dos direitos dos idosos. Demonstrou-se que a senexão seria uma nova medida protetiva específica a ser inserida no Estatuto do Idoso. Este não teria o condão de criar vínculo parental, apenas a inclusão em família substituta, sem a formação de laços de filiação, privilegiando os vínculos socioafetivos. Este projeto tem papel inovador, protetivo aos idosos e amplia a noção de socioafetividade. A adoção de idosos propostas em outros projetos de lei, difere claramente do instituto trazido a este paper, pois a adoção forma laços parentais entre idoso e adotante (que pode ser mais novo). A adoção de menores de idade, mesmo em situação de risco, além do afeto envolvido, não seria um investimento emocional para a velhice dos adotantes? Não seria um investimento no amparo dos pais quando idosos? Já a senexão, revela-se apenas afeto. Transferirá herança? Raríssimamente e diríamos que não, pois apenas em caso específico de não haver parente vivo que o senector receberá, antes do Estado. O Afeto será multiplicado. A sociedade precisa deste instituto. ________________ 1 Constituição Federal de 1988. Art. 230 - A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. § 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. (BRASIL, 1988). 2 Art. 201. A pessoa idosa é detentora de direitos que devem ser protegidos e assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo poder público. Inciso I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (grifo nosso) 3 Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: Inciso I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (grifo nosso) 4 Voltando ao termo "gerações" (hoje tratado como dimensões), amplamente utilizado até o fim do século XX, percebe-se que o tríplice chamamento da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade (solidariedade) leva a tendência de sucessividade sim, mas atualmente há interpretação de completude entre as mesmas. 5 O termo abandono, aqui utilizado, será entendido como a situação onde o núcleo familiar, tendo condições não acolhe o idoso. Há situações onde a extrema pobreza não permite que se sustente mais uma pessoa, e o benefício social recebido pelo governo não seria suficiente para uma vida digna. 6 FUTAMI, Elizabeth. Considerações sobre o novel instituto da SENEXÃO PL 105/20. Seminário apresentado junto a Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP na disciplina Justiça constitucional, direitos fundamentais e acesso a "NOVOS DIREITOS". Sob o magistério da Profa. Dra. Carolina Noura de Moraes Rego, em 25 de junho de 2022. 7 O Benefício de Prestação Continuada - BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, é a garantia de um salário-mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. - https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social/beneficios-assistenciais/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc#:~:text=O%20Benefício%20de%20Prestação%20Continuada,com%20deficiência%20de%20qualquer%20idade. 8 Disponível aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 9 CALMON, Patrícia Novais. SENEXÃO: um novo instituto de direito das famílias? Temas atuais em famílias e sucessões [livro eletrônico]: volume 1 / organização Priscila Salles; coordenação Renato Horta, Thaís Câmara. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG: OAB - Minas Gerais: Comissão de Direito de Família: Comissão de Direito Sucessório, 2021, p. 98. 10 OMS lança portal com dados mundiais sobre saúde e bem-estar de pessoas idosas | As Nações Unidas no Brasil - in; aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 11 "A curatela é o encargo imposto a alguém para reger e proteger a pessoa que, por causa transitória ou permanente, não possa exprimir a sua vontade, administrando os seus bens. O curador deverá ter sempre em conta a natureza assistencial e o viés de inclusão da pessoa curatelada, permitindo que ela tenha certa autonomia e liberdade, mantendo seu direito à convivência familiar e comunitária, sem jamais deixá-la às margens da sociedade". (STJ, 4ª Turma, REsp 1515701/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/10/2018, publicado em 31/10/2018). Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/643818363/recurso-especial-resp-1515701-rs-2014-0273739-3. Acesso em 27 de jun de 2022 12 LIMA, Vivian Pereira. Averbações e anotações no registro civil das pessoas naturais. em obra coletiva O Registro civil das pessoas naturais - Novos Estudos. Coord. Izaías ­­Gomes Ferro Jr. Coord Geral Martha El Debs, Salvador: Juspodivm, 2017 p. 417. 13 TJ-SP - AC: 10072586920198260037 SP 1007258- 69.2019.8.26.0037, Relator: Francisco Loureiro, Data de Julgamento: 20/10/2020, 1a Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/10/2020. 14 A mulher de 30 anos que luta para adotar idosa de 67: 'Ela ganhou um lar e eu, mais uma filha' aqui. Acesso em 27 de jun de 2022. 15 CALMON, Patrícia Novais. Senexão: um novo instituto de direito das famílias? In : aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 16 SANTOS, Mariana Uncidatti Barbier, e SODRE, Manuela Carolina Almeida. Adoção e Repercussões Registrais. In: O Registro Civil na atualidade: a importância dos ofícios da cidadania na construção da sociedade atual. Coord. Martha El Debs. Org. Márcia Rosália Schwarzer e Izaías Gomes Ferro Junior. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 230. 17 Mater semper certa est ("A mãe está sempre certa") é um brocado de direito romano que tem o poder de praesumptio iuris et de iure, o que significa que nenhuma contra-prova pode ser feita contra este princípio (literalmente: presunção de lei e por lei). Prevê que a mãe da criança é estabelecida de forma conclusiva, desde o momento do nascimento, pelo papel da mãe no nascimento, o que atualmente pode não ser certa como o empréstimo de útero, vulgo barriga de aluguel, regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, na Resolução CFM nº 2.294, de 27 de MAIO de 2021.
As recentes reformas legais, promovidas pela lei 14.382/2022, nos convocam a novas reflexões sobre o impacto que suas disposições terão no dia a dia dos cartórios de registros de imóveis brasileiros. Aparentemente, há uma lenta, sutil, porém inexorável, mudança de paradigmas - não só do ponto de vista do direito formal (registral), mas do próprio direito material, ou seja, na constituição, modificação e extinção de direitos reais. Não é recente este movimento disruptivo. Basta que se pense na constituição do direito real de propriedade fiduciária que ocorre à margem do Registro de Imóveis pela via das cessões de direitos registradas em entidades para-registrais (§§ 1º e 2º do art. 22 da lei 10.931/2004). Além disso, espocam "entidades registradoras", cuja natureza privada pouco a pouco assimila aspectos jurídicos de "publicidade e eficácia perante terceiros" (art. 26 da lei 12.810/2013), atributos reconhecidamente próprios dos sistemas de registros públicos, criados, fiscalizados e regulados pelo Poder Público. A lei 14.382/2022 reformou a Lei de Registros Públicos - um respeitável monumento legislativo - subvertendo alguns princípios do tradicional sistema de registro de direitos, inclinando-o a uma nova ambiência digital: o registro de mera notícia (Notice)1. A teoria do título e modo, que nos vem desde as Ordenações, acolhida pela codificação civil sucessiva, de certo modo pode se ver progressivamente abalada com a possível adoção de uma nova configuração haurida de experiências alienígenas - como o sistema de Notice que parece ter inspirado parte dos protagonistas das últimas reformas legislativas, senão vejamos, in verbis: "O extrato (notice) eletrônico, enviado pelo credor, dispensa a apresentação do contrato para requerimento de registro de garantias sobre bens móveis", dirá o governo, flertando com o admirável mundo novo do registro líquido norte-americano2. É certo que o Sr. Ministro e sua equipe, na mensagem de encaminhamento da MP 1.085/2021 ao Congresso Nacional, se referiram a garantias móveis. Entretanto, o extrato, tal e como consagrado no art. 6º da Lei 14.382/2022, veicula tantos garantias sobre bens móveis quanto imóveis (RTD e RI). A intenção candidamente confessada é a assimilação do sistema propalado pela UNCITRAL - United Nations Commission on International Trade Law, trasladando seus princípios para o ambiente brasileiro. Um simples vislumbre nos revela o sentido das mudanças que despontam no horizonte de possibilidades. O registro recomendado pela UNCITRAL baseia-se no conceito de registro de mera notícia (notice registration) em que se suprime a qualificação registral e a atuação notarial na confecção dos títulos. O registro se realiza mediante a apresentação de um simples aviso que fornece detalhes básicos sobre o direito de garantia a que se refere: "(a) a identidade das partes; (b) descrição dos ativos garantidos; e (c) dependendo da política de cada Estado, do valor da dívida garantida e prazos"3. A ideia básica é a radical simplificação do processo de registro, transmutando sua natureza jurídica (registro de direitos), convertendo o ofício predial em mero hub administrativo "algoritimizável" (registro de mera notícia ou de meros extratos): "[...] em um registro baseado em mera notícia, não há necessidade de verificação oficial ou escrutínio da documentação de segurança subjacente. Esse sistema registral também não exige a qualificação registral acerca do conteúdo do aviso registrado ['extrato', na dicção da reforma]. Valorizar a qualificação como pré-requisito para o registro seria prejudicial ao tipo de processo de registro rápido e barato necessário para promover o crédito garantido. A ideia básica é permitir o registro sem outras formalidades (como declarações autenticadas e notarização de títulos e documentos), desde que as taxas de registro exigidas sejam pagas e os campos de informações obrigatórios sejam preenchidos"4. A lenta transformação do registro brasileiro tende a suprimir a atividade jurídica do Oficial Registrador. Já não será necessário conhecimento técnico especializado, eis que a atividade jurídica (due diligence) será realizada por outros profissionais quando da originação dos contratos. A prestação de segurança jurídico-preventiva, de caráter oficial e estatal, cede passo ao aconselhamento jurídico privado, com recurso ao Judiciário em caso de conflitos e litígios. Esta espécie de qualificação light acha-se consagrada na lei com a inacreditável delimitação de atuação do registrador imobiliário nos termos dos incisos do § 2º do art. 6º da lei sancionada. A base legal busca consumar a supressão das atividades jurídicas do registrador, substituindo-as pela simplificação que tende à "algoritimização" (automação) das inscrições feitas com base em diretivas computacionais (XML - extratos). O registro pouco a pouco se desnatura. O fundamento mediato desta reforma não se acha no direito brasileiro, mas na documentação da UNCITRAL e na experiência alienígena. A "qualificação" registral, cuja expressão não figurava até hoje no corpo legal, agora faz seu début na LRP, porém esvaziada de conteúdo jurídico (letra "a", inc. I, § 1º, art. 6º)5. A lei 14.382/2022 não é clara. A busca de eficiência se fez com o sacrifício de fundamentos jurídicos tradicionais, o que torna todo o conjunto ambíguo, inseguro, e suas disposições plurívocas, pois se acham enxertadas de modo artificial no âmbito da ordem legal que se filia a outro sistema (Civil Law). O art. 6º, por exemplo, dispõe que os registradores, "quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos". Mais adiante dirá, no inciso I do § 1º, que o Oficial "qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico". Em seguida, no § 2º do art. 6º, o exegeta lê que nos casos de extratos, proceder-se-á à "subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado", a confirmar que o título deverá sempre ser apresentado. Temos, então, o seguinte: a própria lei distingue título e extrato (inc. I do § 1º do art. 6º); o extrato será a guia do título somente quando cabível. (Na hipótese de não ser cabível, o que se registra? O título, ora bolas!). Além disso, o mesmo dispositivo reza que o registro e a averbação terão como pressupostos "fatos, atos e negócios jurídicos", vale dizer: títulos (art. 167 da LRP) devidamente instrumentalizados (art. 221 da LRP). Por fim, o Oficial qualificará o título em seus aspectos formais e materiais (não o extrato, que contém apenas certos dados estruturados veiculados por meios eletrônicos e processados num hub pseudo-registral). Afinal, será o título, em sentido material, devidamente instrumentalizado (sentido formal), que será o objeto de inscrição?   Entenda-se o que se consagrou no inc. II do § 1º do art. 6º da norma - "o requerente poderá, a seu critério, solicitar o arquivamento da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato eletrônico relativo a bens móveis". Como é praxe nos cartórios há muitas décadas, o registro efetivamente se faz pelo título, devolvendo-se-o ao interessado após a prática do ato. Entretanto, pode o interessado solicitar o registro integral (hoje arquivamento em meio eletrônico - art. 194 da LRP), "sem prejuízo do ato praticado no Livro nº 2" (inc. VII do art. 178 da mesma LRP). Ou seja, apesar da prática do ato ser feito a partir de dados decalcados do extrato, este se apoia no contrato que poderá remanescer arquivado nos repositórios eletrônicos, tal e como previsto no inc. VII do art. 178 c.c. art. 194 da LRP6. Em síntese, estamos diante de duas figuras distintas - título e extrato, com os pés fincados em duas canoas. Vamos nos deter numa pequena abordagem "ontológica"7 e analisar cada expressão técnica que ocorre no texto. Separadas, veremos que são como as flores de plástico num exuberante jardim tropical. Afinal, o que são "extratos"? Desde logo, é preciso destacar: os extratos não são meras "notícias", uma ideia fora do lugar e que desponta como corpus alienus, inoculado pelo nascente sistema de Notice Registration. Além disso, tenho plena consciência de que o extrato tratado na lei 14.382/2022 não guarda mais do mera similaridade com os conhecidos extratos registrais do século XIX. As analogias aqui desenvolvidas têm como pano de fundo a ideia, que me assalta ao ler a peça legislativa, de que os fatos da história se apresentam pela "primeira vez como tragédia, a segunda como farsa"8. Em relação aos extratos - velhos conhecidos de alguns registradores -, alguém terá reparado que o artigo 193 da LRP sobrevive incólume às reformas até os dias de hoje? Por que não foi revogado? Já tive ocasião de criticar esse arcaísmo legislativo no pequeno artigo, ao qual encaminho o leitor interessado9. Os extratos nos acompanham desde o nascedouro do regime hipotecário brasileiro. Vamos a eles num passeio de arqueologia registral. Diz a atual LRP: "Art. 193 O registro será feito pela simples exibição do título, sem dependência de extratos". Os extratos inspiraram-se no regime hipotecário francês, estreando em nosso sistema pela via do § 2º do art. 53 do Decreto 3.453/1865, disposição que seria reproduzida posteriormente no art. 52 do decreto 370/189010. Diz AFFONSO GAMA que na França, "a inscripção se faz sem o titulo, mas á vista dos extractos (borderaux), que são as fontes exclusivas da inscripção: e desde que o extracto é tomado por base legal da inscripção, é mistér exigir dois de egual teor, um para o official e o outro destinado á parte para que cada um possa resalvar a sua responsabilidade. No systema patrio, ao contrario, os extractos não sendo a fonte legal e unica das inscripções e tendo o official de conferil-os com os titulos, segue-se que, augmentam a sua tarefa, sem trazer a minima vantagem ao acto do registro"11. O nosso LAFAYETTE foi mais incisivo e não hesitaria em qualificar os extratos no sistema registral brasileiro uma "perfeita inutilidade": "No sistema da legislação francesa, os extratos (bordereau) são uma necessidade; no sistema de nossa lei uma perfeita inutilidade. Em França o extrato foi estabelecido para poupar trabalho ao conservador (oficial do registro) e subtraí-lo a uma responsabilidade além dos seus meios. O conservador não examina o título da hipoteca, não confere com ele o extrato, mas toma o extrato como a fonte da inscrição, e tão-somente por ele faz a inscrição. E desde que o extrato é tomado como a base legal da inscrição, era mister exigir dois do mesmo teor - um para o conservador, outro para a parte, para que cada um pudesse ressalvar a sua responsabilidade. Assim se o erro ou omissão acontecida na inscrição é do extrato, cessa a responsabilidade do conservador e ele defende-se com a cópia que retém em seu poder; se porém o erro ou omissão não estão no extrato, mas somente na inscrição, a responsabilidade é do conservador e a parte tem a prova no extrato que se lhe restituiu"12. A crítica era majoritária na doutrina. LACERDA DE ALMEIDA dirá que os extratos são "uma adaptação servil e inútil do sistema de registro francês". E continua: o "extracto é, como o nome o diz, um resumo em separado das forças do título, contendo as declarações que devem constar da inscripção"13. Retenha-se a ideia de que o extrato é um "resumo separado das forças do título". De fato, assim como se dá no modelo mal ajambrado de hoje, no regime hipotecário do século XIX "a escritura ministra as declarações exigidas para a inscrição, e esta se fará à vista dos extratos, donde decorrem as condições da hipoteca registrável: valor da dívida, individuação do imóvel ou imóveis"14. Os extratos - tanto ontem, como hoje - são o transunto do título, ou "como se diz em linguagem forense, contém as forças, do título, são oferecidos em duplicata e devem ser assinados pela parte requerente ou por seu procurador", como diz o mesmo LACERDA DE ALMEIDA15. O resumo não se dissociava do próprio título. Foi somente com o advento do Código Civil de 1916 que a exigência de apresentação dos extratos foi definitivamente abandonada (art. 838), fato que motivou o legislador a consagrar no art. 202 do Decreto 18.542/1928 o seguinte: "o registro será feito pela simples exibição do título, sem dependência de extratos. (Cod. Civ., art. 838.)". Esta mesma disposição alcançaria o art. 210 do Decreto 4.857/1939 até se revelar como um cristal na cápsula do tempo incrustrada no vigente artigo 193 da Lei de Registros Públicos. Abandonada no início do século XX, a ideia básica de registração por meio de extratos retornaria ao sistema registral no âmbito do SFH - Sistema Financeiro da Habitação, especificamente com a redação dada aos artigos 60 e 61 da lei 4.380/1964, chamados, então, de resumo do contrato. Buscava-se àquela altura simplificar as escrituras públicas para efeito do posterior registro (inc. III do art. 60). Assim, as escrituras deveriam "consignar exclusivamente as cláusulas, termos ou condições variáveis ou específicas" (art. 61) vinculando as partes contratantes ao contrato que seria transcrito, "verbum ad verbum, no respectivo Cartório ou Ofício, mencionando inclusive o número do Livro e das folhas do competente registro" (§2º do art. 61). Encaminhava-se a registro unicamente um resumo do contrato, cujo padrão ficava arquivado e vinculava inteiramente as partes. Ao final, os mutuários, "ao receberem os respectivos traslados de escritura", ser-lhes-ia "obrigatoriamente entregue cópia, impressa ou mimeografada, autenticada, do contrato padrão constante das cláusulas, termos e condições" (§ 3º do art. 61 da dita lei 4.380/1964). Note-se que estávamos em face de contratos-padrão, com cláusulas pré-estabelecidas, espécie de dirigismo estatal na contratação privada, a exemplo do que ocorria com os parcelamentos do solo urbano desde os idos do advento do Decreto-Lei 58/1937 (inc. III do art. 1º c.c. §2º do art. 18), disposição que seria posteriormente reproduzida na lei 6.766/1979 (inc. VI do art. 18 c.c. art. 27 da lei 6.766/1979) e nas incorporações imobiliárias (art. 67 da lei 4.591). No âmbito do crédito rural, o contrato estereotipado era igualmente previsto - § 1º do art. 83 da lei 4.504/1964; art. 43 c.c. letra "b", parágrafo único do decreto 59.428/1966, que previa o "modelo de contrato-padrão de colonização e de compromisso de compra e venda de lotes na forma indicada nas instruções vigentes". Ao dispor a lei que o Oficial fará a qualificação do título pelos elementos, cláusulas e condições constantes do extrato eletrônico (letra "a", inc. I do art. 6º da lei), leva o exegeta a concluir que a regra reata vínculos com as disposições do art. 61 da vetusta lei 4.380/1964, diploma que se acha inteiramente em vigor e que deve iluminar o microssistema de extratos agora recriado. Habemus legem Embora a admissão e utilização dos extratos tenham sido sancionadas pelas corregedorias estaduais16 (o próprio CNJ cogitou fazê-lo17), é preciso relevar um fato decisivo: habemus legem! Os atos normativos baixados anteriormente ficam revogados em face da nova lei. É na lei - não em provimentos - que deveremos nos basear agora para recepcionar os títulos em meios eletrônicos. Retomando a exegese do art. 6º da lei 14.382/2022, a oração - "quando cabível" - permite que se discriminem as hipóteses em que o extratos serão admitidos. Parece livre de dúvidas que serão admitidos apenas os contratos produzidos no âmbito do SFH pelas entidades que o integram, nos termos dos incisos do art. 8º da lei 4.380, de 21 de agosto 1964: I - pelos bancos múltiplos; II - pelos bancos comerciais; III - pelas caixas econômicas; IV - pelas sociedades de crédito imobiliário; V - pelas associações de poupança e empréstimo; VI - pelas companhias hipotecárias; VII - pelos órgãos federais, estaduais e municipais, inclusive sociedades de economia mista em que haja participação majoritária do poder público, que operem, de acordo com o disposto nesta Lei, no financiamento de habitações e obras conexas; VIII - pelas fundações, cooperativas e outras formas associativas para construção ou aquisição da casa própria sem finalidade de lucro, que se constituirão de acordo com as diretrizes desta Lei; IX - pelas caixas militares; X - pelas entidades abertas de previdência complementar; XI - pelas companhias securitizadoras de crédito imobiliário; e XII - por outras instituições que venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional como integrantes do Sistema Financeiro da Habitação. Afora esta hipótese, os demais instrumentos particulares, inclusive os firmados sob a égide do SFI - Sistema Financeiro Imobiliário, são exceptuados da regra, a teor do inciso I do art. 39 da lei 9.514/1997, que reza: "não se aplicam [ao SFI] as disposições da lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, e as demais disposições legais referentes ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH". Corrobora esta interpretação a conjugação do inc. II do art. 221 da LRP (note-se o âmbito da incidência: SFH) com o disposto no art. 38 da mesma lei 9.514/1997, que dispõe que os atos e contratos referidos na dita lei "poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública". Ou seja: o fato de os contratos do SFI poderem ser celebrados por instrumentos particulares não significa que as regras da Lei 4.380/1964 possam ser aplicadas neste microssistema quando é a própria lei especial que expressamente veda tal extensão. Tudo isto se aplica, naturalmente, e como consectário lógico, aos extratos ou resumos (notícia) que destes instrumentos sejam decalcados. Conclui-se que tanto a escritura pública, quanto todos os demais instrumentos particulares (SFI, promessas de compra e venda e cessões etc.), títulos administrativos e judiciais não ingressam no registro de imóveis por extrato, sendo necessária a apresentação dos títulos próprios, com todas as formalidades legais. A reforçar esta ideia, a lei confiou à Corregedoria Nacional de Justiça a definição da estrutura do extrato eletrônico e os "tipos de documentos que poderão ser recepcionados dessa forma" (inc. VIII do art. 7º). Neste âmbito judicial, os aspectos jurídicos serão certamente relevados e guiarão a regulamentação que se espera seja saneadora de tantas imperfeições. O que são títulos? O que são instrumentos? O nosso sistema de direito civil se filia ao sistema romano do título e modo. Por tal sistema, não basta a existência do título - "ato jurídico pelo qual uma pessoa manifesta validamente a vontade de adquirir um bem. É preciso que esse ato jurídico se complete pela observância de uma forma, a que a lei atribui a virtude de transferir o domínio da coisa: traditionibus et usucapionibus dominia rerum, non nudis pactis transferuntur", diz ORLANDO GOMES. E segue: "[...] assim, como exigiam um modo para que a propriedade fosse adquirida, os romanos estabeleceram que não bastava a tradição para transferir o domínio, sendo necessário que fosse precedida de uma justa causa. [...] Assim, título e modo eram necessários à aquisição da propriedade"18. MÓNICA JARDIM pontifica que em sistemas como o nosso (título e modo) a "aquisição, modificação ou extinção de direitos reais depende de um título - fundamento jurídico ou causa que justifica a mutação jurídico-real, e de um modo - acto pelo qual se realiza efectivamente a aquisição, modificação ou extinção do direito real, acto através do qual se executa o prévio acordo de vontades"19. Além disso, como lembra de modo oportuno, a transmissão de um direito real, fundada no título, depende da validade do negócio jurídico que lhe dá suporte (causa effectus remota). A indispensabilidade de um título (formal e material, como se verá à frente) para a consumação do direito pelo sua conjugação com o modus (causa efficiens proxima) parece mesmo incontornável. Retomando, o título em sentido material (titulus adquirendi) é a justa causa de aquisição, indispensável por representar a relação jurídica basal, o negócio causal, fonte obrigacional da aquisição, reclamando, entretanto, o modo (modus acquisicionis) para consagração do direito real e sua plena eficácia. Já aludimos acima aos fatos, atos e negócios jurídicos inscritíveis (art. 6º). Esta lei se aplica justamente ao registro "de atos e negócios jurídicos, de que trata a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973" (art. 1º), isto é, de títulos materiais previstos no seu artigo 167 e legislação esparsa, que devem ser devidamente instrumentalizados (título formal - art. 221 da LRP). No Direito Civil, adquire-se a propriedade por um título hábil (art. 1.245, caput), o que ocorre igualmente em relação aos direitos reais: "Art. 1.227 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247)" No caso da alienação fiduciária é o art. 23 que reza que a propriedade fiduciária de coisa imóvel se constitui "mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título". Já título em sentido formal é o "documento que exterioriza um ato ou contrato em cuja virtude se adquire, modifica ou extingue um direito"20. SERPA LOPES dirá que título "é assim um instrumento portador de efeito jurídico próprio"21. Nosso sistema reclama uma forma especial - seja a substancial (forma dat esse rei), seja a privada parelhada com pré-requisitos (prova pré-constituída). O título aquisitivo deve sempre ser formalizado e instrumentalizado. O instrumento é o meio utilizado para representação e formalização da manifestação de vontade22. Os instrumentos formais ostentam "força orgânica, quer sejam considerados da substância do ato [escrituras públicas], quer sejam considerados prova pré-constituída, visto que, por si mesmos, são motores de ação", como observou de modo claro e preciso JOÃO MENDES DE ALMEIDA JR., que acrescenta: "O primeiro traslado de uma Escritura pública, por exemplo, é um instrumento, ao passo que a certidão dessa escritura é um simples documento; a letra de cambio, a nota promissória, as obrigações escritas e assignadas pela parte e subscritas por duas testemunhas, são instrumentos, - ao passo que uma carta apenas assinada pela parte é um simples documento"23. Instrumento, pois, "é a forma especial, dotada de força orgânica para realizar ou tornar exequível um ato jurídico; documento é a forma escrita apenas dotada de relativa força probante, contribuindo para a verificação dos fatos"24. Em síntese, documento é gênero, título é espécie; o primeiro representa prova meramente casual; o segundo dá existência ao ato (forma dat esse rei) ou conforma a prova pré-constituída25. Já extrato é mero documento. O leitor paciente que chegou até aqui poderá perguntar-se: afinal, o extrato pode ser considerado um instrumento hábil e ingressar no sistema e produzir todos os seus efeitos jurídicos? Será ele mero documento, não um verdadeiro instrumento (título formal)? É preciso observar que o extrato não está previsto no elenco (taxativo = "somente") dos títulos admitidos a registro, consoante art. 221 da LRP que reza que "somente são admitidos a registro": a) escrituras públicas; b) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas, dispensado o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao SFH; c) atos autênticos de países estrangeiros; d) cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo; e) contratos ou termos administrativos relativos a programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social Precisamos ser realistas. Retomo aqui as conclusões já insinuadas anteriormente: o extrato pode ser considerado um transunto do título formal, resumo aparelhado com as forças do título, mas não é independente do título, não existe sem o suporte que lhe dá origem e o projeta nas plataformas eletrônicas. Tanto o instrumento público (requisito formal ad substantiam - art. 108 do CC e art. 406 do CPC) como o particular (com determinados requisitos formais legalmente obrigatórios - art. 221 do CC e art. inc. II do art. 221 da LRP) são os títulos propriamente ditos. "Quando cabível", o extrato será apenas um epifenômeno, produto acidental e acessório do título em sentido formal próprio. Como se vê a reforma é regressiva e reacionária. Com esta iniciativa, a eficiência, eficácia e economicidade, buscadas de modo tão improvisado, foram empanadas pela propaganda e por certa afoiteza ao propalar grandes virtudes reformistas que o jurista não divisa26. A iniciativa resvalou em princípios jurídicos consolidados há décadas, verdadeiras balizas da ordem jurídica-privada do Direito Brasileiro. O sistema inaugurado pela lei 14.382/2022 parece repristinar o velho sistema dos borderaux franceses, abandonados já na origem, com o agravante de que o simulacro registral reconforma o emblemático registro de direitos transformando-o em mero birô de arquivo (registro de documentos), mantido e atualizado a partir de indicações veiculadas por meios eletrônicos (notice). Os registradores têm consciência desta viragem paradigmática? Analisando o conjunto da obra, vê-se que é imperfeita. O fato é que se não se promove um descolamento tão radical de um sistema multissecular sem grandes traumas, confusões, equívocos. O novo Registro de Imóveis brasileiro, com o norte esboçado nas iniciativas pioneiras do CNJ desde o início da década de 2010, pode vir a sofrer um desvio sistemático avassalador pelo impacto da onda privatística que é impulsionada e bancada pelo capital financeiro, sempre escudado por seus fiéis representes da área econômica, financeira e jurídica. Eis que desponta, ainda de modo difuso e disfuncional, uma nova figura institucional. Ao abandonar os modelos que nos vinculam aos sistemas tradicionais da Civil Law, desvela-se a torção tendente a orientar o velho e bom Registro de Imóveis brasileiro rumo ao admirável mundo novo do Notice Registration, vinculado a matrizes alheias à nossa tradição jurídica. É o Eldorado Registral, como jocosamente me referi a esse enguiço legislativo27. Não tardará e logo vamos verificar que o registro feito por mero extrato (notice) revelar-se-á dispendioso, pois já não estará na dependência de um prévio exame de legalidade e juridicidade dos títulos apresentados a registro, o que envolve grandes responsabilidades (justificando, portanto, os emolumentos hoje cobrados); não representará uma atividade de um jurista (registrador), já percebida como "detrimentosa" (inimical28) para a celeridade das transações imobiliárias em infovias digitais inscritas em registros líquidos e instantâneos. A prevalecer este entendimento minimalista, tudo poderá ser feito de modo automatizado, com escassa intervenção humana, trasladando-se a chamada "qualificação jurídica" a outros profissionais do direito, que hão de proceder à due diligence, precificando a taxa de judicialização de conflitos e litígios, agregando instrumentos atuariais para prevenirem-se de intercorrências danosas. Ao final e ao cabo, substituiremos a segurança jurídica, por segurança econômica e tecnológica, com um novo balanceamento dos custos envolvidos no processo registral. Conclusão Já não é possível concluir nada de muito proveitoso desta mixórdia legal. A reforma é de tal modo imperita que não é possível assentar sobre suas bases algo muito sólido. Por outro lado, não se concebe retroceder. Não é possível fraudar a imensa expectativa criada na sociedade pela propaganda massivamente veiculada29.   Caro leitor, sei que me pergunta: o que se pode fazer? AFRÂNIO DE CARVALHO registrou que o advento da lei 6.015/1973 reincidiu num erro censurável: "como Lei é demasiada e como Regulamento é insuficiente"30. Pois bem. A reforma da LRP representou uma vaza diluvial em que todas as peças se movimentaram no tabuleiro e será necessário que as águas baixem para que a Corregedoria Nacional de Justiça possa nos doar um verdadeiro Código de Registro Predial, colmatando uma sentida deficiência do sistema registral brasileiro, agravada com o advento da Lei 14.382/2022. O que é bem certo nisto tudo é que mudam os atores, mas as necessidades remanescem. Gostaria de terminar este pequeno artigo com as palavras finais com as quais encerrei minha palestra de abertura em Cuiabá, Mato Grosso, no encontro do IRIB: Se este é o caminho escolhido pelos meus pares para aperfeiçoar o Registro de Imóveis brasileiro, o que se pode fazer? "Não queira este velho oficial paralisar as ondas do mar, nem o sentido dos ventos" - disse31. Ainda assim, malgrado o mal presságio e as nuvens plúmbeas que se formam no horizonte, é preciso navegar e vencer as ondas procelosas deste mundo incerto e incógnito. Hic sunt leones! __________ 1 Indico uma fonte precisa onde esta modalidade de registro acha-se bem descrita e especificada e suas finalidades estabelecidas. UNCITRAL Legislative Guide on Secured Transactions Terminology and recommendations. Vienna: UN, 2009, p. 25: IV. The registry system. 2 EMI nº 169/2021 ME SG MJSP, de 19 de novembro de 2021. Acesso aqui. 3 UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York: UN, 2010, p. 151, n. 12: "In contrast to these systems, the general security rights registry recommended in the Guide is based upon the concept of notice registration. In a notice registration system, there is no requirement to register the underlying security documentation or even to tender it for scrutiny by the registrar. Instead, registration is effectuated by submitting a simple notice that provides only basic details about the security right to which it refers: (a) the identities of the parties; (b) a description of the encumbered assets; and (c) depending on the policy of each State, the maximum sum for which the security is granted and the requested duration of the registration". 4 "[...] in a notice-based general security rights registry, there is no need for official verification or scrutiny of the underlying security documentation. Nor does such a registry system require advance scrutiny or approval of the content of the registered notice. Making official approval a prerequisite to registration would be inimical to the kind of speedy and inexpensive registration process needed to promote secured credit. The basic idea is to permit registration without further formalities (such as affidavits and notarization of documents) as long as the required registration fees are paid and the required information fields in the notice are completed". Idem nota 2, p. 151-2. 5 Vide JACOMINO. Sérgio. Qualificação registral - Nótula sobre a expressão e sua assimilação pelo direito registral brasileiro. São Paulo: Academia.edu, 2013, acesso aqui. 6 A atual redação do art. 194 da LRP é defectiva e regressiva. Somente os "títulos físicos" serão mantidos no repositório. E os natodigitais? Além disso, os títulos de extração pública (notariais, administrativos e judiciais), que antes não eram mantidos na serventia, agora o serão, com acréscimo de custos inerentes à gestão do repositório digital confiável que nem sequer foi especificado e regulamentado. 7 O sentido de "ontologia" aqui empregado é específico. Vide LAGO. Ivan Jacopetti. Ontologia registral - sujeitos de direito e suas representações nos Registros Públicos. BIR, São Paulo: IRIB, jun. 2020, p. 93. 8 Perco os amigos, mas não a analogia: MARX. Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Ed. 2011, p. 25. 9 JACOMINO. Sérgio. Os extratos e o antigo bordereau do registro francês. São Paulo: Círculo Registral, 2010, acesso aqui. 10 O extrato não era tão somente o veículo de acesso ao registro, mas igualmente o próprio ato de registro se faria por extrato, malgrado o fato de se chamar "transcrição do título". O extrato era também o veículo do Registro Torrens (extrato da matriz - art. 63 e seguintes do Decreto 451 B, de 31 de maio de 1890). 11 GAMA. Affonso. Direitos Reaes de Garantia - Penhor, Antichrese e Hypotheca. São Paulo: Saraiva, 1933, p. 814-5, nota 2.558. 12 PEREIRA. Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1905, p. 589, nota 9. 13 LACERDA DE ALMEIDA. Francisco de Paula. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, Vol. II, 1903, p. 334, § 184. 14 Op. cit. p. 332. Notem-se os pontos de coincidências com os requisitos exigíveis no Sistema do Notice Registry. 15 Op. cit. p. 334. 16 Cito o exemplo emblemático de São Paulo, onde os extratos eletrônicos foram previstos no Provimento CGJSP 11/2013, de 16/4/2013, Dje de 17/4/2013, Corregedor Geral Des. José Renato Nalini. Acesso aqui. As Normas de Serviço (NSCGJSP) previram-nos nos itens 111 e seguintes do Cap. XX. 17 O Provimento 89/2017 não previu os extratos. O modelo do SREI se projetava noutra direção. Digno de nota, todavia, é o fato de que o Conselheiro MÁRIO GUERREIRO apresentaria voto convergente no PP 0000665-50.2017.2.00.0000 sustentando e defendendo o registro feito por extratos. As suas razões e a minuta de provimento por ele oferecidas podem ser consultadas aqui: PP 0000665-50.2017.2.00.0000, j. em plenário a 18/12/2019, relator Ministro HUMBERTO MARTINS. Acesso aqui. 18 GOMES. Orlando. Direitos Reais. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 133, n. 90 passim. 19 JARDIM. Mónica. Os Sistemas Registrais e a sua Diversidade. In Revista Argumentum - Argumentum Journal of Law, vol. 21, n. 1, 2020, Jan.-Abril, p. 437 e ss. 20 CASSO Y ROMERO. Ignacio de. JIMÉNEZ-ALFARO, Francisco Cervera Y. Diccionario de derecho privado. Tomo II, Barcelona, 1950, p. 3.815, verbete título. 21 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado, Vol. I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 26-7. 22 AMARAL SANTOS. Moacyr. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV, 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 68. 23 ALMEIDA JR. João Mendes de. Direito Judiciário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 203, n. IV. 24 ALMEIDA JR. João Mendes de. Op. cit. p. 194. 25 AMARAL SANTOS. Moacyr. Op. cit. nota 15. 26 Tive ocasião de criticar a reforma da LRP por meio de medida provisória. O tema merecia um debate mais amplo, envolvendo setores que foram alijados dos processos de discussão. Vide JACOMINO. Sérgio. MP 1.085 e o Monstro de Horácio. 27 JACOMINO. Sérgio. Vinho novo e a Água Chilra. Migalhas. Acesso aqui. 28 Vide UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York, nota 3. 29 No fundo a medida não inovou justamente no aspecto mais destacado da reforma: a prestação de serviços por plataformas digitais. Vide: CAMPOS. Ricardo. Degeneração do regime jurídico das serventias e da proteção de dados pelo Serp. Consultor Jurídico, 15.5.2022. Vide ainda o depoimento autêntico de SANTOS. Flauzilino Araújo dos. Reconectando o registro de imóveis do Banco de Dados Light ao Next Cloud SAS. Consultor Jurídico, 15.5.2022. 30 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 13. 31 JACOMINO. Sérgio. O Doloroso Cansaço do Mundo. São Paulo: Observatório do Registro, 2022, acesso aqui.
Na seção "Oficina Notarial e Registral", do Migalhas Notariais e Registrais, hoje vamos expor um tema recorrente na praxe dos cartórios brasileiros: a determinação de devolução de valores emolumentares no caso de anulação de atos regulares praticados pelos oficiais registradores no exercício de seu mister.   Neste caso concreto, o interessado postulara o cancelamento de registro de arrematação objeto de registro regular feito na matrícula correspondente, buscando, ainda, a devolução integral dos valores pagos a título de emolumentos, devidamente corrigidos. O R. Juízo da execução, cumprindo decisão do Superior Tribunal de Justiça, determinara o cancelamento do ato de registro, já que, consoante decidido pela corte superior, a "remição da execução precedeu a assinatura do auto de arrematação. Ou seja, verificou-se quando a arrematação ainda não se encontrava perfeita e acabada" (RESP 1.862.676 - SP, voto da Min. NANCY ANDRIGHI). Ao reconhecer que a arrematação não representava um ato jurídico perfeito e acabado (art. 903 do CPC), tal fato, por efeito revérbero e consecutivo, teria inquinado o ato de expropriação judicial, o que haveria de acarretar o cancelamento da transmissão, como aliás determinado pelo R. Juízo. Como se sabe, a higidez da eficácia registral repousa no título escoimado de todo vício de invalidade ou nulidade. De passagem, note-se que o reconhecimento de invalidade da arrematação deveria ser postulado em ação própria, ex vi da literalidade do § 4º do art. 903 do CPC, que reza que, após a expedição da carta de arrematação, ou da ordem de entrega, "a invalidação da arrematação poderá ser pleiteada por ação autônoma, em cujo processo o arrematante figurará como litisconsorte necessário". Nesta ação o arrematante poderia buscar satisfazer-se dos danos experimentados requerendo "indenização, por exemplo, pelas despesas com o registro do imóvel", consoante notam NELSON NERY JR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY1. No caso de anulação de arrematação, com o consequente cancelamento de registro, o "ressarcimento dos valores pagos pelo arrematante a título de impostos e emolumentos devem ser buscados por meio de ação própria", consoante decidido no REsp 1.568.636-RS, j. 11/6/2021, Dje 15/6/2021, Ministro SÉRGIO KUKINA. Além disso, e mais importante, o Oficial de Registro, neste caso,  figuraria como parte, legitimando-se para se defender, estabelecendo o contraditório e o devido processo legal. No processo executivo em tela, o Oficial não é parte e, portanto, não pode agravar a respeitável decisão do Juízo executivo. Enfim, não havia qualquer comando no v. acórdão do STJ no sentido de fulminar, desde logo, a eficácia da arrematação; havia, apenas, o reconhecimento de que a remição precedeu a assinatura do auto de arrematação, declarando-se tempestivo e integral o depósito remissivo. As consequências daí derivadas deveriam se produzir no bojo do processo executivo - inclusive para que o arrematante pudesse depois satisfazer-se dos prejuízos por ele experimentados. Erro - busca de eventual reponsabilidade Nos termos do mesmo art. 903 do CPC "qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável". Neste contexto, como consectário lógico, uma vez expedida a carta de arrematação, há de se pressupor que os atos antecedentes se tenham revestido de todas as formalidades legais, cumpridos os requisitos previstos na lei. Somente se expedirá a carta de arrematação quando se tenha esgotado exitosamente o iter executivo (com o auto de arrematação firmado pelo arrematante, pelo leiloeiro e pelo juiz do feito). Ora, o título que fora apresentado a registro apresentava-se formalmente em ordem e por esta razão o registrador o consumou ordinariamente. Afinal, o auto de arrematação havia sido lavrado e firmado pelos arrematantes, pelo leiloeiro e pelo MM. Juiz do feito, tudo conforme o dito art. 903 do CPC. Se houve erro nos atos expropriatórios - o que se presume ter havido a teor do v. acórdão do STJ, já que a remição teria precedido a assinatura do auto - o lapso ou eventual erro ocorrido no âmbito do processo judicial não poderia ser atribuído ao Registro de Imóveis. Falta, de fato, um nexo causal que poderia acarretar a consequência de responsabilização do Oficial do Registro pela prática de atos próprios. Preenchidas as formalidades legais, o registrador não poderia deter-se na consumação do ato rogado pelos interessados (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973). E uma vez praticado o ato de registro, em estrita obediência aos requisitos formais e a instância dos próprios interessados, não pode ser compelido a devolver os valores correspondentes aos emolumentos devidos pela prática regular de atos de ofício - inclusive os posteriores, de averbação de cancelamento da arrematação. O próprio arrematante destacou no processo que o registro se fez "porque assim o Juiz de Primeira Instância e o Tribunal de Justiça determinaram". Além disso, o MM. Juiz do feito averbou que eventuais prejuízos ocorridos poderiam, "eventualmente, a seu estrito critério [dos interessados], ser tratados nas vias processuais próprias". Enfim, o Registro de Imóveis figurou como verdadeiro "Pilatos no credo", não tendo dado causa aos prejuízos experimentados pelas partes por eventual erro em decorrência de inobservância de formalidades e requisitos legais, não podendo, à esta altura, interferir na lide por não ser parte legítima, não lhe restando alternativas que a via do mandado de segurança. Recentemente o TRF da 3ª Região, em sede de mandado de segurança, reconheceu que os emolumentos relativos à efetiva prática de ato de registro têm por fato gerador a prestação dos serviços. Comprovada a prestação, o Oficial faz naturalmente jus à remuneração prevista em lei. Eventual cancelamento de registro de arrematação, em decorrência de anulação de hasta pública, não ocorrendo a hipótese de erronia da Serventia, o Oficial está desobrigado à devolução das custas e emolumentos pagos: "Dispõe o art. 1º da Lei Estadual 11.331/2002 que os emolumentos relativos aos serviços notariais e de registro tem por fato gerador a prestação de serviços públicos notariais e de registro previstos no art. 236 da Constituição Federal. O impetrante comprova a prestação dos serviços de registro e averbação na matrícula do imóvel arrematado (fl. 45), fazendo jus à remuneração prevista em lei. Por outro lado, o cancelamento do registro da arrematação decorreu de anulação da hasta pública, e não por erronia da Serventia (fl. 25). Também o periculum in mora restou demonstrado no despacho proferido pela autoridade impetrada (cópia juntada à fl. 33), no qual determina o cumprimento integral da decisão de fl. 362 dos autos originários (de cancelamento do registro de arrematação e restituição integral da quantia recebida do arrematante) no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 100,00 (cem reais) e "vista" ao Ministério Público Federal para apurar possível crime de desobediência. Diante do exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar a imediata suspensão da ordem judicial de devolução das custas e emolumentos pagos pelo registro de arrematação junto à matrícula de nº 6314, até julgamento final deste mandamus"2. Esta decisão aponta para a melhor compressão do problema posto no caso concreto. De fato, o cartório, para a consecução do registro, pautou-se pelos seguintes princípios - aliás reconhecidos pelo STJ: (a) princípio da rogação (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973), segundo o qual todo ato de registro depende de expresso requerimento da parte interessada e (b) todo ato registral é, em regra, oneroso, salvo as expressas exceções legais (REsp 1.725.608, dec. mon. de 26/3/2021, Dje 6/4/2021, Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO). Não se pode obrigar a devolução dos valores pagos por atos praticados regularmente, a requerimento dos próprios interessados, que, ao atuarem na seara dos leilões judiciais, devem sempre sopesar os riscos inerentes à atividade e suportar os seus eventuais azares. A pizza emolumentar e os sujeitos passivos por substituição tributária Não bastasse a respeitável determinação de devolução dos valores emolumentares pagos em 2019, devidamente corrigidos, é preciso destacar que a determinação ia ainda muito além e extrapolava a parte do Oficial, abrangendo o total depositado. Entretanto, como se sabe, há repartição e destinação diversa dos valores recolhidos sob a epígrafe de custas e emolumentos, consoante o disposto no art. 19 da lei 11.331/2002, lei de emolumentos do Estado de São Paulo. A parte do oficial corresponde a 62.5% do total pago; o restante é repartido entre o Estado de São Paulo, a Fazenda Estadual (antigo IPESP), o Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça e o Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo - sem cogitar do imposto de renda devido pelo Oficial do Registro. Os registradores são considerados sujeitos passivos por substituição tributária (art. 3º da dita Lei 11.331/2002). Nesta condição, não podem ser compelidos a restituir eventual tributo devido pelos interessados e recolhidos regularmente pela Serventia. Constituída a hipótese de incidência do tributo (fato gerador), definida a base de cálculo, o recolhimento das parcelas e o repasse são compulsórios. Eventual repetição reclama o chamamento dos vários atores à lide. Conclusões O ato de cancelamento deverá ser procedido mediante o recolhimento do depósito prévio (art. 14 da Lei 6.015/1973). O MM. Juiz (corretamente) assim o determinou: "O arrematante, em tal diapasão, deverá também, de pronto, proceder à averbação registrária para documentar o desfazimento da arrematação às margens da respectiva matrícula imobiliária, arcando com tais despesas pertinentes". As razões acima foram apreciadas e aprofundadas em mandado de segurança impetrado contra o juízo, buscando fulminar a ordem eivada de ilegalidade. A peça foi preparada pelo advogado, Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA e colegas do CM ADVOGADOS, cujo teor pode ser consultado aqui. A ação foi distribuída (MS 2125241-81.2022.8.26.0000). O mandamus foi concedido baseando-se em breve, porém precisa, fundamentação: "Diante do ato praticado pelo registrador houve pagamento de emolumentos. O posterior cancelamento da arrematação pelo C. STJ, a priori, não teria o condão de impor a devolução das custas do registro. Por tal argumento, defere-se a liminar para suspensão da ordem até ulterior deliberação. KIOITSI CHICUTA, Relator". Na prestação de informações, o R. Juízo foi igualmente conciso: "Observo de imediato a R. Decisão da Superior Instância colacionada a fls. e, neste sentido, inclusive, diante da indicação expendida na própria decisão impugnada de fls., acerca da devolução de tal importe, a título de emolumentos, reconsidero a respeito tal decisão de fls., no sentido de REVOGAR A ORDEM IMPETRADA e, assim, cancelar o decisum impugnado para a Serventia Extrajudicial devolver tal valor aos arrematantes, sob pena de desobediência, arrematantes estes que, frisa-se, a seu livre critério, deverão ou poderão postular a eventual devolução dos montantes arcados com tal arrematação, a qual restou cancelada nestes autos, por ordem da Superior Instância, nas vias processuais próprias, que não neste processo, o qual possui, conforme é consabido, outro objeto processual. Presto as informações a mim solicitadas pela Superior Instância a fls." As informações prestadas pelo R. Juízo no MS vão na mesma direção: Trata-se de mandado de segurança tirado de decisão proferida nos autos de Origem a fls., a qual, diante da anulação de arrematação anterior, por ordem da Superior Instância, determinou a devolução dos valores pagos pelo arrematante, atendendo a um pedido por este último deduzido no processo, perante a Serventia Extrajudicial, representada pelo impetrante. Entretanto, prima facie, este juízo de piso impetrado assinala que revogou a ordem impetrada, inclusive, nos termos indicados no próprio decisório vergastado, à vista que, de fato, tal devolução, poderá ou deverá ser tratada em sede de pedido deduzido nas vias processuais próprias a critério do seu interessado, não podendo, deste modo, salvo melhor juízo, ser a mesma examinada nestes autos de origem, que se reportam a execução de título executivo extrajudicial entre as partes respectivas". As coisas voltaram, assim, ao bom rumo sistemático. Soa verdadeiramente desarrazoado que o Oficial Registrador pudesse ser responsabilizado e arcasse por danos e prejuízos a que não deu causa. Para todos os interessados, aqui vão as principais peça do Processo 1028069-60.2016.8.26.0100 e Mandado de Segurança 2125241-81.2022.8.26.0000, além da excelente peça inaugural. Peça elaborada pelo Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA, do CM ADVOGADOS. Decisão do MS 2125241-81.2022.8.26.0000 Informações prestadas pelo juízo impetrado. Decisão proferida no Processo de Execução (1028069-60.2016.8.26.0100). __________ 1 NERY Jr. Nelson. NERY. Rosa Maria de Andrade. CPC comentado, 19ª ed., São Paulo: RT, 2020, p. 1897, nota 7. 2 TRF 3ª Região MS 0018235-05.2014.4.03.0000/SP, j. 25/7/2015, rel. Marcelo Guerra. Acesso aqui.
Resumo  O artigo defende a viabilidade de lavratura de escrituras públicas eletrônicas por tabelionatos brasileiros a pessoas localizadas em solo estrangeiro. Aponta as vantagens disso para os consulados brasileiros, que poderão se desonerar de uma atividade que, à luz da vocação consular, é absolutamente secundária. 1. Introdução O presente artigo busca, especificamente, analisar a possibilidade de atendimento à distância, por tabeliães brasileiros, das demandas de pessoas que, residindo no exterior, necessitam de serviços notariais. A questão se insere no contexto do avanço tecnológico propiciado pela quarta revolução industrial1, em um no mundo profundamente interconectado. As restrições de circulação de pessoas impostas pelos governos como forma de combate à feroz pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021 intensificaram as demandas por serviços remotos, inclusive os serviços notariais. Iniciaremos, com a indicação de quem pode receber serviços notariais nos consulados brasileiros e quais são as condições para garantir a integridade do documento e a autoria da manifestação de vontade expressa de forma remota. Em seguida, discutiremos a viabilidade jurídica de tabelionatos de notas atenderem pessoas residentes no exterior para a lavratura de escrituras públicas por meio de prestação remota de serviços. Analisaremos se há usurpação de função consular por parte de tabeliães brasileiros e se o atendimento direto por tabelião situado em território nacional a cliente situado no exterior representa algum desvirtuamento a regras de competência das normas vigentes para a prestação de serviço. 2. Consulados como "tabelionatos de notas" para brasileiros residentes no exterior  2.1. Atribuições gerais das embaixadas e dos consulados brasileiros  Nos Países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas2, há a embaixada e o consulado brasileiros. A embaixada brasileira lida com questões entre os Estados Soberanos: o Brasil e o outro País. Já o consulado brasileiro se presta a oferecer serviços entre o povo e o Brasil. Os estrangeiros podem servir-se dele para, por exemplo, obter vistos para viajarem ao território brasileiro. Os brasileiros podem obter assistências para, por exemplo, conseguirem Autorização de Retorno ao Brasil na hipótese de terem perdido o passaporte e não terem documentos suficientes à emissão de um novo passaporte3. Para os brasileiros, o consulado brasileiro vai além de oferecer serviços de assistência documental relativos à sua viagem, ou de assistência de caráter humanitário (como nos casos de falecimento, hospitalização etc.), ou de legalização de documentos públicos emitidos por países estrangeiros não signatários da Convenção da Apostila de Haia4. Ele também oferece serviços de "cartórios" extrajudiciais, especialmente serviços de notários e de registro civil de pessoas naturais. O foco deste artigo está especificamente nos serviços de notários prestados pelos consulados, mais especificamente no de lavratura de escrituras públicas.  2.2. Fundamentos normativos das atividades notariais e registrais dos consulados Por força da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 19635, compete ao cônsul, dentre outras funções, agir na qualidade de notário e oficial de registro civil, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor. Veja art. 5º, alínea "f", da referida convenção: ARTIGO 5º Funções Consulares As funções consulares consistem em: a) proteger, no Estado receptor, os interêsses do Estado que envia e de seus nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional; b) fomentar o desenvolvimento das relações comerciais, econômicas, culturais e científicas entre o Estado que envia o Estado receptor e promover ainda relações amistosas entre êles, de conformidade com as disposições da presente Convenção; c) informar-se, por todos os meios lícitos, das condições e da evolução da vida comercial, econômica, cultural e científica do Estado receptor, informar a respeito o govêrno do Estado que envia e fornecer dados às pessoas interessadas; d) expedir passaporte e documentos de viagem aos nacionais do Estado que envia, bem como visto e documentos apropriados às pessoas que desejarem viajar para o referido Estado; e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, do Estado que envia; f) agir na qualidade de notário e oficial de registro civil, exercer funções similares, assim como outras de caráter administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor; g) resguardar, de acôrdo com as leis e regulamentos do Estado receptor, os intêresses dos nacionais do Estado que envia, pessoas físicas ou jurídicas, nos casos de sucessão por morte verificada no território do Estado receptor; h) resguardar, nos limites fixados pelas leis e regulamentos do Estado receptor, os interêsses dos menores e dos incapazes, nacionais do país que envia, particularmente quando para êles fôr requerida a instituição de tutela ou curatela; i) representar os nacionais do país que envia e tomar as medidas convenientes para sua representação perante os tribunais e outras autoridades do Estado receptor, de conformidade com a prática e os procedimentos em vigor neste último, visando conseguir, de acôrdo com as leis e regulamentos do mesmo, a adoção de medidas provisórias para a salvaguarda dos direitos e interêsses dêstes nacionais, quando, por estarem ausentes ou por qualquer outra causa, não possam os mesmos defendê-los em tempo útil; j) comunicar decisões judiciais e extrajudiciais e executar comissões rogatórias de conformidade com os acôrdos internacionais em vigor, ou, em sua falta, de qualquer outra maneira compatível com as leis e regulamentos do Estado receptor; k) exercer, de conformidade com as leis e regulamentos do Estado que envia, os direitos de contrôle e de inspeção sôbre as embarcações que tenham a nacionalidade do Estado que envia, e sôbre as aeronaves nêle matriculadas, bem como sôbre suas tripulações; l) prestar assistência às embarcações e aeronaves a que se refere a alínea k do presente artigo e também às tripulações; receber as declarações sôbre as viagens dessas embarcações examinar e visar os documentos de bordo e, sem prejuízo dos podêres das autoridades do Estado receptor, abrir inquéritos sôbre os incidentes ocorridos durante a travessia e resolver todo tipo de litígio que possa surgir entre o capitão, os oficiais e os marinheiros, sempre que autorizado pelas leis e regulamentos do Estado que envia; m) exercer tôdas as demais funções confiadas à repartição consular pelo Estado que envia, as quais não sejam proibidas pelas leis e regulamentos do Estado receptor, ou às quais este não se oponha, ou ainda as que lhe sejam atribuídas pelos acôrdos internacionais em vigor entre o Estado que envia e o Estado receptor. No mesmo sentido, o art. 18 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB6 carreia às autoridades consulares atribuição de notário e de registrador civil para brasileiros que estejam no exterior. Aliás, por força dos §§ 1º e 2º do art. 18 da LINDB (os quais foram acrescidos pela lei 12.874/2013), até mesmo escrituras públicas de divórcio consensual podem ser feitas pelas autoridades consulares, caso em que, por razões práticas, o advogado que assistirá as partes não precisará assinar a própria escritura. Convém a transcrição do supracitado preceito: Art. 18. Tratando-se de brasileiros, são competentes as autoridades consulares brasileiras para lhes celebrar o casamento e os mais atos de Registro Civil e de tabelionato, inclusive o registro de nascimento e de óbito dos filhos de brasileiro ou brasileira nascido no país da sede do Consulado. § 1º As autoridades consulares brasileiras também poderão celebrar a separação consensual e o divórcio consensual de brasileiros, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, devendo constar da respectiva escritura pública as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. § 2o É indispensável a assistência de advogado, devidamente constituído, que se dará mediante a subscrição de petição, juntamente com ambas as partes, ou com apenas uma delas, caso a outra constitua advogado próprio, não se fazendo necessário que a assinatura do advogado conste da escritura pública. O detalhamento da atividade consular é encontrado no Manual do Serviço Consular e Jurídico (MSCJ), que foi aprovado pela Portaria MRE nº 457, de 2 de agosto de 2010 e que será objeto de revisão por força de comando da Portaria MRE nº 336, de 29 de setembro de 2020. No Capítulo 4º do referido manual, estão os detalhamentos para a prática de atos notariais, entre os quais se inclui a lavratura de escrituras públicas, foco deste artigo.  2.3. Lavratura de escrituras públicas pelos consulados 2.3.2. Utilidade e operacionalização Os consulados brasileiros podem lavrar escrituras públicas para a formalização de atos jurídicos. Como exemplo, podemos citar escrituras públicas de procuração, de compra e venda, de divórcio, de união estável, de divórcio consensual etc. Assim, suponha um brasileiro que esteja residindo em Londres por motivos de estudo e que precise dar poderes para seu pai - que está em Brasília - representá-lo perante o Fisco do Distrito Federal em uma questão tributária qualquer. Esse brasileiro poderia pegar o belíssimo metrô londrino (o famoso The Tube), descer na estação Bond Street e andar até a Vere Street, local onde se situa o consulado brasileiro. Lá ele poderia lavrar uma escritura pública de procuração conferindo poderes a seu pai para resolver as questões tributárias pendentes perante o Fisco do Distrito Federal. Em seguida, esse mesmo brasileiro caminhará pelas ruas de Londres em busca de uma agência da Royal Mail Group, que é a companhia responsável pelo serviço postal no Reino Unido. E, com as bênçãos da Rainha, o brasileiro postará uma carta com a escritura pública ao seu pai no Brasil. O seu pai, ao receber a escritura pública, poderá, finalmente, ir ao Fisco distrital resolver as pendências de seu filho que segue sob o encanto da Terra onde há um dos endereços mais famosos do mundo: 221B Baker Street (a morada de Sherlock Holmes). Como se vê, o brasileiro não precisaria interromper sua estada em Londres para viajar ao Brasil, ir a um cartório de notas brasileiro e lavrar uma escritura de procuração. Não! O consulado brasileiro em Londres, com seus serviços notariais, presta-se exatamente a poupar desses transtornos aqueles que possuem vínculos com o território brasileiro e que estão em território estrangeiro por algum motivo pessoal. 2.3.2. Limitação a brasileiros ou a estrangeiros com RNE: a finalidade da outorga de atribuição notarial aos consulados Não é qualquer pessoa que pode se valer requerer a lavratura de escrituras públicas nos consulados brasileiros. Esse serviço do consulado é exclusivo a: (1) brasileiros ou (2) estrangeiros que tenham carteira do Registro Nacional de Estrangeiros - RNE7. O motivo dessa restrição é que o consulado se destina a suprir serviços que um brasileiro ou um estrangeiro com RNE só obteriam se estivessem no território brasileiro. O consulado, nesse ponto, é uma longa manus dos cartórios no exterior para atendimento daqueles que possuam algum vínculo com o território brasileiro (como os brasileiros e os estrangeiros com RNE) e que estão fora do território brasileiro por algum motivo pessoal. Desse modo, estrangeiros sem RNE não podem se servir do consulado brasileiro para lavratura de escrituras públicas, pois eles não possuem vínculo algum com o território brasileiro. Caso eles necessitem de uma escritura pública, o caminho será eles demandarem algum notário situado no país em que residente o interessado ou algum tabelionato de notas situado no Brasil.  2.3.3. Conclusões: conveniência de vias alternativas Com uma mão de obra extremamente qualificada, os consulados destinam-se primordialmente a dar suporte humanitário a brasileiros, fomentar o desenvolvimento das relações comerciais com o Estado Receptor e a intermediar relações de particulares estrangeiros com o Estado Brasileiro. O exercício da atividade notarial e registral pelos consulados é absolutamente secundária nesse contexto e só se justificou por um único motivo: a inviabilidade, no passado, de os cartórios nacionais prestarem seus serviços a brasileiros que estão em solo estrangeiro. A rigor, o consulado assumiu a tarefa para poupar os brasileiros que estejam no exterior dos transtornos de terem de viajar ao Brasil apenas para a prática de atos notariais e registrais. Aliás, é esse o motivo de os consulados não prestarem serviços notariais a estrangeiros (sem RNE): consulado não tem vocação para ser cartório. O consulado assumiu função notarial apenas por conta da inviabilidade, no passado, de os cartórios brasileiros prestarem serviços fora do território. Estrangeiros sem RNE têm de buscar serviços notariais de algum notário do país em que residente o interessado ou diretamente em algum cartório brasileiro. Ao cidadão brasileiro ou ao estrangeiro com RNE caberá ir presencialmente ao consulado brasileiro no País em que estiverem, o que, por vezes, pode ser dispendioso, e - em tempos de restrição de circulação -, até mesmo, dificultoso. Afinal de contas, os consulados costumam ficar apenas na capital dos países, de sorte que o brasileiro ou o estrangeiro com RNE que estiverem no interior do país estrangeiro terá de viajar à capital. Realmente, seria inviável economicamente instalar postos avançados do consulado em todas as cidades de cada país receptor. E a assunção dessa atribuição notarial pelo consulado é inegavelmente custosa. É custosa, porque desmobiliza um pessoal extremamente qualificado que poderia estar dedicado às funções primordiais do consulado a fim de cuidar de uma atribuição tecnicamente complexa: a notarial. É custosa, porque a manutenção da estrutura material e de pessoal de um consulado é elevadíssima - e é um investimento necessário e fundamental! -, de modo que convém desonerá-los de atribuições absolutamente secundárias sempre que for possível. Nesse diapasão, a questão central aqui é a seguinte: os tabelionatos de notas brasileiros têm condições atualmente de prestar remotamente serviços notariais para pessoas localizados em solo estrangeiro? A resposta é positiva em relação à lavratura de escrituras públicas (a principal função notarial), conforme veremos mais abaixo. Esse fato acena para um alvissareiro caminho rumo à progressiva desoneração dos consulados em relação a uma atividade que lhes é absolutamente secundária, com a consequente viabilidade de a sua estrutura material e de pessoal ser concentrada nas suas atividades primárias. 3. Prestação remota de serviços de escrituras públicas a pessoas localizadas no exterior  3.1. Escritura pública eletrônica e o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ  Acelerando uma tendência inexorável de digitalização dos serviços, a pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, que impôs restrições de circulação de pessoas nas todas as cidades brasileiras, interpelou todas as instituições brasileiras a viabilizarem meios de prestação remota de serviços aos indivíduos. Todas as instituições tiveram de, em maior ou em menor grau, valer-se dos canais de comunicação digitais propiciados pela Quarta Revolução Industrial, a fim de repensarem o ultrapassado modelo de atendimentos presenciais. Os serviços notariais e registrais não foram diferentes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), louvando-se no suficiente suporte legislativo atual, deu conforto normativo para a prestação remota desses serviços. No tocante aos tabelionatos de notas - foco do presente artigo -, o destaque é para o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). Esse ato normativo autorizou os tabeliães de notas a lavrarem escrituras públicas de modo eletrônico, coletando documentos por canais eletrônicos (como e-mail) e estabelecendo, por meio de videoconferência, contato com as partes para conferência da autenticidade dos documentos e para certificação da manifestação de vontade. A assinatura da escritura pública pelas partes se dá por meio de assinatura eletrônica proveniente do uso de certificado digital idôneo (o expedido no âmbito da ICP-Brasil ou no âmbito da plataforma do e-Notariado). A propósito das espécies de assinatura eletrônica, reportamo-nos o leitor a outro artigo8 que escrevemos esmiuçando o tema, artigo do qual extraímos o seguinte resumo: 1. O texto explica o que é assinatura eletrônica e demonstra, com exemplos práticos, como o cidadão pode utilizá-la para assinar contratos e outros atos jurídicos, além de propor interpretações e sugestões à doutrina, à jurisprudência e à legislação diante da necessidade de o Direito se adaptar à Era das comunicações remotas (capítulo 1). 2. De um modo simplificado, pode-se dizer que, ao longo da História, para a certificação de autoria de documentos, evolui-se do uso dos sinetes sobre cera derretida até a assinatura eletrônica, passando pela assinatura de próprio punho. Deixa-se de abordar outras formas de certificação ao longo da história pelos limites deste artigo (capítulo 2). 3. O "certificado digital" é a identidade virtual de uma pessoa e fica armazenada em algum dispositivo (token, celular, smart card, nuvem etc.); é, metaforicamente, o anel-sinete. Após ter o "certificado digital", a pessoa pode assinar eletronicamente qualquer documento conectando o dispositivo que contém o seu certificado digital ao computador e digitando a sua senha pessoal (o seu PIN). Metaforicamente, assinar eletronicamente é pressionar o "anel-sinete" sobre a cera derretida para deixar a sua marca. (capítulo 3). 4. As assinaturas eletrônicas podem ser classificadas: a) quanto à tipicidade, em: a.1) típicas: as disciplinadas em lei ou ato infralegal, no que se incluem as assinaturas eletrônicas no âmbito do e-Notariado e da ICP-Brasil; e a.2) atípicas: as decorrentes de pacto entre as partes. b) quanto ao nível de segurança, em: b.1) simples: aquela que "permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário" (art. 4º, inc. I, da lei 14.063/2020); b.2) avançada: aquela que "está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável" (art. 4º, inc. II, da Lei nº 14.063/2020), no que se inclui a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado9; e b.3) qualificada: aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). 5. ASSINATURA ELETRÔNICA NO ÂMBITO DO E-NOTARIADO (capítulos 3.1. e 4) 5.1. No âmbito dos Cartórios de Notas, qualquer cidadão pode gratuitamente obter um "certificado digital notarizado" emitido no seio da plataforma "e-Notariado", comparecendo, pessoalmente ou remotamente por videoconferência, a uma serventia para sua identificação. 5.2. O fundamento é o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ. 5.3. Com esse "certificado digital notarizado", o cidadão poderá assinar eletronicamente qualquer ato notarial, como escrituras públicas de compra e venda, de procuração etc. 5.4. O certificado digital notarizado não pode, por ora, ser utilizado para assinar eletronicamente atos fora dos Cartórios, mas entendemos que convém seja espraiado o seu uso para além dos cartórios, caso em que a assinatura eletrônica aí valeria como um reconhecimento de firma. 6. ASSINATURA ELETRÔNICA NO ÂMBITO DA ICP-BRASIL (capítulo 3.2.) 6.1. A assinatura eletrônica decorrente de certificados emitidos no âmbito da ICP-Brasil é eficaz para qualquer ato jurídico por força do art. 10 da MP 2.200-2/2001. Os referidos certificados podem, pois, ser utilizados tanto em Cartórios de Notas (em concomitância com a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado) quanto fora. 6.2. Para obter um certificado digital no seio da ICP-Brasil, a pessoa deve comparecer pessoalmente perante uma pessoa jurídica incumbida da função de "Autoridade Registradora" (AR), a qual fará os cadastros necessários e, se for o caso, entregará o dispositivo (como um token, um cartão etc.) no qual ficará o certificado digital. A IN ITI nº 02/2020 e a lei 14.063/2020 autorizam que esse registro seja feito de forma não presencial, o que poderá ameaçar a viabilidade financeira das empresas que lidam como AR. 6.3. O ITI, que é uma autarquia, é a Autoridade Certificadora Raiz (AC Raiz). Ele é incumbido de executar as diretrizes dadas pelo "Comitê-Gestor da ICP-Brasil", órgão público colegiado vinculado à Casa Civil da Presidência da República. Ele também coordena e fiscaliza as Autoridades Certificadoras (ACs). O ITI não pode emitir certificado digital diretamente ao usuário final. 6.4. A emissão do certificado digital ao usuário final é feita por uma Autoridade Certificadora (AC) após o cadastro feito pela respectiva Autoridade de Registro (AR). Podemos citar, a título de exemplo, várias pessoas jurídicas incumbidas da condição de AC no âmbito do ICP-Brasil, como a Serpro, a Certisign, a Caixa etc. 7. ASSINATURA ELETRÔNICA FORA DOS CARTÓRIOS E DA ICP-BRASIL (capítulo 3.3.) 7.1. Vige, no ordenamento jurídico brasileiro, a atipicidade das assinaturas eletrônicas: as partes podem, por acordo, estipular outras formas de assinatura eletrônica (art. 10, § 2º, da MP nº 2.200-2/2001). 7.2. A título de exemplo de assinaturas eletrônicas atípicas - aquelas decorrentes de acordo entre as partes -, citam-se as praticadas por bancos e corretoras de valores mobiliários com seus clientes, as fornecidas por empresas de assinatura eletrônica (como a "Clicksign") e, inclusive, as baseadas em mensagens por e-mail ou por WhatsApp na forma do previsto em contrato. 8. PROPOSIÇÕES PARA DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO (capítulo 4) 8.1. O conceito de "documentos assinados" previsto o art. 219 do CC alcança documentos físicos e eletrônicos bem como assinaturas físicas ou eletrônicas. 8.2. Instrumento público eletrônico são escrituras públicas eletrônicas. 8.3. Documentos públicos eletrônicos são aqueles produzidos e despapelizados por agentes públicos com sua assinatura eletrônica, a exemplo de certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos e dos próprios atos notariais eletrônicos. 8.4. Quando a legislação exige manifestação de vontade presencial, deve-se entender que aí está abrangida também a manifestação de vontade por canal de comunicação remota e instantânea, tudo conforme o que Mário Luiz Delgado batiza de princípio da presença virtual. 8.5. O certificado digital notarizado (aquele emitido no âmbito do e-Notariado) deve ser espraiado para valer como assinatura eletrônica para atos praticados fora dos Cartórios de Notas, como em instrumentos particulares (cfr. Provimento nº 103/2020 - CN/CNJ) ou, até mesmo, em petições dirigidas a processos judiciais. 8.6. O legislador deve adaptar a legislação para afastar dúvidas interpretativas acerca do valor jurídico dos documentos eletrônicos. Como se vê, não há mais necessidade de comparecimento presencial a um tabelionato de notas para lavrar uma escritura pública. Tudo pode ser feito à distância. Basta a parte ter um certificado digital típico, seja no âmbito da ICP-Brasil, seja no orbe do e-Notariado (= certificado digital notarizado). Em relação ao certificado digital notarizado, é preciso fazer apenas uma ressalva ao nosso anterior artigo. Naquela ocasião, apontamos que a obtenção de um certificado digital notarizado ocorreria mediante o comparecimento presencial do interessado a uma serventia extrajudicial. Essa, porém, foi uma leitura inicial que havíamos feito logo no início da edição do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ (o nosso artigo foi de julho de 2020; o referido provimento foi de maio). Temos, porém, que aquela interpretação não era a mais adequada, pois, na verdade, o que importa para a emissão do certificado digital notarizado é que o cidadão comprove sua identidade perante um notário, o que pode ser feito pela sua presença física à serventia ou por sua presença virtual mediante videoconferência ou envio eletrônico de documentos. Como ensina Mário Luiz Delgado com o princípio da presença virtual10, a comunicação por canal de comunicação on-line é também uma forma de expressão presencial. Em igual diapasão, reportamo-nos a excelente artigo do professor Gustavo Bandeira intitulado "a competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros"11. A propósito, certificados ICP-Brasil, com o advento da já mencionada lei 14.063, de 23 de setembro de 2020, sancionada a partir do Projeto de Lei de Conversão PLV nº 32/2020 (oriundo da Medida Provisória nº 983/2020), passaram a ter amparo legal para que sua emissão possa ser realizada com a identificação e o cadastro do requerente realizados de forma não presencial. A partir de então, por meio da resolução nº 177, de 20 de outubro de 2020, o Comitê Gestor da ICP-Brasil delegou à AC Raiz (ITI) a regulamentação dos procedimentos técnicos a serem observados nas emissões não presenciais, com nível de segurança equivalente ao das emissões presenciais. Em 22 de fevereiro de 2021, foi editada a Instrução Normativa ITI nº 5, a qual aprova procedimentos e requisitos técnicos para coleta biométrica e cadastro inicial de requerentes de certificados digitais, prevendo a emissão de certificados digitais por videoconferência. Seja com o uso de certificados digitais notarizado, seja com certificados ICP-Brasil, a Plataforma e-Notariado estrutura a rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas brasileiros e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e dos órgãos públicos, de modo a garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente.  3.2. Viabilidade de lavratura de escrituras públicas por tabelionatos nacionais em favor de partes localizadas no exterior  Conforme exposto no subcapítulo anterior, qualquer pessoa capaz, situada em qualquer local do Planeta, pode solicitar a lavratura de uma escritura pública eletrônica em um tabelionato de notas brasileiro. Se ela não tiver um certificado digital no âmbito da ICP-Brasil, ela poderá, mediante comunicação remota com a serventia brasileira (por videoconferência e por envio eletrônico de documentos), obter o seu certificado digital notarizado e, com ele, assinar eletronicamente qualquer assinatura. Assim, estrangeiros sem RNE, os quais não podem se valer dos serviços notariais dos consulados brasileiros, não precisam viajar ao Brasil para a lavratura de escrituras públicas eletrônicas por autoridade brasileira. Eles podem obter uma escritura pública sem ir fisicamente a uma serventia brasileira, apresentando eletronicamente seus documentos de identidade (e aqui o recomendável é exigir o passaporte) e - se for o caso - indicando o seu número de CPF/MF12. Igualmente, brasileiros ou estrangeiros com RNE - aos quais o serviço notarial consultar está disponível - não precisam buscar o consulado brasileiro no País em que estiverem para a lavratura de uma escritura pública brasileira. Não precisam, pois, viajar à capital do país estrangeiro em busca do consulado brasileiro, que geralmente só fica na capital por questões de inviabilidade prática de sua ramificação ao longo de todo o território estrangeiro. Eles, pois, podem remotamente buscar uma serventia brasileira, fazerem o seu certificado digital notarizado (caso não tenham um certificado digital no âmbito da ICP-Brasil), manifestarem sua vontade e assinarem a escritura. Para tanto, basta-lhe apenas ter acesso à internet e um aparelho celular para a emissão de certificado digital, o comparecimento às videoconferências e os envios eletrônicos de documentos. A Quarta Revolução Industrial, catalisada pelo clamor por serviços remotos em razão da pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, desfaz os obstáculos impostos pela distância geográfica e flexibiliza a ideia de fronteiras transnacionais. O exemplo das escrituras públicas eletrônicas em favor de pessoas localizadas no exterior é simbólico disso. Conclusão Com a viabilidade de lavratura de escrituras públicas eletrônicas pelos tabelionatos de notas brasileiros em favor de pessoas localizadas em qualquer lugar do Planeta, os consulados brasileiros encontram uma luz para se aliviarem da execução de uma atividade absolutamente secundária no contexto de suas funções. Em avançando o atendimento remoto dos tabelionatos brasileiros para pessoas em solo estrangeiro, o corpo consular, composto por profissionais de elevada capacitação, com sua dispendiosa estrutura material e de pessoal, não precisará ser mobilizado para funções secundárias. Brasileiros ou estrangeiros com RNE que estejam em cidades do interior de países estrangeiros não terão de viajar à capital em busca de uma escritura pública consular. Bastará navegar pelas ondas virtuais da internet para - presentes virtualmente - lavrarem escrituras públicas. Estrangeiros sem RNE - para os quais é negado o serviço notarial consular - não terão mais o obstáculo de ter viajar ao Brasil para lavrar escrituras públicas perante notários brasileiros. Podem comparecer a uma serventia brasileira nas asas dos ventos virtuais da Internet e lançar sua assinatura eletrônica nas tábuas notariais despapelizadas. O tempo é de estimular essa prática, que já é plenamente admitida com base nas normas atuais. Quiçá seja o caso de, por alguma forma de cooperação interinstitucional, o próprio Itamaraty difundir, nos consulados, a orientação para os brasileiros e os estrangeiros com RNE valerem-se das escrituras públicas eletrônicas lavradas pelos cartórios brasileiros. As entidades representativas dos notários poderiam criar um portal eletrônico para recepcionar demandas por escrituras públicas por parte de pessoas situadas no exterior, sem, porém, eliminar o direito de livre escolha do tabelião por parte do usuário na forma do art. 8º da lei 8.935/1994. Se o usuário se valer desse portal, a demanda seria distribuída entre os cartórios brasileiros levando em conta critérios objetivos como: último domicílio do usuário no Brasil, preferência pessoal do usuário em relação a alguma cidade brasileira etc. Esse portal, porém, será apenas uma faculdade ao usuário, que, por sua própria conta, poderá livremente escolher o tabelião brasileiro de sua confiança com base no direito de livre escolha assegurada pelo art. 8º da lei 8.935/1994. As reflexões aqui ventiladas deitaram-se apenas nas lavraturas de escrituras públicas. Todavia, temos que elas, mutatis mutandi, podem ser estendidas para a prestação remota aos serviços registrais. Afinal de contas, registros de nascimento, de casamento e de óbito são oferecidos remotamente pelos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais atualmente. Não vemos obstáculos a estender esses serviços registrais, mas deixaremos para outra oportunidade esmiuçar o tema e apontar adaptações eventualmente necessárias. Por ora, basta-nos anunciar que o ordenamento jurídico brasileiro atentou para a rosa dos ventos da Quarta Revolução Industrial a fim de guiar os tabelionatos de notas rumo à prestação remota de serviços de escrituras públicas a pessoas localizadas em solo estrangeiro. Os consulados brasileiros, finalmente, veem-se próximos de desonerarem-se de atribuições periféricas e poderem concentrar seu primoroso corpo técnico e sua estrutura material nas suas funções cardeais. Os tempos mudaram, e o Direito não pode se omitir diante disso para não cair na letargia da "Carolina" de Chico Buarque, o qual cantava: "o tempo passou na janela, e só Carolina não viu". Referências bibliográficas  BANDEIRA, Gustavo. A competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros. Disponível aqui. Publicado em 24 de fevereiro de 2021.  DELGADO, Mário Luiz Delgado. A pandemia e o princípio da presença virtual. Disponível aqui. Publicado em 16 de julho de 2020.  OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em: 20 de julho 2020.  SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. - São Paulo: Edipro, 2016, p. 16. __________ 1 Expressão cunhada pelo fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial Klaus Schwab, para expressar fase do desenvolvimento humano que "teve início na virada do século e baseia-se na revolução digital. É caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina)". A esse respeito, cfr. SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. - São Paulo: Edipro, 2016, p. 16. 2 Excepcionalmente, mesmo quando há ruptura de relações diplomáticas, as relações consulares poderão manter-se em vigor, conforme item 3 do art. 2º da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 (internalizada ao Brasil pelo Decreto nº 61.078/1967): ARTIGO 2º Estabelecimento das Relações Consulares O estabelecimento de relações consulares entre Estados far-se-á por consentimento mútuo. 2. O consentimento dado para o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois Estados implicará, salvo indicação em contrário, no consentimento para o estabelecimento de relações consulares. 3. A ruptura das relações diplomáticas não acarretará ipsó facto a ruptura das relações consulares.  3 A propósito da Autorização de Retorno ao Brasil (ARB), reportamo-nos ao site do Itamaraty. 4 No caso de documentos públicos emitidos por País estrangeiro, para eles serem utilizados no Brasil, é fundamental que a sua integridade e a sua autenticidade sejam atestadas. Isso é feito por meio da apostila (se o País estrangeiro for signatário da Convenção da Apostila de Haia) ou da legalização consular (se o País estrangeiro não é signatário da convenção). Essa legalização consular é feita pelo consulado brasileiro situado no País estrangeiro emissor do documento. Já em relação a documentos públicos brasileiros (cuja integridade e autenticidade também precisam ser atestadas para serem utilizados no exterior), cabe aos cartórios extrajudiciais promoverem o seu apostilamento. Caso o país estrangeiro no qual será utilizado o documento público brasileiro não seja signatário da Convenção da Apostila de Haia, a sua legalização deverá ser feita pela Divisão de Assistência Consular (DAC) - situada em Brasília, no prédio do Ministério das Relações Exteriores - ou pelos escritórios de representação do Ministério das Relações Exteriores situados em diversos Estados brasileiros. Mais detalhes podem ser consultados no site do Itamaraty. 5 No Brasil, a Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 foi promulgada pelo Decreto nº 61.078/1967 (após aprovação pelo decreto legislativo 6, de 1967). Em conformidade com seu artigo 77, § 2º, em 10 de junho de 1967, a Convenção entrou em vigor no Brasil trinta dias após 11 de maio de 1967, data do depósito do instrumento brasileiro de ratificação junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 6 Decreto-lei4.657/1942. 7 O item (rectius, a Norma Jurídica Consular e Jurídica) nº 4.1.3 do Manual do Serviço Consular e Jurídico assim dispõe: 4.1.5 Somente os brasileiros podem valer-se dos servic¸os de registro civil prestados pelas Repartic¸o~es Consulares brasileiras. Dos servic¸os de natureza notarial podem valer-se os brasileiros e os portadores de carteira do Registro Nacional de Estrangeiros - RNE va'lida, com excec¸a~o do reconhecimento de firmas de tabelia~es estrangeiros, e da autenticac¸a~o de documentos expedidos por o'rga~os oficiais na jurisdic¸a~o do Posto (ver Capi'tulo 4, Sec¸a~o 7a). 1) Os portadores de RNE vencido, que ate' a data do vencimento do documento tenham completado 60 anos de idade, na~o te^m necessidade de substitui'-lo, conforme os termos do Decreto-Lei no 2.236, de 23 de janeiro de 1985, com redac¸a~o dada pela Lei no 9.505 de 1997. Assim, podera~o utilizar o referido documento, mesmo que vencido, para valer-se dos servic¸os de natureza notarial. 8 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em: 20 de julho 2020. 9 Com relação às assinaturas eletrônicas avançadas, a Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021, estabelece, no inc. VIII do § 1º do art. 7º, que regulamento poderá dispor sobre o uso de assinatura avançada para fins de apresentação de documentos aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos. De todo modo, subsiste regra contida no parágrafo único do art. 17 da Lei nº 6.015/1973 (incluído pela lei 11.977/2009), no sentido de que, in verbis: "O acesso ou envio de informações aos registros públicos, quando forem realizados por meio da rede mundial de computadores (internet) deverão ser assinados com uso de certificado digital, que atenderá os requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP." 10 DELGADO, Mário Luiz Delgado. A pandemia e o princípio da presença virtual. Disponível aqui. Publicado em 16 de julho de 2020. 11 BANDEIRA, Gustavo. A competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros. Disponível aqui. Publicado em 24 de fevereiro de 2021. 12 Alguns atos exigem o CPF, o que exigirá diligência do estrangeiro perante a Receita Federal do Brasil para sua inscrição, nos termos do art. 3º da Instrução Normativa RFB 1.548/2015.
A MP 1.085/21 foi aprovada pelo Congresso Nacional com algumas emendas. Uma das novidades do novo texto legal (enviado para a sanção presidencial) é a possibilidade de a adjudicação compulsória ser requerida, processada e deferida perante os cartórios de registro de imóveis, similarmente ao que hoje já acontece com a usucapião extrajudicial. A inovação pode ser vista no art. 216-B da lei 6.015/73 (lei de registros públicos), que exige a participação de advogado e procuração com poderes especiais. Estão legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o próprio promitente vendedor. É preciso ficar comprovado o inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos. Assim se garante o direito de defesa, que tem status constitucional. Como na usucapião, é preciso antes do requerimento ser feita uma ata notarial, lavrada por tabelião de notas, da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa. É essencial que haja prova do pagamento do preço contratado na promessa de venda, além de certidões dos distribuidores forenses que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação. Diferentemente da usucapião, há necessidade da comprovação do pagamento do imposto sobre a transmissão de bens imóveis, pois essa forma de aquisição não é originária, mas derivada. Esse imposto é realmente devido, pois o registro será já de transmissão da propriedade e não apenas da promessa. A propósito, uma salutar medida de simplificação e de redução de custos está no fato de que não se exige o prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e nem mesmo a comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor. Dívidas fiscais do imóvel não inibem o pedido de adjudicação, uma tendência que já vem sendo mostrada pela jurisprudência. Estando o pedido em ordem e tendo sido assegurado o direito de defesa, o oficial do registro de imóveis, fará o registro da propriedade em nome do promitente comprador, sem necessidade de uma escritura definitiva, servindo para isso a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão. Como é sabido, o êxito desse procedimento depende da ausência de impugnação consistente. Se houver desavença não superada por uma audiência de tentativa de conciliação, o caso deverá ser encaminhado ao Poder Judiciário, que é o especialista na solução de conflitos. Dessa forma, o registro de imóveis se firma cada vez como o local adequado para a regularização da propriedade e da solução de vários casos em que os imóveis ainda não estão em nomes das pessoas a quem eles de fato pertencem. O tema deve ser objeto de regulamentação pelo CNJ e pelas Corregedorias dos Estados, que podem dispor sobre detalhes, como o cabimento de intimação por edital, o valor da causa, etc. Mas, a norma tem aplicação imediata e os pedidos podem ser feitos desde já. Com a proteção legal que advém do registro da propriedade, o dono de fato passa a ser dono de direito e pode oferecer o bem para garantia de um crédito mais barato, pode alienar o bem por um preço melhor avaliado e também fica bem mais facilitado o exercício de direitos entre os cônjuges, companheiros e demais herdeiros. Por outro lado, com o imóvel já em nome do real proprietário, o município terá a pessoa certa para fazer a cobrança de IPTU, evitando-se demandas contra pessoas que já não se consideram donas do imóvel. Isso evita demandas na justiça. O ganho é geral para todos. O compromisso de compra e venda ou simplesmente a "promessa de venda" é a forma mais comum de contratação preliminar para aquisição de um imóvel, especialmente nas faixas sociais mais numerosas do Brasil. A adjudicação compulsória nos cartórios tende a facilitar muito a que as pessoas que têm apenas os compromissos se tornem donas de verdade. Isso é de grande valor. Os cartórios extrajudiciais têm prestado excelentes trabalhos, com grande agilidade e rapidez, em proveito da população. E isso tem cada vez mais se ampliado com um fenômeno crescente chamado de desjudicialização. Este é mais um exemplo que certamente fará grande sucesso.
Introdução Os processos de execução devem mesmo continuar concentrados no Poder Judiciário? A pergunta é ousada. Este artigo pretende levantar reflexões sobre o tema, sem, porém, esgotá-lo. Realidade: impotência do Poder Judiciário É preciso ser realista: a quantidade de processos judiciais é colossalmente maior do que a capacidade de vazão do Poder Judiciário. Ao lado disso, parece haver um grande desperdício operacional ao colocar a estrutura dispendiosa e extremamente qualificada do Poder Judiciário para lidar com questões que, por um cálculo de custo-benefício, poderiam ser resolvidas de modo menos oneroso e sem prejuízo à qualidade da solução. Os números assustam. Em 2018, havia apenas cerca de 18 mil magistrados no Brasil, incluídos desembargadores e ministros de todas as esferas do Judiciário1. No final de 2018, havia cerca de 78 milhões de processos judiciais em trâmite nos 90 tribunais brasileiros2. Logo, em uma simplificada média, temos uma média de 4 mil processos por juiz, o que já representa um valor desumano e absurdo. Se levarmos em conta que essa média foi feita de modo simplificado, pois levou em conta magistrados de várias instâncias e de diferentes esferas do Poder Judiciário, podemos ter certeza de que o número efetivo pode ser bem pior. Como um juiz consegue julgar 4 mil processos com celeridade? É óbvio que isso não é viável, o que justifica a morosidade do Poder Judiciário. Todos sabem que, na maior parte das vezes, ao ajuizar uma ação, a parte terá de aguardar alguns anos para obter um desfecho final. O modelo judicial brasileiro não funciona adequadamente. Isso é fato! Acresça-se a esse desolador fato a existência de verdadeiro desperdício operacional. Explica-se. O Poder Judiciário é uma estrutura que demanda elevadíssimos gastos públicos. Cada juiz custa, em média, R$ 47 mil reais3. Há elevados gastos com manutenção dos demais servidores públicos do Judiciário, com pessoal, com infraestrutura etc. Realmente, o Poder Judiciário depende de pessoal com alta capacidade técnica, o que obviamente exige gastos maiores. O problema não é a alta dimensão desses gastos: o Poder Judiciário precisa mesmo de um alto investimento. O problema é o uso dessa estrutura para lidar com problemas que poderiam ser tratados de forma mais racional em outra estrutura, como no âmbito dos serviços notariais e de registro. Não acreditamos que a solução seja aumentar o número de juízes (ao menos, por ora), catapultando os gastos públicos com o consequente o aumento de impostos. Temos que, antes de tudo, pensar em formas de "lipoaspiração" para retirar demandas que, sob a ótica do custo-benefício, poderiam ser resolvidas fora do Poder Judiciário com ganho de velocidade e, até mesmo, de qualidade. É possível obter soluções mais eficientes, sem sacrificar os valores inegociáveis do Estado de Direito. É viável concretizar a Justiça com eficiência. Necessidade de desjudicialização Há uma imperiosa necessidade de cogitarmos em formas de desjudicialização. O legislador já havia enxergado isso, do que dão exemplos estes casos: a) Divórcio e inventário extrajudiciais (lei11.441, de 4 de janeiro de 2007); b) Execução extrajudicial de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis (arts. 26 e seguintes da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997); c) Execução extrajudicial de hipotecária (art. 31 do decreto-lei70, de 21 de novembro de 1966); d) Retificação extrajudicial no Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 110 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973); e) Retificação extrajudicial no Registro de Imóveis (art. 213 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973) f) Reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63, de 14 de novembro de 2017, com a alteração pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - CN/CNJ). g) Mudança de nome e de sexo para transgênero (provimento 73, de 28 de junho de 2018). h) Extrajudicialização da homologação de penhor legal (art. 703 do Código de Processo Civil - CPC). i) Extrajudicialização da consignação em pagamento (art. 539 do Código de Processo Civil - CPC). j) Dispensa judicial para a habilitação de casamento, salvo se houver impugnação (art. 1.526 do Código Civil). Aliás, o próprio setor privado, diante da ineficiência dos mecanismos estatais de cobrança de dívida, criou formas próprias e alternativas de cobrança de dívida, como a criação de cadastros de inadimplentes (como o Serasa). Precisamos avançar mais. Desjudicialização dos processos de execução Para efeito deste estudo, processo de execução diz respeito aos procedimentos disponíveis para obter a satisfação forçada de um crédito, com base em um título executivo. Abrange, assim, o cumprimento de sentença e as diferentes formas de execução previstas no Código de Processo Civil. Embora desconheçamos estudos estatísticos oficiais, a experiência forense demonstra que a grande parte dos processos de execução resulta infrutífero: a parte exequente não consegue penhorar nada por falta de bens do devedor. E, em vários desses feitos, a parte executada sequer apresenta qualquer tipo de impugnação. Em poucas palavras, o Poder Judiciário "trabalha à toa" nesses processos, o que, no contexto de carência de juízes e de alto volume de processos, representa um detestável desperdício de tempo e trabalho.  Outras formas, mais céleres e, quiçá, de maior qualidade, poderiam ser utilizadas, como a implantação de um modelo de desjudicialização dos processos executivos. O tema já vem sendo cuidado academicamente. Chamamos a atenção para a dissertação de mestrado de Luiz Fernando Cilurzo defendida na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo)4 sob o título "A desjudicialização na execução por quantia certa". Na tese, o acadêmico demonstra que vários outros países já possuem um modelo desjudicialização da execução de dívidas, como Suécia, Dinamarca, Rússia, Estados Unidos, França e Portugal. Para aprofundamento, reportamos o leitor para as páginas 121 a 158 da dissertação. O mestre pela Largo São Francisco enfoca o modelo português, que envolve dois ritos: um rito ordinário (que é um misto que envolve participação do juiz em conjunto com um agente de execução) e um rito sumário (em que a participação do juiz é mais restrita). Outros aprofundados trabalhos poderiam ser citados, as obras destes respeitados juristas: Taynara Tiemi Ono5, Rachel Nunes de Carvalho Farias6, Alexandre Chini7, Joel Dias Figueira Júnior8 e Flávia Pereira Ribeiro9. Entendemos que é plenamente viável criar um procedimento extrajudicial de execução, valendo-se dos serviços notariais e registrais. Os titulares dos serviços notariais e registrais são profissionais do Direito, selecionados em dificílimo concurso público, fiscalizados pelo Poder Judiciário. Nos seus quadros, há uma constelação de talentosos juristas, com renomados professores acadêmicos, com ex-juízes, com ex-promotores, com ex-membros da Advocacia Pública etc. Os tabeliães e os registradores integram a elite técnica dos juristas. Sua aptidão técnica para assumir a tarefa é inegável. Sua sujeição a um regime privado de funcionamento abre espaço para a absorção de novas funções, como a ora cogitada. Entre as especialidades extrajudiciais, o tabelionato de protesto é aquela com maior pertinência temática para protagonizar um procedimento de execução extrajudicial. Sua atuação em protesto afeiçoa-se com cobrança de dívida. A regulamentação do procedimento executivo deve atentar para o fato de que qualquer parte prejudicada poderá socorrer-se do Poder Judiciário para atacar irregularidades no curso desse procedimento, à semelhança do que acontece com os outros ritos executivos extrajudiciais que já conhecemos10. Consideramos que as impugnações do devedor, como alegações de impenhorabilidade de bens, devem, em primeiro lugar, ser endereçadas ao próprio tabelião de protesto. Este deve decidir a favor ou contra, à semelhança do que se faz em procedimentos administrativos no âmbito da Administração Pública. A parte vencida, porém, terá o direito de veicular sua irresignação perante o Poder Judiciário: trata-se de um controle judicial de ato administrativo. A realização de atos de constrição patrimonial, como bloqueio de ativos financeiros do devedor, poderá ser conduzida pelo próprio tabelião em sede do procedimento executivo extrajudicial, desde que este obviamente observe o contraditório e a ampla defesa. Há, porém, de assegurar ao devedor as vias adequadas de insurreição, inclusive pela via judicial, em nome do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Entendemos que essa assertiva vale até mesmo para os casos em que o ato de constrição judicial exija o uso da força policial, como na hipótese de desapossamento de veículos e de outros bens. A exceção corre à conta de constrições judiciais de bens situados dentro do domicílio do devedor, em respeito à cláusula de reserva de jurisdição que recai sobre o domicílio (art. 5º, XI, da Constituição Federal). O devedor poderá socorrer-se do Poder Judiciário no caso de ilegalidade. É possível adotar soluções criativas alinhadas ao Estado de Direito. É possível fazer justiça sem justiçamento. O fato é que o quadro atual, de manifesta incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão à assustadora carga de demandas, não pode permanecer. Conclusão O objetivo desse artigo não é descer às minúcias do procedimento executivo extrajudicial. É, sim, erguer reflexões sobre iniciativas de desjudicialização que urgem, com destaque para o papel protagonistas que os tabeliães e os registradores poderão exercer. Além da desjudicialização da execução civil, há outras reflexões a serem feitas, como a conveniência de autorizar a arbitragem nos serviços notariais e registrais. É preciso enfrentar, de vez, a realidade de incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão ao volume brutal de demandas. E esse enfrentamento deve ser feito em sintonia com o Estado Democrático de Direito, aliando eficiência com criatividade e justiça. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 "Execução por quantia certa - Acesso à justiça pela desjudicialização da execução civil". 6 Desjudicialização do processo de execução - O modelo português como uma alternativa estratégica para a execução civil brasileira". 7 "Desjudicialização do Processo de Execução de Título Extrajudicial". 8 "Execução Simplificada e a Desjudicialização do Processo Civil: Mito ou Realidade". 9 "Desjudicialização da Execução Civil" 10 Ex.: a execução extrajudicial de dívida garantida por propriedade fiduciária imobiliária (lei 9.514/97).
A Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis é um dos direitos reais mais relevantes e utilizados atualmente, face a garantia de pagamento que o credor obtém ao conceder o crédito. Este mostra-se, atualmente, oportuno em razão do importante papel a ela reservado principalmente na economia. No Brasil, a alienação fiduciária em garantia é negócio jurídico que pode ser conceituado como negócio jurídico pelo qual o devedor fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor fiduciário da propriedade resolúvel de coisa imóvel (artigo 22 da lei 9.514/97, para bens imóveis1). O instituto da alienação fiduciária como garantia, por expressa dicção legal é a corrente doutrinária majoritária. Esta propriedade resolúvel é conferida ao credor até a solução da obrigação garantida. Pode ter como objeto móveis e imóveis e neste paper será estudado apenas os bens imóveis. A propriedade resolúvel tem caráter temporário (como todos os outros direitos reais em espécie, a exceção da propriedade). Uma das correntes sobre a natureza jurídica da Alienação Fiduciária em Garantia - AFG, capitaneada por Vitor Frederico Kümpel, diz trata-se de direito real em que o devedor fiduciante afeta um bem imóvel em garantia de um mútuo ao credor fiduciário. Como consequência, há o desdobramento da posse em direta e indireta respectivamente, podendo gerar dois resultados: se inadimplida a obrigação dar-se-á a consolidação da propriedade ao fiduciário e posterior leilão2 para quitação nos termos do artigo 26 da Lei 9.514/97 e seguintes da referida lei. Caso a obrigação seja paga e haja total adimplemento no negócio jurídico, conforme o autor, desafeta-se o bem que retorna ao patrimônio do fiduciante de forma plena. A natureza jurídica, embora muitos defendam ser propriedade resolúvel, é, em verdade, um negócio jurídico sob condição resolutiva. O registro do título dá natureza real à pretensão restitutória do devedor. Não se trata de propriedade resolúvel porque o bem imóvel não deixa de ser do devedor, mas também não ingressa no patrimônio do credor, ficando afetado (conforme Kümpel) até que haja o cumprimento ou não da obrigação, ou seja, fora do comércio. A AFG de bem imóvel, portanto, é negócio jurídico típico e formal, com estrutura prevista em lei (acessório ao contrato principal que é o mútuo), temporário e transitório, posto que celebrado para terminar com o implemento da condição (quitação ou consolidação), sinalagmático e comutativo, pois cria obrigação e benefício a ambas as partes e cada parte pode antever a sua prestação e a do outro, com equivalência. A constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel dá-se com o registro no competente Registro de Imóveis do contrato que lhe serve de título (art. 23, lei 9.514/97). A possibilidade de nova garantia real ser registrada após a uma alienação fiduciária previamente inscrita inexiste, conforme deduz-se da teleologia da Lei 9.514/97 e da sistemática civilista e registral3. Entretanto a MP 1.103/2022 e a lei 4.188/2021 alteraram esta situação consolidada, ou seja, a impossibilidade de se registrar nova garantia fiduciária superveniente a primeira inscrita. Juristas e mesmo os operadores do mercado de capitais, perceberam quanto seria importante uma atualização, ou mesmo modernização dos direitos reais de garantia. A hipoteca é instrumento que permite múltiplas constituições e em graus subsequentes. Este mecanismo dinamiza a economia, pois um bem imóvel pode garantir operações diversas, bastando que o credor aceite a constituição em grau superior ao antecedente. A vantagem dos registros dos graus supervenientes nas hipotecas não se repete com a AFG4, e isto o PL 4188/2021 tende a corrigir, apesar de permitir para o mesmo agente fiduciário.5 Com a fragilidade na execução das hipotecas, ou caução de bem imóvel (que é hipoteca, lato sensu) no ordenamento jurídico brasileiro, tal garantia real praticamente deixou de ser celebrada. Restou ao mercado optar pela Alienação Fiduciária em Garantia (AFG) de bens imóveis. A AFG para bens imóveis, igualmente precisa ser renovada, pois até ser proposta pelo PL 4188/2021 ainda não se permite a constituição de dois direitos sobre o mesmo imóvel, apesar de correntes doutrinárias pregarem a constituição da segunda AFG com eficácia suspensiva. Salienta-se, novamente, que a vantagem da constituição da hipoteca, não impede a constituição de outra em grau superior no mesmo imóvel, ao passo que na alienação fiduciária de bens imóveis, a garantia registrada junto a serventia registral competente, não permite, via de regra, outro gravame idêntico. O fato de a hipoteca ser múltipla, isto é, poder ser constituída por diversos graus no mesmo imóvel, dinamiza a circulação do dinheiro, e a realidade fática do imóvel agrário demonstra isto, pois praticamente hoje, as únicas hipotecas constituídas são as oriundas das Cédulas de Crédito Rural (Dec-Lei 167/67), e eventualmente as Cédulas de Crédito Industrial (Dec-Lei 413/69), Cédula de Crédito à Exportação (Lei 6.313/75) e a Cédula de Crédito Comercial (lei 6.840/69). A desvantagem da excussão dos créditos oriundos de hipotecas, sejam convencionais, judiciais, legais ou por instrumentos cedulares, passariam a ter sua execução hipotecária junto ao extrajudicial, ou seja, no âmbito do Registro de Imóveis, com a alteração da Lei 9.514/97, acrescentando o capítulo II-B "Da Execução Extrajudicial dos Créditos Garantidos por Hipoteca".6 Estas alterações propostas pelo citado PL têm como escopo recuperar o uso desse direito como modalidade de garantia de financiamento imobiliário, pelas vantagens já elencadas. No Brasil a hipoteca é instrumento utilizado, praticamente e unicamente quando instituídas por instrumentos cedulares, e tal índice de utilização (na comarca onde este autor atua como Registrador Imobiliário) não chega a 1% das operações de crédito imobiliário. Como dito, a insegurança na excussão hipotecária levou a tal situação, que pretende ser corrigida, com a eventual aprovação deste PL. Prevê ainda esta alteração legislativa proposta revogação de diversas previsões normativas do Dec-Lei nº 70/66 que implica que a execução extrajudicial hipotecária seja frequentemente judicializada. Propôs o PL, portanto, o restabelecimento do uso da hipoteca no mercado brasileiro, homogeneizando os procedimentos de excussão da hipoteca com os procedimentos referentes à alienação fiduciária; o estabelecimento de novo processo de sua execução extrajudicial, com a inclusão do Capítulo II-B (alterando a lei 9.514/97) e revogando dispositivos do dec-lei 70/66. Dessa maneira conclui-se que a AFG que já era excelente instrumento para circulação de crédito de forma segura na economia, terá outro direito real imobiliário, a hipoteca com força executória idêntica, caso seja  aprovado o PL 4188/2021, fato que gerará igual segurança entre os dois institutos jurídicos. Ressalta-se, por fim, que o registro das garantias reais imobiliárias neste projeto foi observado, pois neste órgão e que se qualifica tais direitos reais, e a atuação dos Registros Imobiliários Brasileiros, conferem a necessária publicidade, após passar pelo crivo dos princípios registrais insculpidos ao longo de mais e um século de construção legal e doutrinária, e em apertada síntese, o direito substancial não existiria sem o sistema de registros de direitos em nosso ordenamento. Portanto, o Registro de Imóveis é a Serventia vocacionada a cuidar da proteção e à circulação jurídica de bens imóveis e direitos a ele relativos, mostra-se imprescindível para tal necessidade socioeconômica. __________ 1 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. 4 Kümpel, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral vol. 5. 2. Direito. 2020. 2 Primeiramente, para analisarmos a diferença entre praça e leilão, se faz necessário entendermos o que significa o termo Hasta Pública. Hasta Pública é como são denominados os leilões judiciais, melhor dizendo, nas hastas públicas a determinação para o bem ser levado à leilão foi feita por um juiz, através de um processo judicial. O leilão é a modalidade de hasta pública destinada a alienação de bens móveis. Praça é a modalidade de hasta pública que tem como objetivo, a venda de bens imóveis. Em outras palavras á hasta pública é o gênero, do qual, a praça e o leilão são espécies. Contudo, atualmente essa distinção entre praça e leilão caiu em desuso, sendo comumente empregado pelos leiloeiros o uso do termo leilão para ambas as modalidades de alienação de bens em hasta pública. Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Art. 13 do PL 4188/2021 prevê a alteração do parágrafo 3º do artigo 22 da Lei 9.514/97 nos seguintes termos: § 3º A alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente, quando realizada pelo mesmo fiduciante do primeiro negócio jurídico, é admitida a registro imobiliário desde a data de sua celebração e a sua eficácia fica condicionada à aquisição do imóvel pelo fiduciante na forma prevista no art. 25. 6 Art. 33-G. Ose créditos garantidos por hipoteca poderão ser executados extrajudicialmente na forma prevista neste artigo, independentemente de previsão contratual.
quarta-feira, 1 de junho de 2022

CNJ permite o alvará consensual

A resolução do CNJ 452, de 22 de abril de 2022, alterou a redação da Resolução nº 35, para introduzir alguns parágrafos ao art. 11. A novidade permite não só que os herdeiros e o meeiro nomeiem inventariante em escritura anterior à partilha ou à adjudicação, mas que a este sejam concedidos poderes inclusive para o levantamento de quantias para pagamento do imposto devido e dos emolumentos do inventário. Em regra, o levantamento de quantias antes da conclusão do inventário depende de um alvará judicial. Trata-se de ato judicial de cognição sumária para análise da viabilidade ou não de sua concessão. Os próprios autores tiveram essa experiência, atuando em varas de família, ao deferir tais pedidos. Agora, com a desjudicialização dos divórcios e dos inventários, nada mais natural que seja permitido também que tais levantamentos sejam feitos sem necessidade de intervenção judicial, mediante escritura pública feita por tabelião de notas, que tem fé pública, é selecionado por concurso e fiscalizado pelo Poder Judiciário, que lhe atribui e exige severas responsabilidades. Alguns podem dizer que estamos agora diante de um alvará extrajudicial. Mas por opção semântica, propomos diversa denominação, tendo em vista as repercussões que podem levar essa adoção. Assim, esse ato notarial é de escritura pública de nomeação de inventariante com autorização notarial para pagamento de tributos. Pela própria origem etimológica da palavra alvará, esta indica a confirmação de direitos de alguém ou a concessão de privilégios particulares. E o juiz, ainda que no desempenho de uma atividade administrativa, é sem dúvida uma autoridade que pode deferir ou indeferir os requerimentos formulados. Já o tabelião, ainda que dotado de imparcialidade jurídica e com determinada carga criativa, não tem poderes análogos ao do juiz e não lhe cabe deferir ou indeferir qualquer pedido de levantamento, como se fosse um alvará judicial.  Essa nova modalidade de alvará deve ser considerada consensual porque é fruto da vontade unânime dos herdeiros maiores e capazes. A função do tabelião nesse caso é de instrumentalizar a vontade das partes e elaborar uma escritura, a qual permitirá que o inventariante consiga levantar os valores do de cujus destinados ao pagamento de dois tipos de tributos: o ITCMD (ITCD em alguns Estados) e os emolumentos do inventário. É louvável que sejam ampliadas as atribuições das competências extrajudiciais, o que já defendemos em outro artigo - um passo adiante -, principalmente por acumularmos a experiência de quem trabalhou no âmbito judicial e agora atua no extrajudicial. Porém, é preciso que essas novas atribuições sejam pautadas por um juízo prudencial - inerente à atividade extrajudicial -, merecendo uma decantação por parte das Corregedorias dos Estados. Uma sugestão que fazemos que parece profilática é que os valores destinados aos pagamentos dos referidos tributos não sejam literalmente levantados (sacados) pelo inventariante - que deverá prestar contas aos demais herdeiros -. Em vez disso, basta que o inventariante apresente as próprias guias do ITCMD devidamente mencionadas na escritura para fazer seus recolhimentos nos bancos onde os valores já estivessem depositados ou a cargo destes. Assim, somente o valor exato do ITCMD sairia da conta da pessoa falecida, o que é mais seguro para os herdeiros, para as instituições financeiras e até para o inventariante. Naturalmente que, para a emissão das guias, será necessária a prévia feitura das declarações à apuração do valor devido a título desse tributo. Tudo isso de forma a evitar que houvesse retirada de valores em montante superior ao efetivamente devido. Já com relação aos emolumentos do tabelião escolhido para lavrar o inventário, o pagamento será realizado de forma análoga e segura, mediante transferência bancária, com toda publicidade e segurança inerente do ato, sob sua responsabilidade, de acordo com a tabela vigente, ficando esse valor sob a guarda do notário, a título de depósito prévio, até a finalização do inventário. As cautelas acima fazem com que o inventariante não precise sacar ou transferir para sua conta pessoal nenhum valor que não seja seu, liberando-o de depois ter que prestar contas. Adicionalmente, essa forma mostra preocupação com a segurança pública, já que em muitas cidades são grandes os riscos de roubos nas saídas dos bancos, além de golpes diversos com o "pix". Os valores do ITCMD por vezes são elevados e é grande a responsabilidade de qualquer pessoa que recebe em sua conta o total destinado a esse pagamento, em vez de simplesmente o valor ser direta e imediatamente pago aos cofres estaduais, o que também é mais seguro para a própria Fazenda Pública, evitando inadimplências. Não raro os tabeliães recebem de seus clientes os valores do ITCMD para em seguida efetuar o pagamento das guias, com toda a responsabilidade que isso envolve. O pagamento direto, como acima propugnado, evitaria essa desnecessária guarda de valores de terceiros. Já os emolumentos, que se destinam ao tabelião, acrescidos dos devidos repasses aos órgãos de direito, devem sim ficar sob a custódia do notário escolhido pelos herdeiros, evitando-se que o inventariante faça qualquer uso indevido dessa quantia, que não lhe pertence e cuja inadimplência poderia prejudicar os demais herdeiros. A forma acima defendida tende a acelerar o término do inventário, que certamente é uma das finalidades da alteração promovida pelo Conselho Nacional de Justiça. Até aqui, quem precisava dos recursos do próprio de cujus para fazer os pagamentos desses tributos, se via compelido a procurar a via judicial. Agora na via extrajudicial pode ser feito o mesmo com maior velocidade, ante a desnecessidade de alvará judicial. Com a alteração salutar feita pelo Provimento 452, há mais estímulo para que seja procurada a via extrajudicial, com menos sobrecarga para o Poder Judiciário. Mas, para que sejam preservados os objetivos visados pela nova regra, convém que sejam tomadas as cautelas acima, para a proteção do próprio inventariante, dos herdeiros, das instituições financeiras, da Fazenda Pública e dos próprios notários, evitando assim possíveis litígios que poderiam estimular algum retrocesso nos avanços desjudicializantes até aqui obtidos. A utilização do inventário feito em cartório desde o início, apenas para nomear o inventariante e pagar os tributos, deve ser estimulada e preservada, para que atenda bem a população e à advocacia, previna qualquer ilicitude e realize justiça rápida e eficaz, mantendo-se distintas as funções judiciais e extrajudiciais, que se complementam por dialética platônica.
Transgênero é a pessoa que se identifica com gênero diferente daquele biologicamente a ela atribuído1. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, que estatui ser o ser humano um fim em si mesmo (Ingo Wolfgang Sarlet2), amplia-se e humaniza-se o tratamento dado a este grupo que já foi muito excluído e que traz no íntimo de cada um, o sofrimento pautado pela inadequação de si em seu corpo. O nome, por ser a principal forma de apresentação da pessoa3, ao lado de sua imagem, é um pilar do direito fundamental à identidade e, portanto, para assegurar a dignidade e a não discriminação da pessoa transgênero, deve e atualmente pode ser alterado nos assentos de registro civil. O nome, como direito da personalidade que é (art. 16 do Código Civil) mais que identifica perante a sociedade, pois reflete a identidade da própria pessoa relacionando-se a si mesma. Normalmente, antes de qualquer mudança física e documental, a pessoa passa a se atribuir no círculo social, nome relativo ao gênero com que se identifica. Além do nome, o gênero indicado nos assentos de nascimento pode ser corrigido para a adequação ao qual a pessoa se percebe. Estas alterações são autorizadas com base, em especial, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, verdadeiro "super princípio" (Supremo Tribunal Federal) norteados de inúmeras ações protetivas estatais. Além deste, os princípios de Yogyakarta, que são princípios sobre a aplicação da legislação internacional de Direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, pautam a justificativa desta admissão, em especial os princípios 2 e 3 - (Direito à igualdade e não discriminação e Direito ao Reconhecimento Perante a Lei). A primeira norma brasileira que tratou dos direitos dos transgêneros data de 1997, quando uma Resolução do Conselho Federal de Medicina estabeleceu parâmetros de diagnóstico do transexualismo e para a realização de cirurgias de transgenitalização. Até 2018 a Organização Mundial de Saúde previa o transtorno de identidade de gênero como doença mental, excluído como tal, sendo certo que ainda hoje consta do rol de patologias a "incongruência de gênero". A partir da ADI 4.275/DF, julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, admite-se a alteração de nome e sexo do transgênero que assim o deseje, independentemente da realização de cirurgia de redesignação de sexo ou tratamentos hormonais4. Apesar disso, tais alterações não poderiam simplesmente ser realizadas diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais por falta de normativa expressa, dependendo ainda de provimento jurisdicional. Com a edição do Provimento n° 73 do Conselho Nacional de Justiça em junho de 2018, a alteração de nome e gênero passa a ser possível diretamente no Registro Civil, com apresentação de documentação bastante e requerimento pessoal do interessado perante o Registrador (mesmo que apresentado a registrador diverso do que tenha registrado seu nascimento, caso em que a documentação). Os requisitos para tal alteração, previstos em mencionado Provimento 73|CNJ, são, ser o requerente maior de idade, presença pessoal perante o Oficial de Registro Civil e manifestação de vontade expressa, a inexistência de processo judicial com mesmo fim e apresentação dos documentos previstos no §6° do artigo 4° daquele. Entre os documentos necessários, destacam-se as certidões de distribuidores, de execuções e de protestos, sendo que nenhuma dívida obstará a alteração, mas apenas orientará a informação ao juízo ou o Tabelião de Protestos acerca da alteração promovida.  Ademais, requisito que esta seja a primeira alteração não cabendo retorno ao gênero e nome anterior pela via administrativa. Muito embora se possa alterar nome e gênero nos assentos de registro civil, esta adequação somente pode ser realizada para os atualmente previstos, quais sejam masculino ou feminino. É verdade que, em algum momento, mormente em razão de anomalias de diferenciação sexual (ADS), o sexo do recém-nascido poderá constar como "ignorado", devendo ser retificado o assento para adequação ao gênero prevalente - com alteração de prenome caso não seja neutro5. Apesar de se admitir prenome neutro, o gênero deverá ser indicado como masculino ou feminino no registro de nascimento - após definição nos casos de ADS, não se admitindo gênero neutro. Apesar de não se admitir o gênero neutro nos assentos atualmente de forma uniforme no país, há pessoas que se entendem e percebem "sem gênero" e algumas delas já conseguiram judicialmente a inclusão do gênero "neutro" em seus assentos de nascimento. Com base nesta realidade e tendo-se em vista o caráter protetivo da dignidade guardado pelos Registros Civis, pode ser que em breve haja normativa geral incluindo tal possibilidade - ou até mesmo excluindo gênero como campo obrigatório das certidões de nascimento6. O Estado do Rio Grande do Sul, de forma pioneira através de sua Corregedoria Geral de Justiça editou, nesta semana o Provimento 16/2022 com base na pluralidade identitária contemporânea e nos provimentos das decisões judiciais que têm reconhecido o direito do registro civil da identificação não binária de gênero permitiu que a pessoa não binária maior de idade possa requerer administrativamente, no Registro Civil das Pessoas Naturais, que a anotação de gênero "poderá abranger a exclusão da anotação de gênero feminino ou masculino e a inclusão da expressão 'não binário', mediante requerimento da parte na ocasião do pedido." Uma vez procedida a alteração, nos moldes atualmente admitidos esta verdade deverá, com base nos princípios da uniformidade e continuidade registrais, ser espelhada nos demais assentos direta ou indiretamente afetados por tal alteração. Assim, uma vez promovida alteração no nascimento esta deverá ser refletida em eventual casamento, nascimento dos filhos e demais assentos atingidos, notando-se que será exigida a anuência do cônjuge e do outro genitor para que se proceda esta alteração. Com base nos modelos atuais de certidões dos registros civis, não haverá qualquer explicação discriminatória nas certidões expedidas. Ademais, as certidões em breve relato não darão qualquer notícia da alteração promovida, garantindo a discrição da mudança e, em última análise, a dignidade daquela pessoa pela não publicação da informação. A publicidade registral é princípio basilar do sistema registral brasileiro, quer no Registro de Imóveis, para publicizar direitos, tornando-o oponível erga omnes, bem como a especialidade objetiva, relativa especialmente sobre o imóvel e neste trabalho, o mais relevante, a especialidade subjetiva, relativa ao sujeito. A informação da alteração do gênero nas certidões, quer do Registro Civil ou Imobiliário pode trazer prejuízos ao cidadão que alterou seu nome ou nome e gênero junto as serventias registrais. O direito à personalidade não deve ser afetado, e o reconhecimento ao direito à privacidade é o fundamento a mitigação deste princípio tão arraigado em nossa legislação registral.7 Por fim, ressalta-se quão importantes tais alterações são para as pessoas transgêneros se verem refletidas, respeitadas e incluídas em nossa sociedade sem discriminação. Os Registros Civis das Pessoas Naturais apresentam-se neste cenário como facilitador do acesso aos direitos básicos, promotor de grandes avanços no cenário nacional, pautado pela promoção da dignidade da pessoa humana, sempre fundado na segurança jurídica, publicidade e autenticidade de seus atos. ____________ 1 Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama psíquico- existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica. É a inversão da identidade psicossocial, que leva a uma neurose reacional obsessivo- compulsiva, manifestada pelo desejo de reversão sexual integral. Constitui, por fim, uma síndrome caracterizada pelo fato de uma pessoa que pertence, genotípica e fenotipicamente, a um determinado sexo ter consciência de pertencer ao oposto. In: DINIZ, Maria Helena. O ESTADO ATUAL DO BIODIREITO. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 284   2 SARLET, Ingo Wolfgang. 3 "O nome é um elemento presente na vida de todas as pessoas, não podendo nenhuma delas se abster de seu uso. Constitui-se o nome num dos mais importantes atributos da personalidade, ao lado da capacidade e do estado civil. Tal importância passa tão desapercebida pela sociedade que nem se questiona não o ter. Ninguém deixa de ter e usar o nome." FERRO JR, Izaias G. e SCHNEIDER, Analice de Morais. "INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO NOME", in: Ed Juspodivm.  4 Vide também, Resp 1.626.739/RS, Rel Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma, julgado em 09/05/2017 Dje 01/08/2017. 5 A questão do sexo de um ser vivo pode ser muito mais complicada do que se pensava. À primeira vista, a presença ou ausência do cromossomo Y é decisiva: com Y significa masculino, sem este cromossomo, significa feminino. Mas os profissionais médicos sabem há muito tempo que, para algumas pessoas, as linhas se confundem quando os cromossomos sexuais dizem uma coisa e as gônadas (ovários e testículos) ou outras características sexuais dizem outra coisa. Pais de crianças com peculiaridades e distúrbios do desenvolvimento de gênero (DDG) para "distúrbios do desenvolvimento sexual - DDS", intersexualidade ou distúrbios de diferenciação sexual muitas vezes enfrentam a difícil decisão de criar seu filho como menino ou menina. Segundo especialistas, até um em cada mil crianças tem algum tipo de DDS. In: aqui. 6 Olhando para a genética, a linha entre os sexos é ainda mais tênue. Os cientistas identificaram muitos dos genes envolvidos nas principais formas de DDG, que afetam sutilmente a anatomia e a fisiologia dos indivíduos. Novas técnicas de sequenciamento de DNA e biologia celular deixaram claro que quase todos nós somos compostos de células diferentes até certo ponto, como uma colcha de retalhos. Algumas de nossas células têm um gênero que realmente não combina com o resto do corpo. O comportamento de uma célula também parece ser influenciado por seu gênero através de sistemas moleculares complexos. "Há uma diversidade de sexos muito maior do que apenas a de homens e mulheres; e certamente há aqueles afetados. Há  pessoas que não se veem representadas nas categorias "mulher" ou "homem"  e não se identificam exclusiva e/ou permanentemente como homem ou mulher. Essa identidade de gênero é chamada de gênero não-binário. Pessoas não-binárias não podem ou não querem se encaixar no sistema convencional de gênero estritamente dividido. Existem muitas formas diferentes de gênero não-binário, e é por isso que se deve falar em identidades de gênero não-binárias (plural). Disponível aqui. 7 PEREIRA, Gustavo Faria. "Mudança de prenome por força do provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o registro de imóveis - Privacidade decorrente dos direitos de personalidade x publicidade do direito registral imobiliário. In: "Registro Civil das Pessoas Naturais - Temas Aprofundados. Coordenação Geral, Martha El Debs, Coordenação: Izaías Gomes Ferro Júnior e Marcia Rosália Schwarzer. Salvador: Ed. Juspodivm, 2019, p. 341.
Corria o ano de 2005 quando um grupo de oficiais de Registro de Imóveis da comarca da Capital de São Paulo, capitaneados pela ARISP - Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, sob a presidência do autor, entendeu ser possível permitir a realização de pesquisa para saber se alguém é ou foi proprietário de imóvel registrado. A pesquisa seria feita pelo interessado, mediante acesso remoto via certificado digital ICP-Brasil, em base de dados contendo os números do CPF e do CNPJ dos proprietários de imóveis registrados nos cartórios de registro de imóveis de São Paulo, Capital, bem assim a facilidade para em ato contínuo solicitar a certidão respectiva. Essa certidão seria expedida em arquivo eletrônico e colocada à disposição do usuário solicitante na Central de Serviços da Arisp. Assim, foi criada a Central de Serviços Eletrônicos da Arisp, sendo este o primeiro passo na implantação do Registro de Imóveis Eletrônico. O suporte legal e normativo em a Medida Provisória nº 2.200-1, de 27 de julho de 2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil e o documento eletrônico, e atos regulamentares baixados pelo Poder Fiscalizador das atividades - o Judiciário. O acesso às informações sobre propriedades imobiliárias fora solicitado em 2003 pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, cujo pleito foi deferido de plano. Restava aos Oficiais de Registro de Imóveis desenhar um sistema informático e cumprir o decidido. O sistema entrou em operação em 2005 permitindo que as pesquisas fossem realizadas de forma remota, bem como a solicitação, emissão e recebimento das respectivas certidões digitais. Evidentemente, esse sistema deveria atender disposições legais e normativas relacionadas com delicada questão da obrigação de ordem, segurança e conservação atribuída aos registradores, que devem manter sob sua guarda e sua responsabilidade os acervos das serventias extrajudiciais, nos termos do artigo 24, da Lei nº 6.015/1973, e artigos 30, I, e 46, da Lei nº 8.935/1994, cuja proteção deve ser compatibilizada com a publicidade registral. Destarte, foi idealizado o Banco de Dados Light (BDL); uma base de dados hermética, mas,  compartilhada, primeiramente, pelos dezoito Cartórios de Registro de Imóveis de São Paulo, Capital, depois, pelos 316 Cartórios de Registro de Imóveis do estado de São Paulo e, depois, ainda, pelos registros de imóveis de mais quatorze estados da Federação. Após, foi também idealizado o TBOX; um sistema especialmente desenvolvido para realização do backup das imagens das matrículas, que são utilizadas no serviço de visualização online de matrícula imobiliária. Esses repositórios eletrônicos deram suporte a todos os serviços praticados nos Cartórios Registro de Imóveis, que foram, sucessivamente, implementados e oferecidos aos usuários, na forma digital, quais sejam: 1) pesquisa de bens, para localização de propriedades imobiliárias; 2) certidão digital; 3) Ofício Eletrônico, para atender a Administração Pública, de forma exclusiva; 5) encaminhamento eletrônico de títulos (e-Protocolo), para o encaminhamento de requerimentos e títulos eletrônicos nativamente digitais, ou digitalizados, ou "extratos" de escrituras públicas, de contratos de financiamento imobiliário e de títulos do agronegócio; 6) Penhora Eletrônica de imóveis (Penhora Online), que inclui o arresto, sequestro e conversão do arresto em Penhora; 6) Monitor Registral; 7) visualização eletrônica de matrícula (Matrícula Online); 8) Repositório Confiável de Documento Eletrônico (RCDE);  9) Acompanhamento Registral Online; 10) Mapa de transações imobiliárias; e, 11) Correição Online, para acompanhamento e fiscalização das atividades das serventias pelo Poder Judiciário. A lei 11.977, de 7 de julho de 2009, oriunda da MPV nº 459, de 2009, que dedicou um capítulo à digitalização dos registros públicos, e as diversas regulamentações das Corregedorias Gerais de Justiça dos estados, da Corregedoria Nacional de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), deram o devido suporte para a implantação do Registro de Imóveis eletrônico. Em tempos de fake news é preciso restaurar a verdade: todos os serviços de Registro de Imóveis já podiam ser acessados pela Internet bem antes da MP nº 1.085/2021. Tudo começou em 2005 e em 2015 os serviços já estavam disponíveis, tendo como suporte a lei 11.977/2009 e atos normativos do Poder Judiciário. Não há um só serviço prestado pelos Cartórios de Registro de Imóveis que não possa ser acessado pela Internet. Excepcionalmente, há cartórios localizados em pequenas cidades dos interiores do país que ainda dispõem de banda larga de internet e de fornecimento contínuo de energia elétrica, que não podem oferecer serviços eletrônicos. Porém, a regra é que todos os Cartórios de Registro de Imóveis estão integrados em uma rede, denominada SAEC - Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado dos Oficiais de Registro de Imóveis, publicada na Internet neste endereço. Por força da atuação do Operador Nacional do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR), instituído pela MP nº 759, de 2016, convertida na Lei nº 13.465, de 2017 (Art. 76), e da cessão de sua operação pela ARISP, os serviços eletrônicos foram colocados à disposição dos usuários públicos e privados em evento presidido pela Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Maria Tereza de Assis Moura, realizado no dia 21 de setembro de 2021, universalizando, assim, o acesso a todos os cartórios do território nacional, em ponto único na Internet. Veja aqui. Passados dezessete anos de utilização do BDL e do TBOX, por indução das obrigações impostas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), e com o avanço cada vez maior da tecnologia em nuvem, o ONR desenvolveu pesquisas que indicaram a substituição dessas soluções (BDL e TBOX) e houve por bem adotar uma nova tecnologia singelamente chamada de Next Cloud SAS (Serventia Avançada Segregada). Essa nova solução, desenvolvida em nuvem, que visa implementar alto nível de segurança utilizando tecnologia de segmentação, segregação e criptografia de rede ponto a ponto, implementados em nuvem, com ambiente dedicado e exclusivo para cada uma das serventias. A solução atende, perfeitamente, ao preceito do art. 30, inciso XII, da Lei nº 8.935/1994, pois prevê a facilitação de acesso à documentação existente nas serventias, às pessoas legalmente habilitadas, porém, de forma controlada, preservando, outrossim, a integridade do acervo das serventias, que fica sob o controle do respectivo Oficial de Registro de Imóveis. Ademais, trata-se de um serviço de armazenamento de dados que oferece disponibilidade, estabilidade, performance, escalabilidade, economia de custos e muito mais. É de conhecimento geral que a partir de 15/2/2022, por disposições da Lei nº 13.465, de 11/7/2017, e do Provimento CNJ nº 124, de 7/12/2021, todos os cartórios de registro de imóveis do território nacional estão integrados em rede ao Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), podendo ser acessados em ponto único na Internet, diretamente por meio do SAEC - Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado do Registro de Imóveis, operado pelo ONR, aqui. Os Oficiais de Registro de Imóveis podem se ufanar de terem sido pioneiros na prestação de serviços públicos digitais por meio da Internet. Os cartórios de Registro de Imóveis foram os primeiros órgãos públicos que ofereceram pesquisas eletrônicas, informações e certidões digitais pela Internet, inaugurando uma nova era na prestação do serviço público; a de forma remota. Ao longo dos anos os oficiais de registro de imóveis, coadjuvado por pesquisadores e um time de profissionais especializados em informática, investiram pesado em pesquisa, desenvolvimento e inovação, culminando por alavancarem importantes posições na aplicação de novas tecnologias aos serviços registrais, em diversos projetos destinados a universalização de acesso aos cartórios, melhorias dos processos, inovações tecnológicas, implantação de mecanismos de controle e acompanhamento de atividades, entre outros. Referimo-nos aos seguintes sistemas e módulos de serviços eletrônicos disponibilizados: 1)      Sistema de Ofício Eletrônico; 2)      Penhora Eletrônica de Imóveis (Penhora Online); 3)      Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB); 4)      Monitor Registral; 5)      Visualização Eletrônica de Matrícula (Matricula Online); 6)      Encaminhamento Eletrônico de Títulos (e-Protocolo); 7)      Serviço Eletrônico de Intimações e Consolidação da Propriedade Fiduciária (SEIC); 8)      Acompanhamento do Procedimento Registral (Acompanhamento Online); 9)      Pesquisa Prévia (para localização de bens em tempo real); 10)   Pesquisa Qualificada (complementada pela serventia); 11)   Repositório Confiável de Documento Eletrônico (RCDE); 12)   Mapa de Transações Imobiliárias (com dados do Indicador Real); e 13)   Correição Online (disponível para os oficiais e as Corregedorias Gerais de Justiça). Os números de utilização desses serviços são expressivos, representam uma enorme economia nos orçamentos dos órgãos públicos, menor custo dos particulares com os serviços de cartórios, mais efetividade no cumprimento de ordens judiciais, redução do número de ações judiciais, cooperação na recuperação de ativos obtidos de maneira ilícita, melhoria no ambiente de negócios do País e mais segurança jurídica nos negócios imobiliários. Esses números falam por si mesmos: 2 bilhões de pesquisas para localização de imóveis, 1,4 milhão de ordens de indisponibilidades/cancelamentos, 6 mil penhoras eletrônicas de imóveis (incluindo arresto, sequestro e conversão de arresto em penhora). Com os intuitos de melhorar a prestação dos serviços públicos delegados e de auxiliar os cartórios de registro de imóveis a alcançar novos patamares de excelência na prestação desses serviços, surgiu o ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, instituído pela Medida Provisória nº 759, de 22/12/2016 (Art. 54), convertida na Lei nº 13.465, de 11/7/2017 (Art. 76), tendo como Agente Regulador a Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ONR convergiu os esforços de todos os registradores de imóveis do País para o desenvolvimento de ambicioso projeto que inclui: [1º] a interconexão dos cartórios de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal em uma rede acessível de ponto único na Internet, para promover o intercâmbio de informações entre as serventias com o Poder Judiciário, a Administração Pública, o Mercado e público em geral; [2º] a implantação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em todas as serventias do território nacional; [3º] a adoção do Código Nacional de Matrícula (CNM) como forma unívoca de identificação de cada imóvel, e de simplificação de acesso ao registro em face da concentração de atos na matrícula imobiliária; [4º] a inclusão digital das serventias de pequeno porte financeiro, ou localizadas em áreas sem infraestrutura adequada, tais como problemas de fornecimento contínuo de energia elétrica, de bandas de internet etc.; e, [5º] a padronização de procedimentos registrais e a segurança da informação. O NEXT CLOUD SAS fornece um ambiente dedicado com exclusividade por serventia, onde cada serventia tem projeto e compartimento únicos localizados no território brasileiro. Essa infraestrutura é composta por Bucket no Cloud Storage e NoSQL DataBase como serviço, com recursos de gerenciamento e monitoramento para que o oficial ou seu técnico de confiança possa configurar o acesso aos dados dos quais é o controlador1, para atender aos requisitos específicos da aplicação.  O SAEC/ONR tem permissão de acesso restrito a leitura e somente mediante utilização da API. *Bucket é um serviço de contêiner para armazenamento de objetos (imagens das matrículas do Livro 2 - Registro Geral) em um compartimento dentro de um Object Storage. *NoSQL DataBase infraestrutura em nuvem oferecida como serviço onde, serão mantidos e atualizados pela serventia os dados a serem utilizados para pesquisa, quais sejam: nome, CPF, CNPJ e número de matrículas relacionadas (Indicador Pessoal Simplificado - IPS).2 *API (Application Programming Interface) pode ser definida como um conjunto de padrões que permite a construção de aplicativos, interconectando aplicações, proporcionando uma troca de informações de forma segura. É importante salientar que os dados trafegados entre as APIs, serão criptografados pelo protocolo HTTPS. Ficará a cargo de cada Oficial de Registro de Imóveis conceder, alterar ou revogar acesso aos seus dados, diretamente no Console do Google Cloud Plataform, inclusive, ao SAEC/ONR. O NEXT CLOUD SAS é uma ferramenta que dá poder, autonomia e recursos de gerenciamento para o oficial organizar e configurar o acesso aos dados da serventia a seu cargo, atendendo requisitos legais e normativos vigentes. O NEXT CLOUD SAS é a antecipação da próxima grande inovação de todo o ecossistema de Registro de Imóveis, que está sendo vista, como essencial, sua migração para computação em nuvem. __________ 1 Lei 13.709/2018, Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: ... VI - controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais. 2 Oportunamente serão agregados dados simplificados do Indicador Real e do valor da transação para composição do Mapa do Registro de Imóveis do Brasil (Mapa de Negócios e Circunscrições), bem como outros backpus de dados da serventia.
Conforme definição doutrinária, cessão de direitos hereditários, é o negócio translativo, geralmente oneroso, que um herdeiro legítimo ou testamentário, realiza com uma pessoa, tendo por objeto a totalidade ou uma quota da herança para a qual foi vocacionado. O procedimento é simples. Aberta a sucessão, o coerdeiro pode ceder o seu direito à mesma, bem como o quinhão de que disponha, por escritura pública. Conforme expressa disposição legal, a escritura pública é necessária e indispensável, pois é da substância do ato, portando, a cessão de direitos hereditários celebrada por instrumento particular seria, portanto, nula de pleno direito1. Em obediência a normativa de transmissão imobiliária (o que em regra a cessão de direitos não é), faz-se necessário a anuência conjugal2. O Código de Beviláqua (Código Civil de 1916) não regrou o instituto. Entretanto, foi previsto expressamente no Código Civil de 2002 (art. 1.7933 a 1.7954), o qual foi integrado por meio de uma construção jurídica doutrinária e jurisprudencial. A cessão de direitos hereditários, portanto, é um negócio jurídico intervivos, translativo, bilateral, formal, gratuito ou oneroso, consensual e aleatório. Assim, deve observar os pressupostos e requisitos para todo negócio jurídico, o que nos remete a tricotomia de planos que formam um negócio jurídico, conforme Pontes de Miranda e sua clássica "Escada Ponteana". Frisa-se, que não é admitido em nossa legislação, o pacta corvina, expressão em latim que significa "acordo do corvo"5, também denominado pacto sucessório, ou seja, acordo que tem por objeto a herança de pessoa viva (art. 426 CC6). Desta forma a cessão de direitos hereditários é a transmissão de direitos provenientes de sucessão. Portanto, como visto, de acordo com o Código Civil (art.1.793), o quinhão que disponha o co-herdeiro pode ser objeto de cessão por escritura. Tal forma é da substância do referido negócio jurídico. Prescreve, ainda, o parágrafo segundo, do citado artigo, que é ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, do bem que compõem a herança, considerado singularmente. Tal dispositivo, tem como norte a individualização da herança, até que se ultime a partilha. Decorre a teleologia da norma que o coerdeiro só pode ceder a sua quota-parte, ou a sua parte ideal na universalidade da herança, mas não a respeito de um bem específico, de um bem determinado ou considerado singularmente. Questiona-se se este dispositivo não estaria desatualizado. Deduz-se que pela norma expressa, que a cessão de um bem individuado, dentre os que compõem o espólio, em tese, seria negócio jurídico inválido. A censura da lei está no plano da eficácia7. Oras, se um herdeiro, com a anuência dos demais, em instrumento público ou particular com a anuência dos demais, alienar bem singular, a alienação/cessão8, não haveria motivos para ser nula, nesta atual análise. A cessão, neste caso, é ineficaz (pela atual normativa), e não produziria efeito. Porém mais uma vez, questiona-se, se ante a concordância de todos a questão prévia ao inventário, já não estaria resolvida, e não teria motivo de a legislação prescrever a "inoponibilidade aos demais herdeiros", baseado no fato da prescrição legal e amplamente repetido pela doutrina que a herança é uma universalidade, e até a partilha, indivisível. Veja-se, que o legislador já previu que a herança de bem singular pode ser objeto de cessão, no caso de haver somente um herdeiro ou apenas um bem no acervo hereditário não será ineficaz, conforme lecionado por Zeno Veloso: "No caso de haver somente um herdeiro, como não há outros interessados (coerdeiros), não é ineficaz a cessão que ele fizer de um bem singular, de um determinado bem da herança. Do mesmo modo, se todos os herdeiros fazem a cessão, é plenamente eficaz acessão de bens singularmente considerados, afirmando Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery (Código Civil Comentado, 4. Ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 971) que tal cessão significa uma espécie de pré-partilha amigável, devendo ser levada a escritura pública ao juízo da sucessão para ser homologada essa pré-partilha e, "encerrando-se o arrolamento ou o inventário, o juiz possa determinar a expedição de formal de partilha de conformidade com a escritura de cessão". Alerte-se que, se todos os interessados forem capazes, poderão promover a cessão de direitos seguida de partilha por escritura pública, em instrumento único, portanto, que não precisa de homologação judicial e constitui título hábil para o registro imobiliário, tudo conforme o art. 982 do CPC, com a redação determinada pela Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que analisarei, adiante, em comentários ao art. 2.015." (Código Civil Comentado, coord. Regina Beatriz Tavares da Silva, São Paulo: Saraiva, 10ª ed., 2016, p. 1895; grifos não constam do original) No mesmo sentido decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura: "Direitos hereditários não são suscetíveis de registro, consoante a jurisprudência pacífica do Conselho" (Ap. 6.861-0). Sobre o tema, Ademar Fioranelli observa que há: "possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento de sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Este, então, será recepcionado como compra e venda, já que a simples denominação dada ao negócio jurídico não altera a sua essência, como, aliás, dispõe o art. 85 do CC." (FIORANELLI, Ademar "Direito Registral Imobiliário", Ed SAFE, pág. 517)". A Lei de Registros Públicos não estabelece o registro da cessão de direitos hereditários no Registro de Imóveis. E não é isto que se propõe aqui. No entanto, há possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento de sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Portanto, os direitos a determinado bem singular, neste caso, podem ser cedidos pelo herdeiro único (herdeiro universal) ou, como já dissemos, por todos os herdeiros, em ato único ou mesmo em atos separados, como é comum fazerem quando não vivem na mesma cidade, estão em viagem, mesmo com a facilidade do e-notariado. Não se falaria em ineficácia do negócio jurídico, pois esta não há. Não há oposição a interesse de terceiros, e qualquer pessoa não poderia alegar direito frustrado ou eventual prejuízo. A releitura do tema proposto com a introdução da certidão da situação jurídica do imóvel, obrigatoriamente será observada daqui por diante.  Pois bem, o que se repete a exaustão é que a herança é uma universalidade de bens, um todo unitário e indivisível até a partilha. Desta forma, sendo uma universalidade de bens, requer-se a prévia autorização do juiz do inventário para que se proceda a venda de qualquer bem que componha o acervo hereditário. Caso isso não ocorra, o negócio jurídico estará incompleto pois não atingirá o plano da eficácia. Este seria um ponto a ser mais bem discutido e analisado em decisões judiciais ou mesmo em inventários extrajudiciais. Assim, a cessão de direitos hereditários é um instrumento jurídico que permite a circulação de riqueza antes de finalizar a partilha, garantindo a função social da propriedade e propomos que bens singulares possam ser cedidos por instrumento particular ou público, anteriormente a partilha, desde que todos os demais herdeiros concordem. Portanto, não haveria razão econômica, jurídica ou de cunho pessoal para impedir que a cessão, nas hipóteses citadas, seja realizada. Este tema é de grande repercussão na atividade extrajudicial. Merece ser mais bem estudado e talvez objeto de Projeto de Lei para o aprimoramento do que descrevemos. _____________ 1 Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública. 2 Excepciona-se, entretanto, os casos de casamento pelo regime da separação absoluta. O regime de separação convencional de bens está previsto no artigo 1.687 do Código Civil, in verbis: Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real. 3 Art. 1.793. ibid. 4 Art. 1.794. O co-herdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto. Art. 1.795. O co-herdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão. Parágrafo único. Sendo vários os co-herdeiros a exercer a preferência, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias. 5 Ao contrário da maioria dos outros sistemas jurídicos, entre os quais o Brasileiro, o direito sucessório alemão permite um acordo sobre futuras heranças, o chamado contrato de herança, além do testamento. Uma vez que os testamentos conjuntos são reservados apenas aos cônjuges, os parceiros não conjugais ou outros terceiros só podem dispor conjuntamente num contrato de herança! O contrato de herança fornece uma base segura e contratualmente vinculativa para o planejamento da herança conjunta e para qualquer contraprestação que possa ser prometida e fornecida durante a vida do testador em relação à sua disposição (por exemplo, uma obrigação de cuidado contra a nomeação de um herdeiro). In: https://www.erbrecht-lahn.de/erbrecht/erbvertrag/ Acesso em 09 mai 2022 6 Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. 7 "REsp 1.809.548/SP. J. em: 19/05/2020. EMBARGOS DE TERCEIRO. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. BEM DETERMINADO. NULIDADE. AUSÊNCIA. NEGÓCIO JURÍDICO VÁLIDO. EFICÁCIA CONDICIONADA QUE NÃO IMPEDE A TRANSMISSÃO DA POSSE. (...) 5. A cessão de direitos hereditários sobre bem singular, desde que celebrada por escritura pública e não envolva o direito de incapazes, NÃO É NEGÓCIO JURÍDICO NULO, tampouco inválido, ficando apenas a sua eficácia condicionada a evento futuro e incerto, consubstanciado na efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente por ocasião da partilha. 6. Se o negócio não é nulo, mas tem apenas a sua eficácia suspensa, a cessão de direitos hereditários sobre bem singular viabiliza a transmissão da posse, que pode ser objeto de tutela específica na via dos embargos de terceiro (...)" 8 Desde que pagos os tributos referentes à transmissão, impostos reais etc., bem como a expedição da certidão da situação jurídica do imóvel, conforme MP 1085/2021, atualizando o artigo 54 e 55 da Lei 13.095/2015, deveria ser plenamente aceito. 
A competência territorial do tabelião de notas encontra-se regulada pela Lei 8.935/94. O art. 8º diz que as partes são livres para escolha do tabelião de notas e o art. 9º estabelece que o notário somente poderá praticar atos dentro dos limites do Município para o qual recebeu a sua delegação. No entanto, em 26 de maio de 2020 houve a publicação do Provimento N° 100/20 do Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando a plataforma do e-Notariado, criando a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dando outras providências. Dentre elas criou regras de competência específicas para determinados atos notariais eletrônicos, o que tem causado divergência de interpretação. No intuito de fomentar o debate, passo a fazer as considerações que seguem, decorrentes da minha modesta interpretação sobre o tema. É clara a intenção do provimento ao estabelecer restrições territoriais, pois consta expressamente dos "Considerandos":  "CONSIDERANDO a necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial". Percebe-se a preocupação com a concorrência predatória que naturalmente poderia ocorrer se os atos eletrônicos fossem liberados. O Provimento se ocupa da competência territorial em dois artigos, art. 19 e art. 20. Mas, antes de adentramos diretamente nos comentários sobre os mesmos, convém antecipar a questão relativa aos documentos híbridos.  Do documento híbrido  Diz o art. 30 do Provimento 100/2020 que "Fica autorizada a realização de ato notarial híbrido, com uma das partes assinando fisicamente o ato notarial e a outra, a distância, nos termos desse provimento." Neste caso estamos falando de uma escritura pública em que uma das partes assina o documento de próprio punho na escritura impressa e outra parte o assina através de seu certificado digital. Quanto a competência, não há outra opção que não seja a do tabelião em que a escritura fora lavrada e assinada presencialmente e de próprio punho por uma das partes. Isto porque a escritura será lavrada no livro de papel (não eletrônico) e assinado presencialmente. A outra parte, que assinará com seu certificado digital, remotamente, o fará no documento eletrônico extraído da folha do livro. Neste caso não se aplica nem a competência do local do imóvel (se for o caso) e nem do domicílio de quem quer que seja. A competência se dará pelo art. 8º da Lei 8935/94. Ressalte-se que nesta situação, haverá a folha do livro e no local da assinatura remota constará a certificação do notário que esta foi feita remotamente por certificação digital, cuja captação da vontade se deu por videoconferência, de conformidade com o documento eletrônico arquivado. Das escrituras públicas de alienação de imóveis  O art. 19 assim dispõe: Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. (grifei) Como se pode ver, este artigo criou regra de competência especial para escrituras públicas eletrônicas relativas a imóveis. A competência neste caso é do notário da localização do imóvel ou o domicilio do adquirente. Então, restringe-se às escrituras de "transmissão de imóveis". Isso porque está falando expressamente do tabelião da "circunscrição" do imóvel ou do domicílio do "adquirente".  Não há dúvidas que se refere a alienação de imóveis. Nada mais. O parágrafo primeiro vai adiante: §1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas. (grifei) Fato que pode ser comum, a existência de imóveis de diferentes municípios em uma mesma escritura de transmissão de bens imóveis, mas deve-se levar em conta o disposto no §2º a seguir. Portanto, o §1º refere-se a imóveis situados em estados diferentes. Neste caso, será competente o tabelião de qualquer município de localização de um dos imóveis. Como já referido, o parágrafo segundo abre uma exceção ao anterior: §2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato. Sendo assim, se o imóvel estiver situado no mesmo estado do domicílio do adquirente, este poderá escolher o tabelião de qualquer município, independentemente da localização do imóvel ou do seu domicílio. O parágrafo seguinte ocupa-se da definição da expressão "adquirente", para fins do Provimento, dizendo: §3º Para os fins deste provimento, entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito. (grifamos) De fácil conclusão que se está a falar de escrituras de transmissões de direitos reais e com a emenda para escrituras de concessão de crédito. Neste caso surge a dúvida quanto à sua interpretação, senão vejamos. O artigo todo remete às escrituras relativas à imóveis, portanto, quando fala à parte a qual é reconhecido crédito, certamente está falando de crédito imobiliário. Assim, percebe-se que não está tratando de escrituras de concessão de crédito que não tenha imóveis como garantia. A interpretação lógica é de que concessões de crédito sem garantia ou com garantias fidejussórias e pignoratícias a competência é a estabelecida no art. 8º da lei 8.935/94. Da ata notarial O artigo 20 do Provimento se ocupa da competência para lavratura de atas notariais e de procurações eletrônicas, dizendo: Art. 20. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. O caput refere inicialmente que compete ao tabelião da circunscrição do fato constatado, para lavratura de atas notariais eletrônicas. Neste ponto, segue a regra do artigo 8º da Lei 8935/94, pois se o fato a ser constatado exige diligência ao local, certamente o tabelião competente é o do local do fato, em razão do que dispõe o art. 9º da mesma lei. Refere, também, que quando inaplicável o quesito do fato constatado, a competência será do tabelião do domicílio do solicitante, para atas notariais eletrônicas. Conclui-se, então, que se o solicitante se encontrar em algum município (e não o estado) que não o do seu domicílio, deverá entrar em contato com o Tabelião do local do seu domicílio. Isso se aplicaria somente a atas cujo o teor a ser narrado possa ser acessado remotamente pelo notário, como atas de páginas eletrônicas ou documentos armazenados eletronicamente. Mas, deve-se levar em conta que há casos em que não haveria esta possibilidade, como por exemplo quando o fato a ser narrado encontra-se no telefone celular do solicitante. Para isso, o tabelião deverá ter o telefone em mãos para certificar seus dados e acessar. Assim, o solicitante, não estando em seu domicílio, deverá procurar o Tabelião da cidade onde se encontra. Não seria crível imaginar que o interessado devesse descolar-se para o município de seu domicílio para realização da ata. O mesmo ocorre, por exemplo, para acesso de documentos armazenados em computadores e que não há possibilidade de acesso remoto. Nos dois casos previstos no art. 20 há a necessidade de videoconferência e obviamente a assinatura eletrônica. Da procuração pública O parágrafo único trata da procuração pública eletrônica, estabelecendo que é competente o tabelião do domicílio do outorgante, ou do imóvel, se for o caso. Art. 20.  (...) Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso. Temos aqui um problema de técnica legislativa, porque o caput do artigo trata da ata notarial e o parágrafo único muda de assunto, tratando da procuração. O parágrafo de um artigo é a sua complementação. Segue o mesmo tema. Conforme a técnica legislativa o parágrafo "é a fórmula de umas das divisões do artigo. Deve completar o sentido ou abrir exceções à norma contemplada no caput do artigo."1 Neste sentido a Portaria GM Nº 776/20172, que estabelece normas e diretrizes para a elaboração, redação, alteração, revisão e consolidação de atos normativos no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, refere: "5.2. Parágrafos Os parágrafos constituem, na técnica legislativa, a imediata divisão de um artigo, sendo disposição secundária de um artigo em que se explica ou modifica a disposição principal." (grifei) Ainda a Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona, diz em seu art. 11, III, a:  Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (...) III - para a obtenção de ordem lógica: (...) c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; (grifei) Por estes motivos temos que o parágrafo único do art. 20 deveria ser um novo artigo, pois trata da competência para lavratura de procurações, que não é o assunto referido no seu caput. Mas, está no Provimento e quanto ao seu dispositivo não há maiores questionamentos. No entanto, deve-se resolver a questão de mandatos outorgados por outorgantes domiciliados no exterior. Como surge a possibilidade da lavratura da procuração por videoconferência, em tese deve ser possível a outorga por pessoa residente no exterior, e que poderá não ter domicílio no Brasil. Neste caso, se a pessoa tem seu domicílio no exterior estaria livre para escolher o notário de sua confiança em qualquer parte do território nacional, na forma do art. 8º da lei 8935/94. Por outro lado, se a procuração, neste caso, referir-se a imóvel, a competência está determinada e será a do local do imóvel. Da comprovação do domicílio Na sequência o provimento trata da forma de comprovação do domicílio (art. 21), que obviamente é o domicílio legal.  Mas, no inciso I se ocupa da pessoa jurídica, dizendo ser o da sede da matriz. Alternativamente prevê o local da sede da filial em relação aos negócios praticados no local desta o que segue o conceito de domicilio constante do Código Civil.  Aqui pode haver problemas de interpretação. Como o inciso fala da sede da matriz ou da filial em relação a negócios praticados no local desta, a interpretação lógica é que se trata de uma opção da empresa. Utilizar o da matriz ou da filial. Perceba-se que se trata de uma faculdade deferida à pessoa jurídica e não uma determinação. Assim, a pessoa jurídica, por seus administradores, escolhe qual dos dois locais realizará a procuração Em se tratando de pessoa física, a comprovação do domicílio se dará através do título de eleitor ou outro domicílio comprovado. Há uma alternativa. O Código Civil estabelece o conceito de domicílio em seus artigos 70 a 74, que podem ser os mais variados. Portanto, a análise deverá seguir a regra do CC e qualquer um destes poderá fixar a competência. Por fim, o parágrafo único direciona a solução quando da dificuldade de identificação do domicílio, dizendo que em havendo imóvel seria o local deste o definidor. Finaliza, mencionando a possibilidade de convênios com órgãos oficiais para que os notários possam, de forma mais rápida e segura, identificar o domicílio das partes, o que pode ser benéfico, para que se evite dúvidas. O problema A competência do notário é estabelecida pela Lei 8.935/94. As disposições do Provimento 100, relativas à competência, criam novas regras, restringindo a liberdade de escolha preconizada no art. 8º da lei. O debate a ser enfrentado é quanto aos efeitos de um ato lavrado de conformidade com a Lei 8935, mas desconforme com o Provimento. O provimento não dispõe sobre este tema, portanto, em tese, o documento lavrado em desconformidade com o Provimento, no que se refere à competência, mas de acordo com a lei 8935, teria validade. Para que se evite discussão e prejuízo às partes, deve-se enfrentar o tema expressamente, regulando os seus efeitos através de orientações para fins de uniformização dos procedimentos. Das nulidades O art. 36 determina expressamente a vedação de prática de atos notariais eletrônicos sem a utilização da plataforma do e-Notariado, mas sem regular os efeitos do seu descumprimento. Não há dúvidas quanto às sanções administrativas, mas não se pode dizer o mesmo quanto aos efeitos legais do ato lavrado, o que também mereceria atenção, com manifestação expressa destes efeitos quanto ao ato. Finalizando, o parágrafo único do art. 37 apresenta uma aparente ilegalidade, porque comina de "nulidade" um ato notarial lavrado sem o "selo de fiscalização". Não parece ser uma assertiva com sustentação legal, uma vez que o selo não pode ser considerado item essencial, pois não é requisito legal de escrituras públicas (lei 7433/85, Código Civil, art. 215). O Código Civil estabelece os requisitos para a validade do negócio jurídico: Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei. Quanto ao negócio jurídico nulo, o Código Civil estabelece: Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Como se pode ver, a falta do selo de fiscalização não se enquadra em qualquer dos requisitos exigidos pelo artigo acima. O parágrafo poderia prever sanções administrativas ao notário que lavrar ato sem a referência ao selo, mas não a previsão de nulidade. O selo estaria "anulando" a vontade das partes. Seria mais potente que a própria manifestação de vontade e assinaturas das partes e do notário. O que não parece ser razoável. Demais atos notariais O artigo 19 acima mencionado é excludente. Sendo assim, todo e qualquer ato notarial que não diga respeito a imóveis, afora a ata notarial e procuração do art. 20, poderá ser lavrado eletronicamente em qualquer tabelionato do país, sendo livre às partes a escolha do notário. Assim é, inclusive, para inventários e divórcios sem partilha de bens, testamentos, pactos antenupciais, etc. Considerações finais O objetivo deste trabalho foi realizar um breve arrazoado sobre a polêmica questão da competência notarial decorrente do Provimento Nº 100 do CNJ, na tentativa de colaborar para um debate mais amplo. Deve-se ter presente que a norma administrativa criou novas regras de competência territorial aos notários especificamente para atos eletrônicos, pelas razões expostas. O importante é buscar sempre a uniformização dos procedimentos nas atividades notariais, para que se evite interpretações diferenciadas o que pode resultar em informações distorcidas aos usuários dos serviços. Com o e-notariado a atividade notarial avança e se adapta aos novos tempos, como tem feito ao longo da história, o que de certa forma explica a sua longevidade. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 04.05.2021. 2 Disponível aqui. Acesso em 04.05.2021.
quarta-feira, 27 de abril de 2022

O consumidor e a MP 1.085/21

O CDC - Código de Defesa do Consumidor, cujos 31 anos de vigência se comemoraram no dia 12 de março deste ano, parte do evidente pressuposto de que o consumidor é personagem vulnerável nas relações de consumo. Desta forma, não há como negar que os serviços prestados pelos notários de modo geral, são relações de consumo e, por isso mesmo sujeitos ao seu ordenamento, a teor do que dispõem o seu art. 3º, caput, e § 2º. E também, à toda evidência, os compromitentes-vendedores e agentes financeiros na oferta de bens imóveis, construídos ou loteados para edificação. Sob tal enfoque, preocupa-nos sobremaneira o disposto no art. 6º da MP 1.805/21, na medida em que cria um tal de extrato eletrônico dos atos aquisitivos de imóveis por uma entidade privada, a ser criada, a SERP - Serviço Eletrônico de Registros Públicos. Ou seja: ao invés de escrituras públicas ou mesmo contratos com força delas, estabelecidos no âmbito de instituições financeiras, somente serão levadas a registros (matrículas, averbações, inscrições etc.), mediante seus extratos. Ora, referido dispositivo fere frontalmente os princípios da vulnerabilidade e segurança jurídica dos respectivos consumidores compromissários-compradores. Com efeito, hoje em dia, como se sabe, quase a totalidade dos contratos o são por ou de adesão. Ou seja: aqueles cujas cláusulas tenham sido aprovadas por uma autoridade competente (e.g., os de seguro, pela SUSEP), ou estabelecidas unilateralmente por uma das partes (fornecedores de produtos e serviços em geral), sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. Antigamente, à luz do Código Civil de 1916, referidas cláusulas eram popularmente chamadas de leoninas, por razões óbvias: uma das partes é quem dita e cobra as condições dos contratos, sem qualquer possibilidade de intervenção da outra parte, no caso, o consumidor. A teor de modificações que já haviam sido trazidas em 1994 em matéria de contratos imobiliários mediante financiamentos, com efeito, os bancos passaram a assumir, em última análise, a função notarial. Só que obrigados a seguirem os mesmos regramentos exigidos daquela mesma função. Isto na confecção dos formulários de compromissos de compra e venda, com valor de escritura pública. Ora, dentre os princípios previstos pelo CDC, no sentido de ao menos prevenirem-se lesões aos consumidores nesses  contratos, destacam-se, com efeito, em matéria contratual, cujo conteúdo será entabulado entre as partes e posteriormente transcrito em suas notas, as seguintes salvaguardas: 1) Presunção de Desconhecimento pelo consumidor do Conteúdo desses Contratos e sua Extensão, a teor do art. 46 do CDC: "os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance"; isto quer dizer, em última análise, que embora assinado, o contrato não surtirá qualquer efeito, nas referidas circunstâncias; 2) Princípio de Interpretação mais Favorável ao Consumidor, conforme art. 47: "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor; isto está a indicar que ao juiz de determinada causa em que se discuta a interpretação de certas cláusulas contratuais, recomenda-se que o faça de maneira mais favorável ao consumidor. Ora, se a ausência de uma fase de puntuação ou discussão prévia de cláusulas contratuais em adesões incondicionais é uma características de contratos de adesão, imagine-se agora, se convertida em lei efetiva, uma medida provisória que impede qualquer tipo de intervenção da parte mais vulnerável. Ou seja, baseando-se o registro de imóveis apenas e tão-somente num extrato, produzidos pelos próprios agentes financeiros que detêm todas as garantias (i.e., agentes financeiros, incorporadoras, loteadoras)? E para colimar tudo isso, a MP 1.085/21 institui o tal SERP - Serviço Eletrônico de Registros Públicos, sem forma nem figura de juízo, e com poderes totais sobre tais negociações (cfr. art. 7º da mesma MP). Ora, conforme é sabido, já há lei específica (lei 11.977/09), e implementada de fato e de direito, que disciplina a instituição de Sistemas Eletrônicos Digitais, geridos pelos próprios serviços registrais, não havendo qualquer justificativa para a instituição de um outro, não se sabe gerido por quem ou porque razão. E, além do mais, instituindo-se uma denominada Chave Eletrônica, também privada à guisa de fornecedor de uma assinatura digital a ser aposta nos documentos igualmente eletrônicos. Observem-se, portanto, os abusos contidos na referida MP, afetando diretamente os consumidores, futuros compromissários-compradores de bens imóveis, por exemplo: a) desconhecimento total do conteúdo dos instrumentos elaborados pelos próprios agentes econômicos envolvidos nas transações; b) utilização de um sistema privado, obviamente oneroso, além de uma assinatura eletrônica por meio digital, quando já existe um instrumento eficiente de chaves públicas e gratuitas. São essas as nossas preocupações enquanto consumerista; c) abandono das boas e tradicionais práticas do sistema notarial brasileiro quanto à chamada filiação imobiliária, que dá a todos a segurança necessária para que sejam surpreendidos por entraves e, sobretudo, ônus recaentes sobre os imóveis negociados. Em nossa vida profissional como Promotor de Justiça do Consumidor, não foi uma nem foram duas, apenas, hipóteses de terrenos incorporados mas, por omissões fraudulentas, que causaram prejuízos a dezenas de adquirentes de unidades em edifícios que, exatamente por isso, jamais foram erguidos.
sexta-feira, 22 de abril de 2022

MP 1.085: A crise na fraude à execução

Há algo pior do que esperar anos para o fim de um processo judicial: não receber nada do que foi concedido pelo Judiciário. Isso pode ocorrer na hipótese em que o devedor consegue vender todos os seus bens e desaparecer com o dinheiro. Essa situação não é inusitada. Mas nada é tão ruim que não possa piorar: a MP 1.085, publicada no dia 28 de dezembro de 2021, facilita a vida do devedor que deseja se desfazer do seu patrimônio para escapar da obrigação de pagamento da dívida, prejudicando o credor. De acordo com as regras em vigor antes da MP nº 1.085, a venda de um imóvel na pendência de uma ação que possa levar o proprietário do imóvel à insolvência caracteriza fraude à execução. Isso significa que o credor pode penhorar o bem vendido, a fim de ter seu crédito satisfeito. É o que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) em vigor, repetindo regra do Código de Processo Civil revogado. O objetivo não é apenas proteger o credor, que tem direito a receber seu crédito, mas também proteger a efetividade das decisões judiciais. Sem um Judiciário efetivo, não há segurança jurídica. Na esmagadora maioria dos casos, por meio de consulta a registros de acesso público, o comprador consegue previamente saber se a aquisição será em fraude à execução ou não. Por isso a lei não considera a questão da má-fé do comprador como requisito para a caracterização da fraude. Protege-se tanto a segurança da aquisição imobiliária, como a efetividade do Judiciário e o direito do credor que esperou alguns anos para obter decisão judicial favorável. É a maneira que desde o advento do item 14 do Título LXXXIII do Terceiro Livro das Ordenações Filipinas1 foi obtido um equilíbrio entre os importantes valores mencionados. Com a MP 1.085, a situação muda: por via transversa, sem alterar o CPC, aniquila-se na prática a caracterização de fraude à execução. Passa a existir um desequilíbrio: a efetividade das decisões judiciais é diminuída ainda mais e as chances de o credor receber o que lhe é devido passam a ser ainda menores. O pretexto da malsinada medida é a proteção do adquirente do imóvel. Isso não se sustenta: caso se pretendesse conceder maior proteção ao adquirente de um imóvel, bastaria estabelecer em lei que a obtenção das certidões judiciais do vendedor do local do seu domicílio e do local de situação do imóvel descaracterizariam a ocorrência de fraude à execução. Outra solução normativa seria a utilização de um registro eletrônico nacional, a exemplo da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB), que vem funcionando de maneira muito boa. Ao revés, optou-se por simplesmente estabelecer a desnecessidade de se obter certidões dos distribuidores por parte do comprador, sem qualquer preocupação com o direito do credor ou com a efetividade do Judiciário brasileiro. De forma ladina, a MP estabelece que "não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé". Para os menos versados em registro imobiliário, a nova regra parece ser justa: o que não está no registro imobiliário não pode prejudicar o comprador. O diabo, porém, mora nos detalhes: ação que possa levar o vendedor à insolvência não deve ser registrada na matrícula do imóvel, pois ela não diz respeito diretamente ao imóvel nem a respeito da qualificação do seu proprietário. Para tentar contornar essa lógica existente desde tempos imemoriais, a MP tenta aquilo que fora tentado, sem sucesso, pela Lei nº 13.097, de 19-1-2015, em sua versão original: permitir que ações que não digam respeito ao imóvel possam ser registradas ou averbadas na matrícula do imóvel. Na prática, essa solução não prosperou. Até mesmo seus apoiadores mais entusiasmados perceberam na época que o número de atos que não dizem respeito ao bem imóvel passíveis de registro na matrícula desse bem seria astronômico, o que tornaria caótico o sistema registral. Imagine-se, por exemplo, uma empresa com dezenas ou centenas de reclamações trabalhistas e cada juiz trabalhista determinando que os registradores imobiliários registrem (gratuitamente) na matrícula de cada imóvel da empresa a existência de cada ação. E mais: tratava-se, como se trata novamente, de impor dificuldades e custos adicionais ao credor: ele passa a ter o ônus, por ocasião da propositura da ação judicial, de procurar os imóveis do devedor e fazer os registros exigidos pela lei para evitar que o devedor se furte ao pagamento dos valores devidos. É o cúmulo do absurdo, que se parece com o suplício de Tântalo: alguém que já não recebeu o crédito devido e não tem alternativa que não a de buscar o Judiciário, aguardar anos pela bendita prestação jurisdicional, e ao final, em uma vitória de Pirro, não receber nada caso não tenha procedido à localização e averbação da ação na matrícula dos imóveis do devedor. Eis então a verdade nua e crua: exigir algo quase impossível (que nos lembra a punição de Sísifo) ou com custo extremamente alto, de modo a aniquilar a norma que protege o credor e a efetividade da Jurisdição. A baixa efetividade da prestação jurisdicional é um dos componentes do "Risco Brasil". A insegurança jurídica é fator que prejudica enormemente o desenvolvimento do País. Quanto maior o risco, maior deve ser o lucro. Trata-se uma lógica matemática, da qual não se pode ignorar. Mas há algo pior que o risco mensurável: a incerteza que, ao contrário do risco, não cabe em uma planilha de Excel. Sem segurança jurídica não é possível juros estruturalmente baixos. Portanto, em vez de aumentar a efetividade das decisões judiciais, a MP 1.085 causa um desserviço às tentativas de diminuir o "risco Brasil". Além disso, a alteração via medida provisória de tema tratado no Código de Processo Civil enseja uma discussão a respeito da constitucionalidade. Com efeito, há possível vício de inconstitucionalidade na alteração efetuada pelo art. 16 da MP 1.085/2021, uma vez que matéria processual não pode ser objeto de medida provisória.  A questão que se põe é a seguinte: a fraude à execução está regida no CPC, mas o fato de determinada matéria estar no CPC não significa, necessariamente, que ela é processual. Assim, é possível a existência de normas de direito material no CPC. Da mesma forma, pode existir dispositivo de direito processual em lei que versa predominantemente sobre direito material. Possivelmente seja o caso. A fraude à execução (tratada no art. 792 do CPC e atingida por via transversa pelo art. 16 da MP 1.085/2021, que alterou o art. 54 da lei 13.097/2015), é matéria de direito processual ou material? A eficácia ou ineficácia de uma alienação parece ser questão de direito material, mas o objetivo da existência de uma norma (art. 792 do CPC) que visa a proteção da efetividade da jurisdição, embora não diga respeito diretamente a um procedimento em ação judicial, parece ser norma de direito processual. Os tribunais irão dizer se a alteração efetuada pela MP 1.085/2021 com relação à fraude à execução é constitucional ou não. Como se vê, criou-se uma questão que terá de ser dirimida pelo STF - e talvez isso apenas o seja depois de anos de controvérsias e decisões conflitantes. Parece que estamos próximos do Inferno de Dante, para usar mais uma alegoria nesta situação que seria cômica, se não fosse trágica. De resto, apenas aniquilar a fraude à execução como faz a MP nº 1.085 não resolve o problema do princípio da concentração absoluta do registro imobiliário. Tal como descrito em diversas passagens do nosso livro Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos (atualmente na 14ª edição), há fatos e ato jurídicos que dizem diretamente ao imóvel, mas podem não estar presentes (registrados, averbados ou indicados) no registro imobiliário. Há também, além da fraude à execução, outros fatos ou atos jurídicos que, embora não digam respeito diretamente ao imóvel, podem afetar a aquisição do bem por parte do comprador, sem qualquer menção na matrícula do imóvel. Descrevemos no mencionado livro essas situações. Neste pequeno artigo, podemos citar como exemplos de fatos ou atos jurídicos que dizem respeito diretamente ao imóvel o problema dos terrenos de marinha não demarcados, que podem constar no registro imobiliário como de propriedade particular, mas podem vir a ser demarcados como terrenos de marinha, pois são bens da União. A demarcação prevalece sobre o registro imobiliário. Há súmula do STJ a respeito, bem como recente decisão do STJ a respeito do processo de demarcação. Outro exemplo é o direito real de habitação decorrente do direito de família. Como exemplo de fatos ou atos jurídicos que não dizem respeito diretamente ao imóvel, mas podem afetar sua aquisição, podemos citar a regra contida no art. 185 do Código Tributário Nacional, que prescinde de ação judicial, não se confundido por essa razão com a fraude à execução. Há outras situações, razão pela qual a MP nº 1.085 nem de longe resolve o problema do princípio da concentração no registro imobiliário e da segurança jurídica das operações imobiliárias apenas porque, por via reflexa, tenta aniquilar a fraude à execução na hipótese de vendedor tendente à insolvência. Além dos exemplos mencionados neste artigo, o livro trata das demais situações em que o princípio da concentração no registro imobiliário deixa de ser absoluto e não prevalece na prática. Portanto, em vez de aumentar a segurança jurídica, a MP 1.085 cria problemas adicionais a esse respeito. __________ 1 "E o que tiver bem de raiz, que valham o conteúdo na condenação, não os poderão alhear, durando a demanda, mas logo ficarão hypothecado, por esse mesmo feito e per esta Ordenação para pagamento da condenação."
A evolução tecnológica caminha a passos largos, e alterou geometricamente os paradigmas de comportamentos nos últimos trinta anos. Desde a popularização dos computadores nos anos 90, potencializada com a difusão do acesso à internet no final dos anos 90 e início dos anos 2000, até os dias atuais, a população mundial passou por profundas quebras de paradigmas em razão das possibilidades criadas pelo desenvolvimento da tecnologia em âmbito mundial. A Lei de Moore1 foi o mantra que embalou ao longo dos anos o desenvolvimento que hoje se vive no cotidiano. Desse modo, a tecnologia se impõe a todos, os novos mecanismos de funcionamento da sociedade se adaptam às necessidades da população, e estas necessidades moldam a forma como a modernidade se comporta para suprir os anseios básicos, ou mesmo excêntricos, das pessoas. O desenvolvimento da tecnologia tem normalmente nos hábitos e necessidades do mundo real os parâmetros para sua criação e evolução, com o fim de atendimento das aspirações humanas. Então, como exemplo, o incremento de tecnologia voltada à distribuição de alimento ainda tem como núcleo de sua criação o conceito básico de "alimento" prevalecente na sociedade: comida para ser ingerida, apreciada, e de preferência que sofra o mínimo de interferência da tecnologia ofertada como meio para sua obtenção. Assim, quando da utilização de aplicativo para compra e entrega de alimento, o núcleo da ação é justamente a comida para alimentar-se, e não o uso do aplicativo, por mais que tentem convencer o usuário do contrário. Nesse ínterim, então se estabelece um paradigma para o desenvolvimento da tecnologia: ela deve ser meio para o atingimento de um fim, normalmente ligado ao bem-estar da sociedade. O fim sempre será o obstáculo maior para a inovação tecnológica, pois em muitos casos ele sofre pouca variação (como no caso de necessidade de alimento para nutrição, que é imutável - não se vive sem alimentar-se), o que faz com que tenha que se chegar ao mesmo ponto, mas por um caminho inovador; deve ser criada nova forma, mais eficiente, de atingimento do fim, que permanece o mesmo e pauta a inovação. Os cartórios são instituições que existem desde o início das civilizações organizadas, e sua função consiste basicamente, de modo extremamente simplista, em um indivíduo receber uma atribuição do Estado para realizar um "filtro" nas relações que acontecem na sociedade, e que envolvam bens importantes para a vida: registro de um nascimento, transferência de uma casa ou de um carro para um terceiro, a guarda de documentos para que não sejam alterados e possam fazer prova no futuro do que aconteceu naquele dia. Assim como em tantos outros ramos da sociedade, a atividade de notas e registros públicos tem criado mecanismos condizentes com as novas necessidades tecnológicas ao longo do tempo, sem deixar de lado, contudo, a segurança nas relações entre as pessoas. A finalidade da atribuição ainda permanece a mesma: impedir a realização de atos ilegítimos e realizar e perpetuar atos legítimos. Nesse sentido, por exemplo, foi implementada, em meio à pandemia, nos termos autorizados pelo Provimento 100/2020, do Conselho Nacional de Justiça, a plataforma do E-Notariado, pela qual é hoje possível a assinatura de procurações, escrituras e autorizações de viagem de menores, após a realização de videoconferência em ambiente controlado pelo oficial ou escrevente (ao qual somente se tem acesso após processo de identificação do indivíduo através de abertura de cadastro em um cartório para acesso, com a devida apresentação de documento de identificação válida, ou através de videoconferência, quando a pessoa já tenha sido identificada em outro cartório, através de abertura de firma pelo processo tradicional, verificável através de uma base de dados integrada). Mas note-se: a utilização da plataforma se dá através de acesso franqueado ao usuário mediante prévia identificação do indivíduo por um cartório, o qual comparece à videoconferência pessoalmente, ficando gravada na própria plataforma o indivíduo e sua manifestação de vontade. O meio é outro, mas o objetivo é o mesmo: a identificação certa da pessoa e sua clara manifestação de vontade. Nesse contexto, deve ficar claro ainda que, em sentido oposto, a certificação de um ato por uma serventia como legítimo é tão importante quanto a negação de realização por uma serventia de um ato ilegítimo. Ou seja: a via negativa que ocorre no cartório, a negação de realização de um ato que não é legítimo, se constitui como a verdadeira proteção do sistema jurídico através da função dos serviços extrajudiciais. Desse modo, quando o cartório nega a realização de um reconhecimento de firma que não lhe parece legítimo, por não haver semelhança entre a firma depositada no cartório e a apresentada no balcão, e que não representaria a verdadeira manifestação daquele indivíduo, preserva a integralidade do sistema jurídico, evitando o ingresso de ato possivelmente fraudulento no sistema legal. A segurança jurídica vai muito além de garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos apresentados às serventias: impedir que sejam inseridos no sistema legal atos eivados de nulidade e que retratem situações irreais é garantir o bem-estar da sociedade, uma vez que através de tais ações são repelidos prejuízos, mitigados conflitos e diminuídas contingências no dia a dia dos indivíduos de modo geral. Em recente sugestão de alteração normativa, foi proposto que a transferência de veículos entre pessoas seja feita por um aplicativo, com reconhecimento de "identidade" do transmitente pela digital, em substituição à firma por autenticidade realizada nos moldes atuais. Firma por autenticidade é aquela que é feita quando a parte se dirige à serventia com documento legítimo que permita sua identificação com segurança, ao que se soma a assinatura de um livro em que constam os dados da operação, para comprovar que o indivíduo esteve na serventia fisicamente e foi devidamente identificada, garantindo-se assim a identidade do praticante do ato. Tabelionatos identificam pessoas. Digitais são um elemento de identificação, que se soma a outros quando da identificação, e pode ser reproduzido a partir de uma imagem sua; além do mais, estão armazenadas em milhões de smartphones, e em tantos outros lugares, como portas eletrônicas, sistema bancário, central de sistema eleitoral. A captura da imagem de uma impressão digital, vinculada aos dados de seu titular (que estão disponíveis em diversos bancos de dados e na própria internet), permitiria assim que fraudes na transmissão de veículos fossem realizadas a partir de um celular em qualquer local do mundo. Ademais, para a verificação de compatibilidade de imagem de digital seria necessário o cruzamento com a imagem legítima, a qual deveria ser previamente disponibilizada à entidade gestora, vinculada aos dados do indivíduo, por entidade que a detém, ou pelo próprio indivíduo. Assim, criar-se-ia um banco de dados centralizado, com imagens de digitais e dados pessoais a elas vinculados, que, se invadido ou capturado esse banco de dados, por si só permitiria a realização de fraudes com todos os dados ali armazenados, de forma concentrada. No site da Federação Nacional das Associações de Revendedores de Veículos Automotores - FENAUTO, foi veiculada a notícia de que foram vendidos no ano de 2021 mais de 15 milhões de veículos usados no país. Some-se a essa notícia o fato de fraudes em sistemas de ponto eletrônico no trabalho, realizados com "dedos" de silicone, veiculados na mídia. Tem-se então claro o risco da criação de um ambiente ideal para a realização de fraudes no mercado de automóveis. A tentação das facilidades proporcionadas pela tecnologia pode tornar-se verdadeira proposta de Mefistófoles. Em levantamento realizado pela empresa de segurança digital PSafe, foi apurado que 3,4 milhões de golpes financeiros foram bloqueados no Brasil nos dez primeiros meses de 2021, que tiveram como meio, em sua maioria, SMS, aplicativos de conversa e mensagens eletrônicas via e-mail. Ainda se verifica hoje o aumento exponencial de sequestros relâmpago para a realização de transferências via pix, pela sua facilidade de realização em ambiente digital. Desse modo, se bastasse a captura da impressão digital para que um indivíduo se identificasse e pudesse realizar ações diversas sem qualquer dúvida de sua identidade, as próprias eleições não precisariam de toda a mobilização que implicam: todos os eleitores votariam de suas residências, por seus smartphones, sem qualquer custo para o Estado, sem mesários, urnas, juízes, promotores, policiamento, etc. A digital é verificada no processo eleitoral, mas como elemento complementar à identificação pessoal realizada através de apresentação de documento de identificação a mesário habilitado; sem documento de identificação, não é permitido o voto. "Mas carro é diferente": considere-se então pessoa que adquiriu um carro clonado, fruto de roubo ou furto, e perdeu todo seu dinheiro investido, e multiplique isso por 0,1% do total de venda de carros usados no país, acima exposto, para se ter ideia da grandeza do que uma medida imprópria em um país continental pode ocasionar. A dinamite, como tecnologia para caça, seria extremamente eficiente, em razão do volume de pólvora nela contida, que mataria a caça com certeza. Entretanto, apesar da caçada ter resultado positivo no sentido de abate do animal pretendido, o fim de alimentar-se dele não é atingido, pelo efeito da explosão. A inviabilização do resultado final pretendido (segurança) em razão da tecnologia utilizada ilustra como a racionalização da tecnologia deve ser considerada quando de sua aplicação para um determinado fim, sem desnaturá-lo. Garantir que somente o titular de direitos, sem qualquer dúvida de identificação, possa exercê-los sobre o bem é o fim principal dos procedimentos das serventias nestes casos, que se utiliza de filtros e mecanismos que garantem a qualificação positiva de identidade do indivíduo. Dentro desse contexto que foi criada a plataforma do E-Notariado, que permite a realização de atos com toda a segurança possível, e com precisa identificação dos sujeitos e captação de suas vontades, e da mesma forma devem ser tratados tantos outros atos de relevância na sociedade, muitos dos quais de competências das serventias extrajudiciais, para garantir que não ocorram fraudes e que não haja prejuízo para cidadãos em transações realizadas sem os devidos protocolos.  Assim, as barreiras de entrada de atos ilegítimos no sistema jurídico, como praticadas pelas serventias extrajudiciais, devem ser sólidas e prover segurança na negação da realização destes atos. A imposição de meio de realização de atos que não preze pelas necessárias formalidades para identificação de seus praticantes, de modo a garantir certeza de sua identidade, pode levar a prejuízos irreparáveis em grande escala, mas sempre individualmente - só a pessoa ludibriada tem a exata dimensão de seu prejuízo, em sua realidade. Desse modo, enquanto para a estatística ou macroeconomia o ocorrido é "uma fraude", uma "externalidade negativa do sistema", para o direito, e em especial para a pessoa ludibriada, é um ataque ao sistema legal, um direito violado, e patrimônio perdido. __________ 1 Previsão feita por Gordon Moore, ex-presidente da Intel, no ano de 1965, a qual pregava que o número de transistores em um chip dobra a cada 18 meses, em média, mantendo-se em tal nível, sem regredir. Disponível aqui.
segunda-feira, 18 de abril de 2022

Os cartórios e a digitalização

No dia 4/4/2022, Joel Pinheiro da Fonseca publicou um artigo em sua coluna na Folha de S. Paulo intitulado "Você gosta de ir ao cartório?", no qual, em síntese, aponta existir um "lobby de cartórios e tabelionatos (sic)" contrário à conversão da Medida Provisória 1.085/2021 em lei. Segundo o autor, o "lobby" se opõe à "digitalização dos cartórios", medida que afetaria privilégios burocráticos de cartórios prósperos em desfavor de maior agilidade e menor custo agregado às operações imobiliárias. Mas não mostra uma pesquisa sequer que confirme a sua afirmação. É evidente que o debate público pode comportar as mais diversas posições sobre as atribuições conferidas aos cartórios - alcançando, inclusive, uma reflexão sobre sua própria existência - e o lugar que eles ocupam na ordem republicana. No entanto, é indispensável que esse mesmo debate ocorra segundo uma argumentação amparada em evidências e na racionalidade.  Há algumas inconsistências na fala do articulista que precisam ser abordadas. A primeira é a forma como foi apresentada a pesquisa "Custo da Burocracia no Imóvel", da Câmara Brasileira da Indústria da Construção. O encarecimento de 12% do preço dos imóveis não é de responsabilidade exclusiva - e nem principal - dos registros imobiliários. Aliás, de acordo com a mesma pesquisa, seu peso é menor em comparação aos gargalos regulatórios, de licenciamento e até mesmo de financiamento e de mão de obra. Além disso, o texto induz a erro o leitor quando afirma que a renda média de um titular de cartório ultrapassa R$ 100 mil mensais, sem esclarecer se o valor é bruto ou líquido - neste caso, é preciso contabilizar os descontos relacionados às receitas do Estado (17,14%), da Fazenda (11,73%), do MP (2,9%), do Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça (4,14%), da compensação dos atos gratuitos do Registro Civil das Pessoas Naturais e complementação de receita mínima das serventias deficitárias (3,18%) e do repasse às Santas Casas (1%). E, por evidente, todos os custos operacionais, de infraestrutura física e de TI e de recursos humanos. Não é possível afiançar nem mesmo a resposta desejada à pergunta que serve de título ao texto de opinião. De acordo com pesquisa do Datafolha de 2015, 77% dos usuários de cartórios de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte consideraram o serviço prestado ótimo ou bom. Lembre-se, ainda, o papel essencial que o registro civil assumiu durante a pandemia da COVID-19. Instituição independente e insuscetível de pressões políticas, foi responsável por garantir à população brasileira a publicidade em relação ao número de mortos pela doença. A digitalização nos cartórios já é uma realidade há muito tempo, muito antes do movimento de incorporação das TICs pelo Poder Judiciário. Inclusive, em diversos estados, a modernização e adoção da tecnologia na agilização de processos judiciais contaram com o apoio e o patrocínio dos cartórios. Tampouco há contrariedade à celeridade: não é nova, por exemplo, a luta dos cartórios para atuar no campo da autocomposição dos conflitos, por meio da mediação.  O e-Notariado, regulamentado pelo provimento CNJ n. 100/2020, que estabelece normas gerais para a prática de atos notariais eletrônicos, já contempla, em longo rol contido no art. 10, atos como a matrícula notarial eletrônica, o fornecimento de certificados digitais e assinaturas eletrônicas notarizadas, a realização de videoconferências notariais, os sistemas de identificação e validação biométrica, o reconhecimento de firmas, entre outros, todos com validade nacional e fé pública nos termos da lei. Mais recentemente, o provimento CNJ n. 103/2020 estendeu o uso da tecnologia também para a autorização de viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes, que pode ser feita eletronicamente. Mencione-se, por fim, o Operador Nacional do Registro, no âmbito do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR/SREI), já operacional, e que garante acesso remoto, a um clique, aos cidadãos, a qualquer oficial registro de imóveis do país. Todo processo de aperfeiçoamento institucional, no regime democrático, é válido. Melhor ainda quando ele ocorre de forma a ouvir todos os interessados em melhorar o serviço público. Por isso, a proposta do Poder Executivo de encaminhar essa discussão por meio de medida provisória é um verdadeiro açodamento do debate público, que é mais amplo no processo legislativo regular. É preciso definir com clareza as premissas desse debate, e afirmar que os cartórios são contra a digitalização, seguramente, não representa fielmente a verdade.
Li com atenção o artigo publicado nesta coluna no dia 30 de Abril (O vinho e a água chilra)1, com críticas contundentes à MP 1.085/2021. Como um dos muitos autores dessa Medida Provisória, tenho me preocupado em ler as opiniões divergentes e, sempre que possível, contribuir com a construção de consensos. Há um aparente equívoco quanto à motivação para a criação do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP e a extensão dos seus efeitos sobre cada modalidade registral. O SERP não foi pensado para o registro de imóveis (que já conta com o Operador Nacional do Registro Eletrônico - ONR), nem mesmo para ser uma entidade para-registral dotada de personalidade jurídica, como, com razão, criticam alguns oficiais de registro. O SERP não foi concebido para modificar a qualificação registral, nem a delegação de registradores de imóveis, muito menos para modificar a forma como se registra os atos nas matrículas. Aliás, em nada se relaciona com isso. Daí a necessidade de se remover os espantalhos para que, sem histeria, se possa alcançar convergência. Havia no início ao menos três problemas a serem resolvidos, em relação às plataformas eletrônicas. O primeiro, a necessidade de unificar nacionalmente a operação eletrônica do Registro de Títulos e Documentos, nos mesmos moldes do ONR - isso levou ao desenvolvimento dos extratos registrais para bens móveis e da certidão unificada nacional de garantias, restrições, cessões de crédito e arrendamentos mercantis financeiros, obtida por meio do CPF/CNPJ consultado. O segundo, o desejo de levar à lei alguns serviços relativos a imóveis, previstos para o SAEC (sistema do ONR) e que permanecem apenas objeto de normativa do CNJ. O terceiro, a necessidade de se estabelecer troca de informações entre serventias de diferentes modalidades - este foi o berço do SERP. O terceiro problema que cito acima tem especial reflexo sobre os bens móveis. Há uma gravíssima anomalia na legislação brasileira ao atribuir competência para registro de garantias reais sobre os mesmos bens móveis a diferentes serventias: os penhores especiais são registrados no livro 3 - auxiliar, do Registro de Imóveis, ao passo que as alienações fiduciárias de bens móveis são registradas no RTD. Nenhum dos dois atualmente cumpre bem sua função de publicidade sobre os bens móveis, em especial pela descentralização das informações e pela dificuldade de obtenção de certidões exaustivas, que efetivamente apresentem a totalidade dos atos registrados. Essa constatação tem levado muitas vezes a discussões e iniciativas de excluir por completo a necessidade do registro público. Por exemplo, há uma conhecida corrente jurisprudencial no STJ que dispensa o registro público para as cessões fiduciárias de créditos em geral, criando um sistema clandestino que confia apenas na intimação dos devedores para determinar se um crédito foi cedido em garantia (evidentemente, não se está aqui a falar dos ativos financeiros, objeto da Lei 12.810, que seguem sistemática diversa). De outro lado, são corriqueiras as discussões quanto à criação de um sistema próprio para o registro das garantias relacionadas ao agronegócio, retirando-as dos registros públicos. Está claro para todos que o atual sistema registral sobre bens móveis não atende sua função, especialmente no âmbito do agronegócio, o que, como bem demonstra o artigo a que me referi no início2, é o argumento perfeito para a afastabilidade do registro público. A lacuna registral do agronegócio brasileiro, ao contrário do que afirmou o ilustre registrador, não é um problema tão excepcional quanto um raio que cai duas vezes sobre o mesmo ponto. Certamente não se registram penhores rurais em uma circunscrição cravada no coração de São Paulo, mas basta olharmos para o restante do país e perceberemos que o agronegócio não só tem enorme relevância, como tem sido um dos principais motivadores de mudanças na legislação de crédito e, por tabela, nos registros públicos. Essa foi a realidade na MP do Agro, que se converteu na lei 13.986/2020, e certamente será na nova MP da CPR, 1.104/22, em que já surgem emendas relacionadas ao tema dos registros públicos. Penso que a solução correta para toda essa anomalia seria concentrar os registros sobre bens móveis no RTD, eliminando-se a atual competência do Livro 3 - Auxiliar, de Registro de Imóveis, para penhores especiais. É evidente que, para isso, torna-se também necessário a criação do operador nacional do RTD e, como já prevê a MP 1.085/21, também da certidão nacional, emitida de forma online. Essa é a solução definitiva proposta no anteprojeto de reforma das garantias reais no Código Civil, do qual fui relator no âmbito do Grupo de Estudos Temático (GET) criado pelo Ministério da Economia em 2021, ainda não enviado ao Congresso Nacional. Não obstante, ao redigirmos a MP 1.085/21, sabendo que teria tramitação mais célere, enxergamos na interoperabilidade entre serventias uma solução de cunho mais imediato: mantida a competência do Livro 3 de Registro de Imóveis para os penhores especiais, caberia aos registradores de imóveis lançar essas informações em um sistema interoperado com o RTD, de modo que a certidão unificada nacional pudesse de fato ter a totalidade da informação disponível nos registros públicos quanto às garantias sobre bens móveis. Esse sistema, a princípio, seria compartilhado entre as especialidades, com a primazia do RTD e o auxílio do ONR. Deve-se reconhecer que a interoperabilidade proposta também causa dificuldades. Uma delas é a necessidade de se estabelecer um marcador temporal unificado para o protocolo, para que penhores e outras constrições contraditórias sobre bens móveis não sejam protocolados em serventias distintas, com competências distintas, sem que se determine uma perfeita ordem temporal, sob o princípio "prior in tempore, potior in iure". Afirmou-se não compreender a necessidade de tamanha rigidez3, mas isso porque se está a racionar sob a ótica dos bens imóveis e urbanos. Não tenho dúvidas de que são raras duas hipotecas do mesmo imóvel e no mesmo dia - não posso dizer o mesmo, entretanto, quanto à dinâmica da economia sobre bens móveis. É para isso, e apenas para isso, que se pensou a necessidade de marcador temporal para os móveis. Necessidade, aliás, que não é invenção brasileira. Como bem afirmado a partir da citada dissertação de mestrado de Constanza Bodini4, de quem fui feliz examinador, trata-se de prover o sistema jurídico brasileiro de uma publicidade adequada para as transações sobre bens móveis, seguindo-se exemplos já disseminados e comprovados em âmbito internacional, a partir das leis modelo aprovadas na OEA e na ONU (UNCITRAL), e reproduzidas em locais de culturas jurídicas tão díspares quanto Chile, Colômbia, Canadá e China. Entre 2015 e 2018, fui apontado pelo Ministério das Relações Exteriores como delegado no grupo de trabalho da UNCITRAL que redigiu a lei modelo da ONU, composto de 60 países. A partir dessa experiência, pude também redigir reformas de garantias em Angola, Madagascar, Moçambique, São Tomé e Príncipe e, finalmente, no Brasil, todas com influência desses padrões internacionais. Em Angola e Moçambique, onde leis de reforma das garantias mobiliárias já foram aprovadas, criamos sistemas eletrônicos que estabelecem marcador temporal no ponto de entrada de protocolos e, ato subsequente, reencaminham o ato para registro ao registrador competente, entre os vários do país (podem ser acessados nos sites www.crgm.gov.ao e www.crgm.gov.mz, que contêm links para as respectivas legislações). São modelos mais simples que o SERP porque, nesses países, não havia repartição da competência registral sobre bens móveis entre RTD e RI. No entanto, esses modelos replicam a mesma solução de centralização do protocolo eletrônico e de certidão única nacional proposta para o SERP. E, mais importante, não retiram de nenhum registrador o seu status legal, nem a capacidade de qualificar títulos. Os méritos desse sistema, baseado em padrões internacionais, são bastante óbvios. Há extensa literatura sobre seus benefícios, inclusive de análise econômica do Direito5. São também nessa linha os comentários feitos nos demais textos citados pelo artigo supracitado de Jacomino, entre os quais um artigo escrito por João Grandino Rodas, meu livro "Garantias das Obrigações" (Ed. Iasp, 2017) e a publicação de um encontro que promovi em conjunto com a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), em 2017, que contou com a participação do Prof. Spyridon Bazinas, à época secretário do grupo de trabalho de reforma de garantias da UNCITRAL, e hoje professor em Viena. Em meu livro "Garantias das Obrigações", trato detalhadamente da ideia de unificação registral de garantias mobiliárias (§§ 745 a 752, pp. 675 a 687) e cito exemplos e estudos estrangeiros, sem mencionar, uma única vez, que tratamento equivalente deveria ser estendido ao Registro de Imóveis. Ao contrário, digo expressamente que: "A conveniência de cada um dos modelos é frequentemente debatida e permite respostas distintas para bens imóveis e móveis ou, em nossa visão, para bens cuja titularidade é determinada pelo registro, em oposição aos bens cuja titularidade é presumida pela posse. Nesse sentido, resta claro que a publicidade da hipoteca (...) deverá permanecer sob os chamados efeitos positivos, exigindo o exame pelo Oficial e a qualificação do título, condições para o seu registro" (§ 748, p. 678). Há ainda inúmeros textos sobre o assunto disponíveis na Internet, que são antídoto certeiro aos espantalhos e monstros noturnos. Basta compreender, ao lê-los, que o termo em inglês "secured transactions", onipresente nos estudos internacionais de centralização registral, significa tão somente "garantias mobiliárias" - aqui, um mero erro de tradução poderia ter consequências catastróficas na interpretação de texto. Foi a partir do histórico acima que escrevemos os artigos relacionados às plataformas eletrônicas, nas primeiras versões da MP 1.085. Evoluções posteriores no texto legislativo levaram à criação do SERP como entidade autônoma (ou "super-ONR"), mudança que não considero necessária para o fim inicialmente proposto. Sabemos também que, mediante a criação do SERP, outras funcionalidades foram agregadas. Entre elas, a inclusão do RCPN e dos tabelionatos de protesto, e a possibilidade de que as certidões unificadas de garantias sobre bens móveis, inicialmente concebidas, viessem a agregar também informações sobre ônus imobiliários, auxiliando a difusão de informações sobre o crédito. Essa inclusão gerou debates robustos. Pessoalmente, considero sempre positivo que se amplie a publicidade e o acesso à informação constante dos registros públicos, mas compreendo os argumentos contrários apresentados. Vale dizer, listar as hipotecas imobiliárias em uma certidão online não significa mudar seu modo de qualificação e de registro, à moda dos bens móveis - é apenas permitir que sua existência seja evidenciada em uma busca de indicador pessoal. Outra possibilidade, sem a necessidade do SERP, seria o próprio ONR fornecer uma busca nacional de indicador pessoal para garantias imobiliárias. Assim teríamos duas certidões de indicador pessoal distintas: uma para móveis, outra para imóveis. Sobre os diversos exemplos e possibilidades, discussões amplas ocorreram em um evento promovido no ano passado, que contou com importantíssimos convidados internacionais (Prof. Alejandro Garro, Columbia University; Prof. Ignacio Tirado, Univ. Autonoma de Madrid; Prof. Giuliano Castellano, Hong Kong University; Gavin McCosker, gestor da central de registros mobiliários da Austrália) - Disponível aqui. Críticas e debates são meios necessários para que sejam feitas correções de rumo e, ao que parece, muitas das mais de 300 emendas propostas ao texto da MP 1.085/21 já pretendem readequar a qualificação do SERP, separar as plataformas eletrônicas por modalidade de registro e endereçar outras críticas de registradores. É importante, entretanto, que nesse processo não se desvirtue o propósito primordial da norma, deixando problemas reais sem soluções adequadas. A MP 1.085 é uma extraordinária oportunidade para a melhoria do funcionamento dos Registros Públicos e, especialmente, da percepção pública sobre a sua relevância social. Desnaturar a MP ou, ainda, permitir que simplesmente caduque, abrirá a porta para que novas soluções sejam propostas aos mesmos problemas, possivelmente à margem de todos os trabalhos e estudos já feitos, dos registros públicos e da segurança jurídica. Quem tem a ganhar com isso? Com a aprovação da MP, não há dúvida que ganharão os registradores e também o país. ______________ 1 Disponível aqui. 2 Diz o autor: "A constitutividade do registro das garantias fiduciárias sobre veículos automotores foi destruída por um argumento que, no fundo, se assentava e legitimava pela ineficiência da arquitetura analógica do registro de direitos. O registro nos órgãos de trânsito seria considerado pelo STJ "mais eficaz do que a mera anotação no Cartório de Títulos e Documentos (RTD)", na dicção do ministro LUIZ FUX, em triste precedente para a categoria. A exigência legal seria uma "odiosa imposição", segundo ele, em afronta ao princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel artigo 1.361 do Código Civil". 3 Id., Ibid: "Pois bem. Foi isso que aconteceu com o SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Sob o pífio argumento de que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD, RCPJ e RI - inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no mesmo título e com registros em especialidades diversas. A "prenotação" dos títulos, feita concomitantemente na plataforma eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia jurídica do negócio. Nunca entendi muito bem este argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria mais do que suficiente." 4 Registro de garantias mobiliárias: uma proposta para sua modernização. São Paulo: FGV, 2019. 5 J. ARMOUR, The Law and Economics debate about secured lending: lessons for European lawmaking? in H. Eidenmüller, E.-M. Kieninger (eds.), The Future of Secured Credit in Europe, ECFR special volume, p. 14, Berlin, De Gruyter, 2008; E. BENMELECH, N. K. BERGMAN, Collateral pricing, in Journal of Financial Economics, vol 91, p. 339, 2009; J. R. BOOTHAND, L. C. BOOTH, Loan Collateral Decisions and Corporate Borrowing Costs, in Journal of Money, Credit and Banking, vol. 38, p. 67, 2006; R. HASELMANN, K. PISTOR, V. VIG, How Law Affects Lending, in Review of Financial Studies, vol. 23, p. 549-80, 2010; E.-M. KIENINGER, Introduction: security rights in movable property within the common market and the approach of the study, in E.M. Kieninger (org.), Security Rights in Movable Property in European Private Law, p. 6, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.
quarta-feira, 30 de março de 2022

MP 1.085/21 - O vinho e a água chilra

Tente imaginar, caro leitor, que um belo dia você se depara com vários eventos aleatórios e extraordinários e se põe a pensar que absurdo seria se suspendêssemos as presunções no direito civil, tornando regra as hipóteses de exceção e vice-versa. Neste estranho mundo você testemunharia, por exemplo, a queda de um raio no seu terreno e daí concluiria que naquele ponto não deveria construir porque outro corisco poderia precipitar-se no mesmo local. Imagine, por hipótese, que você tivesse recebido um mandado judicial para promover o registro de determinado título e logo outro mandado ingressasse, ao mesmo tempo, determinando, sob pena de prisão, que se não promovesse o registro daquele título. Ou ainda que recebesse duas escrituras de hipoteca lavradas na mesma data, apresentadas no mesmo dia, que determinassem, taxativamente, a hora da sua lavratura, nos termos do art. 192 da LRP. A você ocorreria alterar todo o processo de registro em razão destas exceções e em prejuízo das regras ordinárias hauridas da praxe registral? Pois bem. Foi isso que aconteceu com o SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Sob o pífio argumento de que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD, RCPJ e RI - inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no mesmo título e com registros em especialidades diversas. A "prenotação" dos títulos, feita concomitantemente na plataforma eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia jurídica do negócio1. Nunca entendi muito bem este argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria mais do que suficiente. As teses que se multiplicam são engendradas em razão da histórica ineficiência sistêmica dos registros públicos, que não se modernizaram a tempo - malgrado o fato de, há mais de uma década, termos apresentado à comunidade jurídica um modelo elegante de Registro de Imóveis eletrônico2. De outra banda, como compreender que se encaminhe a um escaninho único demandas cuja natureza e interesses são essencialmente diversos? Quem necessita de uma certidão de casamento, não vai bater às portas eletrônicas do Registro de Imóveis, assim como quem busca registrar a sua propriedade imobiliária não direciona seu pleito ao Registro Civil. E assim sucessivamente. Se a ideia fosse levar o RTD para o âmbito dos modelos sugeridos por organismos internacionais (OEA, UNCITRAL etc.)3, por qual razão buscou-se tracionar nesta aventura temerária registros tão diversos como o Registro Civil de Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas e de Imóveis? Este melting pot registral é regressivo e disfuncional; nos reconduz a modelos organizativos já superados pela nova ordem constitucional, como procurei demonstrar em outro artigo4. A menos que se pretenda não exatamente um retorno, mas simplesmente a ultrapassagem dos modelos tradicionais de registração, confiando o mister registral a entidades privadas. A torção sistemática experimentada pela reforma talvez respondesse a esses impulsos. A constituição do SERP quadra no contexto da instituição de uma plataforma centralizada e consolidada de registros públicos afinada com a Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias5 e de outras iniciativas semelhantes. GRANDINO RODAS traduz e defende a medida de modo bastante claro: "Registro central significa uma base central a que se conectariam todas as unidades de serviços do país; ou seja, cartórios, ofícios e centrais. Dessa forma, evitar-se-ia o duplo registro. Em havendo acesso ágil e indiscriminado a certidões e informações, qualquer interessado poderia fazer uso do sistema, inclusive o menos instruído"6. O prestigioso jurista segue desfiando uma série de vantagens - operação mais célere com registros centralizados, barateamento dos custos de due diligence, padronização de processos, interoperabilidade entre as centrais estaduais e cartórios etc. etc. O tema não é recente. Anteriormente houve uma defesa do modelo que a MP 1.085/2021 acabaria por emular. Em relação ao registro de garantias mobiliárias, BAZINAS defenderia a utilização de um sistema de registro baseado em "formulários", espécie aperfeiçoada de extratos digitais, "registro declaratório-negativo", que deveria ser realizado em sistema eletrônico e com baixo custo, "estimado entre 5 a 10 dólares por registro". Segundo ele, dever-se-ia substituir a modalidade de registro de títulos, "o qual requer a verificação de formalidades sobre o título a ser registrado pelo Serviço de Registro, como a legalização de assinaturas", por um sistema mais simples e eficiente7. FÁBIO ROCHA PINTO por seu turno sustentaria que o sistema registral deveria ser "unitário, universal e unificado", e que a tal unificação deveria levar à "centralização dos dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma única certidão nacional"8. A síntese de sua proposta era: (a) unificação registral, (b) sistema de formulário e (c) centralização eletrônica9. O mesmo autor vislumbrou no SINTER (Decreto 8.764/2016) uma solução adequada: "A unificação exige a centralização dos dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma única certidão nacional. No exemplo apresentado pelo palestrante, a centralização poderia ser realizada por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais - SINTER". Compare essas ideias com as que foram consumadas na MP 1.085/2021 e teremos uma boa antevisão que nos poderá ajudar a iluminar e conduzir na compreensão da norma. A detergência suavizadora de bits e bytes Antes de prosseguir, sinto-me novamente no dever de registrar que a opção legislativa não é tão importante quanto os seus pressupostos - ou sua inspiração mediata ou imediata. Que o legislador (ou o Executivo) faça o que fez, não é tão importante; o problema reside na subversão do regime da delegação pessoal em favor de entidades registradoras centralizadas, entes personalizados que ainda não contam com a competência plena e reconhecida pelo sistema legal na promoção de registros com eficácia jurídica10. Digo que ainda não contam com essa competência, mas uma larga avenida se abriu com esta medida provisória. É possível criar plataformas para-registrais, como o sugerido pelos ilustres autores da medida provisória (e dos artigos anteriormente citados). Certamente um sistema que poderá ser mais barato, eficiente, simples e confortável (além de eletrônico), quando comparado com o que se tem hoje. Somos conduzidos suavemente aos portais de um verdadeiro Eldorado Registral, ambiente eletrônico ordenado, limpo, moderno e eficiente, mas que não será um verdadeiro registro de direitos, cujo mister é objeto de delegação de funções públicas a juristas especializados, provados por concursos públicos. Além de outros aspectos relacionados com os custos transacionais envolvidos na substituição do nosso tradicional modelo de registro de títulos, como qualificado por BAZINAS, é necessário enxergar o óbvio. Sacrificado o sistema de cariz jurídico, o único obstáculo que, afinal, poderá remanescer será o elemento humano. Nesse ecossistema digital, uma classe de juristas será convertida em afanosos amanuenses vinculados ao sistema eletrônico de informações. A relevância dos registradores tenderá a reduzir-se dramaticamente. Notem que tudo isso nos é apresentado sob o signo da modernidade - uma solução limpa, ordenada, higiênica, econômica, em conformidade com os novos paradigmas da "sociedade da transparência" - como se a trama registral representasse uma aspereza sistêmica, cuja sujidade devesse ser expelida pela detergência suavizadora de bits e bytes. A qualificação registral cingir-se-á ao preenchimento de meros campos pré-definidos no extrato eletrônico (art. 6º da MP 1.085/2021) - ou em "formulários" eletrônicos, espécie de algoritmo que pode embarcar inteligência artificial e tecnologia de machine learning. Os contratos serão automatizados (smart contratacts) e afinal, grand finale!, code is law. Neste ecossistema de redes e centrais eletrônicas personalizadas, os nódulos ineficientes tendem a ser eliminados por representarem custos e burocracia. A tendência avistável é a abreviação dos tramos da infovia transiente que ainda liga o usuário a cada unidade que compõe o sistema registral. As infovias não têm semáforos As operações tenderão a ser realizadas pelos próprios interessados, atuando diretamente nas plataformas digitais das entidades registradoras. Vejamos um aspecto singular da reforma. Suprimido o reconhecimento de firmas, a comprovação de autenticidade (fixação de autoria) dos documentos privados submetidos a registro (artigos 127 e 129 da LRP) caberá "exclusivamente ao apresentante" (§2º do art. 130 da LRP). Vale reproduzir o texto legal: "§ 2º  O registro de títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, cabendo exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular". Até há bem pouco - parece que foi há um século! - , a definição da autoria do documento era matéria muito relevante para o direito (e para os Registros Públicos, em particular) e ela se relacionava com a prova pré-constituída, um fator relevantíssimo no jogo probatório: "A indagação da autoria do documento é de importância capital, tanto no aspecto teórico como do aspecto prático, pois que diz respeito à proveniência do documento, e, portanto, à verificação da fé que deva merecer. De tal relevo o assunto [...] que toda a teoria do documento se acha dominada pelo problema de paternidade"11. No texto da medida provisória embaralha-se o ato material e o ato jurídico da formação do título12, investindo qualquer apresentante dos poderes de autenticação e certificação próprios de delegatários da fé pública - o que, afinal, já não importa muito. Na lógica desta medida provisória, tal supressão não é tão relevante quanto o fato de o documento, seja qual for o seu conteúdo, forma, ou mesmo autoria, esteja arquivado ("registrado") nos repositórios eletrônicos do SERP. Tão simples e rápido quanto um [enter] de permeio entre um café e um cigarro na sacada. A própria medida provisória não deixará de reiterar (e agravar) a lógica do modelo de transubstanciação dos registros de direitos (títulos) convertidos em meros registros de documentos (ou cadastros privados, aka entidades registradoras), em que o controle jurídico se dá ex post, por meio da intervenção jurisdicional. O art. 161 da LRP reza: "Art. 161. As certidões do registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo". Nos termos do art. 428 do CPC, cessa a fé do documento particular "quando for impugnada a sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade". Ora, a simples impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento particular. Justamente porque estes documentos não gozam de fé pública, "a lei não exige o reconhecimento judicial de falsidade para que percam seu valor probatório. Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor"13. Pouco se acrescentou ao quadro normativo anterior a adição da expressão eficácia, pois, consequência dependente da validade, impugnada que seja a autenticidade, suspende-se a plena eficácia. A querela di falso desconstitui "a respectiva eficácia probatória (= deixam de provar)"14. Não se argumente que o arquivamento de um instrumento privado num Registro Público converte-o, ipso facto, em um documento "público". Tampouco se "reputam instrumentos públicos as certidões que deem de sua existência e conteúdo os oficiais do Registo de Títulos e Documentos", desde EDUARDO ESPÍNOLA15. Quando se diz que a certidão terá "a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados", tal disposição, mal compreendida, pode levar à "monstruosidade" (sic) de que "qualquer documento falso, uma vez registrado, tornar-se-ia válido e provado! ... Ora, isso não é possível", como registrou a seu tempo AZEVEDO MARQUES16. Este tema foi debatido e bem resolvido ainda na década de 20 do século passado quando juristas, reunidos no antigo Instituto de Advogados, discutiram a "Tese LIMA PEREIRA". As certidões do RTD, disse o mesmo AZEVEDO MARQUES em passagem célebre, "têm fé pública, não há duvidar, mas tão somente para provarem que o registro se fez, e em data determinada, ficando sempre os documentos originais" subordinados aos exames e provas posteriores". A comissão sufragou a seguinte conclusão: "A certidão extraída por oficial do Registro de Títulos e Documentos Particulares, de transcrição integral do documento, sendo impugnada, não contém, por si só, desacompanhada do original, valor probante algum". O documento público faz prova da sua formação e dos fatos que o tabelião colher no ato por ele lavrado (art. 405 do CPC). Não há equivalência entre um (público) ou outro (privado) neste aspecto; portanto, não se confundem as disposições dos artigos 427 e 428 do atual CPC. O elemento fundamental à produção de eficácia probatória nos documentos particulares, avulta no conteúdo e na autoria. É a presunção legal da autoria que torna autêntico o documento. Diz o art. 411 do CPC que se considera autêntico o documento quando o "tabelião reconhecer a firma do signatário" (inc. I). O simples reconhecimento das firmas é um meio rápido, econômico, seguro e eficaz para fixar a autoria e robustecer a prova de modo a premunir as partes na proteção e defesa dos seus interesses. O mesmo ARAKEN DE ASSIS averba: "Reconhecida a firma por autenticidade, ou seja, subscrito o documento particular na presença do tabelião, o art. 411, I, declara-o autêntico. Ao documento particular se acresce o elemento público, ou seja, a fé do tabelião"17. É evidente que as considerações aqui lançadas se aplicam aos instrumentos particulares assinados com firmas digitais. A assinatura digital da ICP-Brasil reúne em si os elementos presuntivos de autoria18. O "processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados"19.  Voltarei em breve ao tema das assinaturas eletrônicas em virtude de recentes alterações legislativas. O sumidouro registral e a ineficiência do sistema O progressivo esvaziamento dos registros jurídicos se constata facilmente. A constitutividade do registro das garantias fiduciárias sobre veículos automotores foi destruída por um argumento que, no fundo, se assentava e legitimava pela ineficiência da arquitetura analógica do registro de direitos. O registro nos órgãos de trânsito seria considerado pelo STJ "mais eficaz do que a mera anotação no Cartório de Títulos e Documentos (RTD)", na dicção do ministro LUIZ FUX, em triste precedente para a categoria. A exigência legal seria uma "odiosa imposição", segundo ele, em afronta ao princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel artigo 1.361 do Código Civil"20. Daí a se consagrar no STF a constitucionalidade do § 1º do artigo 1.361 do Código Civil "no que revela a possibilidade de ter-se como constituída a propriedade fiduciária de veículos com o registro do contrato na repartição competente para o licenciamento do bem"21. Um típico exemplo de transubstanciação de um registro administrativo (cadastro de veículos automotores) em registro de direitos. A ideia de que haveria um odioso bis in idem na registração deve nos levar a refletir seriamente acerca desta insinuante revolução de veludo: registro de gravames em registros imobiliários e sucessivamente "registrados" em entidades registradoras (§2º do art. 22 da Lei 10.931/2004); registro em plataformas digitais e nos cartórios que compõem o círculo registral. Ou, o que é muito pior: na fusão de ambos. A "eficácia" trânsfuga pode ser acolhida no "útero eletrônico" de uma entidade para-registral22. A verdade é que as coisas, nesse ambiente das redes eletrônicas, fazem-se transparentes, líquidas, lisas e qualquer rugosidade ou aspereza tende a ser expelida do sistema. Diz BYUNG-CHUL, que os meios tornam os seus conteúdos transparentes quando abandonam qualquer "negatividade", quando as coisas "se tornam lisas e planas, quando são inseridas sem resistências na torrente lisa do capital, da comunicação e da informação". E conclui: "As ações se tornam transparentes quando se fazem operacionais, quando se submetem aos processos de cálculo, direção e controle. O tempo converte-se em transparente quando nivela-se como sucessão de um presente disponível"23. Aqui está o receituário da conversão de um típico sistema de registro de direitos em um mero registro de documentos a cargo de centrais digitais personalizadas privadas (§4º do art. 3º da MP 1.085/2021). Senhoras e Senhores, eis o milagre da transubstanciação do vinho em água chilra. Enfim, visto de modo ligeiro, a solução há de soar bastante atraente e atenderá aos reclamos do capital financeiro, pendendo "naturalmente" para tutela dos interesses da parte mais poderosa da relação jurídica. O registro jurídico rende-se ao tropismo do capital financeiro, sem qualquer consideração sobre ideias aparentemente ultrapassadas - como direito do consumidor, tutela pública de interesses privados, pré-constituição de provas, fixação ex ante de autoria nos instrumentos privados etc. etc. O preenchimento de requisitos formais, como outrora previstos expressamente na lei, eram exigências criadas para premunir as partes na melhor defesa de seus direitos, sem que tivessem que se socorrer do Poder Judiciário para sanar e estabilizar as suas relações jurídicas. Este sistema não reclama, para sua efetivação, mais do que tecnologia e investimentos massivos - o que não falta ao mercado de unicórnios tecnológicos e seus investidores. Com essas medidas reformistas, buscou-se superar as asperezas próprias do discurso jurídico, suprimindo-se os pré-requisitos da registração e a própria qualificação registral, condenando o sistema a figurar com destaque no elenco de meros cadastros administrativos, a cargo de entidades registradoras personalizadas privadas. Mais cedo ou mais tarde, todos acabarão na contingência de disputar o mercado pela via da concessão ou da licitação, sob fiscalização do Banco Central do Brasil. E poderão, enfim, dormir em paz. É possível fazer as coisas de outro modo? Sim, é possível. A saída seria buscar soluções tecnológicas baseadas na descentralização e coordenação do sistema registral em meios eletrônicos. A tendência que se verifica neste exato momento, revelando o estado da arte da tecnologia, é justamente a descentralização, fator de segurança e autonomia de iniciativas como bitcoin, da famosa blockchain, de outros criptoativos e iniciativas congêneres. Já tive ocasião de me manifestar sobre o problema da centralização de dados: "Todos sabem que penso ser factível, como resposta aos desafios postos, conceber uma infraestrutura em que se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa máquina de descentralidades representada pelo Registro Imobiliário brasileiro". "Não é necessário esvaziar a importância ou suprimir cada nó dessa imensa rede, eis que a rede somos nós! Isto nos dá identidade, fortaleza e nos singulariza. Para este velho registrador, a busca do Graal registral consiste, basicamente, em reencontrar e reconhecer os caminhos que nos conectam com nossa essencialidade, formada do conjunto de seus vários vértices (nós) que compõem o grande círculo registral"24. Sobre a questão da centralização versus descentralização, sempre entendi ser esta uma questão subalternada a outra, mais importante ainda, que é a natureza jurídica da delegação25. A contraposição de conceitos e modelos centralizados X descentralizados diz respeito à infraestrutura tecnológica de base meramente instrumental. A suplantação do modelo de delegação de uma função pública notarial e registral, exercida em caráter pessoal e indelegável (art. 236 da CF), substituído por outro, muito diverso, cria um cenário propício para que exsurjam, como têm despontado, entidades privadas personalizadas a desempenhar atividades próprias de registradores públicos - as tais entidades registradoras. O SERP insinua uma tredestinação, espécie de subdelegação de atividades notariais e registrais, de parcelas significativas de funções públicas. As Notas e os Registros Públicos brasileiros exercem uma função típica de Estado na tutela pública de interesses privados. Esta configuração é reconhecida de modo uniforme pelo STF. Vale a pena citar MOREIRA ALVES, em memorável voto: "Os tabeliães e os oficiais registradores - que são órgãos da fé pública instituídos pelo Estado e que desempenham atividade essencialmente revestida de estatalidade - dependem, para efeito de ingresso na atividade notarial e de registro, de prévia aprovação em  concurso público de provas e títulos [...]". Os notários e registradores, segundo o ministro, estão "incumbidos de velar pela segurança, registro, publicidade e autenticidade dos atos jurídicos, além de investidos na  relevantíssima função inerente à tutela administrativa dos interesses privados (JOSÉ FREDERICO MARQUES, "Manual. de Direito Processual Civil.", vol. 1, p. 259/264, itens 216-221, 13 ed., 1990, Saraiva; MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 1/134, item n. 103, 14ª ed., 1990, Saraiva, v.g.)" [...]. E remata: "Afigura-se-me inquestionável que as Serventias extrajudiciais constituem instituições de direito público, organizadas pelo Estado, em ordem a preservar a segurança  das situações jurídicas individuais. Os tabeliães e os oficiais registradores, nesse contexto - e no desempenho de seu ofício público -, dispõem de uma prerrogativa singular, ínsita à própria e suprema autoridade do Estado, consistente no exercício do poder certificante, destinado a atestar a veracidade e a legitimidade de determinados fatos e atos jurídicos". "Essa circunstância só faz acentuar a estatalidade que qualifica as atribuições dos serventuários extrajudiciais, como enfatizou JOÃO MENDES JÚNIOR, em obra clássica (Órgãos da Fé Pública, 2ª ed., 1963, Saraiva)"26. Ao atrair e concentrar tais funções (não somente dados, o que seria igualmente problemático) em entidades para-registrais, mesmo aquelas criadas por registradores, damos um passo rumo a um mundo incerto, dando ocasião a fenômenos disruptivos que podem levar ao colapso instituições tão tradicionais como o são os registros públicos. A mesma eficiência, agilidade, comodidade e modicidade pode ser alcançada com o prestígio e valorização das instituições tradicionais - pelos órgãos da fé pública, como referiu o ministro. Enfim, sobre a reconformação do registro público em centrais personalizadas ser (ou não) mais eficiente, barata e adequada às necessidades jurídicas e econômicas da sociedade brasileira, eis uma questão que não foi suficientemente debatida entre nós, registradores, e entre juristas de escol.  A consequência direta do fenômeno de desinstitucionalização dos registros públicos, após sucessivas quebras disruptivas, é que tanto as operações eletrônicas de registro, quanto os dados albergados nas serventias, como consectário lógico do sistema de informações, migrarão do seu locus tradicional (art. 22 e ss. da Lei 6.015/1973 c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994) para o ventre de entidades para-registrais, onde serão centralizados e processados por máquinas coadjuvadas por amanuenses. Deve-se diligente perquirir: isso é bom? É ruim? Talvez não me caiba dar as respostas a estas e a tantas outras perguntas que deixei espalhadas como migalhas nesta longa estrada pela qual já não é possível retornar. Tenho a impressão, baseada na minha experiência pessoal, de que os "meios acabarão por transformar o emissor, o conteúdo e o receptor", parafraseando McLUHAN. Ao final e ao cabo, teremos outra coisa, que não tem história, tradição, nem destino, algo que se não confunde com o Registro de Imóveis que a sociedade tão bem conhece, confia e respeita. O sarampão reformista pode nos levar a caminhos sem volta. Você está preparado? __________ 1 O tema foi agitado na academia. V. BODINI. Constanza. Registro de garantias mobiliárias: uma proposta para sua modernização. São Paulo: FGV, 2019. Acesso aqui. 2 Falo do SREI - Sistema de Registro eletrônico de Imóveis. Coordenado pelo CNJ, em parceria com a LSITec, a especificação do modelo e sua prova de conceito foram avalizadas por juristas, cientistas e registradores de escol. Para uma antevisão. 3 Lei Modelo Interamericana sobre Garantias Mobiliárias da OEA, aprovada em 2002, pela Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias da UNCITRAL, aprovada em 2016, pela Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e pelo Protocolo à Convenção sobre Garantias Internacionais sobre Incidentes sobre Equipamentos Móveis Relativo a Questões Específicas ao Equipamento Aeronáutico, firmados na Cidade do Cabo em 2001 e ratificados pelo Brasil em 2013, e pelo Protocolo MAC (mineração, agricultura e construção). As referência firam hauridas da monografia de CONSTANZA BODINI, citada na nota 1. 4 V. JACOMINO. Sérgio. SERP e o Monstro de Horácio in MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo: Observatório do Registro, 2022. Acesso aqui. 5 "The Model Registry Provisions have been drafted to accommodate flexibility in registry design. That said, the Registry should be electronic in the sense of permitting information in registered notices to be stored in electronic form in a single database (see Secured Transactions Guide.).[.]. An electronic registry database is the most efficient and practical means to implement the recommendation of the Secured Transactions Guide that the registry record should be centralized and consolidated [.]". V. UNCITRAL - Model Law on Secured Transactions Guide to Enactment. Vienna: UN, 2017, pp. 49-50. 6 RODAS. João Grandino. Sistema registral precisa favorecer a utilização de garantias mobiliárias. Conjur. 11/6/2020. Acesso aqui. 7 BAZINAS. Spiro. Encontro CNF: Os instrumentos internacionais e o regime das garantias do crédito - Perspectivas e propostas para um melhor ambiente de negócios no Brasil. CNF, 2017, p. 23. 8 PINTO E SILVA. Fábio Rocha. Op. cit. p. 34. 9 V. especialmente p. 37. 10 Sobre esta "compulsão centralista" vide a série de artigos publicados no Observatório do Registro. Brevitatis causa: O centro é marginal - viva a centralidade das periferias! In JACOMINO. Sérgio. IRIB - até aqui viemos e daqui outros haverão de partir. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 363, abril de 2021, p. 6. Acesso aqui. 11 SANTOS. Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 42, n. 20. 12 A formação material de algumas espécies de contratos está a cargo da máquinas ou de proponentes (agentes financeiros etc.). Diz CARNELUTTI: "Avverto qui subito che per formazione del documento non intendo tanto l'atto materiale quanto l'atto giuridico della sua formazione; o, più, chiaramente, per formatore o autore del documento non indico tanto colui che materialmente lo forma, quanto colui, cui l'ordine giuridico ne attribuisce la formazione, cioè rispetto al quale se verificano gli effetti della formazione medesima [.]". CARNELUTTI. Francesco. La Prova Civile. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992, 144, n. 36. 13 ARENHART. Sérgio Cruz. Breves Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo: RT, 2015, p.1.087. 14 ASSIS. Araken. Processo Civil Brasileiro, 2ª ed. Vol. III, 2016, p. 792, § 1.944. 15 ESPÍNOLA. Eduardo. Manual do Código Civil, Vol. III, parte 3ª. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1929, p. 342. 16 Revista dos Tribunais n. 70/297. A lição seria repercutida na jurisprudência. V. Ag. Pet. 230.213, Franco da Rocha, j. 4/10/1974, rel. des. MÁRCIO MARTINS FERREIRA. Acesso aqui. 17 ASSIS. Araken. Op. cit. nota 14, p. 730. 18 Idem, ibidem, nota 14, p. 684, n. 1.916 in fine. 19 É a redação do inc. II do art. 18 da Lei 13.874/2019. Cfr. tb.  § 1º do art. 1º da MP 2.200-2/2001; inc. II do art. 411 do CPC. 20 STJ REsp 686.932-PR, j. 1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX. 21 STF RE 611.639- RJ, j. 21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO. 22 Deliciosa expressão do advogado paulistano, Dr. ERMITÂNIO PRADO. JACOMINO. Sérgio. A SERPENTINA REGISTRAL (aka Reforma Curupira). As bolhas da modernidade. São Paulo: Observatório do Registro, 2022, acesso aqui. 23 "Matters prove transparent when they shed all negativity, when they are smoothed out and leveled, when they do not resist being integrated into smooth streams of capital, communication, and information. Actions prove transparent when they are made operational - subordinate to a calculable, steerable, and controllable process. Time becomes transparent when it glides into a sequence of readily available present moments". HAN, Byung-Chul. The Transparency Society. California: Stanford University Press, 2015. 24 JACOMINO. Sérgio. Até aqui viemos - daqui outros haverão de partir. Op. cit. nota 10. 25 Daqui em diante reproduzo, literalmente, o que se acha em JACOMINO. Sérgio. Agonia central - ou anomia registral? São Paulo: Observatório do Registro, 23/10/2021. Acesso aqui. 26 STF, RE 189.736-8-SP, j. 26/3/1996, DJ 27/9/1996, pela 1.ª T. Rel. Min. MOREIRA ALVES. Acesso aqui. No mesmo sentido: ADI-MC 1.378/ES, j. 30/11/1995, DJ 30/5/1997, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Acesso aqui. RE: 178.236 - RJ, j. 7/3/1996, DJ 11/4/1997, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI. Acesso aqui.
A Medida Provisória 1.085 foi publicada no Diário Oficial da União no dia 28/12/2021, dispondo sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP e alterando várias leis, entre elas a Lei de Registros Públicos - lei 6.015/73. O escopo deste texto é tratar de um dos temas que foi objeto de alteração na Lei de Registros Públicos: as certidões, mais especificamente, as certidões exigidas para lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis. Antes de examinar a nova redação dada ao artigo da Lei de Registros Públicos pela Medida Provisória e para melhor contextualizar o problema, destaca-se que os requisitos legais para lavratura de escrituras públicas encontram-se nos artigos 215 do Código Civil, e 1º da lei 7.433, de 18/12/1985, dispondo este: "Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.  (...) §2º   O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição." A redação atual foi dada pela lei 13.097, de 19/01/2015, e, como se observa, determina que sejam apresentados ao tabelião de notas os seguintes documentos: comprovante de pagamento do imposto de transmissão, certidões fiscais, certidões de propriedade e de ônus reais. Observa-se que o texto legal refere "certidões", no plural. Na prática, em razão disso, os registradores de imóveis expedem uma certidão de propriedade, contendo os dados de identificação do imóvel e as informações de registros e averbações a ele referentes, e uma outra certidão contendo a descrição dos ônus reais que recaem sobre o imóvel ou a inexistência deles. Como mencionado, o artigo 11 da Medida Provisória 1.085/21 trouxe alterações na Lei de Registros Públicos, e uma delas é a nova redação do artigo 19, que trata das certidões em seus doze parágrafos. Interessa para análise aqui proposta o disposto no parágrafo onze: Art. 11. A lei 6.015, de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 19. ............................................................................................................... (...) § 11. No âmbito do registro de imóveis, a certidão de inteiro teor da matrícula contém a reprodução de todo seu conteúdo e é suficiente para fins de comprovação de propriedade, direitos, ônus reais e restrições sobre o imóvel, independentemente de certificação específica pelo oficial. O texto prevê que uma única certidão, a de inteiro teor da matrícula, é suficiente para comprovar a propriedade, os direitos, ônus e restrições sobre o imóvel, dispensando, com isso, a apresentação de duas certidões distintas, como previsto na lei ordinária. Diante da incompatibilidade dos textos normativos, o problema que surge é: a Medida Provisória 1.085/21 revogou a parte final do parágrafo segundo, do artigo 1º, da lei 7.433/85? Ou, com a vigência da Medida Provisória 1.085/21 a apresentação de "certidões" de propriedade e de ônus reais como requisito para lavratura de escritura pública foi superada ou permanece inalterada? A resposta para essas perguntas demanda um exame da eficácia das medidas provisórias. As medidas provisórias são normas com força de lei, equiparando-se à lei ordinária, desde que assim convertida pelo Congresso Nacional. Uma vez editada a medida provisória, seus efeitos são imediatos e de duas naturezas: (i) alteração imediata do ordenamento jurídico, e (ii) instauração do respectivo processo legislativo. De acordo com os ensinamentos de Guilherme Peña de Moraes1 a medida provisória é simbolizada como ato normativo primário, do Presidente da República, no caso de relevância e urgência, submetido à deliberação do Congresso Nacional, que perde a eficácia se não for convertida em lei no prazo de 60 dias2, podendo este prazo ser prorrogado uma vez por igual período. Então, além de ser uma norma com eficácia imediata e temporária, constitui-se como projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo que poderá ter dois desfechos: a conversão em lei ou a rejeição. No que diz respeito à eficácia quando houver incompatibilidade com norma até então vigente, como acontece com a Medida Provisória 1.085/21 em relação ao art. 1º, §2º, parte final, da lei 7.433/85, a doutrina não é unânime. Para Hugo de Brito Machado3, o que ocorre nesta hipótese é que as normas incompatíveis ficam revogadas condicionalmente. Ele explica que a revogação fica subordinada à condição resolutiva, que consiste na conversão da medida provisória em lei. Não ocorrida a condição, ou seja, caso a medida provisória não seja convertida em lei, a revogação deixa de existir, "tal como se uma nova lei houvesse revogado a medida provisória". Por outro lado, o entendimento do Pleno do STF4 é de que a medida provisória não revoga lei anterior, apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, diante de seu caráter transitório e precário. A revogação propriamente, só ocorrerá no caso de a medida provisória ser convertida em lei ordinária. Assim, durante a vigência temporária da medida provisória o efeito é a suspensão da eficácia dos atos legislativos incompatíveis com o texto dela. Independentemente do posicionamento adotado, é inequívoco que durante a sua vigência, prevalecerá o disposto na medida provisória, ainda que o texto seja incompatível com outra disposição anterior, prevista em lei ordinária, como no presente caso. Portanto, conclui-se que, enquanto viger a Medida Provisória 1.085/21, a certidão de inteiro teor expedida pelo registrador de imóveis é o documento suficiente para a lavratura de escritura pública, juntamente com o comprovante de pagamento do imposto de transmissão e das certidões fiscais, preceito a ser observado pelos notários e registradores no exercício de seu mister. Dito isso, outra questão relevante diz com a disciplina das relações jurídicas decorrentes da medida provisória quando: (i) o prazo de vigência finalizar sem conclusão pelas duas Casas do Congresso Nacional; (ii) no caso de ser aprovado projeto de lei com redação diversa da proposta pela Comissão Mista em seu parecer; (iii) se a medida provisória for rejeitada. Em qualquer um desses casos a Comissão Mista se reunirá para elaboração de projeto de decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas decorrentes de sua vigência5. Por fim, não editado o decreto legislativo no prazo de até 60 dias após a rejeição ou a perda da eficácia, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a vigência da medida provisória conservar-se-ão por ela regidas6. Com isso, as escrituras públicas lavradas durante a vigência da Medida Provisória, observados os demais requisitos legais e a apresentação da certidão de inteiro teor, serão válidas e eficazes. _______________ 1 MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional, 12 ed., São Paulo: Atlas, 2020, p. 515. 2 Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.  (...) § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://bitlybr.com/sa8v. Acesso em: 15.03.2022 3 MACHADO, Hugo de Brito. Efeitos de Medida Provisória Rejeitada in Revista dos Tribunais, nº 700, 1994, p. 46. 4 ADIn 5.709, Tribunal Pleno, Rela. Min. Rose Weber, j. 27.3.2019, DJe 28.6.2019. Disponível aqui. Acesso em: 15.03.2022. 5 Art. 11. Finalizado o prazo de vigência da Medida Provisória, inclusive o seu prazo de prorrogação, sem a conclusão da votação pelas 2 (duas) Casas do Congresso Nacional, ou aprovado projeto de lei de conversão com redação diferente da proposta pela Comissão Mista em seu parecer, ou ainda se a Medida Provisória for rejeitada, a Comissão Mista reunir-se-á para elaborar projeto de decreto legislativo que discipline as relações jurídicas decorrentes da vigência de Medida Provisória. § 1º Caso a Comissão Mista ou o relator designado não apresente projeto de decreto legislativo regulando as relações jurídicas decorrentes de Medida Provisória não apreciada, modificada ou rejeitada no prazo de 15 (quinze) dias, contado da decisão ou perda de sua vigência, poderá qualquer Deputado ou Senador oferecê-lo perante sua Casa respectiva, que o submeterá à Comissão Mista, para que esta apresente o parecer correspondente. § 2º Não editado o decreto legislativo até 60 (sessenta) dias após a rejeição ou a perda de eficácia de Medida Provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. § 3º A Comissão Mista somente será extinta após a publicação do decreto legislativo ou o transcurso do prazo de que trata o § 2º. BRASIL. [Resolução 1, de 2002 - CN]. Disponível aqui. Acesso em 15.03.2022 6 Art. 62. (...) § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.  (...) § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível aqui. Acesso em 15.03.2022