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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
1. Introdução O CC/02 caminha para sua primeira grande revisão estrutural. O PL 4/25, de autoria do Senado Federal, nasceu do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo presidente Rodrigo Pacheco e pretende atualizar institutos que já se mostram anacrônicos frente às transformações sociais, econômicas e tecnológicas das últimas duas décadas. O movimento não é apenas de modernização terminológica: busca-se redesenhar o equilíbrio entre autonomia privada, tutela estatal e desjudicialização de atos da vida civil, com impactos diretos no sistema notarial e registral. Contratos, mandatos, curatelas, testamentos e registros de imóveis estão no epicentro dessa transformação. 2. Linhas centrais da reforma Entre os eixos confirmados no PL 4/25, destacam-se: Capacidade civil: Restringe a incapacidade absoluta a menores de 16 anos e àqueles que por nenhum meio possam exprimir vontade. A deficiência, por si só, não afeta a capacidade. Regimes de bens: Permite alteração extrajudicial do regime no tabelionato de notas e admite cláusulas condicionais, como as chamadas sunset clauses, que modificam o regime automaticamente após certo tempo. Diretiva antecipada de curatela: Cria o instituto, possibilitando a designação prévia de curador por escritura pública, em caso de futura incapacidade. Contratos e sucessões: Abre espaço para pactos com disposições sucessórias e renúncias condicionadas à herança futura. Testamentos: Discute-se a flexibilização das formalidades do testamento particular, sem supressão definitiva das exigências de testemunhas, mas com tendência de redução da burocracia. 3. Contratos e mandatos A previsão de pactos sucessórios e renúncias condicionadas exigirá que os tabelionatos de notas desenvolvam novos modelos de escrituras, com cautela redobrada na formulação de cláusulas de eficácia diferida. Nos mandatos, a ampliação da capacidade relativa e a facilitação da emancipação impõem ao notário uma função mais ativa de qualificação subjetiva: aferir se o outorgante dispõe de capacidade suficiente para os poderes conferidos. O risco de nulidade por vício de capacidade exigirá escrituras mais bem fundamentadas. 4. Tutela, curatela e diretiva antecipada A Diretiva Antecipada de Curatela é inovação de relevo. Permitirá que qualquer pessoa, em plena capacidade, indique previamente seu futuro curador. Isso desloca para o notário uma atribuição hoje quase exclusiva do Judiciário: organizar a sucessão da curatela. O registro civil terá de criar mecanismos de averbação para dar publicidade a essas diretivas, garantindo que sejam oponíveis a terceiros. A proposta dialoga com a jurisprudência do STJ, que já vem restringindo hipóteses de incapacidade absoluta e exigindo proporcionalidade na curatela (REsp 1.927.423/SP). 5. Testamentos e sucessões O PL sinaliza maior harmonia entre os Livros de Família e Sucessões, evitando conflitos normativos sobre regimes de bens e sucessão legítima. Dois reflexos práticos para o notariado: Ampliação da autonomia sucessória, com pactos e renúncias em vida exigindo escritura pública. Revisão das formalidades do testamento particular, tema em debate pela doutrina (Flávio Tartuce, entre outros). Ainda não há texto definitivo, mas a tendência é reduzir entraves formais sem comprometer a segurança. A jurisprudência reforça esse caminho: a 4ª turma do STJ manteve testamento cerrado de 2005, afirmando que a capacidade deve ser aferida no momento da lavratura (REsp 2.032.458/RS). Isso dá lastro à ideia de flexibilização formal. 6. Registro de imóveis O impacto sobre o registro imobiliário é sensível: Alterações de regime de bens implicarão averbações automáticas, aumentando a carga de serviço. Pactos com cláusulas resolutivas ou condicionais obrigarão o registrador a lidar com títulos de eficácia futura ou suspensa, exigindo novos protocolos de qualificação. A jurisprudência do STJ (REsp 1.855.689/DF) reafirmou que a renúncia hereditária é irrevogável, indivisível e retroage à abertura da sucessão, alcançando bens descobertos posteriormente. Esse entendimento deverá orientar os registros sucessórios, especialmente quando houver bens ocultos ou supervenientes. 7. Desafios práticos A reforma abre oportunidades, mas também cria gargalos: Capacitação técnica de notários e registradores para novos institutos. Uniformização nacional de procedimentos, sob coordenação do CNJ. Custo tecnológico para digitalizar e interoperar bases de dados. Risco de exclusão digital em regiões carentes, onde a população depende da via física. O sistema notarial e registral terá de responder com eficiência e segurança, sob pena de abrir espaço para litigiosidade. 8. Conclusão A reforma do CC não é apenas uma atualização de linguagem. É um reposicionamento do papel do notário e do registrador como agentes de segurança jurídica. Ao deslocar competências do Judiciário para a via extrajudicial, o legislador reconhece a confiança social depositada na fé pública. Caberá aos cartórios absorver esse protagonismo sem comprometer a solidez que é sua marca histórica. Mais que nunca, o futuro do Direito Notarial e Registral dependerá de um equilíbrio fino: inovar sem perder a segurança, ampliar a autonomia da vontade sem abrir brechas à fraude, e modernizar procedimentos sem excluir o cidadão comum. __________________________ BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Atualiza o Código Civil e legislações correlatas. Disponível aqui. Acesso em: 23 set. 2025. BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 set. 2025. STJ. REsp 1.855.689/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 17/09/2025. Decidiu que a renúncia à herança é irrevogável, indivisível e alcança bens descobertos posteriormente. Disponível aqui. STJ. REsp 1.927.423/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 2023. Decidiu que a incapacidade absoluta se restringe a menores de 16 anos, aplicando o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível aqui. STJ. REsp 2.032.458/RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 4ª Turma. Julgado em 28/03/2025. Reafirmou que a capacidade do testador deve ser aferida no momento da lavratura do testamento. Disponível aqui. TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil e o testamento particular. Coluna CNB/SP, 23 jul. 2025. Disponível aqui. IBDFAM. Principais alterações da proposta do Código Civil sob a perspectiva notarial e registral. IBDFAM, 2024. Disponível aqui. MATTOS FILHO. Reforma do Código Civil: impactos sobre o patrimônio e sucessões. Único, 2025. Disponível aqui. ANOREG/BR. Perspectivas da reforma do Código Civil. Congresso Nacional de Notários e Registradores, 2024. Disponível aqui.
Por que ainda se discute a gratuidade dos atos notariais e registrais? A discussão sobre a concessão de gratuidades dos serviços notariais e registrais é recorrente na rotina dos serviços extrajudiciais. Pedidos são feitos diretamente nos balcões das serventias e, quando não há previsão normativa, são negados. Assim, muitas vezes, desaguam no Poder Judiciário para análise e decisão. E por que são negados? A gratuidade perpassa, necessariamente, pela análise da natureza jurídica dos emolumentos. A doutrina majoritária1 e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal2 e do Superior Tribunal de Justiça3 reconhecem que tais valores possuem natureza tributária, mais precisamente de taxa, haja vista que decorrem do exercício do poder de polícia e da prestação de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ou postos à disposição do usuário. Tratando-se de espécie tributária, a dispensa de seu pagamento consiste em isenção, a qual exige lei em sentido estrito para sua concessão de modo que a concessão de gratuidades por provimentos das Corregedorias nacional ou locais ou, ainda, por decisão judicial, afrontam o artigo 150, §6º da Constituição Federal de 1988. Emolumentos não são "preço", sim tributo. Nos termos do artigo 145, II, da Constituição da República, as taxas podem ser instituídas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível. É justamente aí que se enquadram os emolumentos cartorários, possuindo estes [...] natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, e por isso sujeitam-se, quer no que concerne à sua instituição e majoração, quer no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico constitucional pertinente a essa modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade4. O Supremo Tribunal Federal reafirmou esse entendimento em vários julgamentos5, deixando claro que os emolumentos têm caráter de taxa, afastando qualquer interpretação que os qualificasse como preço público ou tarifa. Como espécies tributárias que são, a sua definição geral decorre dos artigos 236, §1º, CF, bem como da Lei Federal 10.169/2000, que fixa as regras gerais. Ato contínuo, cada Estado da federação possui a competência para editar lei estadual que institui a tabela de custas e emolumentos, a qual deve observar parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, de modo a assegurar que o custo do serviço não exceda o valor necessário à sua adequada remuneração e manutenção. Normas das Corregedorias nacional e local podem complementar e regulamentar a cobrança de emolumentos mas, jamais, criar, majorar ou isentar o pagamento dos emolumentos, ante os preceitos constitucionais que regem a matéria tributária. A atuação administrativa é meramente executória, cabendo ao legislador a definição material dos emolumentos. A atualização monetária, entretanto, pode ser realizada anualmente, mediante índice oficial de correção estabelecido na lei de emolumentos local, não se tratando de aumento real e sim preservação do poder aquisitivo do valor cobrado. Nos casos em que não há previsão legislativa expressa, qualquer reajuste feito por ato normativo infralegal será considerado inconstitucional, por violar o princípio da reserva legal tributária e o art. 150, I, da Constituição Federal. Por que a gratuidade precisa de lei? Sendo os emolumentos tributos, a concessão de gratuidade consiste em isenção tributária, logo não podem ser feitas por ato infralegal, provimento ou mesmo decisão judicial isolada. Afinal, a Constituição Federal, em seu artigo 150, § 6º, é expressa em estabelecer que isenções só podem ser instituídas mediante lei específica emanada do Poder Legislativo. Nesse ínterim, qualquer tentativa de se instituir gratuidade fora do processo legislativo viola frontalmente os princípios da legalidade tributária (art. 150, I, CF) e da reserva legal. Os limites da atuação tributária do Conselho Nacional de Justiça e das Corregedorias Sabe-se que o Conselho Nacional de Justiça e as Corregedorias locais possuem competência normativa para regulamentar a atividade notarial e registral. Entretanto, não detêm poder de criar ou majorar emolumentos e nem conceder gratuidades ou ampliar hipóteses de isenção de emolumentos. A edição de provimentos ou resoluções que concedam gratuidade de serviços sem respaldo legal extrapola a competência destes órgãos e constitui inconstitucionalidade por afronta ao artigo 150, §6º da Constituição Federal de 1988. Reforça esta afirmação o disposto no artigo 504 do Provimento nº. 149 do Conselho Nacional de Justiça que, ao tratar do reconhecimento de paternidade, diz de forma clara que deve-se respeitar as gratuidades previstas em lei. Para tanto, prevê o artigo 102, §6º da Lei nº. 8069 a isenção de emolumentos para os reconhecimentos de paternidade. A técnica normativa, neste caso, foi constitucional, pois assegurou previsão antes definida pelo legislador. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo prevê a gratuidade dos registros de óbito e nascimento e respectivas primeiras vias, independente de se tratar de hipossuficiente. A Lei nº. 6015 prevê a gratuidade das segundas vias das certidões do registro civil de pessoas naturais para os hipossuficientes. Vê-se, assim, que o sistema exige a edição de lei formal para a concessão de gratuidade e assim procede nas situações em que entende necessário isentar o pagamento de emolumentos. Logo, somente após um processo legislativo amplo é que são veiculadas isenções tributárias, o que também atende ao princípio da isonomia, com a fixação de elementos de equidade para as concessões dos benefícios. Nessa linha, discute-se muito a concessão de gratuidade para os pedidos de alteração de nome e nome e gênero de hipossuficientes, o que não pode ocorrer, justamente porque não há previsão legal para a concessão de isenção nestes casos. Desta forma. as decisões judiciais ou os provimentos neste sentido ressoam ilegais e inconstitucionais. O que está em jogo: segurança jurídica e sustentabilidade. A concessão indevida de gratuidade por provimentos ou decisões judiciais compromete o equilíbrio do sistema de custeio da atividade notarial e registral e ameaça a própria sustentabilidade do serviço público delegado. Os serviços extrajudiciais são prestados por delegação do Estado e financiados exclusivamente por emolumentos pagos diretamente pelo usuário do serviço. Essa metodologia garante justiça distributiva: quem utiliza o serviço arca com seu custo, sem transferi-lo à coletividade.   Em que pese se tratar de delegação de serviço público, o modelo se assemelha ao das concessionárias de rodovia, em que paga o pedágio quem trafega pela via, e ninguém cogita isentar o motorista do pagamento. Assim, qualquer alteração na política de custeio deve ser objeto de deliberação legislativa, com respeito à previsão orçamentária e à responsabilidade fiscal (art. 113 do ADCT e Lei Complementar nº 101/2000). Caso o Estado deseje ampliar hipóteses de gratuidade, deverá fazê-lo mediante repasses ou compensações financeiras. Afinal, a atividade notarial e registral é exercida em caráter privado, por delegação do poder público a pessoas físicas. Assim, não se pode impor ao delegatário o ônus de custear políticas públicas, de responsabilidade do Estado, cabendo a este planejar e financiar medidas de inclusão social.   Conclusão: boa intenção não basta Garantir acesso à cidadania é um valor constitucional, mas não se alcança justiça violando a legalidade. A gratuidade de emolumentos só pode ser instituída por lei em sentido estrito, respeitando os princípios da legalidade, da reserva legal e da responsabilidade fiscal. O respeito à forma é, nesse caso, o próprio conteúdo da segurança jurídica. __________ 1 A discussão é objeto do capítulo 3 da obra Responsabilidade tributária de notários e de registradores, de Norton Luís Benites. --1. ed. --São Paulo : Almedina, 2021 2 Nesse sentido, ADI 1378. MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1995, DJ 30-05-1997 PP-23175 EMENT VOL-01871-02 PP-00225 3 Nesse sentido RECURSO ESPECIAL Nº 1.187.464 - RS  4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos - Teoria e Prática. 12ª Ed. Ver e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023. P. 106. 5 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. REQUERIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR. REGISTROS PÚBLICOS. LEI N. 3.929/2013, DO AMAZONAS, PELA QUAL CRIADO O FUNDO DE APOIO AO REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS DO ESTADO DO AMAZONAS - FARPAM. ALEGADA OFENSA AO INC. XXV DO ART. 22, INC. I DO ART. 154, ART. 155 E INC. IV DO ART. 167 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AUSENTE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE REGISTROS PÚBLICOS. RECURSOS QUE COMPÕEM O FUNDO EM EXAME: NATUREZA JURÍDICA DE TAXA. VALIDADE DA DESTINAÇÃO DESSES RECURSOS A FUNDO ESPECIAL. PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Nas normas impugnadas não se altera a disciplina relativa à validade, à forma, ao conteúdo ou à eficácia dos atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e de registro no Amazonas. 2. A remuneração pela prática dos serviços notariais e de registro decorre do pagamento de emolumentos, fixados por normas estaduais ou distritais, considerada natureza pública e o caráter social dos serviços prestados, conforme § 2º do art. 236 da Constituição da República e arts. 1º e 2º da Lei federal n. 10.169/2006. 3. O selo eletrônico de fiscalização e os emolumentos previstos pelos incs. I e II do art. 2° da Lei estadual n. 3.929/2013 configuram-se como taxa, espécie tributária prevista no inc. II do artigo 145, da Constituição da República. 4. São constitucionais as normas estaduais pelas quais preveem a destinação de parcela dos emolumentos recebidos pelos notários e registradores a fundos especiais do Poder Judiciário. Precedentes. 5. É constitucional a Lei n. 3.929/2013, do Amazonas, pela qual criado o Fundo de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado do Amazonas - FARPAM, supervisionado e fiscalizado pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 5672, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 21-06-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 29-06-2021  PUBLIC 30-06-2021).
1. Introdução Trataremos das inúmeras utilidades práticas da conta notarial vinculada (escrow account notarial), com inclusão das soluções que ela oferece próxima ao modelo do trust. Avançaremos para definir essa ferramenta e expor seu regime jurídico e operacional, com algumas sugestões de aprimoramentos. A recente ferramenta é disciplinada pelo art. 7º-A, § 1º, da lei dos cartórios (lei 8.935/1994)1 e pelo provimento 197/25. Averbamos nossos agradecimentos e elogios ao talentosos e proativos juristas com os quais amadurecemos nossas reflexões e que estão empenhados na implantação prática da conta notarial vinculada. É o caso dos amigos André Toledo, Rafael Vitelli Depieri, Hércules Alexandre da Costa Benício, Guilherme Gaya, Alexandre Kassama e Giselle Oliveira de Barros. 2. Utilidade prática, com inclusão de soluções próximas ao trust Antes mesmo de definir a conta notarial vinculada (escrow account notarial), anteciparemos as suas infinitas aplicações práticas quotidianas. Ao assinarmos uma escritura pública comprando um imóvel, é arriscado transferir o dinheiro ao vendedor. Isso, porque a aquisição do imóvel só se consumará se o Cartório de Registro de Imóveis vier a aceitar o registro da escritura, o que nem sempre acontece por motivos de Direito Registral (ex.: a existência de uma indisponibilidade averbada na matrícula; o descompasso entre dados pessoais do vendedor na escritura em relação aos que estão na matrícula; a falta de georreferenciamento; etc.). O mais cauteloso é transferir o dinheiro só depois do registro. Todavia, sob a ótica do comprador, também é arriscado só receber o pagamento depois do registro da escritura: o vendedor pode dar um "calote" e, ainda por cima, revender o bem a um terceiro. O que fazer? A  conta notarial vinculada (escrow account notarial) é a melhor solução: o vendedor transfere o dinheiro para ela, e o tabelião somente liberará o valor ao comprador após constatar o registro. Inúmeros outros negócios sofrem do risco acima, com adaptações, a aconselhar o uso da escrow account notarial. É o caso, por exemplo, da caução de dinheiro em contrato de locação: há risco de o locador gastar o valor e não o restituir ao final do contrato. É o que se dá em grandes negócios empresariais, em que o momento seguro para a liberação do dinheiro é a futura constatação de determinado fato. Até mesmo em compras realizadas em plataformas de marketplace, como a OLX e o mercado livre. Há golpes perpetrados por "falsos vendedores" que poderiam ser evitados se o dinheiro ficasse em uma conta notarial para liberação ao vendedor somente após o efetivo recebimento do produto. A utilidade da conta notarial é infinita. Acomoda, inclusive, eventuais formas de planejamento familiar ou sucessório. Pense em um pai com uma doença mortal e que tema pelo futuro de seu filho errático, que, na falta do pai, provavelmente dilapidaria a herança com drogas e cairia na penúria.  Esse pai poderia proteger o dinheiro em uma conta notarial vinculada e indicar um gestor de confiança para, sob determinadas diretrizes, ir solicitando ao tabelião a liberação parcial do dinheiro ou de seus rendimentos. Isso pode acontecer por ato inter vivos ou por testamento (com nomeação de um testamenteiro para exercer esse papel de gestor e com a titularidade da conta em nome do espólio ou, até mesmo, do testamenteiro e/ou do beneficiário). Trata-se de um arranjo similar ao famoso trust, tão comum nos países anglo-saxões, em que uma pessoa (instituidor ou, em inglês, seattlor) transfere a propriedade a um gestor (fiduciário ou, em inglês, trustee) para que este repasse rendimentos ou, por vezes, o próprio patrimônio a um terceiro (beneficiário ou, em inglês, beneficiary). A verdade é que, com a conta notarial vinculada, arranjos como esses - com resultados práticos similares ao trust - podem ser cogitados, o que confere segurança jurídica às necessidades negociais dos cidadãos e das empresas. A conta notarial vinculada é uma das criações jurídicas mais vibrantes e úteis dos últimos tempos e precisa assumir uma configuração operacional apta a recepcionar o vastíssimo carrossel de demandas da sociedade e do mercado, o que vem sendo desenvolvido, com proficiência, pela entidade representativa dos notários (o CNB - Colégio Notarial do Brasil). 3. Definição e regime jurídico e operacional A conta notarial vinculada (escrow account notarial) é uma verdadeira "ilha de blindagem patrimonial" para um dinheiro vinculado a uma finalidade. Os interessados depositam o dinheiro nessa conta bancária vinculada a um tabelião de notas e dão as diretrizes a serem observadas para a liberação do dinheiro a terceiros. Esse dinheiro fica imunizado diante de qualquer dívida pessoal do tabelião ou dos interessados, por força do regime de patrimônio de afetação previsto no art. 7º-A, § 1º, da lei 9.935/1994. O dinheiro vinculado a uma finalidade fica, pois, em uma ilha de blindagem patrimonial. O tabelião de notas tem as chaves da porta de entrada e de saída da conta notarial: a abertura da conta e a liberação do dinheiro dependem de ato do notário, em convênio com uma instituição financeira (atualmente, o banco Safra é a instituição convencionada com o Colégio Notarial do Brasil). Os comandos desses atos do notário podem ser automatizados com uso de plataformas eletrônicas, conforme juízo prudencial à luz dos casos concretos. Na prática, não há necessidade de nenhum ato notarial protocolar típico (como escritura pública ou ata notarial). Ao ser demandado pelos interessados, o tabelião preenche, no sistema eletrônico da instituição financeira convencionada, o "termo de abertura da conta notarial", indicando as diretrizes para liberação do dinheiro (o termo ou a condição suspensivos, os quais, quando ocorridos, autorizariam a transferência do dinheiro ao destinatário). O tabelião envia o termo às partes para assinatura (ainda que eletrônica). Após a assinatura, arquiva-o em pasta própria (art. 8º, provimento 197/252) e faz o upload do termo assinado na plataforma eletrônica. O sistema eletrônico gera um boleto a ser pago pelo depositante. Com o pagamento do boleto, a conta notarial nasce, abastecida com esse dinheiro do pagamento. Quando vier a ocorrer o evento futuro de liberação do dinheiro, o tabelião acessa o sistema eletrônico e libera a verba ao destinatário. O valor a ser pago pelo serviço depende do convênio e será feita à instituição financeira conveniada, que remunera o tabelião (arts. 4º e 11 do provimento 197/253). Não há obrigatoriedade (mas mera faculdade) de lavratura de atos notariais, o que afasta cobrança de emolumentos. Atualmente, o valor da operação da escrow account é irrisório: 0,08% da operação (respeitado o piso de R$ 50,00), a ser pago ao banco conveniado, que remunera o tabelião na forma do convênio. 3. Questões práticas e sugestões de aprimoramento Algumas questões merecem reflexão. 3.1. Consentimento dos interessados para liberação da verba? Em primeiro lugar, há ou não necessidade de o tabelião obter o consentimento de todos os interessados para a liberação da verba? Depende. Se, porém, o evento futuro for de constatação não evidente (ex.: adoção de um determinado comportamento por uma das partes), convém ao tabelião colher o consentimento de ambas as partes. Rescisão ou ineficácia de contratos consideram-se de constatação não evidente (art. 9º, § 1º, provimento 197/254). Se o evento futuro for de constatação evidente pelo tabelião (ex.: a realização de um registro na matrícula, o alcance de uma idade pelo destinatário), não há necessidade: o próprio tabelião pode liberar o valor (art. 9º, § 2º, provimento 197/255). Entendemos, porém, que, mesmo nessa hipótese, é recomendável ao tabelião colher prévia manifestação da outra parte para prevenir surpresas. Afinal, a prova apresentada da ocorrência do evento futuro pode ser falsa (ex.: uma certidão falsa) ou fruto de erro. Nos casos em que há provas convincentes, poderia o tabelião expedir notificação prévia no endereço eletrônico indicado pela parte para oferecer eventual impugnação à liberação do valor, sob pena de consentimento tácito, tudo com base no princípio do silêncio conclusivo (art. 111 do CC6) e em analogia ao que já sucede nos procedimentos extrajudiciais de usucapião e de retificação extrajudicial. Eventual aprimoramento nas normas internas do CNJ poderia positivar essa solução. Seja como for, cabe ao juízo prudencial do notário a avaliação. É claro que, em situações específicas de inequívoca constatação do evento futuro, a notificação prévia das partes pode ser dispensada. Imagine o uso da conta notarial em operações de venda em ambiente de empresas de marketplace, como no da OLX. O atesto da plataforma eletrônica da empresa acerca da entrega do produto ao comprador poderia ser considerado suficiente para a liberação do valor, o que pode acontecer automaticamente pelo sistema, sem necessidade de ato humano específico do tabelião. Não há problema nenhum nessa automatização das etapas de depósito na escrow account e de liberação dos valores, dentro da lógica de um smart contract lato sensu, tema sobre o qual tivemos a oportunidade de aprofundar em outro artigo.7 Aliás, a escrow account notarial pode ser perfeitamente utilizada em diferentes arranjos de smart contracts. 3.2. O que fazer no caso de falta de consenso das partes para liberação da verba nos casos em houver essa necessidade? Em segundo lugar, indaga-se: quando o tabelião buscar o consentimento de ambas as partes e não houver consenso, que providência deverá ser adotada? A resposta depende de uma leitura lógico-sistemática do art. 9º do provimento 197/258. Referido dispositivo, em uma interpretação literal, aponta para a lavratura de uma ata notarial para uma tentativa de acordo e, no caso de subsistência do litígio, para a devolução do dinheiro ao depositante (art. 9º, I a IV, do provimento 197/25). Mas parece-nos evidente que esse caminho só pode ser trilhado se as partes, apesar de divergirem sobre a ocorrência do evento futuro, consentirem com esse procedimento. E há um motivo principal para tanto: a conta notarial destina-se a servir de garantia de ambas as partes e, por isso, sua sorte não pode ficar sob a dependência do arbítrio do depositante. Aliás, como a lavratura da ata notarial pressupõe o pagamento dos emolumentos, está implícito no supracitado dispositivo do provimento 197/25 que a sua lavratura dependerá de ato espontâneo de ambas as partes. Entender diversamente nos levaria à intragável conclusão de que o depositante poderia, a seu talante, reaver o dinheiro depositado e frustrar a garantia da outra parte. Pense em alguém que, após receber um produto, mente para reaver o dinheiro depositado. Não é razoável interpretar o preceito acima a ponto de desmoralizar a finalidade de garantia da conta notarial. No máximo, o que seria viável é que, no caso de subsistência da discordância, o tabelião, a pedido do depositante, poderia notificar a outra parte, interpretando-se seu silêncio como consentimento com o levantamento do valor ao depositante, o que será atestado em ata notarial lavrada a pedido e às expensas do depositante. Conviria aprimoramento da regulamentação do CNJ nesse ponto. 3.3. Estruturação da conta e repercussões tributárias Em terceiro lugar, qual é o melhor modelo de operacionalização da conta notarial? Estamos na fase de cartografar esse novo território, o que exige capacidade criativa dos agentes. Entendemos que a via mais adequada é espelhar-se nas contas judiciais, que costumam ser oferecidas por bancos públicos (como a Caixa Econômica Federal). Essas contas ficam em nome das partes, com movimentação condicionada a ordem judicial. A conta notarial é uma conta extrajudicial, vinculada a um tabelionato, com movimentação condicionada ao comando do notário. Ficará na instituição bancária conveniada com a entidade representativa dos notários. Deve-se, pois, espelhar nesse modelo de contas judiciais, inclusive quanto ao regime tributário cabível. 3.4. Rendimentos das contas notariais Em quarto lugar, enfatizamos a importância de o banco convencionado disponibilizar opções de rendimentos de renda fixa razoáveis, compatíveis aos oferecidos aos clientes em geral. O mínimo é assegurar o rendimento próprio da poupança. Deve-se, porém, pensar em alguma solução pela qual o banco ofereça um rendimento superior, atrelando-o aos oferecidos por títulos mobiliários comuns de renda fixa. Isso, porque o banco certamente usará os valores da conta para investimentos pessoais com retornos superiores. O mercado bancário oferece, com facilidade, títulos de renda fixa com rendimentos de 100% do CDI - Certificado de Depósito Interbancário, o que significa um rendimento geralmente próximo da taxa Selic. Essa maior rentabilidade é essencial pelo fato de que a conta notarial atrairá depósitos de longa duração, inclusive em valores expressivos. É possível que os bancos ofereçam títulos assim. Depende do convênio firmado com os bancos, até porque os valores depositados são utilizados pelo banco para obtenção de rendimentos maiores nos seus negócios próprios. É importante que o convênio seja feito com bancos de altíssima reputação e solidez, caso do atual convênio com o Banco Safra. Mas é preciso que os rendimentos das contas sejam adequados ao que realmente é oferecido no mercado para títulos de renda fixa, de modo que é preciso deixar no radar, caso esses rendimentos não possam ser oferecidos com base nos convênios atuais, a conveniência de serem feitos convênios com outras instituições. 3.5. Dispensa de ato notarial protocolar típico Em quinto lugar, não há obrigatoriedade em qualquer ato notarial protocolar típico para a abertura ou liberação da conta notarial. Ato notarial típico são aqueles lavrados em livros pelo notário e são historicamente inerentes à atividade notarial, caso das escrituras públicas e das atas notariais.   Entendemos que a abertura da conta notarial deve ser considerada um ato notarial extraprotocolar atípico. Diz-se extraprotocolar, porque não é lavrado em livros: o notário lança as informações no próprio sistema eletrônico mantido pelo Colégio Notarial do Brasil em convênio com o banco e arquiva os documentos e os comprovantes (art. 5º, VI e § 1º, do provimento 197/259). Diz-se atípico, porque se trata de função que não é historicamente inerente à atividade notarial, apesar de que a função se aproxima mais da vocação dos notários. Apesar de a abertura da conta notarial não depender de ato notarial protocolar típico, é conveniente que as partes considerem sempre a importância de, facultativamente, valerem-se da ata notarial ou da escritura pública para estabilizar a manifestação de vontade. Além da presunção de veracidade de que gozará o instrumento, o tabelião atua como um "consultor jurídico" ao traduzir a vontade das partes para a melhor forma jurídica.  3.6. Sigilo para os documentos da conta notarial? Em sexto lugar, indaga-se: os documentos relativos à conta notarial são ou não gravados por sigilo? Entendemos que cabe às partes decidirem, conforme melhor interpretação do art. 13 do provimento 197/2510. Esse dispositivo, ao prever o sigilo quando o contrato-base contiver cláusula de confidencialidade, está a entregar à autonomia privada das partes a escolha quando ao regime de publicidade. Afinal, além de a conta notarial envolver informações bancárias e financeiras das partes (o que, por si só, já atrairia o sigilo bancário e a tutela da LGPD), referido dispositivo do provimento reforça a força da vontade das partes. _______ 1 Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: (...) § 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio. 2 Art. 8º Verificada a ocorrência das condições estabelecidas pelas partes, o tabelião autorizará a transferência dos valores para as contas indicadas no requerimento. Parágrafo único. A verificação das condições será documentada e arquivada em classificador específico. 3 Art. 4º O Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF) poderá firmar convênios com instituições financeiras para a prestação do serviço de conta notarial, comunicando sua íntegra à Corregedoria Nacional de Justiça. § 1º Os convênios deverão estabelecer: I - as responsabilidades da instituição financeira e do CNB/CF; II - os procedimentos operacionais para abertura e movimentação das contas vinculadas; III - as tarifas e custos do serviço; IV - os mecanismos de segurança e controle; V - as formas de acesso dos tabeliães aos sistemas eletrônicos; VI - os procedimentos para resolução de conflitos operacionais; VII - a obrigação de a instituição financeira: a) manter sistema eletrônico seguro para acesso dos tabeliães; b) providenciar a segregação patrimonial dos valores depositados; c) fornecer comprovantes de todas as movimentações; e d) permitir auditoria pelos órgãos competentes. § 2º Para prestar o serviço de conta notarial, os tabeliães de notas deverão utilizar exclusivamente as instituições financeiras conveniadas ao CNB/CF. Art. 11. A remuneração do tabelião pela prestação do serviço de conta notarial será realizada pela instituição financeira, nos termos estabelecidos no convênio firmado entre ela e o CNB/CF, não podendo ser repassada aos usuários nenhum custo adicional. Parágrafo único. A remuneração de que trata o caput não se confunde com os emolumentos devidos pela eventual lavratura de atos notariais relacionados ao negócio jurídico. 4 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: (...) § 1º Na hipótese do caput, o tabelião não decidirá sobre a eficácia ou rescisão do negócio jurídico, limitando-se a documentar os fatos verificados. 5 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: (....) § 2º A partir da constatação definitiva da ocorrência ou frustração da condição negocial, parte dela ou do conjunto de condições, o tabelião de notas acessará o sistema eletrônico da instituição financeira conveniada e autorizará a transferência do valor estipulado pelas partes e depositado na "conta notarial" para a(s) conta(s) corrente(s) indicada(s) por uma das partes. 6 Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. 7 https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/11/0F67EA18998CB3_2024-11-7-Smartcontracts.pdf 8 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: I - documentará a divergência em ata notarial; II - suspenderá qualquer movimentação dos valores; III - comunicará às partes sobre a necessidade de solução consensual ou judicial do conflito; IV - manterá os valores depositados até acordo final entre as partes. Não havendo solução consensual ou judicial do conflito, o tabelião, sem fazer juízo de valor sobre os motivos da frustração do negócio, encerrará o procedimento, restituindo os valores depositados ao depositante, de acordo com as cláusulas estabelecidas no negócio. § 1º Na hipótese do caput, o tabelião não decidirá sobre a eficácia ou rescisão do negócio jurídico, limitando-se a documentar os fatos verificados. § 2º A partir da constatação definitiva da ocorrência ou frustração da condição negocial, parte dela ou do conjunto de condições, o tabelião de notas acessará o sistema eletrônico da instituição financeira conveniada e autorizará a transferência do valor estipulado pelas partes e depositado na "conta notarial" para a(s) conta(s) corrente(s) indicada(s) por uma das partes. 9 Art. 5º Para prestar o serviço de conta notarial, o tabelião de notas deverá: (...) VI - manter arquivo de todos os documentos e comprovantes. (...) § 1º O tabelião deverá registrar os dados essenciais do negócio jurídico, das partes e das condições pactuadas em sistema eletrônico mantido pelo CNB/CF, com acesso exclusivo às partes celebrantes do negócio, seus procuradores e ao delegatário. 10 Art. 13. Quando o negócio jurídico contiver cláusula de confidencialidade, o tabelião manterá sigilo sobre os termos contratuais, não sendo emitida nenhuma certidão referente ao negócio em si, observando, para tanto, o disposto no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça.
Em 29 de janeiro de 2025 foi publicada no Diário Eletrônico do MPMG a resolução conjunta PGJ CGMP 1/251, que dispõe sobre a manifestação do Ministério Público em escrituras públicas de inventário e partilha extrajudiciais com crianças, adolescentes ou incapazes, nos termos da resolução CNMP 301, de 12 de novembro de 20242. Na referida resolução de MG, consta o passo a passo para a manifestação do promotor que atua perante a Vara das Sucessões da Comarca do Tabelião escolhido para a lavratura da escritura de inventário envolvendo menores ou incapazes, mediante a remessa pelo Tabelião da minuta da escritura, bem como de todos os documentos que a instruem. Relevante ponto da resolução de Minas Gerais é o esclarecimento de que não é necessária prévia manifestação do promotor para lavratura da escritura de nomeação de inventariante, bastando, portanto, que, além dos demais requisitos comuns à escritura de nomeação de inventariante, participe também o representante legal do menor ou incapaz. Entendemos que o relativamente incapaz deverá ser assistido no ato pelo seu representante legal e o absolutamente incapaz será representado. Abaixo é apresentado um resumo, na forma de perguntas e respostas, das principais questões abordadas na resolução mineira: 1 - Qual o promotor competente para manifestar? O Promotor com atuação perante o Juízo de sucessões na Comarca de atuação do Tabelião. 2 - Quando será feita a remessa ao promotor de sucessões? Previamente à lavratura, a análise será feita da minuta e dos documentos exigidos em lei e na resolução 35/CNJ. 3 - Quem fará a remessa ao promotor da minuta e documentos exigidos na resolução? O tabelião responsável pela lavratura da escritura. 4 - O que deverá ser remetido ao promotor? É necessário que o Tabelião envie ao Promotor com atribuição em matéria de sucessões para manifestação prévia à lavratura da escritura de inventário: 4.1) a minuta da escritura pública reconhecendo a existência da união estável após a morte, com comparecimento de todos os herdeiros capazes e do representante do incapaz, para fins de reconhecimento do direito do convivente à herança ou meação na forma dos arts. 18 e 19 da res. 35/CNJ, instruída com os documentos comprobatórios da união estável, bem como com todos os demais documentos que instruíram a minuta; Observação importante: Se houver escritura de união estável devidamente registrada no livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, não precisa ser lavrada a escritura de união estável com concordância dos herdeiros e do representante do incapaz, conforme art. 18 da resolução 35/CNJ. 4.2) a minuta da escritura de inventário envolvendo menor ou incapaz (inclusive as relativas a verbas da lei 6858/1+80 e as sobrepartilhas), com os documentos exigidos em lei e na res. 35/CNJ e ainda com certificação de que não houve discordância anterior de qualquer promotor quanto à lavratura da escritura. Deverá ser enviada a minuta ao promotor mesmo que o menor ou incapaz seja o único herdeiro. A exigência de remessa da minuta ao Promotor de Sucessões é apenas no que se refere ao inventário, não sendo necessário enviar para análise do promotor a minuta da nomeação de inventariante. Na nomeação de inventariante participará o representante legal do menor (genitor) ou incapaz (curador), para assistir o relativamente incapaz ou para representar o absolutamente incapaz. 5 - Como será feita a remessa das minutas? Por meio eletrônico, devendo ser criado um sistema eletrônico oficial. Enquanto o sistema não estiver pronto, a remessa ao promotor será feita por e-mail. 6 - O que ocorre se o promotor identificar a falta de algum documento ou de algum requisito da escritura? Se o Promotor identificar alguma pendência, enviará ao Tabelião para que resolva a pendência e devolva a documentação no prazo de até 15 dias, devendo no encaminhamento ser feita menção ao número do procedimento administrativo, denominado NOTÍCIA DE FATO. 7 - O que ocorre se houver manifestação favorável do MP? Se for proferida manifestação favorável, deverá essa manifestação ser arquivada no tabelionato e tabelião consignará na escritura: a) nome e cargo do promotor de justiça competente; b) nº do procedimento no MP/MG; c) data da manifestação. (cobrar arquivamento da manifestação). Após a lavratura da escritura, em 48h, será enviada cópia do traslado ao promotor, devendo no encaminhamento ser feita menção ao número do procedimento administrativo 8 - O que ocorre se houver manifestação desfavorável do MP? Se for proferida manifestação desfavorável, deverá ser certificada pelo tabelião a discordância do promotor e será encaminhado ao Juiz competente para sucessões, sendo a certificação instruída com cópia da manifestação negativa do promotor.  Após a remessa ao juiz, em 48h, o tabelião deverá enviar ao promotor cópia do encaminhamento que foi feito ao juiz, devendo no encaminhamento ser feita menção ao nº do procedimento administrativo, denominado notícia de fato; - Se o juiz autorizar a lavratura da escritura: a) no procedimento será certificado que foi proferida decisão; b) após a lavratura, em 48h, será enviada cópia do traslado ao MP = deverá no encaminhamento ser feita menção ao nº do procedimento administrativo. - Na escritura deverá constar que houve autorização judicial, o número do  processo e o juízo prolator da decisão. _______ 1 MINAS GERAIS. RESOLUÇÃO CONJUNTA PGJ CGMP Nº 1, DE 28 DE JANEIRO DE 2025. Dispõe sobre a manifestação do Ministério Público em escrituras públicas de inventário e partilha extrajudiciais com crianças, adolescentes ou incapazes, nos termos da Resolução CNMP n. 301, de 12 de novembro de 2024. Diário Oficial Eletrônico do MPMG: Atos administrativos, Procurador Geral, 29.01.2025, p. 1 a 4. Disponível aqui. Acesso em: 26 set. 2025. 2 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. RESOLUÇÃO Nº 301, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2024. Disciplina a atuação do Ministério Público em procedimentos oriundos de serventias extrajudiciais prestadoras de serviços notariais ou de registros públicos. Disponível aqui. Acesso em: 26 set. 2025.
1. Contexto do problema. Por vezes o fisco municipal tem autuado os notários e registradores paulistas, mediante lançamento complementar e imposição de multa, arbitrando-se a base de cálculo dos serviços prestados como sendo de 62,5% dos valores declarados ao CNJ. O cerne da questão é a não aceitação dos valores declarados pelo contribuinte na documentação fiscal quando o recolhimento do ISSQN for inferior a 62,5% dos valores por ele declarados ao CNJ. 2. Natureza jurídica da imposição da base de cálculo como sendo de 62,5% dos valores declarados ao CNJ. O ISSQN é imposto que incide sobre a prestação de serviços e sua base de cálculo está prevista na LC 116, de 31/7/2003, em seu art. 7º: "Art. 7º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço." O CTN, por sua vez, impôs a forma do lançamento do ISSQN em seu art. 147: "Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação." Boa parte dos municípios do Estado de São Paulo adotam a emissão da NFS-e - Nota Fiscal de Serviços Eletrônica em que o contribuinte faz a emissão do documento fiscal denominado "Recibo Provisório de Serviço", ou RPS, que é encaminhado por meio eletrônico para os municípios e eles se encarregam de emitir as correspondentes NFS-e. Os que ainda não adotaram o sistema de NFS-e, o contribuinte emite as notas fiscais de forma convencional e entrega ao fisco municipal a declaração dos valores dos serviços prestados no período. O lançamento, em todos os casos, é efetuado mediante declaração do contribuinte. Em sendo a regra geral o lançamento ser feito por meio de declaração do contribuinte e com base na documentação fiscal de emissão obrigatória, a revisão do lançamento, todavia, pode ser feita pela autoridade tributária nos casos previstos no art. 149 do CTN: "Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial. Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública." A mera constatação de que o valor declarado pelo notário ou registrador ser inferior à 62,5% do valor por ele declarado ao CNJ não implica, por si só, na ocorrência de algum dos casos apontados nos incisos I a IX do dispositivo citado, como falta de declaração ou esclarecimento, omissão, erro, inexatidão, fraude, dolo ou simulação. A adoção da base de cálculo como sendo de 62,5% do valor declarado ao CNJ sem ser apontada qualquer ocorrência dos fatos descritos no art. 149 do CTN constitui um típico caso de lançamento fiscal feito por meio de ARBITRAMENTO, em que a autoridade fiscal, descartando as declarações e documentação fiscal, substitui a base de cálculo por um valor pré-definido segundo seus próprios critérios. 3. Requisitos legais para o arbitramento. O arbitramento não pode ser utilizado de forma discricionária pelo fisco, de forma diversa, somente pode ser feito nos casos específicos previstos no art. 148 do CTN: "Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial." O primeiro requisito para o arbitramento é a abertura de um processo regular, ou seja, sem o procedimento administrativo adequado, inadmissível será o arbitramento. No procedimento administrativo, imperativo é a observância da garantia do contraditório e da ampla defesa, conforme art. 5º, LV, da Constituição Federal, e que se encontra reafirmado ao fim do texto do art. 148 acima. O segundo requisito é a constatação da omissão nas declarações do contribuinte ou quando elas não merecerem fé. Fatos esses que não podem ser assumidos a priori como ocorridos, visto haver a obrigatoriedade de ser dada oportunidade de defesa e de produção das provas, somente ultrapassada essa fase é que, em uma decisão fundamentada, o arbitramento poderia ser adotado se do conjunto probatório se puder inferir ter havido omissão ou não ser idônea a documentação apresentada. Há que ser ainda levado em conta que a utilização do valor de 62,5% do total declarado ao CNJ nada mais é do que o estabelecimento de uma PAUTA FISCAL em substituição aos valores declarados pelo contribuinte. O STJ já teve a oportunidade de examinar diversas vezes a matéria, a título exemplificação, é aqui trazida a ementa do acórdão proferido no REsp 1.816.701, j. 25/6/2019, com o seguinte teor: "TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. IMPOSTO SOBRE SERVIÇO. ISS. LANÇAMENTO REALIZADO POR ARBITRAMENTO. ART. 148 DO CTN. CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. Cuida-se de inconformismo com acórdão do Tribunal de origem que manteve o valor do lançamento informado pelo contribuinte, haja vista que a municipalidade não apresentou nenhum indício de que os valores declarados como base de cálculo para o tributo não são confiáveis. 2. Averiguar a validade do lançamento lastreado em arbitramento importa no reexame de provas, o que é vedado na instância especial, nos termos da Súmula 7/STJ. Precedentes do STJ: AgRg no REsp 1.509.100/SC, ministro Herman Benjamin, 2ª turma, DJe 21/5/2015; REsp 1.201.723/RJ, rel. ministro Mauro Campbell Marques, 2ª turma, DJe 6/10/2010; REsp 1.090.337/SP, rel. ministra Eliana Calmon, 2ª turma, DJe 4/6/2009. 3. Acrescente-se que a apuração do valor da base de cálculo do imposto pode ser feita por arbitramento nos termos do art.148 do CTN quando for certa a ocorrência do fato imponível e a declaração do contribuinte não mereça fé, em relação ao valor ou preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos registrados. Nesse caso, a Fazenda Pública fica autorizada a proceder ao arbitramento mediante processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 4. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento deste Tribunal Superior, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido na súmula 83/STJ: "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida". Cumpre ressaltar que a referida orientação é aplicável também aos recursos interpostos pela alínea "a" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido: REsp 1.186.889/DF, 2ª turma, relator ministro Castro Meira, DJe de 2/6/2010. 5. Recurso especial não conhecido." O entendimento acima vem seguido pelo STJ de longa data, veja-se o RMS 18.677, julgado em 19/4/2005, contendo a seguinte ementa: "TRIBUTÁRIO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. BASE DE CÁLCULO. PAUTA FISCAL. ILEGALIDADE. 1. Segundo orientação pacificada neste Corte, é indevida a cobrança do ICMS com base em regime de pauta fiscal. Precedentes. 2. O art. 148 do CTN somente pode ser invocado para a determinação da base de cálculo do tributo quando, certa a ocorrência do fato imponível, o valor ou preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos registrados pelo contribuinte não mereçam fé, ficando a Fazenda Pública, nesse caso, autorizada a proceder ao arbitramento mediante processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 3. Ao final do procedimento previsto no art. 148 do CTN, nada impede que a administração fazendária conclua pela veracidade dos documentos fiscais do contribuinte e adote os valores ali consignados como base de cálculo para a incidência do tributo. Do contrário, caso se entenda pela inidoneidade dos documentos, a autoridade fiscal irá arbitrar, com base em parâmetros fixados na legislação tributária, o valor a ser considerado para efeito de tributação." No mesmo sentido podem ainda ser mencionados o REsp 1.790.898, REsp 1.696.942, e AgRg 1.509.100. No TJ/SP, as três Câmaras de Direito Público especializadas em tributos municipais (14ª, 15ª e 18ª), em inúmeras decisões, também sufragam o mesmo entendimento, como na apelação cível 1007668-11.2021.8.26.0053, da 15ª Câmara: "TRIBUTÁRIO APELAÇÃO AÇÃO ORDINÁRIA ISS MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Sentença que julgou procedente a ação. Apelo do município. ARBITRAMENTO DA BASE DE CÁLCULO. Medida excepcional, cabível apenas quando as declarações do sujeito passivo forem omissas ou não merecerem fé Inteligência do artigo 148 do Código Tributário Nacional Doutrina Precedentes do C. STJ e deste E. TJ. PAUTA FISCAL Meio cabível de apuração de eventuais inconsistências e omissões nas declarações e documentos apresentados pelo contribuinte, ante a possibilidade de arbitramento prevista no art. 148 do CTN precedentes deste E. TJ. No caso, o município alega que procedeu ao arbitramento da base de cálculo do ISS de acordo com a pauta fiscal em razão da dificuldade técnica de se fiscalizar a construção de um empreendimento de grande porte (fls. 3.114/3.115). Impossibilidade. Hipótese que não encontra amparo no art. 148 do CTN - Inexistência de omissão ou indício de falsidade nos documentos fornecidos e nas declarações prestadas pelo sujeito passivo Regularidade das notas fiscais emitidas e da contabilidade da autora atestada por perícia (fls. 3.275/3.276). Descabida a utilização dos valores fictícios previstos na pauta mínima. Lançamento anulado. HONORÁRIOS RECURSAIS Majoração nos termos do art. 85, §11 do CPC POSSIBILIDADE observância ao disposto nos §§ 2º a 6º do art. 85, bem como aos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º do respectivo artigo. Majoração da verba honorária em 1% do valor atualizado da causa. Sentença mantida Recurso desprovido." Da 14ª Câmara, pode ser invocada a apelação cível 1026982-69.2023.8.26.0053, com a seguinte ementa: "AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. São Paulo. ISSQN. Sentença de procedência, para declarar a inexigibilidade do tributo descrito na inicial. Irresignação da Municipalidade ré. Descabimento. Lançamento complementar de ISSQN tendo como base de cálculo valores estabelecidos em pauta fiscal. Hipótese em que não restou demonstrada, mediante processo administrativo, omissão ou ausência de credibilidade na prestação de informações pelo responsável tributário. Inadmissibilidade, portanto, do arbitramento em tela. Inteligência do art. 148 do CTN. Precedentes. Inexigibilidade do tributo em exame bem reconhecida. Sentença mantida. Aplicação do art. 252 do RITJSP. Majoração dos honorários advocatícios de sucumbência em 1%, nos termos do §11 do art.85 do CPC. Recurso não provido." Quanto à 18ª Câmara, segue o exemplo da apelação cível 1013923-24.2017.8.26.0053: "APELAÇÃO município de São Paulo ISS Adoção da pauta fiscal para fins de lançamento do tributo Hipótese excepcional (art. 148 do CTN) Perícia contábil que atesta a idoneidade das informações prestadas pelo contribuinte e a efetiva adoção da pauta fiscal pelo Município Manutenção da sentença quanto à nulidade do lançamento. Reforma da sentença apenas para determinar o cálculo dos honorários de forma escalonada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO." Do exposto, depreende-se que se encontra-se plenamente consolidada a jurisprudência perante o STJ, bem como perante o TJ/SP, que o arbitramento somente pode ser utilizado quando não merecerem fé as declarações do contribuinte, sendo a esse também garantido o contraditório e ampla defesa. 4. Fé pública do notário e do oficial de registro. Os notários e os oficiais de registro, no exercício de suas funções, são dotados de fé pública nos termos do art. 3º, da lei 8.935, de 18/11/1994: "Art. 3º Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro." Em conformidade com o texto legal, as certidões emitidas pelos notários e registradores com respeito aos atos por ele praticados no exercício de suas funções são dotadas de fé pública, ou seja, presumem-se verdadeiras até prova em contrário. Diante da prerrogativa legal, os notários e os oficiais de registro podem muito bem emitirem certidões em que sejam relacionados tudo o que foi recebido dos usuários determinado período, com discriminação do dia, nºs do RPS ou NF, as parcelas destinadas ao notário/oficial, ao Estado, à Secretaria da Fazenda, ao TJ/SP, ao Registro Civil, às Santas Casas e ao município. Uma vez emitida a certidão com a discriminação minuciosa de todos os valores recebidos em cada RPS ou NF emitidos, com as parcelas especificadas para cada destinatário, esse documento presume-se verdadeiro diante da fé pública legal do emitente, não podendo ser refutado pela autoridade tributária enquanto não for demonstrada a falsidade das declarações contidas na certidão. Negar a veracidade das declarações contidas em certidão seria a mesma coisa que se alegar ser falso documento, uma acusação de ter o notário ou o oficial de registro praticado o crime de falsificação de documento público (art. 297 do Código Penal), ficando o acusador, em não comprovando a falsificação, sujeito às penas do crime de calúnia (art. 138 do CP). 5. Exercício do contraditório e da ampla defesa. É fato raro o fisco municipal iniciar um procedimento prévio de arbitramento, na grande maioria das vezes o fisco inicia sua ação com a lavratura do auto de infração e imposição de multa em que o valor dos serviços já se encontra arbitrado (ex. 62,5% dos valores declarados ao CNJ). Qualquer que seja o procedimento, é prerrogativa do sujeito passivo apresentar a sua defesa. Como alegações de defesa, o primeiro ponto a ser apontado seria quanto à inocorrência de qualquer dos fatos previstos no art. 148 e 149 do CTN que pudessem justificar o lançamento feito por arbitramento, o segundo ponto seria a impugnação do valor da base de cálculo atribuída, podendo ser juntada como prova a certidão dos atos praticados tratado anteriormente no item 4 ou laudo contábil demonstrando os valores reais dos atos praticados. Em caso de ser juntada a certidão dos atos praticados, a autoridade tributária terá que adentrar no mérito da autenticidade das declarações contidas na certidão para poder afastar os valores declarados para substituir pelos 62,5% arbitrado. 6. Equívoco na adoção dos 62,5% declarados ao CNJ como base de cálculo do arbitramento. É frequente o equívoco em se assumir, a priori, que os emolumentos destinados ao tabelião ou oficial sejam no importe de 62,5% referido no art. 19 da lei estadual 11.331/02, percentual estabelecido quando da publicação da primeira versão da tabela de emolumentos. A causa do equívoco é que não se levou em consideração os demais dispositivos constantes da própria lei e nem as modificações legislativas posteriores. A lei estadual 11.331/02 em sua redação original publicada no DOE de 27/12/2002, estabelecia: Art. 19 - Os emolumentos correspondem aos custos dos serviços notariais e de registro na seguinte conformidade: I - relativamente aos atos de Notas, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas e de Protesto de Títulos e Outros Documentos de Dívidas: a) 62,5% (sessenta e dois inteiros e meio por cento) são receitas dos notários e registradores; b) 17,763160% (dezessete inteiros, setecentos e sessenta e três mil, cento e sessenta centésimos e milésimos percentuais) são receita do Estado, em decorrência do processamento da arrecadação e respectiva fiscalização; c) 13,157894% (treze inteiros, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado; d) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias; e) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; II - relativamente aos atos privativos do Registro Civil das Pessoas Naturais: a) 83,3333% (oitenta e três inteiros, três mil e trezentos e trinta e três centésimos de milésimos percentuais) são receitas dos oficiais registradores; b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado." Esse mesmo diploma ainda estabeleceu em seu art. 42: "Art. 42. Passa a vigorar com a seguinte redação o art. 5º da lei 11.021, de 28 de dezembro de 2001: "Art. 5º Os valores devidos em virtude desta lei constarão das tabelas previstas na lei 4476, de 20 de dezembro de 1984, e alterações posteriores que a venham substituir (NR)"" . O objetivo do art. 42 foi o de reafirmar a vigência da lei estadual 11.021/01, que dispôs: "Art. 2º Em todos os atos extrajudiciais, excetuados os previstos no § 1º do artigo 1º da lei federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, será cobrada uma contribuição de solidariedade às Santas Casas de Misericórdia, estabelecidas no Estado de São Paulo, cujo valor será igual à 1% (um por cento) dos emolumentos devidos ao Escrivão." Verifica-se que, desde a publicação da lei 11.331/02, os percentuais estabelecidos não correspondiam ao que de fato eram cobrados dos usuários em razão do acréscimo de 1% destinado às Santas Casas para atos de notas e protesto. Atente-se ao fato de que os percentuais estabelecidos no art. 19 não se aplicam a todos os casos, visto que essa mesma lei já previa casos de isenção em seu art. 8º: "Art. 8° A União, os Estados, o Distrito Federal, os municípios, e as respectivas autarquias, são isentos do pagamento das parcelas dos emolumentos destinadas ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça. Parágrafo único - O Estado de São Paulo e suas respectivas autarquias são isentos do pagamento de emolumentos." Pela promulgação da lei estadual 15.600, de 11/12/2014, houve importante modificação que impactou o montante pago pelos usuários: "Art. 1º O art. 19 da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo: "Art. 19 (...). Parágrafo único. São considerados emolumentos, e compõe o custo total dos serviços notariais e de registro, além das parcelas previstas neste artigo, a parcela dos valores tributários incidentes, instituídos pela lei do município da sede da serventia, por força de lei complementar federal ou estadual." Houve, com isso, nova alteração dos percentuais porque ficou acrescido aos emolumentos o valor correspondente ao ISSQN incidente sobre a prestação dos serviços notariais e registrais. As alterações dos percentuais não ficaram por aí, com a promulgação da lei estadual 15.855/15, dos 13,157894% originais da Carteira de Previdência foram retirados 4%, sendo 1% acrescido ao valor destinado ao Tribunal de Justiça e 3%, como repasse novo, ao Ministério Público: "Art. 3º Os dispositivos adiante mencionados da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, ficam assim alterados: ... II - as alíneas "c" e "e" do inciso I do artigo 19 passam a vigorar com nova redação, e é acrescentada a esse inciso a alínea "f", na seguinte conformidade: "Art. 19 ... I - ... c) 9,157894% (nove inteiros, cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias Não Oficializadas da Justiça do Estado; ... e) 4,289473% (quatro inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; f) 3% (três por cento) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo, em decorrência da fiscalização dos serviços; (NR)" Para compensar o que havia sido destinado ao Ministério Público, o legislador decidiu criar uma outra verba adicional, fora dos totais já previstos, estabelecendo um acréscimo como compensação. Como os 3% retirados equivaliam, aritmeticamente, a 4,8% dos emolumentos do titular (4,8% de 62,5% = 3%), a lei estadual 16.346, de 29/12/2016, estabeleceu: "Art. 1º Os dispositivos adiante indicados da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passam a vigorar com a seguinte redação: II - o parágrafo único do artigo 19: "Art. 19. ... Parágrafo único. São considerados emolumentos, e compõem o custo total dos serviços notariais e de registro, além das parcelas previstas neste artigo: 2 - a parcela destinada à Carteira de Previdência das Serventias Notariais e de Registro - Carteira das Serventias em montante correspondente a 4,8% (quatro inteiros e oito décimos percentuais) sobre o valor da parcela prevista na alínea "a" do inciso I deste artigo." (NR)" O adicional de 4,8% destinado à Carteira de Previdência não foi criado para fazer parte dos percentuais originais da tabela, mas como um item a ser acrescentado ao total pago pelos usuários, juntamente com o 1% destinado às Santas Casas e o percentual correspondente ao ISSQN. Com a extinção do IPESP pela lei Estadual 16.877, de 19/12/2018, os valores destinados à Carteira de Previdência das Serventias Notariais e de Registro foram destinados à Secretaria da Fazenda: "Art. 11. Os dispositivos adiante indicados do artigo 19 da Lei nº 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passam a vigorar com a seguinte redação: I - a alínea "c" do inciso I: "c) 9,157894% (nove inteiros, cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Secretaria da Fazenda;" (NR) II - a alínea "b" do inciso II: "b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Secretaria da Fazenda;" (NR) III - o item 2 do parágrafo único: "2 - a parcela destinada à Secretaria da Fazenda em montante correspondente a 4,8% (quatro inteiros e oito décimos percentuais) sobre o valor da parcela prevista na alínea "a" do inciso I deste art.." (NR)" Fora os casos já citados de alteração dos percentuais pela própria lei estadual, há que ser ainda levadas em conta as normas gerais para a fixação dos emolumentos de que tratou o § 2º do art. 236 da Constituição Federal: "§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro." As normas gerais sobre os emolumentos foram especificadas na lei federal 10.169, de 29/12/2000, sendo relevante aqui ser trazido o texto de seu art. 2º, § 2º, que foi incluído pela lei federal 13.986, de 7/4/2020, que dispôs: "§ 2º Os emolumentos devidos pela constituição de direitos reais de garantia mobiliária ou imobiliária destinados ao crédito rural não poderão exceder o menor dos seguintes valores: I - 0,3% (zero vírgula três por cento) do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% (cinco por cento) do valor pago pelo usuário, vedados quaisquer outros acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência ou para associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação;" Do exposto fica evidenciado que o imposte de 62,5% previsto no art. 19, I, a, da lei estadual 11.331/02 não corresponde exatamente à parcela destinada ao notário/registrador em razão dos dispositivos outros da lei que foram posteriormente alterados criando parcelas adicionais, sem contar ainda com a isenção concedida aos municípios e da limitação na cobrança nos casos dos registros dos títulos referentes ao crédito rural. 7. Conclusões. A regra geral para o lançamento do ISS são as declarações prestadas pelo contribuinte por meio das notas fiscais por ele emitidas ou pelas remessas ao Fisco dos Recibos Provisórios de Serviço, a não aceitação das declarações e documentos fiscais deve ser precedida de regular procedimento administrativo, garantido o contraditório e ampla defesa, quando ficar caracterizada a omissão ou não merecimento de fé das declarações ou esclarecimentos prestados (art. 148 do CTN). O arbitramento é ato decorrente do procedimento administrativo de reconhecimento da inidoneidade das declarações e documentação fiscal, não podendo ser feito de ofício pelo Fisco. O notário e o registrador, diferentemente dos demais contribuintes, são dotados de fé pública e podem emitir certidão relacionando todos os atos praticados e valores recebidos como emolumentos. A fé pública da certidão somente pode ser afastada provando-se a sua falsidade, negar a sua validade seria a mesma coisa da alegação falsificação de documento público, ficando o acusador sujeito às penas do crime de calúnia. Em razão das diversas alterações legislativas supervenientes, o percentual de 62,5% do montante recebido não reflete a parcela dos emolumentos destinada aos notários e registradores.
1. Introdução A desjudicialização de procedimentos judiciais vem ganhando destaque no ordenamento jurídico brasileiro como meio de conferir celeridade e eficiência à tutela de direitos. No final de 2023, esse movimento ganhou mais um capítulo por meio do chamado marco legal das garantias (lei 14.711, de 30/10/23), que alterou o decreto-lei 911/1969, incluindo os arts. 8º-B a 8º-E, com o fito de viabilizar que o procedimento de consolidação e busca e apreensão de veículos e de bens móveis em geral por meio dos cartórios de registro de títulos e documentos. Desde que haja previsão expressa em contrato e observância de certas etapas como a notificação, para oportunizar a quitação pelo devedor, o judiciário não precisa mais ser única porta disponível ao credor fiduciário para fazer com que o bem ofertado como garantia a um crédito inadimplido seja utilizado para esse fim que lhe é próprio, reduzindo os riscos das operações de crédito no Brasil. Esse novo regime normativo insere-se no contexto mais amplo de modernização das cobranças de dívidas, buscando reduzir a morosidade judicial e o custo do crédito, alinhando à já citada tendência de desjudicialização de procedimentos tradicionais, como exitosamente já visto nas experiências do inventário extrajudicial; do divórcio extrajudicial e da consolidação extrajudicial da propriedade imobiliária, por exemplo. Metodologicamente, o presente artigo adota um enfoque dedutivo, partindo de premissas constitucionais para avaliar a compatibilidade da inovação legal com a Carta de 1988. Inicialmente, delimita-se como problema jurídico a seguinte indagação: é constitucional arbitragem regulatória que permite a busca e apreensão extrajudicial de veículos executada pelos cartórios de Registro de Títulos e Documentos, sob supervisão do Judiciário/CNJ e, em paralelo, por empresas privadas credenciadas no ecossistema dos Detrans, através do regime da resolução Contran 1.018/2025? Para responder a essa indagação, o trabalho estrutura-se em três eixos analíticos principais. Primeiro, procede-se a uma análise constitucional da matéria, examinando a jurisprudência pertinente, em especial os votos dos ministros Dias Toffoli e Flávio Dino nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608. Na seção seguinte abordar-se-á o conflito regulatório instaurado pelas normas infralegais: de um lado, o provimento CNJ 196/25, que regulamenta a execução extrajudicial nos cartórios de registro; de outro, a resolução Contran 1.018/25, que disciplina procedimento análogo via Detrans. Nessa parte, analisar-se-á a regularidade de coexistência de estruturas regulatórias concorrentes para a uma mesma finalidade, sustentando padrões de controle diferentes. Por fim, no terceiro segmento explora-se o fenômeno do forum shopping e da arbitragem regulatória, fazendo uso desses conceitos para análise do fenômeno ora estudado. Assim, a partir da lente destes dois instrumentos, em conjunto com análise Econômica do Direito e da teoria regulatória, avaliar-se-á se a abertura de uma via privada paralela à registral gera incentivos disfuncionais e compromete valores fundamentais de nosso ordenamento jurídico. 2. Análise constitucional: Desjudicialização, controle público e os votos nas ADIns 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF 2.1 A posição do ministro Dias Toffoli A execução extrajudicial de garantias no Brasil não é propriamente novidade. Desde o decreto-lei 70/1966 (execução extrajudicial de créditos hipotecários) até a lei 9.514/1997 (consolidação extrajudicial de propriedade fiduciária de imóveis), admite-se que determinados bens dados em garantia sejam retomados sem intervenção judicial direta. O STF firmou jurisprudência no sentido de que tais procedimentos são compatíveis com a Constituição, desde que não eliminem o acesso ao Judiciário nem as garantias mínimas de defesa. Nesse sentido, vale conferir o RE 627.106/DF, no qual o STF declarou recepcionado o decreto-lei 70/1966 e, bem assim, o RE 860.631/SP (Tema 982 de repercussão geral), em que o foi reconhecida a constitucionalidade da execução extrajudicial de imóveis pela lei 9.514/1997, firmando-se a seguinte tese: "É constitucional o procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". No julgamento conjunto das ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, que impugnaram diversos dispositivos da lei 14.711/23, o STF novamente analisou a validade de um procedimento de execução extrajudicial, mas desta feita incidente sobre bens móveis. Nessa senda, discutiu-se na referida ADIn o novel procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, de modo que o ministro Dias Toffoli, Relator, votou pela constitucionalidade da essência do marco legal das garantias, sustentando que a mera possibilidade de execução extrajudicial não contraria, por si, os direitos fundamentais do devedor. Ainda segundo o relator:  "[B]em compreendido o procedimento instituído no art. 8º-B, nota-se que não prosperam as alegações dos autores. Esse procedimento se desenvolve perante oficial registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle judicial - possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988 e que está explicitada no § 11 do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, inserido pela lei 14.711/23, segundo o qual "o procedimento extrajudicial não impedirá o uso do processo judicial pelo devedor fiduciante". (Grifo nosso) Essa posição reflete a já mencionada jurisprudência da Corte, que admite a desjudicialização desde que o ordenamento forneça um trilho institucional adequado para substituir a tutela jurisdicional, mantendo o contraditório e a possibilidade de revisão judicial. No voto do ministro Toffoli, embora não haja menção explícita ao art. 8º-E, delineou-se a premissa de que tais medidas executivas devem ocorrer sob supervisão de agentes públicos dotados de fé pública e responsabilidade institucional, à semelhança do modelo de execução extrajudicial já validado para os imóveis. O relator enfatizou que a nova lei não afasta o controle judicial, pois o devedor lesado poderá recorrer ao Judiciário, e que os procedimentos extrajudiciais previstos estão ancorados em garantias fundamentais (privacidade, honra, inviolabilidade de domicílio, proteção de dados pessoais, etc.), cuja observância deve ser assegurada durante a busca e apreensão. Desse modo, denota-se que a constitucionalidade da inovação foi afirmada na medida em que o ambiente extrajudicial reproduz, em alguma medida, a confiança e a imparcialidade esperadas do processo judicial, razão pela qual delimita-se a utilização da estrutura dos cartórios extrajudiciais, regulados pelo Poder Judiciário, como via idônea para essas execuções. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
Fundamentos legais da territorialidade O sistema notarial e registral brasileiro desempenha função essencial para a garantia da cidadania, da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico. De acordo com dados do CNJ, existem mais de 12.253 serventias extrajudiciais espalhadas pelos 5.568 municípios brasileiros, responsáveis por milhões de atos anuais e pela geração de mais de 106.021 empregos diretos. A relevância desse sistema é reforçada por iniciativas como o programa "Cartório em Números", da ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil, que evidencia sua eficiência e sua contribuição para a sociedade. A atividade notarial e registral, exercida em caráter privado por delegação do Poder Público (CF/1988, art. 236), tem como fundamento a segurança jurídica e a efetivação de direitos fundamentais. A legislação assegura a gratuidade de diversos atos ligados à cidadania, como registros de nascimento e óbito, expedição de segundas vias de certidões e habilitação para casamento em casos de pobreza. Para garantir a sustentabilidade econômica das serventias, a lei 8.935/1994 previu a possibilidade de cumulação de atribuições, ao mesmo tempo em que fixou regras rígidas de territorialidade, proibindo a prática de atos fora do município para o qual foi conferida a delegação. Além disso, vedou-se expressamente a instalação de sucursais, entendidas como unidades secundárias que reproduziriam, em outro local, as atividades da serventia, o que afrontaria o princípio da territorialidade e geraria concorrência desleal entre delegatários. O Tabelião de Notas exerce uma função pública fundada na confiança tanto do Estado quanto dos particulares que a ele recorrem. Sua escolha é livremente realizada pelas partes, independentemente do domicílio destas ou da localização dos bens que sejam objeto dos atos, fatos ou negócios jurídicos. Tal prerrogativa decorre do art. 8º da lei 8.935/1994, segundo o qual "é livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio". Entretanto, essa liberdade de escolha não elimina o limite territorial da delegação conferida pelo Poder Concedente. Com efeito, dispõe o art. 9º da mesma lei que "o tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação".  Da conjugação desses dispositivos resulta que, embora o Tabelião possa ser livremente eleito pelas partes, não lhe é permitido praticar atos notariais fora da circunscrição territorial de sua delegação. Dentro de sua área de competência, contudo, pode lavrar atos em qualquer local, desde que conste no instrumento o lugar em que foram praticados, como ocorre nos atos lavrados em diligência. A restrição prevista no art. 9º da lei 8.935/1994 deve ser entendida como limite mínimo. Dentro de sua competência organizacional, os Estados podem estabelecer regras ainda mais restritivas. Exemplo disso é o Rio Grande do Sul, onde a atuação notarial foi limitada ao âmbito distrital: "Os titulares de Serviços Notariais e de Registros, nos distritos, carecerão de fé pública fora dos limites do distrito ou dos indicados no ato delegatório das funções". De todo modo, a concorrência entre notários na busca por clientela e o desrespeito à competência territorial são práticas duramente coibidas pelas Corregedorias-Gerais dos Estados, resultando em inúmeros procedimentos administrativos disciplinares. Assim, é imperativo que a competição entre Tabeliães de Notas se dê de maneira ética e leal, fundamentada na qualificação profissional e na credibilidade institucional, sem recorrer a expedientes típicos de mercado, tais como publicidade individual, redução de emolumentos, campanhas comerciais ou intermediação indevida de serviços, práticas que comprometem a dignidade e o prestígio da atividade notarial e registral Nesse interim o presente artigo busca em análise descritiva investigar, sem intenção de esgotar os caminhos possíveis, de como se desenvolve o processo de deslocamento indevido de representantes municipais ou oficiais cartorários a outros  territórios, especialmente com intuito de identificar os atores desse processo, bem como investigar à luz da bibliografia pertinente os reflexos sociais, econômicos, jurídicos, sobre  capacidade Estatal e Território, sob o prisma do desenvolvimento local municipal. A despeito da importância do setor, a prática reiterada de atos notariais fora da circunscrição delegada tem provocado preocupações de ordem jurídica, econômica e administrativa. Nesse sentido, o CNB - Colégio Notarial do Brasil, secção do Mato Grosso do Sul promoveu à Corregedoria Permanente de Naviraí - MS, através de ofício 9/24 a comunicação de indício de ofensa à competência notarial através de práticas atentatórias a atividade notarial e registral (art. 9º e art. 31, II, ambos da lei Federal 8.935/1994). No referido documento, consta supostos atos de violação de competência notarial pelo Serviço Notarial de Herculândia, no município de IVATÉ-PR, CNS: 08.688-4 O expediente relata que, em consulta à CENSEC - Central Eletrônica de Atos Compartilhados, verificou-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no município de Ivaté-PR (CNS: 08.688-4), lavrou diversas escrituras públicas envolvendo como parte o município de Naviraí-MS. Como ainda não houve decisão definitiva sobre o caso, não se pode afirmar com precisão se ocorreu o deslocamento da administração municipal até outra localidade do Paraná para a prática dos atos ou, alternativamente, se foi o próprio tabelião de Herculândia que se deslocou até Naviraí para realizá-los. Diante dessa indefinição, mostra-se necessária a análise das duas hipóteses de forma comparada. Na primeira hipótese, observa-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no Estado do Paraná, encontra-se a aproximadamente 132,8 km do município de Naviraí, em Mato Grosso do Sul. Diante disso, surge o questionamento: em respeito ao princípio da supremacia do interesse público, qual seria a justificativa, sob a ótica do desenvolvimento territorial, da capacidade estatal e dos princípios basilares do Direito Público, para que a prefeita municipal realizasse sucessivos deslocamentos entre Naviraí/MS e Ivaté/PR, assumindo custos significativos para os cofres públicos? Além do gasto com tempo e transporte, arcado pelo próprio município de Naviraí/MS, há de se destacar que tais atos também implicam perda de arrecadação tributária local, especialmente do ISSQN, bem como dos repasses vinculados destinados a setores essenciais, tais como o Fundo de Serventias Deficiárias do Estado de Mato Grosso do Sul (Renda Mínima), o FUNADEP (Defensoria Pública), o FUNDPGE (Procuradoria-Geral do Estado) e o FEADMP (Ministério Público), além do ISSQN municipal. O prejuízo, portanto, não recai apenas sobre a serventia notarial local, mas compromete toda a rede institucional de financiamento de políticas públicas estaduais e municipais. Noutro sentido, na hipótese de haver deslocamento indevido de cartorários do município de Herculândia/PR para Naviraí/MS, há caso de flagrante violação de regras de competência legal, ética, improbidade administrativa e violações de direitos civis decorrente de anulabilidade de diversas  escrituras públicas por vício de legalidade, o que impacta significativamente no município de Naviraí - MS e relações econômicas dos titulares de propriedade que se baseiam em documento com insegurança jurídica. O Código de Normas Extrajudiciais do Estado de São Paulo, esclarece a respeito da concorrência notarial, que deve ser pautada pela ética, vejamos: O Tabelião de Notas, ao desenvolver atividade pública identificada pela confiança, tanto do Estado como dos particulares que o procuram, é escolhido livremente pelas partes, independentemente da residência e do domicílio delas e do lugar de situação dos bens objeto dos fatos, atos e negócios jurídicos. A competição entre os Tabeliães de Notas deve ser leal, pautada pelo reconhecimento de seu preparo e de sua capacidade profissional e praticada de forma a não comprometer a dignidade e o prestígio das funções exercidas e das instituições notariais e de registro, sem utilização de publicidade individual, de estratégias mercadológicas de captação de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de uma economia de mercado, como, por exemplo, a redução de emolumentos. Percebe-se a subsunção do disposto no art. 166, inciso VII, do CC, ao art. 9º da lei Federal 8.935/1994, que veda ao tabelião de notas a prática de atos de seu ofício fora dos limites territoriais do município para o qual recebeu delegação. Desse modo, tendo o legislador expressamente proibido a realização de atos notariais além da esfera de competência atribuída, eventual ato lavrado em desconformidade será considerado indevidamente formalizado e, por conseguinte, declarado nulo. O art. 214 da lei de registros públicos determina que as nulidades de pleno direito, quando comprovadas, devem ser reconhecidas de imediato, com a decretação judicial após a oitiva dos envolvidos. O dispositivo também autoriza o juiz a bloquear a matrícula imobiliária, de ofício e a qualquer momento, sempre que a continuidade dos registros puder ocasionar danos de difícil reparação. A jurisprudência tem aplicado esse entendimento de forma rigorosa no contexto dos atos notariais praticados fora da circunscrição territorial. O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Ceará, ao julgar o recurso administrativo 8500029-21.2019.8.06.0106, reafirmou que a realização de atos em município diverso daquele para o qual foi outorgada a delegação constitui infração legal grave, passível de sanção disciplinar proporcional. No mesmo sentido, o TJ/SP, no julgamento da apelação cível 0004731-30.2015.8.26.0417, declarou a invalidade de escrituras lavradas por tabelião em município estranho à sua competência, destacando a violação ao art. 9º da lei 8.935/1994 e ao art. 215 do CC. Já o TJ/MG, ao analisar o processo 1.0000.00.164519-1/000(1), reconheceu a nulidade de ato de revogação de testamento praticado por tabelião fora da circunscrição, reforçando que a observância territorial é requisito essencial à validade do ato. Esses precedentes convergem para uma diretriz clara: a extrapolação dos limites da delegação notarial compromete não apenas a legalidade, mas também a segurança jurídica e a confiança coletiva na fé pública, razão pela qual deve ser coibida de forma exemplar pelo Poder Judiciário. A nulidade do título se distingue da nulidade do procedimento de registro porque, enquanto aquela impede nova apresentação ao registro, esta admite reapresentação. Por exemplo, quando se comprova a falsidade ideológica, o título não pode ser novamente apresentado. Já no caso de ausência de algum documento comprobatório, por exemplo, é possível apresentar novamente o documento faltante, permitindo o registro. A nulidade absoluta do registro pode ser declarada pela via judicial ou administrativa, ao passo que a nulidade do título exige reconhecimento judicial. Em ambas as hipóteses, a retirada dos efeitos depende de ato formal de cancelamento. Acerca da nulidade e a repercussão social, tem-se entendimento jurisprudencial do  cancelamento de todos os atos subsequentes ao registro anulado. "Determinado judicialmente o cancelamento de um registro todos os demais que nele se fundam não mais subsistem no fólio real. Não há necessidade de que o magistrado determine expressamente o cancelamento de todas inscrições subsequentes ao registro cuja ordem de cancelamento teve objeto. É dizer, cancelado o registro rompido está o elo da corrente filiatória e os registros que nele se originaram tornam-se viciados, não podendo subsistir. O princípio do trato consecutivo permite concluir que por consequência do cancelamento de um ato precedente, os demais que foram praticados com suporte naquele, não mais subsistem" (1a VRPSP, Processo 587655/9/00, Juiz Oscar José Bittencourt Couto, j. 23/10/2000). De qualquer forma a participação dos titulares que possam ter seus interesses prejudicados pelo ato de cancelamento é condição indispensável para que este se realize. Tal exigência decorre da Constituição, pois ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Essa participação não precisa ser ativa ou efetiva. Basta, por exemplo, que o réu seja citado para que a decisão judicial produza efeitos em sua esfera jurídica, ainda que a citação tenha ocorrido por edital e ele tenha permanecido revel. Por outro lado, a ausência de citação, em regra, impede que seus direitos sobre o bem sejam suprimidos.  Nesse aspecto a repercussão do presente estudo se amplia, justamente porque esse efeito em cadeia de nulidade de títulos subsequentes, faz nascer a responsabilidade civil objeto de nulidade de atos notariais e registrais que é suportada pelo Estado, conforme entendimento do STF que decidiu no Tema 777, que o Estado responde, objetivamente, pelos danos causados por notários e registradores, conforme ementa: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932). Nessa linha, é plenamente defensável a tese de que o tabelião cuja serventia tenha sido prejudicada pelo deslocamento indevido de outro notário ao seu território possa demandar judicialmente a reparação de danos em face do Estado, com fundamento na responsabilidade objetiva reconhecida pelo STF no Tema 777 da repercussão geral. Isso porque, ao permitir ou não coibir a prática ilícita, o ente estatal compromete a arrecadação tributária municipal (ISSQN), fragiliza a sustentabilidade econômico-financeira da delegação e desestrutura a ordem territorial assegurada em lei, transferindo para o titular local o ônus de suportar prejuízos diretos - como a perda de atos que legitimamente lhe competiam - e indiretos, derivados da quebra da confiança social na fé pública notarial. Nessa hipótese, o Estado responde objetivamente pelos danos causados, cabendo o regresso contra o delegatário infrator. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna.
Dispõe sobre as diretrizes previstas nos §§ 7º e 8º do art. 440-AX do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e), relativas ao deferimento e ao indeferimento do procedimento de retificação de área no registro de imóveis.1 Conforme § 7º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial: "O deferimento do pedido de retificação de área dependerá do cumprimento dos requisitos legais e do convencimento do oficial de registro de imóveis, na forma da Lei de Registros Públicos e da legislação processual". Aqui a redação deixa claro que não basta a apresentação de documentos que cumpram formalmente com o procedimento, visto que a retificação de área se trata de um processo jurídico e que deve ter sua qualificação formal e material por parte da autoridade registrária. Desse modo, a análise a ser feita pelo registrador não se esgota na verificação das formalidades legais, como, por exemplo, a apresentação de todos os documentos exigidos e a verificação se esses documentos seguem a forma legal (reconhecimento de firma na carta de anuência, memorial descritivo emitido pelo SIGEF, requerimento assinado pelos proprietários etc.). Se fosse só isso o cartório não passaria de um órgão estatal carimbador, chancelando qualquer pedido em razão do cumprimento de um check list. A qualificação formal é importante, mas a qualificação material é o que denota a juridicidade da atuação do profissional do Direito. A qualificação material diz respeito ao conteúdo, à análise de fundo dos fatos jurídicos levados ao registro imobiliário, sendo conditio sine qua non para a execução do ato registral requerido.  Esse juízo valorativo na retificação de área depende do conhecimento da ciência jurídica, a fim de que se possa compreender se é possível realizar a retificação de área de acordo com a integridade do direito, se ela é intra muros ou configura algum tipo de aquisição de parte de imóveis vizinhos, se existe alguma sobreposição com terras públicas, se se exige a certificação da poligonal no INCRA, se os documentos dos vizinhos demonstram que são eles os proprietários ou ocupantes legais, se respeita as divisas existentes etc.  Além disso, também é essencial para a qualificação registral substantiva o conhecimento da práxis cartorial, que decorre exatamente do conhecimento prático de como se configura a circunscrição territorial (que é única para cada cartório de registro de imóveis justamente por esse motivo), evitando sobreposição de área, duplicidade de matrícula, modificação da localização do imóvel etc. Um exemplo pujante desta análise jurídica que implica em qualificação material está na discussão quanto ao aumento ou diminuição da área. Tal situação deve ser analisado caso-a-caso pelo oficial de registro, visto que as diferenças podem ocorrer por conta de haver uma descrição muito precária do imóvel na matrícula ou, ao contrário, pode advir mesmo de uma tentativa de aquisição fraudulenta de área por parte do requerente. A linha aqui muitas vezes é tênue e pode ensejar que o registrador requisite a produção de provas, como laudo técnico, ata notarial ou até mesmo uma vistoria in loco. Conquanto alguns registradores utilizem por analogia o critério de 1/20 (um vigésimo) ou 5% (cinco porcento) como percentual máximo de aumento ou diminuição da área, previsto no regramento da compra e venda ad corpus (art. 500, § 1º, do CC),2 não nos parece que esse critério seja válido, visto que sua aplicação se dá por meio de uma analogia in malam partem, que prejudica o usuário do serviço. Outrossim, o emprego deste critério está em desacordo com a própria finalidade do procedimento de retificação de área, que é definir a descrição física real (ou factual) do imóvel, ou seja, aquilo que existe de forma exata, verdadeira, concreta, constatada em campo.  Em áreas rurais é perfeitamente possível que as antigas descrições dos imóveis - feitas com marcação em léguas, braças, alqueires paulistas, baianos, goianos ou mineiros, dentre tantos outros, mediante uso de corda, de teodolito, ou de um cavalo que marche ao passo até o fumo se acabar3 - possa ser, sim, superior a esse tamanho. De outro lado, o § 8º do multicitado art. 440-AX do Código Nacional de Normas prevê que: Art. 440-AX. [...] § 8º. Em caso de indeferimento, deverá ser expedida nota devolutiva fundamentada na qual o oficial de registro de imóveis indicará as razões da formação de seu convencimento e, sempre que possível, informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais, podendo requisitar a apresentação de declarações, laudos, arquivos eletrônicos ou outros documentos complementares, especialmente, como meios de prova e de análise da conformidade dos trabalhos técnicos. A primeira parte do dispositivo possui redação semelhante àquela constante do art. 371 do CPC.4 Essa inspiração não é por acaso - ao contrário, é proposital -, visto que o registrador é o "juiz do caso", atuando na esfera extrajudicial, e sua qualificação registral, como vimos, no âmbito destes procedimentos especiais, depende da comprovação dos fatos alegados pelo requerente.  Não há aqui uma menor exigência de conhecimento técnico-jurídico por parte do registrador do que aquele conhecimento esperado do magistrado na análise de uma ação demarcatória. Pelo contrário, sendo do metiér do registrador de imóveis a análise do direito de propriedade em sentido amplo, é de se esperar justamente um maior rigor técnico e uma análise jurídica ainda mais especializada. Com efeito, o convencimento do registrador na seara extrajudicial - assim como ocorre com o juiz na esfera judicial - é ponto nodal para o deferimento ou o indeferimento dos pedidos levados a registro. Aplica-se aqui, além do disposto para o procedimento especial de retificação de área, as normas do processo civil.  Importante destacar a atividade colaborativa exigida do registrador na sua atuação como autoridade registrária. Sempre que possível, o registrador "informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais", motivo pelo qual a nota devolutiva não apenas deve constar as exigências, como também fundamentar juridicamente elas, apontando a base legal, e, sempre que possível, apontar o caminho para a solução das exigências pelo requerente. _______________________ 1 Este é o sexto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Art. 500. [...] § 1º. Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio. 3 De acordo com famosa citação literária de Ulisses Lins de Albuquerque, no final do século XIX e início do século XX media-se a terra assim: "O medidor enchia o seu cachimbo, acendia-o e montava no cavalo, deixando que o animal marchasse ao passo; quando o cachimbo se acabava, acabado o fumo, marcava uma légua" (ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. Um sertanejo e o sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957). 4 Art. 371, CPC. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Introdução "A própria arquitetura da casa-grande expressaria o modo de organização social e política do Brasil, o patriarcalismo... os senhores de engenho dominavam a terra, os escravos... parentes... filhos... esposa... amantes...".1 A imagem descrita por Gilberto Freyre remete a um Brasil marcado pela concentração fundiária, em que a posse da terra era sinônimo de poder e de estrutura social. Décadas depois, já sob o contexto da reforma agrária dos anos 70, a fração mínima de parcelamento (FMP) foi instituída como mecanismo jurídico com a pretensão de evitar a pulverização das glebas e assegurar viabilidade econômica mínima às propriedades rurais. No entanto, se a FMP nasceu sob o signo de um modelo agrário que via no latifúndio e na grande extensão a única forma de produtividade, hoje esse pressuposto se mostra cada vez mais questionável. Estudos recentes demonstram que minifúndios, quando manejados com técnicas intensivas e diversificação, podem alcançar alta produtividade por hectare, invertendo a lógica que justificava a regra. Nesse cenário, a FMP, antes pensada como instrumento de racionalização fundiária, transforma-se em verdadeiro entrave à regularização e à dinamização do espaço rural, especialmente em situações específicas como a estremação de imóveis. A estremação, por sua vez, é instrumento de regularização fundiária que permite a dissolução parcial de um condomínio geral pro diviso, desde que cumpridos alguns requisitos. Trata-se de instrumento que não cria um imóvel, apenas reconhece juridicamente uma realidade fática pré-existente e permite sua regularização. É justamente neste ponto que surge a controvérsia central: como compatibilizar a estremação de imóveis rurais com a regra da fração mínima de parcelamento? A indagação ganha relevo quando se está diante de áreas inferiores à FMP, nas quais a aplicação literal da norma pode inviabilizar a regularização, perpetuando a situação de irregularidade fundiária. É neste ponto que esse artigo assume uma dupla tarefa: (i) apresentar exceções legais à aplicação da FMP no contexto da estremação; (ii) questionar, à luz da realidade contemporânea, a própria pertinência da regra da FMP como instrumento jurídico. Trata-se de um artigo, ao mesmo tempo, prático e crítico. Leia a coluna na íntegra. _______ 1 Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
Trata sobre o regramento acerca da realização da retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, §§ 4º a 6º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e).1 Sobre a temática retificação de área e desmembramento ou unificação, houve salutar normatização pelo provimento do IERI-e, simplificando questões acerca de certificação da poligonal no INCRA, exigindo-se, porém, o respeito do princípio da continuidade registral. Art. 440-AX. [...] § 4º. Havendo necessidade de retificação da área global do imóvel rural e tendo o requerente apresentado pedido concomitante de desmembramento, cujas poligonais desmembradas estejam georreferenciadas e certificadas no Incra, deverá o oficial, nesta ordem:  I - realizar a averbação de retificação administrativa da área global; e  II - posteriormente, realizar averbação de desmembramento, com posterior averbação de encerramento da matrícula anterior, abrindo tantas matrículas quantas forem as parcelas desmembradas.  § 5º. Na hipótese do § 4º deste artigo, é dispensada a certificação pelo Incra da área global objeto do memorial descritivo (art. 176, § 5º, da Lei n. 6.015/1973), desde que as parcelas desmembradas tenham sido certificadas pelo Incra e correspondam integralmente ao somatório da área global, conforme mapa e memorial descritivo elaborados por profissional técnico habilitado, caso em que os prazos de eficácia da prenotação em relação ao desmembramento ficarão suspensos enquanto o procedimento de retificação extrajudicial estiver em curso.  § 6º. Aplica-se à unificação ou fusão de imóveis, no que couber, a regra procedimental prevista nos §§ 4.º e 5.º deste artigo. Quando o requerente tem por finalidade realizar o desmembramento do seu imóvel, mas para que isso seja feito há a necessidade de previamente fazer a retificação da área original, deve-se tomar em conta a marcha procedimental seguinte: (i) o registro de imóveis fará dois protocolos (um para a retificação e demais averbações de saneamento eventualmente necessárias, se for o caso; e outro para o desmembramento); (ii) realizada a retificação de área e outras averbações, finaliza-se o primeiro protocolo; (iii) ato contínuo, começa a correr o prazo do segundo protocolo, relacionado com o pedido de desmembramento, o qual estava sobrestado, realizando-se, então, nesta ordem, a averbação de desmembramento, a averbação de encerramento da matrícula e a abertura das matrículas referentes a cada um dos imóveis decorrentes do desmembramento. Orienta-se que, nestes casos, não se encerre e abra uma matrícula após a retificação de área, a fim de não criar uma "matrícula natimorta", aberta tão somente para ser logo em seguida encerrada por conta dos desmembramentos.2 Além disso, conquanto o ato normativo preveja a criação de duas prenotações separadas (uma para a retificação e outra para os desmembramentos), é de bom alvitre que o registrador de imóveis faça os atos de modo continuado, entregando conjuntamente os atos praticados ao requerente, visto que o pedido principal deste é justamente ver seu imóvel desmembrado. Assim, será possível a realização de atos registrais mais céleres, com menor burocracia e atendendo a manifestação de vontade do usuário do serviço. A desburocratização e a padronização do procedimento podem ser percebidas pelo disposto no § 5º do art. 440-AX, que somente exige a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA do resultado final pretendido pelo requerente, sem a necessidade de que o agrimensor realize primeiro a certificação da área global, depois cancele essa certificação e, só então, faça a certificação da poligonal no INCRA das áreas desmembradas. Tal itinerário na plataforma do INCRA, no mais das vezes, acabava por levar bastante tempo, o que agora deixa de ser um problema com o procedimento normatizado. Isso porque a única certificação da poligonal exigida pelo registro de imóveis será aquela decorrente do desfecho do pedido do requerente, ou seja, o desmembramento do imóvel. Na prática, o profissional técnico emitirá uma planta e um memorial descritivo externos à plataforma do SIGEF para a realização da retificação de área e, por outro lado, expedirá plantas e memoriais descritivos produzidos dentro da plataforma SIGEF, em relação aos desmembramentos. Neste sentido, por exemplo, se um imóvel cuja área corresponde a 500 hectares (ha) vai ser desmembrado em três parcelas (três novos imóveis), deve ser realizada a prévia retificação de área deste imóvel, sendo que a soma dos imóveis individuais deverá corresponder à área somada do imóvel que lhes deu origem. Assim, em uma situação hipotética, se o imóvel W tem 500 ha (imóvel originário), seria possível desmembrar as parcelas em imóvel X com 100 ha; imóvel Y, 200 ha; e imóvel Z, 200 ha (imóveis desmembrados). Diante desta situação, bastaria que o requerente apresentasse a planta e o memorial descritivo da respectiva retificação de área produzidos diretamente pelo profissional técnico, sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, no que tange ao imóvel original (W); bem como as plantas e os memoriais descritivos certificados no SIGEF/INCRA dos imóveis objeto do parcelamento (X, Y e Z).  No caso de imóveis rurais a serem certificados no SIGEF, conquanto haja dois protocolos para fins de contagem dos prazos procedimentais no registro de imóveis (um para retificação de área e outro para o desmembramento, aplicando-se sucessivamente os prazos do art. 188 e 205 da LRP), para fins de emissão de nota devolutiva devem ser considerados como se fossem um único protocolo (fazendo constar da nota a numeração de ambas as prenotações). O motivo? Caso a retificação de área (primeiro protocolo) seja deferida e existam exigências legais a serem cumpridas para a realização do desmembramento (segundo protocolo), sendo lavrados os atos registrais de retificação e não vindo o requerente a conseguir cumprir as exigências de desmembramento, o registrador ficaria com uma matrícula com descrição do imóvel georreferenciado sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, em desrespeito ao disposto na legislação. Por esse motivo, a qualificação registral dos protocolos, neste caso específico, deve ser feita conjuntamente, visto que o cumprimento do requisito de certificação da poligonal no Incra somente ocorre se ambos os procedimentos forem deferidos e, por conseguinte, todos os atos registrais forem realizados. O § 6º, por fim, estende a aplicação das regras procedimentais também para a unificação, fusão ou remembramento de imóveis. Em outras palavras, se o requerente tem por finalidade realizar a unificação de seus imóveis, mas precisa previamente fazer a retificação de área de todos ou alguns dos imóveis que vão se aglutinar, a exigência de certificação da poligonal no SIGEF/INCRA deve ser feita tão somente para o resultado final pretendido: o imóvel unificado. Para isso, por óbvio, deve a soma das áreas pretensamente unificadas corresponderem ao imóvel remembrado. Deixando mais claro: o profissional técnico emitirá as plantas e memoriais descritivos externos à plataforma do SIGEF para a realização das retificações de área referente a cada imóvel contíguo e, de seu turno, expedirá uma planta e memorial descritivo produzido dentro da plataforma SIGEF, no tocante à unificação. Assim, por exemplo, se três imóveis vão ser unificados em um único imóvel cuja área corresponde a 500 hectares (ha), a prévia retificação de área dos imóveis individuais deverá corresponder a este somatório. Assim, em uma situação hipotética, o imóvel X poderia ter 100 ha; o imóvel Y, 200 ha; e o imóvel Z, 200 ha (imóveis originários). Se estes imóveis forem unificados, gerando o imóvel W, este deverá ter a área de 500 ha (imóvel unificado). Diante desta situação, bastaria que o requerente apresentasse as plantas e memoriais descritivos das respectivas retificações de área produzidas diretamente pelo profissional técnico, sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, no que tange aos imóveis originários (X, Y e Z), bem assim a planta e o memorial descritivo certificado no SIGEF/INCRA do imóvel unificado (W). Questão essencial para os agrimensores é atentarem-se que, mesmo em relação às plantas e memoriais descritivos feitos fora da plataforma do SIGEF, o levantamento topográfico e a geomensura deve respeitar a Norma Técnica de Georreferenciamento de Imóveis Rurais definido pelo INCRA, de modo a corresponder com o mesmo trabalho técnico que seria feito em caso de inserção na plataforma do SIGEF. Desse modo, os profissionais técnicos devem, dentre outros cuidados, realizar seus trabalhos constando coordenadas latitude, longitude e altitude, com sistema de referência SIRGAS 2000, valendo-se dos mesmos padrões de acurácia e cartografia exigidos pelo Manual Técnico do INCRA.  Neste sentido, por exemplo, se o agrimensor fizer um trabalho técnico em coordenadas UTM para a retificação de área e outro em coordenadas latitude, longitude, altitude para o desmembramento ou unificação, por óbvio, a área somada pode ser bem diferente, haja vista que aquele modelo estabelece um levantamento como se os imóveis fossem horizontais, numa projeção reta, enquanto a segunda leva em consideração o relevo da Terra e os acidentes geográficos existentes na área georreferenciada. Logo, se não se utilizar do mesmo sistema de projeção fixado para a certificação no INCRA evidente que as áreas da retificação de área e dos desmembramentos/unificação não irão corresponder e será impossível o deferimento do procedimento pela autoridade registral. Sob este ponto, cabe ainda um adendo. O registrador de imóveis deve ter o cuidado para compreender que há possibilidade de ocorrência de pequenas diferenças no somatório das áreas, sem que isso enseje uma falha do levantamento georreferenciado realizado pelo agrimensor. A pequena diferença de área ao desmembrar ou unificar imóveis dentro ou fora do SIGEF ocorre devido ao modo como o sistema realiza os cálculos geodésicos e atualiza automaticamente os perímetros das parcelas vizinhas. O SIGEF utiliza critérios técnicos do Sistema Geodésico Local para conferir as áreas, e a inserção de novos vértices nos perímetros durante o desmembramento ou unificação pode gerar pequenas variações na soma das áreas das parcelas desmembradas em relação à área original certificada. Além disso, o sistema corrige automaticamente os perímetros das parcelas vizinhas sem alterar seus números de certificação, o que também pode contribuir para essas pequenas diferenças. Assim, pequenas variações do tamanho das áreas posteriormente a parcelamentos ou remembramentos são normais, dentro das tolerâncias técnicas previstas, e não configuram erro ou necessidade de retificação dos trabalhos técnicos. _______________________ 1 Este é o quinto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Sobre a abertura de nova matrícula após a retificação de área, ver Parte I desta série de artigos.
quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Notarialidade digital: Um conceito em construção

A transposição da fé pública para o ambiente eletrônico A transformação digital representa um marco civilizatório, comparável à invenção da imprensa ou à revolução industrial, pelo impacto que exerce sobre as formas de comunicação, de produção e de organização social. O Direito, como sistema de ordenação da vida coletiva, não pode ignorar os riscos que emergem dessa nova realidade. Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso à informação e ampliou exponencialmente a capacidade de realização de negócios jurídicos, por outro lado trouxe consigo um efeito colateral que se manifesta na amplificação dos riscos e na propagação quase incontrolável dos danos. O mundo digital não conhece fronteiras físicas, tampouco limites de tempo e espaço. Uma fraude, uma manipulação de identidade ou a circulação de uma informação falsa não permanecem circunscritas a um grupo delimitado de pessoas, mas rapidamente se expandem, alcançando milhões em questão de segundos. É o que se pode denominar de lógica da exponencialidade dos danos: aquilo que em contexto analógico seria episódico e contido, no ambiente virtual se multiplica em progressão geométrica, gerando consequências assimétricas entre a causa e o efeito. É nesse ambiente de riscos multiplicados que surge a pertinência de se falar em notarialidade digital. O conceito designa a transposição dos princípios estruturantes da atividade notarial, fé pública, autenticidade, formalização e prevenção de litígios, para o ciberespaço. Se trata de imaginar a atividade dos cartórios de notas adaptados para atuar em plataformas eletrônicas, compreendendo que os valores essenciais que sempre fundamentaram a função notarial precisam encontrar meios de expressão também no mundo digital. O notário, historicamente, desempenhou o papel de garantidor da confiança, assegurando que os atos jurídicos praticados perante si fossem dotados de autenticidade e eficácia, prevenindo conflitos futuros. O mesmo raciocínio deve orientar a construção de ferramentas digitais: em vez de apenas digitalizar documentos ou assinar arquivos eletronicamente, é necessário conferir a esses atos um regime de segurança institucionalizado, capaz de gerar a mesma confiança social que sempre caracterizou a fé pública. No Brasil, esse processo se concretizou de forma pioneira com o provimento 100 do CNJ, editado em 2020, que instituiu a prática de atos notariais eletrônicos e criou a plataforma e-Notariado. Esse marco normativo disciplinou a emissão de certificados digitais notarizados, a realização de videoconferências para a coleta de manifestações de vontade e a criação da matrícula notarial eletrônica, assegurando que cada ato praticado digitalmente estivesse vinculado a um notário investido de fé pública. Posteriormente, o provimento 149 de 2023 consolidou a matéria, integrando-a ao quadro geral de normas aplicáveis ao serviço extrajudicial. A disciplina brasileira acompanha tendência internacional, como se vê na União Europeia, com o Regulamento eIDAS de 2014 e sua reforma em 2024, conhecida como eIDAS 2.0, que estabeleceu padrões comuns para identificação digital, assinaturas eletrônicas qualificadas e carteiras digitais interoperáveis. Em todos esses exemplos, nota-se o esforço por criar sistemas de confiança que deem ao ambiente virtual a mesma segurança que a sociedade sempre exigiu das relações presenciais. Os fundamentos da notarialidade digital podem ser resumidos em quatro grandes eixos: a autenticação eletrônica da identidade, que impede a usurpação da vontade alheia; a instrumentalização dos atos notariais em meio eletrônico, garantindo sua validade jurídica; a conservação digital com fé pública, assegurando a perenidade e a integridade dos documentos; e a função preventiva aplicada ao espaço virtual, reduzindo a litigiosidade e conferindo certeza às relações jurídicas digitais. Esses eixos demonstram que a notarialidade digital não é uma abstração, mas um paradigma em construção, com aplicação concreta na vida social. A relevância desse modelo torna-se mais evidente quando se analisam episódios de vulnerabilidade institucional. A fraude recente no Instituto Nacional do Seguro Social, que vitimou milhões de aposentados e pensionistas entre 2019 e 2024, ilustra de forma dramática a ausência de protocolos adequados de consentimento digital. Nesse caso, entidades associativas lançaram descontos indevidos na folha previdenciária sem que houvesse anuência expressa e autenticada dos beneficiários. A operação se sustentou justamente porque o sistema permitia o registro automático de contribuições sem validação segura da manifestação de vontade. O resultado foi um prejuízo estimado em bilhões de reais, que só veio à tona quando o volume de reclamações tornou insustentável a fraude. Se houvesse mecanismos equivalentes à formalização notarial, registros eletrônicos de consentimento, certificados digitais qualificados, autenticação por fé pública, a fraude teria sido significativamente dificultada ou mesmo inviabilizada. É certo que a proposta de notarialidade digital pode receber críticas. Alguns podem argumentar que já existem tecnologias capazes de assegurar segurança no ambiente eletrônico, como blockchain, criptografia de ponta e autenticação multifatorial. Outros podem sustentar que a formalização notarial encarece as transações e compromete a agilidade digital. Há ainda quem veja nesse movimento uma tentativa de corporativismo, ao ampliar a esfera de atuação dos notários. Contudo, essas críticas não resistem a uma análise mais detida. A tecnologia, por si só, não gera confiança social: a confiança decorre de instituições legitimadas, capazes de vincular a tecnologia a uma estrutura normativa e de responsabilidade. Quanto ao custo, a Análise Econômica do Direito demonstra que os gastos com prevenção são muito menores do que os custos sociais decorrentes de litígios e fraudes em massa. E no que tange ao suposto corporativismo, o que se busca não é ampliar artificialmente a esfera notarial, mas aplicar sua lógica secular de prevenção e fé pública ao espaço digital, em benefício da sociedade como um todo. A notarialidade digital, portanto, deve ser entendida como continuidade e atualização da função notarial no século XXI. Sua missão permanece a mesma: preservar a confiança e assegurar a segurança das relações jurídicas. O que se altera é o suporte, que deixa de ser apenas o papel e o contato físico para incorporar a rede, a certificação digital e os sistemas eletrônicos. Essa transposição não significa ruptura, mas evolução. Ao conferir fé pública a documentos eletrônicos, ao autenticar identidades digitais e ao registrar a vontade das partes em meio eletrônico, o notário se adapta ao tempo presente, garantindo que a inovação tecnológica caminhe de mãos dadas com a estabilidade institucional. Em um mundo em que os danos se propagam em velocidade e escala exponenciais, não basta contar com soluções técnicas fragmentadas. É necessário um sistema de confiança que seja reconhecido social e juridicamente como dotado de legitimidade, capaz de assegurar que os atos praticados digitalmente tenham a mesma eficácia que sempre tiveram os atos presenciais. A notarialidade digital é justamente essa resposta: uma forma de transpor ao ambiente eletrônico os valores da fé pública, da prevenção e da segurança jurídica, garantindo que o futuro digital não seja apenas veloz, mas também confiável.
Esta coluna analisa os casos de dispensa das anuências dos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 3º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ nº 195/2025 - Provimento do IERI-e).1 O § 3º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), incluído pelo provimento CNJ 195/25, prevê o seguinte: Art. 440-AX. [...] § 3º. É dispensada a anuência do confinante:  I - no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificada pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e  II - se o imóvel confrontante for bem público e consistir em:  a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e  b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi.  Os casos acima descrevem as hipóteses de dispensa normativa de apresentação da anuência dos confrontantes que passaram a ser regulamentadas pelo provimento do IERI-e. A norma administrativa regulamenta exceções, portanto, ao disposto nos §§ 1º a 6º do art. 213 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) que estabelece como condição para o procedimento de retificação de área a anuência dos confrontantes e, no caso de não obtenção desta anuência, que haja a notificação destes, presumindo-se a concordância do confrontante que não apresentar impugnação no prazo legal.  1. Certificação no SIGEF e confirmação no Registro de Imóveis No caso de o prédio vizinho ao imóvel retificando possuir prévia certificação da poligonal no SIGEF/INCRA e tiver sua retificação de área no Registro de Imóveis já concluída, não será necessário colher a anuência do confinante. Isso porque o Provimento 195 estabelece a presunção de que já houve a concordância formal quanto aos limites dos imóveis e que não existe discussão acerca de sobreposição com a área confrontante. A ideia é simples: se o proprietário do imóvel confinante (i) realizou o georreferenciamento do seu imóvel, (ii) certificou no SIGEF que não existe poligonal que sobreponha sua área no referido cadastro territorial e (iii) teve deferido o procedimento de retificação de área perante o Registro de Imóveis, há segurança jurídica suficiente para que este mesmo proprietário não precise ser chamado a ratificar o georreferenciamento do imóvel do seu vizinho, o qual respeita as linhas divisórias do seu imóvel. Ademais, presume-se que proprietário do imóvel retificando, ele próprio, ou eventual proprietário antecessor, já deu a anuência (por anuência expressa ou tácita) para que o confinante pudesse retificar seu imóvel junto à serventia predial, sendo desnecessário, neste caso, o "câmbio ou troca de anuências". Outrossim, o dispositivo constante do Provimento 195/2025 deve-se ser interpretado de forma sistemática e teleológica, observando-se a finalidade dos arts. 176, §§ 3º a 5º e § 13 em conjunto com o art. 213, todos da LRP. Neste sentido, é importante deixar claro que não basta a mera certificação da poligonal no SIGEF para a dispensa da anuência do confrontante. A certificação no SIGEF, por si só, não serve para comprovar propriedade nem tem força legal para definir os limites de um imóvel, sobretudo por se tratar de um cadastro autodeclaratório e unilateral. Além do mais, a análise jurídica da conformidade dos limites do imóvel e o controle da malha imobiliária é atribuição do registrador de imóveis, notadamente ao realizar a qualificação registral no procedimento de retificação de área. Assim, para a dispensa da anuência do confrontante deve ocorrer o cumprimento de ambos os requisitos em relação ao imóvel confrontante: certificação da poligonal no SIGEF + deferimento da retificação de área no registro de imóveis.  Deve-se reconhecer, no entanto, que o texto do Provimento poderia ter sido mais claro, deixando mais literal a exigência da norma. Diante disso, sugerimos, de lege ferenda, que o texto do inc. I, § 3º, do art. 440-AX seja melhorado, para que deixe expresso que a dispensa da anuência do confinante ocorra ""[...] no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificado pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973, 'e, em relação ao imóvel confrontante, tenha sido concluída a retificação de área de acordo com o polígono certificado'". De qualquer modo, mesmo sem a alteração do texto da norma do CNJ a interpretação que deve ser dada, desde logo, para a dispensa da anuência de confinante, é a exigência conjunta de certificação no SIGEF/Incra cumulado com a confirmação da retificação de área do imóvel confrontante, mediante interpretação teleológica e sistemática da Lei de Registros Públicos. 2. Águas públicas Outra hipótese de dispensa da anuência ocorre no caso de confrontação com bens públicos. No caso de águas públicas, tais como rios navegáveis e outros afluentes, é dispensada a anuência desde que respeitada a faixa de terreno reservado de 15 metros estabelecida no Código de Águas.3 De seu turno, no caso de rodovias ou ferrovias aplica-se regra semelhante, sendo dispensada a anuência do ente público se respeitada a faixa de domínio público e a área non aedificandi (área não edificável). Nesses casos, o registrador de imóveis poderá verificar o cumprimento deste requisito ao analisar os trabalhos técnicos e a imagem de satélite da poligonal, notadamente pelo SIG-RI -, conhecido popularmente como Mapa do Registro de Imóveis do Brasil4. Também é recomendável que o profissional técnico faça constar expressamente a informação de respeito aos limites e das faixas com os bens públicos na planta ou no memorial descrito ou até mesmo em laudo técnico separado, a fim de ser deferida a dispensa da anuência dos entes públicos. Rios públicos são aqueles navegáveis e que são considerados bens públicos. Portanto, os rios públicos geram a divisão do imóvel por ele seccionado. Interessante notar que os rios públicos serão estaduais quando localizados apenas em um Estado da Federação; e serão Federais quando cortarem mais de uma unidade federativa ou fizerem fronteira com outros países, caso em que serão considerados patrimônio da União (art. 20, inc. III; e art. 26, inc. I, CF).5 Não existe uma lista oficial de rios navegáveis, motivo pelo qual deve ser analisado caso a caso pelo registrador, o qual deve ter o conhecimento da circunscrição territorial sob sua jurisdição.  Navegáveis são os cursos d'água que permitem a navegação de embarcações, ou seja, possibilitam o trânsito seguro de barcos ao longo de toda ou da maior parte de seu percurso. Para ser considerado navegável, o afluente deve suportar uma embarcação de pequena proa com capacidade para pelo menos uma pessoa, independentemente do tipo de propulsão (remo, vela, motor etc.).6 De sua vez, os rios não navegáveis são privados, podendo fazer parte do imóvel ou eventualmente constituírem marco divisório dele, caso em que o confrontante anuente será o vizinho do outro lado da margem do curso d'água. Muitos registradores, por questões de extrema cautela, exigiam notificação da Fazenda Pública (PGE - Procuradoria Geral do Estado para rios estaduais; ou da SPU - Superintendência de Patrimônio da União, para Federais) em retificações de imóveis confrontantes com rios navegáveis, mas essa exigência, de acordo com o regulamento do CNJ, pode ser considerada exagerada. O princípio da razoabilidade indica que basta comprovar, por meio de planta precisa e imagem de satélite (ex.: Google Earth), que a margem do rio navegável e a faixa pública de 15 metros (terreno reservado) foram respeitadas, sem necessidade de movimentar a máquina pública, exigindo a anuência ou a notificação do Estado ou União. Conforme explica Eduardo Augusto, mesmo que haja erros técnicos na descrição, a inclusão de área pública não altera a titularidade estatal, que é inalienável e imprescritível (não usucapível). Assim, a notificação da Fazenda Pública é desnecessária, salvo se o particular contestar a existência da faixa pública, caso em que a participação estatal é essencial para garantir a segurança jurídica do registro. A retificação deve, portanto, focar apenas no necessário para assegurar a correção da nova descrição, evitando formalismos excessivos que não trazem benefício prático nem segurança jurídica.7 A dispensa da anuência, no entanto, não dispensa o registrador de fazer a qualificação registral dos trabalhos técnicos. Desse modo, se o registrador evidenciar que os trabalhos técnicos contêm incorreções ou que não estão de acordo com a linha de terreno reservado do curso d'água, deve, fundamentadamente, exigir a notificação dos entes públicos, a fim de evitar litígios futuros. Figura 1 - Rio navegável e terreno reservado   Fonte: Disponível aqui 3. Estradas públicas: Rodovias, ferrovias e outras vias de circulação Em relação às estradas públicas, tais como rodovias, ferrovias e demais vias de circulação, o procedimento de retificação de área no registro de imóveis deve respeitar a faixa de domínio e a área não edificável (área non aedificandi). Conforme dispõe o Provimento, demonstrado que o imóvel retificando não se sobrepõe à faixa de domínio público e o proprietário observa as limitações decorrentes da área não edificável, poderá ser dispensada a anuência dos confrontantes. O regramento trata tanto de vias de circulação urbanas como também rurais, sendo aplicável, portanto, em ambos os casos. Quando cita estradas e vias de circulação e depois especifica as rodovias e ferrovias, o Provimento 195 se utiliza de uma fórmula mais genérica seguida de exemplos, permitindo ao intérprete estender o alcance da norma a situações semelhantes, mas não expressamente listadas.  Vale-se a norma do CNJ, destarte, de uma interpretação analógica, revelando o sentido e o alcance da norma, a partir de suas próprias disposições gerais e específicas. No caso, o dispositivo visa abarcar todas as estradas públicas e/ou vias de circulação públicas, urbanas e rurais, devendo-se, em cada caso, levar em consideração o tipo de cada estrada/via de circulação confinante do imóvel retificando.  Segundo o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), as vias de circulação podem ser rurais (estradas e rodovias) ou urbanas (ruas, avenidas, vielas, ou caminhos e similares abertos à circulação pública, situados na área urbana, caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão). Cada tipo de via de circulação contém regras diferenciadas, motivo pelo qual é importante que o profissional responsável pela elaboração dos trabalhos técnicos deve observar as regras atinentes à faixa de domínio público e, quando existente, à área privada non aedificandi. A faixa de domínio é a área pública onde se assentam todos os elementos que compõem a via de circulação, incluindo pista de rolamento, canteiros, acostamentos, sinalizações e faixas laterais de segurança, entre outros, até o limite que separa a estrada pública dos imóveis marginais. Constitui, portanto, bem público de uso comum do povo. A superfície da faixa de domínio é delimitada conforme o projeto de engenharia da pista ou por lei específica e está sob responsabilidade do órgão ou entidade de estradas e rodagens competente com circunscrição sobre a via (p. ex. no âmbito federal, DNIT; no âmbito estadual, DAER-RS, DER-SP, DER-DF, GOINFRA etc.)8.  Normalmente, não havendo uma delimitação específica no projeto de engenharia, as legislações definem uma área mínima.  Desse modo, a largura da faixa de domínio pode variar conforme cada caso e obedece a legislação de cada estado (no caso de Rodovias Estaduais) ou da União (para Rodovias Federais), sendo definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, mantendo largura constante e tendo as linhas limites paralelas ao eixo da rodovia.  A área não edificável (non aedificandi), de outro lado, é uma faixa de terra onde é proibida a construção de edificações, situada logo após a faixa de domínio de rodovias e ferrovias. Não se trata de bem público e, portanto, não pertence ao ente público, tendo natureza de bem particular, mas em que está gravada limitação administrativa, uma restrição da propriedade, vedando que o proprietário construa sobre a área. Desse modo, a área não edificável faz parte do imóvel do requerente e deve ser descrita na matrícula do imóvel retificando. A área non aedificandi ao longo das estradas rodoviárias tem, em regra, largura mínima de 15 metros de cada lado da linha que define a faixa de domínio público. Contudo, pela atual redação da lei 6.766/1979 (lei de parcelamento do solo urbano), alterada pela lei 13.913/19, dentro do perímetro urbano, os municípios podem diminuir essa faixa para até 5 metros de cada lado, desde que haja lei municipal que autorize essa redução (art. 4º, inc. III).8  A lei 14.273/21 (Lei das Ferrovias), de sua vez, não especifica uma área non aeficandi para este tipo de estrada pública, sendo possível inferir de seu regramento que as instalações adjacentes, à faixa de domínio da linha férrea, inclusive, os "imóveis localizados de forma contígua" às estradas de ferro deverão respeitar a "indicação georreferenciada do percurso total [...] da faixa de domínio da infraestrutura ferroviária" (art. 3º, inc. VII e art. 25, § 1º, inc. II, alínea a). Desse modo, não havendo previsão de metragem específica na legislação especial para definir a área non aedificandi, entendemos que se aplicam as diretrizes estabelecidas para as rodovias também às vias férreas: 15 metros como regra, podendo ser reduzida para 5 metros na área urbana, se houver legislação municipal autorizativa.9  A área não edificável para as rodovias e ferrovias gera uma restrição à propriedade privada ex lege, ao passo que nas vias de circulação urbanas (ruas, avenidas, vielas, becos etc.), salvo quando previsto na legislação urbanística específica, não existe uma área non aedificandi. Assim, como regra, a área non aedificandi surge por uma limitação administrativa legal, visto que decorre diretamente da legislação, motivo pelo qual não precisa estar publicizada na matrícula. Nada obstante, se por razões de necessidade pública o poder público determinar a criação ou o aumento dessa área não edificável, haverá, excepcionalmente, uma limitação administrativa convencional ou estabelecida unilateralmente pelo próprio poder público, caso em que a restrição à propriedade privada deverá ser objeto de averbação na matrícula, diante da excepcional intervenção do Estado na propriedade. Com efeito, para que haja a dispensa da colheita de anuência do ente público confrontante no procedimento de retificação de área, a faixa de domínio público deve ser respeitada, de modo que o imóvel retificando não se sobreponha a ela; bem assim deve constar do trabalho técnico o respeito à limitação administrativa da área não edificável. Figura 2 - Faixa de domínio de rodovia e área non aedficandi   Fonte: https://www.ribrusque.com.br/faixa-de-dominio-e-area-non-aedificandi/ ____________________________________________ 1 Este é o quarto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Por esse motivo, é importante que ao final do procedimento de retificação de área, o registrador de imóveis faça o login na plataforma do SIGEF, realize o upload da nova matrícula e inclua a informação de "Confirmação de Registro". 3 Art. 14, Código de Águas. Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias. 4 O SIG-RI passou a ser regulamentado nos arts. 343-D a 343-J do CNN/CN/CNJ-Extra, de acordo com a redação incluída pelo Provimento do IERI-e. O "Mapa" pode ser acessado a partir do seguinte link: Disponível aqui.  5 Art. 20. São bens da União: [...] III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; [...] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; 6 GIOVANINI, Adenilson. Topografia cadastral e georreferenciamento de imóveis rurais na prática. E-book. 2023. 7 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013. 8 A Resolução DNIT nº 7, de 02 de março de 2021 regulamenta atualmente o uso das faixas de domínio de rodovias federais sob circunscrição do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Disponível aqui. 9 Para as rodovias estaduais, cada Estado possui sua própria legislação. Como exemplo, no Estado de Goiás, a Lei Estadual nº 14.408/2003, estabelece que a largura da faixa de domínio das rodovias estaduais será definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, enquanto a faixa de domínio das rodovias estaduais que não possuem projeto final de engenharia será especificamente de 40 m (quarenta metros), para cada um dos lados, a contar do eixo central da rodovia (art. 3º). Disponível aqui.
Em inventário por escritura pública (inventário extrajudicial) envolvendo herdeiro incapaz, indaga-se: o quinhão dele pode recair sobre apenas alguns dos bens do espólio ou necessariamente deve desaguar em um condomínio tradicional sobre cada bem? Em outras palavras, nesses casos em que há herdeiro incapaz, a partilha extrajudicial tem de ser per rem (por cada bem)1 ou pode vir a ser por universitas iuris (por universalidade de direito, especificamente o monte-mor hereditário2)? Outra questão: seria possível uma partilha desigual no inventário extrajudicial? Uma leitura apressada do art. 12-A da resolução 35 do CNJ levaria à indevida conclusão de que a partilha tem de ser pro rata sempre (e, portanto, não poderia ser desigual) e de que ela deveria recair sobre cada bem específico (partilha per rem). Veja o referido dispositivo: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.  § 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz.  § 2º Havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura nos termos do caput, aguardar-se-á o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida.  § 3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante.  § 4º Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente.  Realmente, a regra geral é essa acima. A partilha em inventário extrajudicial envolvendo herdeiro incapaz há de ser pro rata e per rem. Essa norma, porém, precisa ser interpretada sistematicamente com as regras do Código Civil que permitem a pessoa incapaz a praticar atos além da mera administração mediante alvará judicial, ao lado da regra que proíbe atos de disposição gratuita pela pessoa incapaz. Referimo-nos aos dispositivos abaixo do CC: Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz. (...) Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz: (...) III - transigir; IV - vender-lhe os bens móveis, cuja conservação não convier, e os imóveis nos casos em que for permitido; (...) Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade: (...) II - dispor dos bens do menor a título gratuito; (...) Art. 1.781. As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta seção. Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser vendidos quando houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e aprovação do juiz. Esses dispositivos, ao lado do princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e do princípio da vontade presumível3, permitem a realização de inventário extrajudicial com partilha desigual e com partilha da universalidade de direito, e não de cada bem individualizado, embora de modo excepcional. De um lado, a partilha desigual nos parece cabível quando o herdeiro incapaz vier a ser beneficiado patrimonialmente. Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Não há obstáculo algum a que o herdeiro incapaz fique com 80% de cada bem em inventário extrajudicial, ao passo que o herdeiro capaz ficaria com o restante. Não haveria necessidade de nenhuma autorização judicial. Reforça o entendimento acima o fato de que os inventários extrajudiciais dependem do beneplácito pelo Ministério Público, que é o custos legis (fiscal da lei) e que é o incumbido de velar pelos interesses do incapaz (art. 178 do CPC4). O Ministério Público fiscalizará o melhor interesse da pessoa incapaz. Além disso, o § 1º do art. 12-A da resolução 35 do CNJ veda disposição de bens do incapaz, e não a aquisição de bens por este. De outro lado, a partilha per rem (por cada bem) pode ser afastada para que a partilha seja feita sobre toda a universalidade de direito (de todo monte-mor) em duas hipóteses. Aliás, a regra geral é a de que a partilha hereditária leva em conta o acervo hereditário inteiro, que é uma universalidade de direito, fruto de uma indivisibilidade imposta pelo parágrafo único do art. 1.791 do Código Civil5. Vejamos as duas hipóteses de afastamento da partilha per rem. A primeira é quando houver autorização judicial com base nos arts. 1.691, 1.748, II, 1.750 e 1.781 do Código Civil. O motivo é que, por meio de seu representante legal (pais, tutela ou curador), a pessoa incapaz pode praticar atos além da mera administração mediante essa autorização judicial, como alienar imóveis e transigir. Caberá ao juízo avaliar se a solução é mais vantajosa à pessoa incapaz. Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Imagine que o falecido tenha deixado dois bens de igual valor: um veículo e um apartamento. A experiência demonstra que veículos desvalorizam com maior rapidez, ao contrário de imóveis, que tendem a valorizar. Em caso assim, seria mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o apartamento na integralidade e deixar o veículo ao seu irmão capaz. Não enxergamos obstáculos algum a que esse inventário ocorra extrajudicialmente nesses termos mediante autorização judicial obtida pelo representante legal do herdeiro incapaz. Entender diversamente nos levaria a conduzir a pessoa incapaz a uma solução mais onerosa. Teríamos de, em primeiro lugar, realizar a partilha per rem, deixando o herdeiro incapaz com 50% do veículo e com 50% do apartamento. Posteriormente, teríamos de obter um alvará judicial para uma permuta de bens, de modo a que o herdeiro incapaz troque a sua porção sobre o veículo pela porção do outro herdeiro no apartamento. Isso, porém, imporia um custo adicional ao herdeiro: o pagamento de ITBI (Imposto sobre a transmissão onerosa de bem imóvel). Ora, se o herdeiro incapaz tivesse ficado com o imóvel já no inventário extrajudicial, não haveria esse custo adicional e, portanto, teríamos uma solução menos onerosa a ele. Como se vê, as normas - com inclusão do art. 12-A da resolução 35 do CNJ - não podem ser interpretadas de modo a prejudicar a pessoa incapaz, o que respalda o entendimento sustentado neste artigo. A segunda hipótese de afastamento da partilha per rem dá-se em caso de manifesta vantagem à pessoa incapaz, hipótese em que sequer haverá necessidade de autorização judicial. Bastará que o Ministério Público, como custos legis, chancele o inventário extrajudicial com partilha por universalidade de direito. Isso, porque uma interpretação teleológica dos supracitados dispositivos do Código Civil deve estar alinhada ao princípio do melhor interesse da pessoa incapaz e ao princípio da vontade presumível da pessoa incapaz, de modo a afastar exigências meramente burocráticas à efetivação daquilo que é mais adequado à pessoa vulnerável. Imagine um inventário envolvendo R$ 50 mil em dinheiro e um veículo de valor de R$ 50 mil. É manifestamente mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o dinheiro do que ter de ficar com metade de cada um desses bens. Por isso, temos que esse inventário extrajudicial poderia ser feito independentemente de prévio alvará judicial, de que o Ministério Público manifeste-se favoravelmente. ___________ 1 Cunhamos a expressão "per rem" para fins didáticos, embora ela não seja usual nas fontes jurídicas do direito romano antigo. 2 A universalidade de direito (universitas iuris) está disciplinada no art. 91 do Código Civil ("Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico") e é ilustrada pelo acervo patrimonial deixado pelo falecido. 3 Vide: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela e respeito à vontade presumível: Liberalidades de bens do curatelado. Disponível aqui. Publicado em 2/5/25. 4 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: (...) II - interesse de incapaz; (...) 5 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
Analisa a possibilidade de recepção de assinaturas eletrônicas qualificadas e avançadas no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 2º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo provimento CNJ 195/25 - provimento do IERI-e).1 De acordo com o § 2º do art. 440-AX "As declarações apresentadas pelo proprietário, pelo profissional técnico e pelos confinantes deverão ser assinadas com firma reconhecida ou mediante assinatura eletrônica avançada ou qualificada".2 A declaração do proprietário é aquela que ratifica que foram respeitados os limites e confrontações ao realizar o levantamento topográfico da área (art. 176, § 13, parte final, LRP e art. 9º, § 5º, decreto 4.449/02).3 De sua vez, as declarações do profissional técnico referem-se a sua responsabilidade pela realização dos trabalhos atinentes ao referido levantamento topográfico (art. 213, inc. II, da LRP). Diante do texto normativo, todas as assinaturas necessárias para a realização do procedimento de retificação de área (assinaturas do requerente, profissional e confrontantes) são eficazes para o procedimento quando reconhecida a firma em tabelionato de notas, em caso de "assinatura física"; ou quando realizada por "assinatura eletrônica", tenha esta status de assinatura avançada ou qualificada. O decreto 10.543/20 regulamenta os níveis de segurança das assinaturas eletrônicas, qualificando, em escala da menos segura até a mais segura, em "simples", "avançada" e "qualificada".  A assinatura eletrônica simples tem o menor grau de confiabilidade para a análise de sua autenticidade. Por isso, pode ser utilizada em negócios que envolvam menor complexidade, que não sejam protegidos por qualquer grau de sigilo e não ofereçam risco direto de dano a bens, serviços e interesses do ente público. Trata-se de assinatura eletrônica realizada, em geral, apenas entre particulares e para fins privados. Esse tipo de assinatura eletrônica, portanto, é utilizada apenas em situações de baixo risco, onde basta a identificação do usuário e não há exigência de comprovação jurídica rigorosa, como, por exemplo, quando do recebimento de mercadorias compradas pela internet, aceite de propostas comerciais, participação em pesquisas, autenticação ou solicitação de acesso em websites etc. Normalmente é feita por meio de desenho da assinatura no visor de uma tela touchscreen ou por confirmação de dados por e-mail, SMS ou aplicativo gerador de código próprio. A assinatura eletrônica simples não pode ser utilizada no registro imobiliário, em nenhum procedimento.4 De sua vez, a assinatura eletrônica avançada é espécie de firma digital com grau de segurança intermediário. É utilizada para os casos que exijam maior garantia quanto à autoria da manifestação do signatário, mesmo sem o uso de certificado emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil). Sua utilização pode ocorrer, por exemplo, na formalização de empréstimos bancários, celebração de contratos em geral, interação entre pessoas que exija algum grau de sigilo etc. A assinatura avançada pode ser feita a partir da validação de documentos oficiais, biometria (impressão digital, reconhecimento facial, leitura do olho, análise de voz) ou login seguro em plataformas digitais ou outros métodos que comprovem sua identidade de maneira confiável. Com o advento do provimento do IERI-e, a assinatura eletrônica avançada passa a poder ser empregada no procedimento de retificação de área perante o registro de imóveis, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário. Por fim, a mais segura de todas as formas digitais de subscrição é a assinatura eletrônica qualificada, a qual utiliza um certificado digital emitido por uma autoridade certificadora credenciada pelo ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, conforme o padrão da ICP-Brasil. Se diferencia das assinaturas simples e avançada porque utiliza uma criptografia assimétrica com chave privada e pública, gerando uma segurança reforçada e sendo sua autenticidade facilmente verificável. A assinatura eletrônica qualificada sempre poderá ser utilizada em qualquer procedimento no registro de imóveis. Exemplificativamente, constitui assinatura avançada que pode ser utilizada nos procedimentos de retificação de área aquela realizada na plataforma do E-Notariado, pelo sistema e-Not Assina, mediante certificado digital notarizado, sendo que esta forma de subscrição se constitui na assinatura eletrônica avançada mais segura, visto que recebe também o reconhecimento de firma eletrônico perante tabelião de notas e, por isso, deve ser a firma digital mais incentivada pelos registradores de imóveis. Este tipo de assinatura, apesar de classificado como "assinatura avançada" (e não qualificada), por depender de videoconferência e análise humana por autoridade com fé pública pode ser considerado, inclusive, mais seguro do que a própria assinatura qualificada, que apenas exige token e senha eletrônica. De igual modo, a assinatura realizada pela plataforma Gov.Br trata-se também de assinatura avançada. Para fins especificamente de retificação de área, também poderá ser aceita pelo registro imobiliário, desde que verificada a sua autenticidade pelo sítio eletrônico oficial do governo Federal. Para poder realizar a assinatura eletrônica no portal único GOV.BR, o usuário deve estar qualificado como nível prata ou ouro. O nível bronze não tem acesso ao serviço de assinatura eletrônica da plataforma de assinaturas do governo Federal.5 Por analogia a outras normas aplicáveis ao registro de imóveis, como aquela que trata das assinaturas eletrônicas nas cédulas de crédito, compete ao registrador de imóveis ter especial cuidado com assinaturas avançadas. Nestes casos, devem ser aceitas aquelas assinaturas eletrônicas em que seja possível verificar a autenticidade, sendo "garantida a identificação inequívoca de seu signatário" (art. 14, IX, 20, IX, 25, X, 27, VIII, 43, VIII, 48, XI, decreto-lei 167/1967; art. 3º, VIII e § 4º, lei 8.929/1994; e art. 29, § 5º, lei 10.931/04).6 Vale frisar que o provimento CNJ 195/25 trata especificamente sobre as formas de assinatura eletrônicas no procedimento de retificação de área, permitindo a assinatura qualificada e a assinatura avançada, devendo ser lido em conjunto com o disposto no art. 208 do CNN/CN/CNJ-Extra.7 O dispositivo em questão exige que se "comprove a autoria e integridade do arquivo" e que a recepção destes documentos pelos oficiais de registro de imóveis ocorra por meio, (i) preferencialmente, do Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos e dos sistemas que o integra (art. 208, II, alínea a); ou (ii) de sistema ou plataforma facultativamente mantidos nas serventias, desde que tenham sido produzidos por meios que permitam certeza quanto à autoria e integridade (art. 208, II, alínea b). Em atenção ao princípio da desburocratização, quando o protocolo for realizado fisicamente (no balcão do cartório), apresentando documentos em papel bem assim alguns documentos nato-digitais (como plantas e memoriais assinados eletronicamente pelo profissional ou carta de anuência assinada eletronicamente por confinante), poderão os documentos nativamente digitais ser enviados para a serventia por meio eletrônico, para análise da autenticidade das assinaturas, considerada cumprida a regra da alínea b do inc. II do art. 208 do Código Nacional de Normas. Desse modo, evita-se a criação de uma duplicidade de exigências de protocolo, evitando que parte da prenotação seja feita diretamente em cartório e outra parte pelas plataformas integrantes do Serp. ______________________ 1 Este é o terceiro artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 A assinatura eletrônica avançada pode ser utilizada nos registros públicos desde que tal hipótese esteja regulamentada pelo CNJ, conforme o art. 17, § 2º, da LRP ("Ato normativo da Corregedoria Nacional de Justiça possa estabelecer hipóteses de uso dessa assinatura em atos envolvendo imóveis"). Essa previsão foi incluída pela Lei nº 14.382, de 2022 (Lei do Serp). 3 O § 13 do art. 176 da LRP dispõe que "Para a identificação de que tratam os §§ 3º e 4º deste artigo, é dispensada a anuência dos confrontantes, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações". Após grande divergência sobre a interpretação a ser dada ao citado dispositivo legal, o qual fora incluído pela Lei n. 13.838, de 2019, o CNJ expediu a Recomendação n. 41/2019. Neste ato normativo o CNJ orientou os registradores de imóveis a dispensarem a anuência dos confrontantes apenas nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais. Desse modo, por interpretação a contrario sensu, para o procedimento de retificação de área não há dispensa da apresentação da anuência dos confrontantes, aplicando-se o disposto no art. 213 da LRP. 4 Art. 17, LRP. [...] § 1º. O acesso ou o envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet, deverão ser assinados com o uso de assinatura avançada ou qualificada de que trata o art. 4º da Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (Incluído pela Lei n. 14.382, de 2022). 5 O registrador de imóveis ou seus prepostos podem submeter documentos assinados eletronicamente a verificação de sua autenticidade por meio de site oficial do governo criado com esse desiderato, acessando aqui, obtendo instantaneamente o status da assinatura ICP-Brasil, Gov.Br e outros. 6 Para assinatura via E-Notariado, deve-se acessar aqui. Assinatura por meio do Gov.Br, clique aqui. Assinatura pelas plataformas vinculadas ao Registro de Imóveis, clique aqui ou acesse aqui. 7 O art. 208 do Código Nacional de Normas teve sua redação dada pelo Prov. CNJ 180/2024, que estabeleceu o regramento para a recepção dos títulos nato-digitais e digitalizados para o registro de imóveis e demais serventias. Esse regramento, vale lembrar, já tinha previsão anterior específica para o registro de imóveis a partir do Prov. CNJ 94/2020, editado em razão da dificuldade de atendimento presencial por conta da pandemia da Covid-19.
A tokenização é a Hidra de Lerna dos registros públicos. A cada golpe contra suas cabeças, duas novas despontam, multiplicando problemas e tornando o monstro terrivelmente ameaçador. Questões mal resolvidas se amplificam, os desafios se intensificam. Para muitos, as novas tecnologias são as faces de um monstro cuja cabeça imortal resiste a qualquer rochedo regulatório. O mito de Héracles revela Iolaus, seu sobrinho, que cauteriza os pescoços cortados da serpe com um archote. Isso demonstra que o herói não vence sozinho a batalha, mas conta com a colaboração de aliados. Armado com a espada da razão e escorado na intuição - simbolizada pelo fogo que impede a duplicação da cabeça da hidra -, Héracles doma seus impulsos disruptivos. As novas tecnologias são como os frutos da Matrix Generatrix, na nossa metáfora Echidna, que unida a Tifão gera monstros como a Hidra de Lerna. Na IA - Inteligência Artificial, cada token processado gera ramificações em redes neurais, como novas cabeças que se multiplicam. Na blockchain, cada bloco - como um "ovo viperino no útero de silício", nas palavras do dr. Ermitânio Prado - dá à luz novos monstros desafiadores. A caverna de Echidna é o ecossistema tech, fértil em desafios, mas igualmente rico em oportunidades para a reinvenção. As resistências que se antepõem às investidas acabam por gerar forks e novos elos se formam, novas cabeças se alevantam. Ao homem cabe lutar e vencer cada desafio, sabendo-se que, mesmo dominando uma nova tecnologia, outras emergirão neste caldo de cultura, em ritmo cada vez mais rápido, motivado pela "lei dos retornos acelerados" (Kurzweil). Apresento aqui, caro leitor, uma despretensiosa incursão ensaística sobre os problemas que afligem a classe dos registradores. Como outrora, os grandes desafios foram vencidos pela inteligência e argúcia de nossos maiores. As novas tecnologias oferecem a oportunidade renovada de lutar o bom combate e de superar os novos obstáculos. Somente poderemos superar a IA com a IH - Inteligência Humana, que tem por aliada a intuição, a tocha luzidia do espírito. Nada de novo no front A lei 6.015/1973 é tributária de leis e regulamentos que foram criados no século XIX. O sistema registral foi pensado para regular fundamentalmente relações lineares e singulares - comprador/vendedor, credor/devedor etc. Não foi concebido para dar suporte a operações jurídicas complexas e que ocorrem em massa na instantaneidade das redes eletrônicas. Os ativos baseados em direitos imobiliários combinam-se e integram blocos que podem ser alienados, total ou parcialmente, onerados, dados em garantia, tudo na velocidade da luz. O acelerado processo econômico de intercâmbios e transações, realizados por meios eletrônicos, pressupõe a existência de mecanismos de registro adaptados para esta nova realidade. A nota característica dos tempos modernos é que os registros devem conformar-se à lógica dos meios digitais, sem o sacrifício de sua essência. Afinal, the medium is the message. Os gaps e conflitos que pululam feito pulgas no picadeiro tecnológico não são somente jurídicos. Lafayette já indicava que a legislação hipotecária havia nascido e desenvolvido sob a ação de ideias econômicas, mais do que sob os "ditames da razão jurídica". A reforma decimonômica visou precipuamente desenvolver, fortificar e multiplicar o crédito territorial (Direito das Cousas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacyntho Ribeiro dos Santos, s. d., p. 451). O regime hipotecário do século XIX acabou por sacrificar, em certa medida, o elemento jurídico em pontos da maior importância (Idem, ibidem, p. 408). Certamente, ele se referia ao complexo sistema de publicidade hipotecária, nascido antes mesmo da codificação civil, que ainda tardaria várias décadas. Cédulas de crédito, securitização de ativos imobilliários, fundos de investimento, tokenização... Enfim, talvez estejamos diante de fenômenos disruptivos que, uma vez mais, hão de transformar o próprio sistema registral pátrio, convocando os juristas para uma competente "análise jurídica da economia", enfrentando os mitos da eficiência a todo custo, apregoados pelos chato-boys do mercado, parafraseando Oswald de Andrade. NFT, cessão fiduciária, e os riscos sistêmicos O mercado sempre precifica os riscos e busca soluções para enfrentar suas crises. O MERS - Mortgage Electronic Registration Systems sofreu com o colapso hipotecário do subprime (2007-2008), mas sobreviveu e se reestruturou, reforçou seus protocolos de compliance e passou a ter um uso mais restrito, é verdade, mas ainda se acha bem plantado no cenário norte-americano. O risco de as atividades próprias de registradores serem absorvidas por outros agentes - ou pelo próprio mercado - é sempre presente e atual. O registro das alienações fiduciárias de veículos automotores, por exemplo, foi absorvido por um registro administrativo (Detran). O registro das garantias no RTD ostentava o caráter constitutivo, essencial para gerar plena eficácia da garantia real (Moreira Alves). Entretanto, nenhum rigor jurídico importou muito para deter a vaza reformista. O registro em RTD foi considerado uma "odiosa imposição", nas duras palavras do ministro Luiz Fux. Segundo ele, o registro afrontaria o princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel art. 1.361 do CC" (STJ REsp 686.932-PR, j. 1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX). Daí a consagrar-se no STF a constitucionalidade do dispositivo foi um pulo. Dar-se-ia, a partir de então, como constituída a propriedade fiduciária de veículos com o mero registro do contrato de garantia na repartição administrativa competente para o licenciamento do bem (STF RE 611.639- RJ, j. 21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO). Aliás, o RENAVAM - Registro Nacional de Veículos Automotores é um registro público, estatal, obrigatório e vinculado ao poder de polícia administrativa (CTB - lei 9.503/ 1997). Nele se registra a propriedade do veículo, com sua especialidade e histórico (continuidade). Mas calha perguntar: e as garantias reais? Onde são registradas? No RENAGRAV (Registro Nacional de Gravames), como previsto na resolução 689, de 27/9/2017, baixada pelo CONTRAN. Entretanto, a resolução CONTRAN 1.016, de 11/12/2024 (que atualiza a res. 807/20) previu que os contratos de alienação fiduciária deveriam ser "obrigatoriamente registrados no órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal por meio de empresa registradora de contrato especializada, credenciada" (art. 8º). As empresas registradoras recebem o credenciamento para realização de tarefas operacionais (transmissão de dados, monitoramento de contratos para empresas privadas sob controle público). Na prática o registro de gravames é feito por empresas privadas. Eis uma nova modalidade de privatização light... É preciso destacar a diferença entre a alteração legislativa ocorrida no caso de alienações fiduciárias registradas no RTD e a que se refere ao registro imobiliário (competência circunscricional). Em relação aos veículos automotores, havia uma dispersão do locus registral. Sabemos que a transmissão de bens móveis se dá pela tradição (art. 1.226 do CC) e o instrumento de garantia de bens móveis deveria ser inscrito nos RTDs do domicílio das partes (art. 130 da LRP). A lei promoveu a concentração dessas competências no âmbito do Detran, à míngua de um sistema eficiente do próprio RTD à época (hoje seria possível no âmbito do ONRTDPJ, mas esta solução lamentavelmente tardou). Mesmo as chamadas entidades registradoras (BCB) funcionam em regime de interoperabilidade (circulares BCB 3.953, de 10/7/2019 e 3.968, de 31/10/2019). O risco que o Registro de Imóveis brasileiro corre é justamente reduzir-se à tarefa de constituição do direito de propriedade, dando ocasião a uma espécie de "comoditização" de inscrições que servirá de base para a constituição, alhures, de garantias reais. Há indícios de descolamento progressivo das garantias reais (e sua circulação por meio de cessões fiduciárias) trespassadas dos ofícios prediais para entidades registradoras. Eu havia provocado a reflexão dos registradores no artigo A inconstitucionalidade dos meteoros1, a propósito da resolução BACEN 4.088, de 24/5/2012, que dispôs acerca do "registro de informações referentes às garantias constituídas sobre veículos automotores e imóveis relativas a operações de crédito, bem como de informações referentes à propriedade de veículos automotores objeto de operações de arrendamento mercantil". A tokenização pode vir a ser um registro que mantém a âncora na propriedade registrada no RI, enquanto navega como ativos infungíveis nativos em plataformas eletrônicas privadas, como veremos logo abaixo na experiência do Rio Grande. Blockchain e Smart Contracts - desafios à segurança jurídica? A BC - blockchain é uma ferramenta útil para conferir maior segurança ao sistema registral. Na especificação do SREI, lá pelos idos de 2011-2012 (LSITEC-CNJ), antevíamos o uso da BC para registro encadeado de transações eletrônicas no processo do SREI. O elegante modelo acha-se especificado na documentação técnica publicada. No ano de 2016, em São Paulo, o IRIB realizou o encontro para debater especificamente o tema da blockchain como ferramenta do registro imobiliário, publicando, já no ano seguinte, a IPRA-CINDER International Review (jan./jun 2017) Posteriormente, no IRIB, seria criado o portal de editais on line, onde as edições eram registradas em BC. Penso que foi a primeira iniciativa do gênero no âmbito das notas e registros públicos. É uma ferramenta com enorme potencial para agregar maior segurança às transações eletrônicas que se sucedem na cadeia registral do SREI. Acha-se bem documentado que a BC pode ser uma ferramenta útil e segura para o Registro de Imóveis. Já os smart contracts (contratos inteligentes) - modalidades de programas ou protocolos digitais autônomos que operam em uma BC -, ele permitem a execução automática, transparente e segura de contratos sem a necessidade de intermediários. Aqui reside o busílis. Nos modelos tradicionais, as transações imobiliárias eram instrumentalizadas pelos notários e registradas no Registro de Imóveis. O Registrador, profissional do direito, examinava o título, conferia sua congruência com a ordem legal (princípio da legalidade), confrontava o título com os antecedentes registrais (continuidade), para, ao final, determinar o registro, fruto de uma diligência de caráter jurídico. Ao exercer esta atividade "de qualificação registral", o registrador funcionava como oráculo - ou gatekeeper - na ponte que liga o originador do instrumento (notário, em regra) ao Registro Imobiliário. Ocorre que, com a universalização dos extratos, ressuscitados com a reforma de 2022, tais artefatos desafiam, de fato, os registradores. Criados à imagem e semelhança dos formulários da lei modelo da UNCITRAL sobre garantias (Notice Registration), a possibilidade de decaimento - de um registro de caráter jurídico para mero cadastro administrativo - é um risco. O "oráculo", que defere e sanciona a passagem do ativo para os domínios onchain, pode ser uma IA, ou simplesmente o resultado de processos eletrônicos de automação com base em algoritmos especializados. Processos que podem ser totalmente despersonalizados. Preenchidos os campos dos formulários estereotipados, expedido o extrato pelas infovias, o seu processamento pode ser fácil e instantaneamente executado, dispensando qualquer modalidade de intervenção humana, exame de legalidade e validade da titulação. O registro de imóveis poderá fazer-se "por indicação", como ocorre com o protesto de alguns títulos. Nesse cenário, as novas tecnologias realmente desafiam os registros públicos. Entretanto, elas podem, igualmente, representar um obstáculo a ser superado pelos próprios registradores, como tem sido, por exemplo, com os notários, que admiravelmente se reinventaram para sobreviver no ecossistema digital. Não se pode cair no pessimismo reacionário, paralisando-se pela neofobia, nem excitar-se pelos fetiches tecnológicos. É necessário inteligência e estratégia para enfrentar as ondas disruptivas da modernidade. O ONR e a digitalização dos cartórios O sistema registral brasileiro compõe-se de uma malha que cobre mais de dez mil registradores espalhados por todo o Brasil. São cartórios com níveis diferenciados de digitalização. A criação do ONR foi pensada visando enfrentar e resolver as assimetrias verificadas nas inspeções que realizamos em vários estados da federação integrando as comissões do CNJ. Como modernizar serventias que não contam com recursos mínimos para manter um nível modesto de informatização? Há cartórios que realizam os registros em livros manuscritos, ou serventias que padecem pela falta de energia elétrica durante o dia. O ONR foi concebido para ser a solução, oferecendo a infraestrutura tecnológica que poderá ser compartilhada pelos registradores brasileiros, de norte a sul, independentemente de sua renda e porte. A digitalização da sociedade - fenômeno que se verifica em escala mundial - não deixará de impactar os serviços registrais brasileiros. A Decisão (UE) 2022/2481 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/12/2022, estabelece o Programa de Política da Década Digital 2030 que prevê a digitalização dos serviços públicos, de modo que 100% dos serviços essenciais deverão ser prestados eletronicamente, com acesso e interação pelas plataformas digitais, com o uso de meios de sistemas de identificação pessoal eletrônica (eID) seguros e reconhecidos em toda a União Europeia. É preciso avançar. Especificamente acerca da tokenização, não basta que se crie a infraestrutura tecnológica - computadores, bancos de dados, blockchain, técnicos, analistas etc. É necessário que se faça uma análise jurídica do modelo. Como conciliar segurança jurídica com rapidez e eficiência? Comecemos pelo começo? qual a natureza jurídica dos tokens? São títulos representativos de ativos infungíveis. Como serão registrados? Os registros serão regulados e fiscalizados pelo Poder Judiciário ou pela CVM, Banco Central ou Conselho Monetário Nacional? São criptoativos que se enquadram na categoria de bens e valores mobiliários? São dispostos e transacionados nos mercados de capitais? Necessita-se de um marco legal? O fenômeno de conversão de direitos de garantia em títulos representativos (como as cédulas de crédito) é bastante percebido por todos nós. Os créditos podem ser cedidos e carregam a propriedade fiduciária. É conhecida a figura de cessão de crédito garantido por direito real representado por CCI escritural; ela "está dispensada de averbação no Registro de Imóveis" (§ 2º do art. 22 da lei 10.931/04). Não há propriamente "qualificação" jurídica de impulsos eletrônicos que atualizam os registros de garantias nas entidades registradoras e de custódia. As CCI's, emitidas e averbadas no registro de imóveis (§ 5º do art. 18 da lei 10.931/04), a partir desse momento, libertam-se do registro de imóveis e vagam pelas plataformas eletrônicas exógenas que gravitam o sistema registral, retornando ao final, com a "certificação" privada da titularidade atualizada do crédito e da propriedade fiduciária. Por definição - e segurança de todo o sistema - a emissão de um token deve ser ancorada no Registro de Imóveis, instituição encarregada da criação, conservação, alteração, oneração, transmissão e extinção dos direitos de propriedade. Sem esta ancoragem, os criptoativos descolam-se irremediavelmente de seu lastro material e sujeitam-se aos azares do mercado - ou decantam-se em entidades registradoras. Sirva-nos de exemplo o fenômeno de expansão da securitização. Ela representa um sinal de alerta para o Registro de Imóveis. As iniciativas de acomodação imperfeita da figura do trust no sistema do direito civil brasileiro buscam a desintermediação financeira com a transferência de ativos (créditos ou recebíveis) de um originador para um VPE - veículo de propósito exclusivo, que emite títulos lastreados nesses ativos que são postos no mercado. Trata-se de um mecanismo para captar recursos de forma eficiente, dispersar riscos e mobilizar riquezas, renovando o Direito ao adaptar negócios jurídicos consolidados (Uinie Caminha). Cessão fiduciária de crédito, lastreada em direitos imobiliários, circulam e são registrados em entidades para-registrais. A previsão legal da averbação do Termo de Securitização de Créditos (parágrafo único do art. 10 da lei 9.514/1997) foi simplesmente extirpada do ordenamento jurídico pela lei 14.430/22. O sistema registral deve reinventar-se Semanticamente, um token significa simplesmente sinal, símbolo, prova. A matrícula pode ser considerada um token, no sentido de que a informatização das plataformas pode fazer nascer a representação digital da própria matrícula - um registro estruturado que consolida e atualiza a situação jurídica do bem em tempo real (Unger/Jacomino). Poder-se-ia convertê-la num NFT registral - Non-fungible tokens, identificado de forma única e publicizado por meio de blockchain consorciada ou sindicalizada? Nesse modelo, não são os registros individualmente considerados que se convertem em NFT, mas a própria matrícula, em seu estado depurado e atualizado, em tempo real, representação digital fidedigna da realidade jurídica do imóvel. Nesse caso, pergunta-se, a conversão da propriedade em um token promove a mutação da natureza da propriedade? A sorte do token, no dinamismo dos intercâmbios eletrônicos, divorcia-se do lastro estático dos direitos inscritos? Esta cisão precisa ser bem pensada estruturada, sob pena de criar um "esquizoregistro". Nesse cenário, a compra e venda de um imóvel "tokenizado" representa uma ruptura profunda no sistema de titulação afeiçoado ao sistema do direito civil. Sua adoção poderá representar uma mudança disruptiva, e sabemos que uma disrupção pode significar simplesmente destruição. A tokenização imobiliária é possível no Registro de Imóveis? Respondo afirmativamente. É preciso inteligência e perfeita compreensão dos fundamentos da publicidade jurídica, para que não nos percamos pela tentação da "administrativização" do chamado "registro de direitos" (ok, o sistema brasileiro é inscritivo de títulos), nem que as atividades nucleares do registro - adjudicação e atribuição de direitos reais - possam ser absorvidas por empresas ou pela própria administração. Modelos teóricos e implementações tecnológicas já existem e devem ser conhecidas pelos registradores. Desde as Colored Coins, que coloriam (marcavam) moedas para representar ativos únicos (propriedades, ações), até a sua popularização com o Ethereum, que introduziu o padrão ERC-7213, permitindo tokens únicos e não intercambiáveis, muitas discussões ocorreram. Desde então, não faltam projetos que ambicionam o mercado nascente, transformando os bens e seus direitos em ativos infungíveis negociados em plataformas eletrônicas. Quando achávamo-nos no Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR, propusemos um modelo de registro de emissão e averbação de cessões sucessivas até o cancelamento da garantia em plataforma compartilhada do ONR, tudo de forma eletrônica. O modelo previa o controle das mutações realizado por cada unidade de registro em operação direta na plataforma compartilhada do SREI, o que diferia dos modelos de "centrais de gravames" que foram tentadas, mas debalde. O projeto ficou nas discussões preliminares, mas podem ser retomadas. Há um sem-número de atividades que podem ser exploradas, tendo por base uma plataforma rápida, eficiente e segura, a cargo do ONR. No ambiente compartilhado, podem ser lançadas âncoras para lastrear várias operações blockchain-backed. Preservação de bens históricos, com a transferência tokenizada de potencial construtivo, tokenização de precatórios, captação de recursos no mercado para financiamento de aquisição de bens imóveis, controle de locações temporárias (Airbnb), uso de contratos inteligentes para automatizar aluguéis, incluindo pagamentos recorrentes, depósito de garantias e resolução de disputas etc. As inúmeras possibilidades que se abrem com a difusão das plataformas digitais, que propiciam negócios inovadores, requerem um suporte registral seguro e eficiente. Com a miríade de oportunidades, vêm, igualmente, os riscos e eles são conhecidos na literatura especializada. É preciso conhecê-los, para não incorrer nos mesmos erros. CGJRS, COFECI e CGJSC - ventanias e vendavais - exemplos práticos a) Rio Grande na vanguarda Iniciativas como a do Rio Grande do Sul (provimento CGJRS 38/21) mostraram-se notoriamente defectivas. Registra-se a permuta de determinado bem imóvel por um token não fungível (NFT). O imóvel passa a integrar o patrimônio da denominada tokenizadora, mas sem qualquer mecanismo de afetação ou segregação patrimonial. O titular do NFT pode aliená-lo, é certo, mas não haverá atualização da situação jurídica no Registro de Imóveis, de modo que o token "desgarra-se" do lastro (matrícula) e vaga em repositórios privados sem controle registral ou supervisão de autoridades do mercado. A propriedade segue a sorte da tokenizadora, sem afetação ou blindagem satisfatórias, sujeitando-se às vicissitudes  e intercorrências que podem afetar os direitos inscritos. Os próprios registradores, em nota conjunta de diretoria 6/21 (Fórum de Presidentes das Entidades Notariais e Registrais do Estado do RS), apressaram-se em esclarecer que a permuta "não representa direitos sobre o imóvel permutado, seja no momento da permuta ou após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato." Caberia então indagar: qual o sentido de se qualificar esta operação como de "tokenização"? b) COFECI - Resolução COFECI 1.551/25 O COFECI baixou a resolução COFECI 1.551/25 (DOU 15/8/25) instituindo o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais. Essa norma regulamenta a tokenização imobiliária no Brasil, criando um marco para a emissão, negociação e custódia de TID - Tokens Imobiliários Digitais, que representam DIT - Direitos Imobiliários Tokenizados vinculados a imóveis. O TID funciona como representação digital única (NFT focado em direitos imobiliários) em blockchains ou tecnologias de registro distribuído (DLT), permitindo transações como transferência, oneração ou fracionamento de direitos sobre imóveis. Chega a ser admirável que o COFECI aventure-se por estas plagas. A lei 6.530/1978 diz que a ele compete disciplinar e fiscalizar a profissão de Corretor de Imóveis em todo o território nacional (art. 5º). Por outro lado, a atividade própria dos corretores (e de seus órgãos) cinge-se a "intermediação na compra, venda, permuta e locação de imóveis, podendo, ainda, opinar quanto à comercialização imobiliária" (art. 3º). O COFECI evidentemente não tem competência constitucional ou legal para instituir subsistemas de registro imobiliário, invadindo a competência constitucional e legal dos Registros Públicos (art. 236 cc. com inc. I do art. 22 da CF/1988 e lei 8.935/1994). Tampouco pode autoproclamar-se dotado de poderes para criar e gerir tal sistema - pelas repercussões gravosas pela dissociação dos registros legais e a tokenização. Nem pode atrair o poder normativo para conferir validade e eficácia jurídica aos atos e negócios jurídicos da tokenização. Evidentemente, a função normativa do COFECI não pode ultrapassar os limites da realização dos objetivos institucionais da profissão regulamentada (inc. III do art. 10 do decreto 81.871/1978). O problema se nota nitidamente quando se verifica que o sistema proposto extrapola os limites conceituais da própria intermediação imobiliária. A lei 6.530/1978 confere ao COFECI competência para regular a intermediação, atividade que pressupõe uma relação triangular entre adquirente, transmitente e corretor, sem que este último jamais "detenha" a propriedade do bem intermediado. Contudo, a resolução institui figuras como o ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária, que exercerá suas funções "mediante a detenção da titularidade registral ou de garantia real sobre imóvel" (art. 24, § 1º), autorizando as plataformas a atuarem como contrapartes diretas nas transações (art. 22). Tais atividades não são típicas figuras de intermediação no sentido técnico-jurídico, mas operações financeiras e fiduciárias que demandam titularidade dominial ou real, extrapolando, manifestamente, a competência regulatória originária do Sistema COFECI-CRECI, adentrando a seara própria de órgãos reguladores. Para os propósitos destas pequenas digressões, e em linhas muito gerais, os principais órgãos do Sistema COFECI estruturam-se assim: SGR - Sistema de Governança e Registro. Hub central e repositório oficial do ecossistema (art. 110), encarregado de armazenar e publicizar as transações realizadas e os gravames já constituídos nas PITDs, garantindo interoperabilidade entre subsistemas, com geração de hash e timestamp oficiais, e sempre sem prejuízo de outros registros legalmente exigidos. PITDs - Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais. São responsáveis pela formalização das transações digitais (art. 75) e pelo registro/controle de gravames (arts. 80-84), com comunicação obrigatória ao SGR. ACGIs - Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária. Estruturas que podem deter titularidade registral ou garantia real (§ 1º do art. 24; art. 55), a fim de assegurar a correspondência e exigibilidade dos direitos tokenizados. Acerca das ACGIs, desponta uma contradição funcional insuperável. A resolução estabelece que a função essencial do ACGI será exercida mediante a "detenção da titularidade registral ou de garantia real" sobre imóvel (§ 1º do art. 24). A fórmula é tecnicamente infeliz. No direito civil, detenção (art. 1.198 CC) é a situação de quem conserva a coisa em nome de outrem, sem animus domini; já a titularidade registral corresponde à propriedade tabular (art. 1.245 CC). Falar em "detenção da titularidade registral" soa, na melhor das hipóteses, contraditório. O dispositivo parece abranger duas hipóteses: o ACGI como proprietário inscrito no RI ou como titular de garantia real (hipoteca, AF, anticrese etc.). Em qualquer caso, o investidor-tokenista não figura na matrícula, reduzido a titular de um direito derivado. A titularidade, na hipótese, é de um intermediário. Como alguém "detém" um direito de propriedade ou de garantia real? Como a figura da detenção de um direito real de garantia pode figurar no ecossistema da corretagem? O descolamento entre titularidade econômica e titularidade tabular gera a aparência enganosa de que o token equivaleria à propriedade, quando apenas o registro na matrícula é constitutivo e conservativo do direito real. De outro lado, os resultados esperados das operações são: 1) DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados. Conjunto de direitos incidentes sobre bem imóvel determinado, de natureza real ou obrigacional, passíveis de representação digital por TIDs e de transação em PITD credenciada 2) TIDs - Token Imobiliário Digital: Representação digital de DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados, emitida e registrada em blockchain ou tecnologia de registro distribuído (DLT) compatível, vinculada a imóvel determinado e, sendo o caso, a um ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária; Um aspecto particularmente sensível da resolução é a previsão de auto custódia de TIDs pelo próprio titular, mediante termo de ciência dos riscos (art. 44). Essa figura rompe a trilha probatória entre chave privada do bloco e matrícula, enfraquecendo o vínculo que dá segurança jurídica à tokenização. Além disso, a resolução tem vigência prevista para a primeira metade de outubro de 2025, 60 dias após sua publicação no DOU. Esse intervalo será crucial para que o debate institucional - sobretudo com CNJ, IRIB, ONR, Bacen e CVM - avalie os limites da competência normativa do COFECI e defina como o novo ecossistema se articulará com o Registro de Imóveis. À parte o exposto, o aspecto relevante é a maneira como ocorre a amarração dos NFT's onchain com os direitos reais legalmente constituídos offchain. Os efeitos jurídicos colimados na plataforma COFECI têm "natureza mediata ou indireta sobre o ativo imobiliário subjacente ou sobre os direitos reais a ele inerentes", de "conformidade com a legislação de registros públicos e demais normas aplicáveis" (art. 54). Isto significa que a plataforma depende de protocolos de interoperabilidade com o sistema registral, de modo a permitir o contínuo monitoramento do sistema (oversight), pois a higidez do token acha-se na dependência da validade e eficácia do direito representado. Como já dissemos, a plataforma criada pelo COFECI não representa uma extraordinária novidade, pois isto já ocorre com a plataformização de títulos emitidos no processo de securitização e emissão das cédulas de crédito, registrados em sistemas de custódia e registro criados e fiscalizados pelas autoridades do BCB. O calcanhar de Aquiles é a coordenação entre o token e os direitos legalmente constituídos. Amiúde encontramos a expressão "ativo imobiliário subjacente", a referir-se ao lastro registral. O bem imóvel que fundamenta a operação de tokenização deve ter suas informações apresentadas de forma organizada, incluindo dados completos sobre suas características físicas (especialidade objetiva) e outros elementos, além do número da matrícula no Registro de Imóveis. Deve atualizar a situação jurídica, em tempo real, revelando a ocorrência de eventuais ônus, encargos, restrições que gravem o bem imóvel, elementos que podem afetar diretamente os direitos tokenizados e inocular o germe da insegurança jurídica no sistema. A duplicidade de sistemas criada pela resolução produz um efeito que só pode ser descrito como um registro esquizóide: de um lado, a matrícula, eixo da fé pública imobiliária (CF, art. 236; CC, art. 1.245); de outro, o SGR, que funciona mais como peça de marketing do que como verdadeiro registro. É nesse terreno que vicejam os slogans sedutores, como o de que "o token é o imóvel", fórmula enganadora que mascara a realidadejurídica. O risco não é apenas conceitual: ao propagar a ilusão de equivalência entre matrícula e token, o sistema compromete o capital simbólico da fé pública registral, sem oferecer qualquer acréscimo efetivo à segurança jurídica do mercado imobiliário. Nada impede que o COFECI discipline a circulação de direitos de caráter obrigacional relativos a bens imóveis, cuja existência independe do registro. O problema é bem outro: a Resolução, ao estruturar um sistema de custódia e publicidade, pode induzir à equipolência entre o token e a propriedade registral, como se fossem equivalentes. Esse slogan pode ser sedutor, mas enganador. Sem o registro na matrícula, nenhum direito real nasce ou se transmite (art. 1.245 do CC). O risco é de caráter sociológico e mercadológico: criar no imaginário coletivo a ideia de que a titularidade digital bastaria, quando apenas o Registro de Imóveis pode constituir os direitos e assegurar sua plena eficácia erga omnes. O Sistema de Governança e Registro deve garantir que as informações fornecidas sejam sempre uniformes e confiáveis, pois a estrutura jurídica de tokenização deverá "assegurar, por mecanismos juridicamente idôneos, a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados pelo TID em relação ao ativo imobiliário subjacente" (art. 55). Quais serão estes mecanismos "idôneos" e "confiáveis" que garantirão a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados no token em relação aos ativos registrados? Em suma, o sistema não trespassa e nem suprime o sistema registral, nem busca a simples concorrência, mas cria um regime de gestão de ativos que se assentam sobre direitos legalmente constituídos, sem um claro liame que dê substância ao sistema, como um viaduto no ar, sem sustentação. A ambição do COFECI foi candidamente reconhecida por seu presidente: "O SGR - Sistema Eletrônico de Governança e Registro de Contratos foi idealizado a fim de tornar digitais as vistorias de imóveis e as ações fiscais. Entretanto, em face da novíssima lei 14.382/22, que cria o SERPE [hilária a confusão] - Sistema Eletrônico Unificado de Registros Públicos, considerando a condição de Autarquia Federal e a fé pública, conferidas por lei ao Sistema Cofeci-Creci, decidimos elevar o SGR à condição de Sistema Registrador de contratos e documentos em geral, oferecido a baixíssimo custo a todos os corretores e imobiliárias do Brasil". Ou seja: o SERPE [sic] é um órgão centralizado, "uno e funcional", barato e acessível.4 Este fenômeno não é uma novidade. Iniciativas como o COFECI despontam no cenário porque oportunizam a realização de transações que os meios tradicionais do registro até agora não permitiram. É óbvio que melhor para toda a sociedade seria que esta complexa estrutura estivesse a cargo dos próprios registradores imobiliários, por meio do seu ONR. Os registradores podem (e devem) criar plataformas inteligentes para assimilar os impulsos da sociedade digitalizada e dar-lhes solução satisfatória. c) CGJSC - cautela e canja de galinha Andou muito bem a CGJSC ao proibir operações que tais envolvendo os cartórios de registro de imóveis, muito embora a resolução 1.551/25 prescinda da inscrição da ancoragem por meio de permuta, como no Rio Grande do Sul. A pedido dos registradores do Estado, a Corregedoria estadual, por meio do provimento CGJSC 43/25 (circular CGJ 410/25), vedou expressamente praticar atos (averbação ou registro) que vinculem a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain, ou qualquer outro instrumento extrarregistral, com ou sem pretensão de representar a titularidade dominial. A decisão fundamentou-se na necessidade de preservação da segurança jurídica registral, da fé pública e do sistema único e oficial de publicidade imobiliária. Os problemas antevistos de fato representam riscos à segurança jurídica, ruptura da cadeia dominial, evasão fiscal, lavagem de dinheiro, multiplicidade de titularidades e erosão da função pública notarial e registral. Década da plataformização do Registro de Imóveis Desde o ano de 2012, vimos nos dedicando à reforma do sistema registral, buscando dotá-lo de meios para acolher e dar respostas efetivas a demandas da sociedade em passo de progressiva digitalização. Os novos meios digitais descerram um amplo espaço para realização de negócios jurídicos que eram impensáveis nas plataformas e media tradicionais. O sistema propugnado pelo COFECI é ambicioso e se aproveita de uma sentida lacuna nos sistemas de publicidade registral. O modelo é elegante, porém ainda frágil. Fornido com os melhores recursos tecnológicos, como time stamping e IA, falta-lhe, contudo, base legal e a confiança do mercado. Uma imagem impressiva do projeto seria a conhecida passagem de Daniel: a cabeça é de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro, mas os pés são de barro. Uma década é muito tempo na perspectiva de uma época de transformações aceleradas. O tempo e o espaço no direito é um tema inquietante e que deveria entrar nas especulações dos juristas que lidam com os efeitos de certos atos e fatos jurídicos que projetam seus efeitos no tempo. As distâncias entre as freguesias e as comarcas do Império, vencidas no lombo de mulas, acarretava a dilação do tempo de registro das hipotecas (a figura da reserva de prioridade foi criada por essa razão). Hoje as transações eletrônicas são instantâneas e não conhecem os acidentes do caminho. Pequena conclusão As cabeças da Hidra de Lerna são expressões dos múltiplos vícios humanos - que, no nosso caso, representam os desafios impostos pela ambição tecnológica. Elas nos desafiam ao justo combate e à ação de superação pela atividade de regeneração. Aproveito o mote mitológico para finalizar com os desafios postos aos registradores. A Matrix Generatrix (Echidna) gera monstros como Cérbero, Quimera e a nossa Hidra de Lerna, entre outros. São imagens que representam os desafios cruciais da modernidade. A barreira legal-constitucional é frágil para lidar com a Matrix e com as adversidades e circunstâncias fortuitas da vida institucional. Um positivismo de resistência já não basta. Como na boutade deliciosa do Dr. Ermitânio Prado, não é possível proclamar, de modo pomposo e grandiloquente, a inconstitucionalidade de meteoros. É necessária ação transformadora e criativa. E o Registro de Imóveis tem virtude e história para vencer mais este desafio. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
Trata acerca da carta de anuência assinada pelos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 1º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo prov. CNJ 195/25 - provimento do IERI-e).1 Conforme § 1º do art. 440-AX do CN, "A declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados poderá ser realizada na planta, no memorial descritivo ou em instrumento apartado, observando o disposto no art. 220 do CC". Trata-se da normatização de algo que já ocorria na prática cartorária e que, justamente, tinha sua viabilidade jurídica no dispositivo do CC, o qual preceitua que "A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento" (art. 220). Uma leitura isolada do art. 213, inc. II, da LRP, no entanto, faria o intérprete pensar que somente seria válida a assinatura dos confrontantes anuentes "na planta e [no] memorial descritivo". Nada obstante, diante da dificuldade enfrentada pelos agrimensores e profissionais do ramo imobiliário em conseguir reunir em uma única planta ou memorial descritivo todas as assinaturas dos confrontantes, o entendimento prático de vários registradores de imóveis sempre foi o de possibilitar que se apresentasse documentos individuais assinados pelos respectivos confrontantes, instrumento apartado normalmente denominado de carta de anuência. Imagine-se a dificuldade de reunir em um único documento a colheita de assinatura de 20 ou 30 confrontantes de um grande imóvel rural. Não parece muito funcional nem conveniente levar uma planta para ser assinada ou então encaminhar a planta pelos correios ou por terceiros para dezenas de diferentes confinantes, diante do risco de extravio ou perecimento da planta, situação que poderia ensejar a dura tarefa de ter o requerente de solicitar novamente, aos vizinhos que já anuíram, nova aposição de suas firmas. Por esse motivo, andou bem a normativa do CNJ para considerar cumprido o requisito da anuência em quaisquer dos casos, podendo o requerente optar por apresentar uma planta assinada por todos os confrontantes, ou então um memorial descritivo assinado por eles, ou, ainda, cartas de anuência individuais destes confrontantes. Para além disso, nada obsta que se colha as anuências de forma mista: alguns dos confrontantes assinando diretamente na planta, outros no memorial descritivo e, se for o caso, outros ainda firmarem sua concordância com os limites divisórios da propriedade por carta de anuência. Em outras palavras, ao que parece fica a critério do interessado apresentar a anuência dos confrontantes de seu imóvel por qualquer dos meios (planta, memorial descritivo ou carta de anuência). Ademais, conquanto a literalidade da redação do art. 213, II, da LRP, como vimos, ditar expressamente que a assinatura dos confrontantes deve ser dada na planta "e" no memorial, seria uma exigência eivada de excessivo rigor e sem nenhum ganho para a segurança jurídica esse bis in idem procedimental. Se o confrontante assinou na planta, estará dispensado de assinar no memorial, e, vice-versa. Se assinou a carta de anuência, de igual modo, dispensado estará de assinar qualquer outra peça técnica para comprovar sua aquiescência com o procedimento de retificação. _______ 1 Este é o segundo artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/25, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um universo paralelo

Fragmentos autobiográficos, memorialística, lirismo, sensualidade, espanto diante da maravilhosa complexidade do viver, tudo cabe nesse universo paralelo ora partilhado com privilegiados leitores. De Sérgio Jacomino, tinha presente a sua condição de registrador de imóveis bem peculiar. Erudito, entranhado na tecnologia, visionário, formulador de propostas novas para esse território de tamanha importância para a segurança jurídica de um dos direitos fundamentais mais ambicionados: a propriedade imobiliária. Intuía que sua expertise nessa área reservada ao direito registral poderia conviver com outros interesses e aptidões. Só vim a descobrir que sua vocação se espraiava por infinitos labirintos da imaginação, ao ler "Sonhos de Szarkyon". É um livro que alia a pequenez física - 112 páginas, em dimensão reduzida - a um acervo imenso de conteúdo. Fragmentos autobiográficos, memorialística, lirismo, sensualidade, espanto diante da maravilhosa complexidade do viver, tudo cabe nesse universo paralelo ora partilhado com privilegiados leitores. Jacomino domina a magia do xadrez das palavras. Tem intimidade com as metáforas. Explora a analogia sonora entre verbetes e produz formulações originais. O que sugeriria uma gota de non sense, vai se converter em sedutor convite para perscrutar veredas novas. O livro começa com "Divagações", prossegue com "Sonhos" e "Vivências". O primeiro texto é sobre a morte: "Não há novidade alguma em extinguir-se, não é mesmo?...Novidade se faz entre os vivos, nós outros, que seguimos a dura peregrinação sobre a Terra dos Homens. Proclamamos a dor da perda e nos consolamos. Registramos em pesados livros a súbita sentença da vida: a Morte. Senhora eminente, soberana, pesa o cetro fatal sobre todos nós". A ceifadeira volta a surgir em "Vivências": "Matar-me podes, neste silêncio vazio de estrelas. Como a chama levada pelo vento, deito as cinzas de um frágil sinete, perene signo sob a planta de seus pés. Reduzir-me a pó, poderias. Mais do que isso, não". Todavia, a morte não é tudo: "Impermanência. De nós restará mais do que pó e cinzas. Belas poesias". Ele chega a citar "la loca de la casa", que era como Santo Agostinho chamava a imaginação. Dessa copiosa fonte jorram haicais: "O trem carrega os homens. Os sonhos tardam nostálgicos. Nos bancos da estação" ou "Evanescente, erras na tarde radiosa; onde erras que não erro?". Em "Silêncio", um exame de consciência: "A pergunta busca reexistir na resposta. Por que temos tantas respostas e escasseiam as perguntas? Não me responda o que não posso perguntar. Nem corresponda com o silêncio. Sejamos desiguais nas angústias. Sem perguntas. Nem respostas". O exercício extrajudicial é inspiração: "Fides publica. Ó fé pública, faca imolada. Jazes sem fio, falseada e acabada". São Paulo aparece, de forma devaneante, em Santo Amaro: "Capte-o! Vertedouro de águas profundas, consuma-o! o fim de todas as lágrimas é sempre o mar. Amar. Às vezes o encontro amaro. Amar santo. Santo Amaro, amassas e conformas o barro essencial deste jarro santo!". O texto "Uma menina cega" é tocante: "Uma menina cega. Sentei-me no assento reservado a idosos. À minha frente, bem à testa, diviso uma linda garota cega, com uma feição impassível, um rosto róseo, tranquilo, de linhas harmoniosas. Olho diretamente para seus olhos e ela começa a piscar. Como um quasar. Desvio os meus, tímido. Fecho-os e fixo o semblante da menina cega. Penso que podemos nos enxergar sob a densa escuridão. Algumas estações adiante, abro os olhos e não a vejo. Saiu tranquila, suave, silenciosamente. Imaginei que me endereçava um sorriso, a menina cega. Sorri em retribuição e segui minha jornada pensando em tudo que se pode ver com os olhos fechados". Sergio Jacomino tem os olhos bem abertos para o presente e o futuro do sistema registral imobiliário. Mas também consegue, ao fechá-los, ingressar no mistério fascinante daquele espaço que nos é dado percorrer em pensamento. Livre, sem amarras, aberto a combinações nem sempre autorizadas pelas fortes correntes da convenção, do respeito humano constrangedor, que tolhe a intenção de sermos como realmente somos. Partilhar conosco esse tesouro é testemunho de mais uma qualidade sua: a generosidade.
Analisa a exigência de abertura de nova matrícula após a retificação de área no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, caput, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo provimento CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e).1 A fim de padronizar e simplificar o procedimento de retificação de área em todos os cartórios de registro de imóveis brasileiros, o provimento CNJ 195/25 (Provimento do IERI-e)2 disciplinou a temática, tratando sobre aspectos relacionados à forma de anuência dos confrontantes, casos de dispensa destes confrontantes, desburocratização do procedimento em casos de retificação seguida de desdobro e unificação, dentre outros aspectos. Este trabalho tem por finalidade examinar as regras procedimentais da retificação de área dispostas no art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CN/CNN/CNJ-Extra), incluído pelo aludido provimento do CNJ.3 A averbação de retificação de área foi qualificada no ato normativo do CNJ como uma espécie de averbação de saneamento, isto é, uma averbação preliminar necessária para que na matrícula haja respeito aos princípios registrais da especialidade e da continuidade4. Conforme dispõe a primeira parte (in initio) do caput do art. 440-AX, "A averbação de retificação de área de imóveis urbanos e rurais será realizada na forma dos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973". Tal disposição normativa não inova em nenhum aspecto, mas apenas disciplina melhor as normas vigentes. Assim, deixa claro que as normas se aplicam tanto a imóveis urbanos como imóveis rurais e que o procedimento deve respeitar o disposto na lei de registros públicos. A segunda parte (in fine) do referido preceptivo é que traz uma questão interessante: o normativo deixa claro que após a realização da averbação de retificação de área, deve o registrador realizar, em sequência, a averbação de encerramento da matrícula retificada, para fazer a abertura da nova matrícula.  Tal passo-a-passo procedimental não é propriamente também uma novidade, visto que este itinerário de atos registrais já constava do decreto 4.449/01, o qual regulamenta o procedimento de certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, ao prever que "o memorial descritivo, que de qualquer modo possa alterar o registro, resultará numa nova matrícula com encerramento da matrícula anterior no serviço de registro de imóveis competente" (art. 9º, § 5º). Nada obstante, este regramento inserto no decreto presidencial, conquanto aplicável por analogia aos imóveis urbanos, regulava apenas os casos de retificação de área de imóveis rurais certificados no INCRA. A partir de agora, resta clara a padronização do procedimento de retificação de área, determinando o encerramento (com remissão da nova matrícula aberta) e abertura de nova matrícula (com remissão do registro anterior), seja para imóveis rurais, seja para imóveis urbanos. A regra de abertura de nova matrícula disposta pelo provimento do IERI-e tem evidente finalidade de dar melhor graficidade aos registros imobiliários, isto é, evitar matrículas com informações longas e de difícil compreensão. Assim, após a finalização do procedimento retificatório, a ideia é, em si, abrir uma "matrícula limpa", fazendo remissão ao registro anterior, e, se for o caso, transportando por averbação apenas os dados e ônus que estavam vigentes no momento da retificação de área. De outro lado, uma questão de prática cartorária que é digna de nota neste contexto são os casos de retificação de área protocoladas em conjunto com pedidos de desmembramento ou unificação (remembramento)5. A fim de evitar a criação indiscriminada de matrículas que "já nascem mortas" - pois, invariavelmente, serão encerradas com os desmembramentos ou unificação a serem realizados em seguida -, bem como para que não se tenha um retrabalho de encerrar, abrir e depois encerrar de novo a matrícula recém-criada e só então abrir as matrículas desmembradas ou a matrícula unificada, parece que o melhor caminho é fazer tudo na matrícula-matriz, encerrando a tábula registral uma única vez.  Em outras palavras, a técnica registral sugerida aos registradores de imóveis é de que, havendo pedido de retificação de área cumulado com desmembramento ou unificação, façam-se todos os atos na mesma matrícula, descerrando-se uma única vez a nova matrícula já com o resultado de todos os atos requeridos. Exemplo de retificação apresentada em conjunto com pedido de desmembramento: o imóvel X registrado na matrícula 1000 precisa ter sua área retificada e o proprietário solicita também o seu desmembramento em duas parcelas, realizando os protocolos necessários e juntando a respectiva documentação no registro de imóveis. Nesse caso, o registrador de imóveis fará as averbações de saneamento necessárias, inclusive a averbação de retificação de área e, mantendo vigente a matrícula originária, realizará nela as averbações de desmembramento solicitadas, só então encerrando a matrícula e abrindo as respectivas matrículas para os imóveis desmembrados. Exemplo de retificação de área apresentada em conjunto com pedido de unificação: o imóvel X registrado na matrícula 1000 e o imóvel Y registrado na matrícula 2000 precisam ter suas áreas retificadas e o proprietário solicita também a unificação desses dois imóveis contíguos para transformarem-se em um único imóvel, realizando os protocolos necessários e juntando a respectiva documentação no registro de imóveis. Nesse caso, o registrador de imóveis fará, em cada uma das matrículas, as averbações de saneamento necessárias, inclusive a averbação de retificação de área e, mantendo as matrículas originárias, realizará nelas as respectivas averbações de unificação, só então encerrando estas matrículas anteriores e abrindo a matrícula do imóvel já unificado. Importante consignar, ademais, que existem casos - muito mais comuns em imóveis rurais - em que a descrição precária da matrícula não permite realizar essas etapas ordinárias de primeiro fazer a averbação de retificação de área e em seguida a averbação de unificação. Tal situação ocorre especialmente nos casos de fazendas ou estâncias que surgiram da junção de vários imóveis, em geral há bastante tempo, não sendo possível descrever os imóveis originários em separado. Neste caso, será possível cumular em um único procedimento e, por consequência, em uma única averbação, a "retificação de área com unificação". Conforme ensina Eduardo Augusto:6 Nada impede que a retificação da descrição tabular do imóvel seja cumulada com o pedido de fusão de matrículas (unificação de imóveis), desde que as áreas sejam contínuas e que haja perfeita identidade de proprietários (mesmos titulares com mesmas frações em todas as matrículas que serão objeto de fusão).  Aliás, muitas vezes essa é a única forma viável para solucionar a questão. Isso se justifica, pois, em alguns casos, a retificação de uma pluralidade de imóveis, sem aceitar a sua fusão, poderá resultar em número de imóveis maior do que se fossem mantidos os registros originais. É o que acontece na retificação conjunta de duas matrículas que foram interceptadas, por exemplo, por duas ou mais rodovias. De duas matrículas iniciais poderão surgir três ou mais novos imóveis, dependendo da forma como o todo foi interceptado pela rodovia. [...]  Portanto, havendo segurança de que o levantamento abrange todos os títulos declarados (para evitar que nenhum tenha ficado de fora, produzindo efeitos sem qualquer lastro em área real), e que não esteja sendo incluída área não garantida pelos registros, basta abrir as novas matrículas e averbar, em cada uma das matrículas anteriores, o seu encerramento [...].  Nada impede a retificação conjunta de matrículas, principalmente se as divisas internas se apagaram com o tempo. Tratando-se de transcrições que representam um todo, certamente ninguém saberá dizer onde estariam essas antigas divisas. Exigir do engenheiro que minta é um despautério; exigir que ele arbitre é pura inutilidade. Portanto, nada melhor do que trabalhar com a realidade e com razoabilidade. Não havendo dúvidas de que os títulos do requerente abrangem a área apresentada na planta, a qualificação positiva será a única e a melhor saída.  Em suma, a decisão está inteiramente subordinada ao livre convencimento motivado do oficial registrador. E, para isso, a segurança jurídica, a prudência e a razoabilidade devem trabalhar juntas. Em síntese, diante do desaparecimento das divisas internas de imóveis ao longo do tempo, é plenamente possível e recomendável a retificação das matrículas em conjunto com a unificação. Nesses casos excepcionais, é, porém, prudente que o registrador exija um laudo técnico detalhando a situação, sem prejuízo de exigir outros elementos de prova, se necessário. Assim, se os títulos apresentados abrangem a área descrita na planta e não podem ser descritos individualmente, a aprovação do pedido de retificação conjunta é a solução mais adequada. Portanto, do disposto no caput do art. 440-AX do Provimento do IERI-e, podemos concluir que: (i) a regra é de que, após a retificação de área, deve-se encerrar a matrícula anterior e abrir uma matrícula nova, transportando os dados vigentes daquela para esta; e, (ii) pela melhor técnica registral, como exceção, se houver apresentação de protocolo de retificação de área com posterior desmembramento ou unificação (pedidos apresentados na mesma prenotação), sugere-se que não se encerre a matrícula anterior por conta da retificação de área - a fim de não criar uma matrícula natimorta, que será aberta para logo em seguida ser encerrada -, mas se conclua todos os atos na matrícula de origem (retificação e desmembramento ou retificação e unificação) para só então encerrar esta matrícula e abrir a nova ou as novas matrículas. Por fim, ainda deve o registrador imobiliário atentar-se para os casos de averbação cumulada de retificação com unificação, quando não for possível precisar as áreas dos imóveis originais, caso em que será necessário, excepcionalmente, fazer o ato retificatório e de fusão em um único ato registral, abrindo-se a respectiva matrícula após sua conclusão. _________________________ 1 Este é o primeiro artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 O Inventário Eletrônico Estatístico do Registro de Imóveis (IERI-e) é um procedimento destinado ao aprimoramento do controle da malha imobiliária brasileira, permitindo a coleta, organização e análise de dados provenientes dos 3.621 cartórios de registro de imóveis do país, com vistas a garantir maior segurança jurídica e transparência na governança de terras. O IERI-e, juntamente com o Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis (SIG-RI), passou a ser regulamentado nacionalmente pelo Provimento CNJ n. 195/2025, expedido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após amplo debate e consulta pública realizada entre abril e maio de 2024. A origem do IERI-e remonta à experiência prática que este articulista teve como interventor no Registro de Imóveis de Paratinga/BA, entre 2019 e 2020, quando, diante de graves problemas de sobreposição de áreas e fraudes fundiárias, houve a necessidade de desenvolver um "pré-protótipo" do procedimento que se tornaria o primeiro levantamento estatístico registral detalhado por município. Esse trabalho pioneiro resultou em um relatório circunstanciado encaminhado à Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça da Bahia, revelando milhares de irregularidades e servindo de referência inédita para a depuração do acervo cartorário. O sucesso dessa iniciativa motivou a replicação do procedimento nos municípios de Formosa do Rio Preto/BA e Santa Rita de Cássia/BA, no contexto da "Operação Faroeste", que investigava fraudes imobiliárias na região. Para institucionalizar e aprimorar o método, o CNJ criou, em 2020, o grupo de trabalho LIODS 16/2020, do qual o autor deste trabalho foi membro na qualidade de responsável pela elaboração da minuta do ato normativo e pela orientação técnica dos registradores envolvidos na força-tarefa de implementação do "protótipo" do IERI nesses municípios. Com a conclusão dos trabalhos do grupo LIODS/CNJ, o Tribunal de Justiça da Bahia regulamentou o procedimento em âmbito estadual, inicialmente pelo Provimento Conjunto CGJ/CCI nº 8/2021 e, posteriormente, ampliando sua aplicação por meio da Portaria Conjunta CGJ/CCI nº 1/2022. O IERI, como então era denominado, serviu de base para a minuta nacional do CNJ, cuja redação tive a oportunidade de escrever e aprimorar, participando ativamente de reuniões técnicas e debates interinstitucionais.  A relevância do IERI-e e do SIG-RI foi reconhecida por recomendações de organismos como a Transparência Internacional, pelo Enunciado 71 da Jornada de Direito Notarial e Registral e por deliberações do ENCOGE, que destacaram a importância da transparência e padronização de dados fundiários para o combate à grilagem e à insegurança jurídica. Em 2024, o CNJ promoveu consulta pública sobre a minuta do provimento nacional, incorporando sugestões da sociedade civil, órgãos públicos e especialistas. Finalmente, em 2025, foi expedido o Provimento CNJ n. 195/2025, estabelecendo a obrigatoriedade do IERI-e e do SIG-RI em todo o território nacional, consolidando um novo paradigma para a governança fundiária brasileira. Sobre o tema, ver nosso artigo científico: MALLMANN, Jean. Inventário Estatístico do Registro de Imóveis: levantamento dos dados das serventias imobiliárias brasileiras. Revista de Direito Imobiliário. v. 94. ano 46. p. 153-184. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2023a. 3 Art. 440-AX, CN/CNN/CNJ-Extra. A averbação de retificação de área de imóveis urbanos e rurais será realizada na forma dos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973, resultando em posterior averbação de encerramento da matrícula retificada e abertura de nova matrícula com a atual descrição e as devidas remissões recíprocas.  § 1º. A declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados poderá ser realizada na planta, no memorial descritivo ou em instrumento apartado, observando o disposto no art. 220 do Código Civil.  § 2º. As declarações apresentadas pelo proprietário, pelo profissional técnico e pelos confinantes deverão ser assinadas com firma reconhecida ou mediante assinatura eletrônica avançada ou qualificada.  § 3º. É dispensada a anuência do confinante: I - no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiverem sido certificados pelo Incra na forma do § 5º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e II - se o imóvel confrontante for bem público e consistir em: a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi.  § 4º. Havendo necessidade de retificação da área global do imóvel rural e tendo o requerente apresentado pedido concomitante de desmembramento, cujas poligonais desmembradas estejam georreferenciadas e certificadas no Incra, deverá o oficial, nesta ordem: I - realizar a averbação de retificação administrativa da área global; e II - posteriormente, realizar averbação de desmembramento, com posterior averbação de encerramento da matrícula anterior, abrindo tantas matrículas quantas forem as parcelas desmembradas.  § 5º. Na hipótese do § 4.º deste artigo, é dispensada a certificação pelo Incra da área global objeto do memorial descritivo (art. 176, § 5.º, da Lei n. 6.015/1973), desde que as parcelas desmembradas tenham sido certificadas pelo Incra e correspondam integralmente ao somatório da área global, conforme mapa e memorial descritivo elaborados por profissional técnico habilitado, caso em que os prazos de eficácia da prenotação em relação ao desmembramento ficarão suspensos enquanto o procedimento de retificação extrajudicial estiver em curso.  § 6º. Aplica-se à unificação ou fusão de imóveis, no que couber, a regra procedimental prevista nos §§ 4.º e 5.º deste artigo.  § 7º. O deferimento do pedido de retificação de área dependerá do cumprimento dos requisitos legais e do convencimento do oficial de registro de imóveis, na forma da Lei de Registros Públicos e da legislação processual.  § 8º. Em caso de indeferimento, deverá ser expedida nota devolutiva fundamentada na qual o oficial de registro de imóveis indicará as razões da formação de seu convencimento e, sempre que possível, informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais, podendo requisitar a apresentação de declarações, laudos, arquivos eletrônicos ou outros documentos complementares, especialmente, como meios de prova e de análise da conformidade dos trabalhos técnicos.  § 9º. Havendo indícios de grilagem de terras, fraude procedimental, declaração falsa ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, o oficial de registro comunicará o fato ao juízo competente e ao Ministério Público com as cópias dos documentos necessários à análise. 4 Art. 440-AS. Para a realização dos atos registrais de constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, bem como de direitos pessoais com eficácia real; de parcelamento do solo ou de unificação ou fusão; ou de instituição de condomínio; referentes a imóveis urbanos e rurais, deverá o oficial de registro exigir previamente para o saneamento dos elementos de especialidade objetiva e subjetiva omissos, ainda não noticiados ou incorretos na matrícula, as seguintes averbações: I - dos dados pessoais: quando faltar qualquer elemento de qualificação pessoal obrigatório do proprietário ou de titular de outro direito real ou pessoal ativo no registro imobiliário; II - das alterações de estado ou personalidade civil: quando, em relação ao proprietário ou ao titular de outro direito real ou pessoal ativo no registro imobiliário, tiver ocorrido casamento, separação, restabelecimento da sociedade conjugal, divórcio, constituição de união estável, dissolução ou restabelecimento, óbito, emancipação, interdição ou alteração de nacionalidade; III - da descrição do imóvel: a) nos imóveis urbanos, nos termos do art. 176, II, "3", "b", da Lei n. 6.015/1973 e art. 440-AQ, § 1.º, deste Código;  b) nos imóveis rurais, nos termos do art. 176, II, "3", "a", da Lei n. 6.015/1973 e art. 440-AQ, § 2.º, deste Código; IV - dos cadastros imobiliários obrigatórios, nos termos do art. 440-AQ, inciso IV, deste Código; e V - de retificação de área: quando não houver elementos mínimos de segurança quanto à descrição da área, formato da poligonal e/ou limites e confrontações, observado o disposto nos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973. 5 A Lei n. 6.015/73 - LRP utiliza o termo fusão para a união de matrículas e unificação para a junção de imóveis (KONNO, Alyne Yumi. Registro de imóveis: teoria e prática. São Paulo: Memória Jurídica, 2007). Ocorre que quando se faz uma unificação se fundem matrículas, abrindo uma nova, e a recíproca é verdadeira. Motivo pelo qual não há nenhum sentido prático em manter uma distinção entre esses termos técnicos. De sua vez, vale lembrar que a própria LRP também utiliza a expressão remembramento (art. 176, § 3º, replicado no Decreto n. 4.449/2002) como sinônimo de unificação de imóveis. Em nosso entendimento, todas essas palavras tratam do mesmo fenômeno jurídico, de modo que qualquer das terminologias (fusão, unificação e remembramento) pode ser empregada indistintamente. 6 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013, p. 396-398.
A mitologia tem em muito amparado o Direito. Narrativas milenares auxiliam na compreensão de temas até hoje complexos e que permeiam a sociedade em sua totalidade. A partir de Paul Veyne e por uma boa influência dos artigos da série "Crônicas da Lei e do Mito" publicados por Vinicius Quarelli na coluna Diário de Classe da Conjur, pretendo tecer algumas considerações a partir da mitologia para dialogar e desenvolver questões afetas ao Direito Registral Imobiliário, especialmente da qualificação registral. Paul Veyne e Pausânias: Uma breve genealogia dos mitos Veyne (1930-2022) foi um historiador francês que apresentou pontos de grande relevância em seu livro chamado "Os gregos acreditavam em seus mitos?" e que me parecem substantivas ao que pretendo aqui articular. Muito do que o autor constrói passa por contribuições da obra de Pausânias, geógrafo grego que escreveu um compilado de livros sobre a descrição da Grécia - cujo nome das obras é exatamente este -, o que é notável, considerando que "a Grécia que Pausânias tinha diante dos olhos mantinha ainda muitos tesouros de que o passo do tempo nos privou".1 O historiador antigo - como Pausânias - raramente cita suas fontes e, quando as faz, não é pelos mesmos motivos que nós atualmente as citamos. Naquele período, a história2 demonstrava que a credibilidade das narrativas eram chanceladas pelo tempo; as obras dos antigos eram pouco ou nada construídas com citações e mesmo assim a autoridade de seus autores não era questionada. Segundo Veyne, "[n]a maioria das vezes, Pausânias se contenta em dizer: "soube que.", ou "segundo meus informantes." e esses informantes ou exegetas eram tanto fontes escritas quanto informações dadas de viva voz por sacerdotes ou eruditos locais".3 Havia uma presunção de veracidade sobre aquilo que era narrado. Se supunha que a verdade era dita na medida em que aquele que contava a narrativa tinha predecessores, e esses predecessores tinham seus próprios predecessores, até chegar no primeiro deles que seria contemporâneo dos acontecimentos narrados.4 Veyne afirma que na Grécia, a história nasce da investigação - e não da controvérsia - haja vista que era objeto de descrição pelo autor o que foi constatado e dito nos meios geralmente bem informados.5 Aqui, a verdade não se opõe à ficção: esta é um subproduto daquela. Portanto, o mito é uma informação, uma espécie de conhecimento difuso; é uma narrativa anônima que podemos repetir, mas jamais sermos o autor. Comunicamos não o que vimos, mas aquilo que "se dizia" dos deuses e heróis, sempre em um discurso indireto.6 Veyne nos esclarece que não havia dúvida acerca dos mitos, mas também não acreditava-se neles como se acredita nas realidades que nos rodeiam. O autor auxilia nossa compreensão ao dizer que "[o] tempo e o espaço da mitologia eram secretamente heterogêneos aos nossos; o grego colocava os deuses no "céu", mas ficaria espantado se os visse no céu; e não ficaria menos espantado se o tomassem ao pé da letra no que diz respeito ao tempo e se lhe dissessem que Hefesto acabara de se casar ou que Atena envelhecera muito nos últimos anos. Ele teria "realizado" que, aos seus olhos, o tempo mítico tem apenas uma vaga analogia com a temporalidade cotidiana, mas também que uma espécie de letargia sempre o impedira de se dar conta dessa heterogeneidade. (...) [D]istinguimos tanto o limite dos séculos dos quais guardamos a lembrança quanto discernimos a linha que delimita o nosso campo visual. (...) As gerações heróicas estavam do outro lado desse horizonte, num outro mundo".7 (grifo nosso) Por exemplo, há uma explicação dada por Filocoro (quatro séculos antes de Pausânias) ao mito do Minotauro (o homem com cabeça de touro), demonstrando que sempre existe um núcleo autêntico na narrativa: ele afirmou ter recolhido do povo de Creta, os cretenses, uma tradição segundo a qual as crianças não eram devoradas pelo Minotauro, mas dadas como prêmio aos atletas vencedores de uma competição de ginástica; tal competição havia sido vencida por um homem cruel e muito forte que se chamava Touro.8 Deste modo, é correto dizer que podemos acreditar no mito e na história, mas não no lugar da história e nas mesmas condições que ela. A partir destas concepções, pretendo seguir com a proposta principal deste escrito. A qualificação registral imobiliária como Medusa O Direito, por si só e em cada uma de suas áreas de especialização, possui temas espinhosos, sensíveis, em certa medida petrificantes e, por motivos que serão expostos adiante, são relegados para um segundo plano, negligenciados e fadados ao não-enfrentamento. Se pensarmos nas inúmeras atividades desenvolvidas dentro de uma serventia registral, do balcão de atendimento ao protocolo, da qualificação ao registro, da digitalização a impressão dos atos, todas são igualmente essenciais para o funcionamento do serviço. Ocorre que uma em especial tem o escopo de outorgar ou obstar o registro dos direitos que se pretende inscrever a partir de uma documentação apresentada e demanda um inexorável aprofundamento por parte do delegatário: falo da qualificação registral, que tem sido objeto de um abandono acadêmico. Neste sentido, a qualificação se caracteriza como fase central do processo de registro de direitos9 e se posiciona, inequivocadamente, como etapa substantiva ao cumprimento das finalidades registrais, bastando ver que é nesta que o registrador exerce uma função interpretativa para com o Direito e, a partir dela, decide pela registrabilidade ou não de determinado título. É razoável afirmar que, à la Sísifo, sentenciado a empurrar uma rocha monte acima ad infinitum, fomos - e permanece(re)mos - condenados a interpretar; o que não significa dizer, ao contrário do filho do rei Éolo, que estamos destinados ao fracasso no realizar desta empreitada. Portanto, a questão que macula a interpretação é a seguinte: em um senso comum teórico fortemente estabelecido, tem-se que a decisão jurídica pode(ria) derivar da consciência do intérprete, reproduzindo o brocardo "cada cabeça, uma sentença". É preciso destacar, entretanto, que a interpretação que perpassa uma decisão - aqui, registral - não advém de questões oriundas da vida privada do intérprete: sua origem e consequência não se relacionam, a priori, com sua vida pessoal. Dito de outro modo, não se trata de escolher o que comer no almoço ou qual roupa vestir. Há, manifestamente, um compromisso a ser observado em virtude das repercussões que uma decisão jurídica produz, incluindo a decisão do registrador de imóveis (que constitui, declara, modifica e extingue direitos reais), notadamente parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e pela legislação democraticamente construída. Nesse sentido, para estabelecer uma compreensão do problema, o uso de metáforas, fábulas e narrativas é sempre interessante, em especial pelo cunho pedagógico que irrompe desde a antiguidade. Da mitologia ao cristianismo, todas se utilizam desta ferramenta interpretativa-compreensiva. À vista disso, neste texto, utilizarei a figura mitológica da Medusa como standard reflexivo para examinar a qualificação registral e enfrentar demandas que exsurgem de uma confusão conceitual - ou até mesmo uma falta de conceito - do seu significado e da finalidade do registro de imóveis. Muito resumidamente, a Medusa era uma das três Górgonas - junto com  Euríale e Esteno - com serpentes no lugar dos cabelos e dotada do poder de petrificar quem lhe direcionava o olhar. Algumas versões contam que antes de ser transformada neste ser horrível com poder petrificante, era uma bela mulher que recebeu tal trágico castigo após ser estuprada por um deus.10 A pretensão, aqui, é realizar um recorte unicamente a partir do seu poder: petrificar. Com efeito, há a sensação de que, assim como a Medusa, o tema qualificação registral foi castigado pelos deuses e petrifica aqueles que ousam fixar o olhar sobre ele. Tal efeito petrificante se manifesta de duas maneiras: a um, causa uma evasão ao tema, haja vista que se evita estudá-lo intimamente - assim como se esquiva de mirar a Górgona nos olhos; a dois, petrifica-se no sentido de manter uma reprodução do que já foi construído sem qualquer tipo de questionamento, pois impede o (necessário) movimento e desenvolvimento do assunto em questão. Restar silente frente a qualquer tema é condená-lo à paralisia e ao sempre-foi-assim-então-assim-continuará-sendo. A resposta, ao que tudo indica, também é apresentada neste mesmo mito. Muito brevemente, Perseu derrotou Medusa com apetrechos fornecidos pelos deuses; destes, o que prestou maior auxílio à sua vitória foi, sem sombra de dúvidas, o escudo dado pela deusa Atena que, através de seu reflexo, permitia que o herói encarasse a górgona sem que sofresse as consequências de costume. Assim, são fornecidos critérios interessantes para enfrentar a qualificação registral, superando alguns de seus predadores - especialmente o elemento discricionariedade. O que seria, então, o equivalente registral para o escudo de Perseu? A resposta não parece ser outra: uma teoria da decisão que proveja condições de possibilidade a uma atuação não-discricionária por parte do registrador. Como abordei em outras oportunidades, precisamos estudar a THQ - Teoria Hermenêutica da Qualificação.11 Do mesmo modo que o diferencial na batalha contra a Medusa foi estar munido de recursos que ofereceram a superação da górgona pois limitavam o alcance do seu poder, a THQ se torna condição de possibilidade para o semelhante triunfo em sede de qualificação registral, por enfrentar a controvérsia a partir de paradigmas hermenêuticos e oferecer uma nova roupagem à problemática.12 A maior inquietação proposta pela THQ, de autoria do tabelião de protestos Jéverson Luís Bottega, é estabelecer critérios interpretativos para enfrentar a chamada discricionariedade decisória, que se manifesta a partir da atribuição de decidir acerca da registrabilidade dos títulos que é própria da função do registrador de imóveis. Para construir a tese, Bottega estabelece os seguintes cânones que formam o arcabouço teórico da teoria hermenêutica proposta: (i) a preservação da autonomia do Direito, (ii) a superação da discricionariedade, (iii) o respeito à coerência e à integridade do Direito, (iv) o dever fundamental de justificar as decisões e (v) o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.  Deste modo, nasce uma forte teoria da decisão. A intenção deste breve ensaio é que, em alguma medida, possamos estudar de maneira mais ou menos crítica toda a base do pensamento registral, especialmente a qualificação registral imobiliária, apoiado no novo paradigma que é apresentado por uma teoria hermenêutica que busca revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição; é um convite para a reflexão. Talvez seja inconveniente dizer que a independência jurídica dos registradores não é sinônimo de interpretações irrestritas. Pode ser, inclusive acredito, incômodo abordar o poder de decisão - jamais poder de escolha - exatamente por aqueles detentores de tal autoridade. Não podemos ignorar o elefante na sala pelo simples fato de que, quando chegamos, ele já estava ali; não sejamos refém do velho habitus que rotiniza o agir jurídico e o transforma no conceito heideggeriano de "tranquilidade tentadora" - que já tratei em outra oportunidade nesta coluna. Neste lugar de suspensão dos pré-juízos, estar refém da cotidianidade não se apresenta sequer como problema, pois se torna impossível confrontá-los com o horizonte crítico.13 Precisamos abrir um espaço de debates críticos no direito registral, para que não trabalhemos a partir de uma forma de "mito do dado". A crítica, enquanto análise séria, profunda e técnica dos termos e conceitos expostos e que elenca as qualidades e fraquezas de determinada tese, é o que permite o avanço e desenvolvimento que o direito registral espera dos seus operadores.  _______ 1 SILVA, Maria de Fátima de Sousa e. Pausânias: descrição da Grécia, Livro I (Classica digitalia, Textos Gregos) Imprensa da Universidade de Coimbra. Portugal, 2022. 2 A história, aqui, recebia outro significado: era, em alguma medida, uma forma arcaica do nosso jornalismo. Hoje, nas universidades, não se escreve para simples leitores, mas para outros historiadores ou pares. Não era esse o caso na Antiguidade. 3 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp 20-21 4 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p.23 5 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 26 6 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp. 45,46 7 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 37 8 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 32 9 Veja-se que apesar do nome Registro de Imóveis, registram-se direitos sobre imóveis e não os imóveis em si. 10 QUARELLI, Vinicius. Crônicas da Lei e do Mito: a Medusa e o horror dogmático. Disponível aqui. Acesso em 20/7/25. 11 SCHNEIDER, Rodrigo da Silva. Discricionariedade registral: Por um confronto com as armas da hermenêutica bottegiana. Disponível aqui. Acesso em 11/7/25 12 Para um aprofundamento na THQ, ver BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021. p. 186. 13 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p. 409.
Neste breve artigo, em ordem lógica e cronológica, pretende-se definir o que é georreferenciamento, certificação da poligonal no INCRA e retificação de área realizada no cartório de registro de imóveis. O georreferenciamento é a técnica que determina a localização, forma e dimensão de um imóvel por meio de coordenadas geográficas obtidas via GPS, levantamento topográfico e/ou imagens de satélite, em geral sendo vinculada a um sistema oficial. Essa técnica assegura a identificação precisa do imóvel, fundamental para sua regularização e prevenção de conflitos de limites. De sua vez, a certificação da poligonal no INCRA é um cadastro que atesta que os limites georreferenciados de um imóvel rural não se sobrepõem a outros previamente inscritos no mesmo cadastro administrativo. Trata-se de cadastro autodeclaratório, visto que criado unilateralmente pelo proprietário ou possuidor de um imóvel, a partir da inserção de suas coordenadas geodésicas no SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária do INCRA por um profissional técnico credenciado. A certificação não reconhece domínio nem constitui um direito à retificação da área cadastrada, o que é atribuição jurídica do registro imobiliário. Por fim, a retificação de área é o nome dado ao procedimento1 e à averbação realizados no registro de imóveis. Assim, os atos concatenados para fins de realização de uma demarcação de um imóvel no registro imobiliário constituem um "procedimento" de retificação realizado diretamente em cartório2. De sua vez, o ato registral decorrente do deferimento do pedido feito neste processo extrajudicial é justamente a "averbação" de retificação de área. Portanto, o processo de retificação de área visa especificar na matrícula do imóvel a área física real ou factual, obtida por levantamento topográfico interno (intra muros) e materializada no registro de imóveis mediante a averbação homônima. Conforme já tivemos a oportunidade de explicar em artigo científico sobre o tema: "No dia a dia cartorário não é incomum chamar a averbação de retificação de área (prevista no art. 213, II, da LRP) de 'averbação de georreferenciamento' ou 'averbação de geo'. No entanto, tecnicamente, a 'retificação de área' vale-se da técnica de 'georreferenciamento' para ser realizada, mas essas duas não se confundem".3 Outrossim, alguns pontos devem ser ainda esclarecidos. Existe certa divergência acerca da obrigatoriedade do georreferenciamento para os imóveis urbanos, sendo que possivelmente a maioria dos oficiais de registro de imóveis ainda não o exige, embora haja regulamento específico da ABNT estabelecendo sua obrigatoriedade. É certo que o georreferenciamento de imóveis rurais é compulsório para os imóveis cuja área for igual ou superior àquela prevista na legislação (atualmente 25 hectares), havendo divergência de entendimento entre os registradores de imóveis quanto à obrigatoriedade do georreferenciamento para  os imóveis rurais com área inferior4, mesmo que também se aplique o regulamento da ABNT nestes casos, o qual exige a obtenção das coordenadas geodésicas para os atos a serem realizados nos registros públicos, independentemente do tamanho da área do imóvel.5 Como se percebe, o georreferenciamento é pré-requisito, em relação aos imóveis rurais (salvo aqueles com áreas inferiores a 25 hectares), para a realização da certificação da poligonal no INCRA. De igual modo, a certificação da poligonal no INCRA é pré-requisito, nestes casos, para a realização do procedimento e averbação de retificação de área. Embora estejam no mesmo contexto, é importante sabermos que eles não se confundem. Em suma, para aqueles que entendem que todos os imóveis, urbanos e rurais, devem obrigatoriamente ser georreferenciados, a técnica de georreferenciamento sempre será um pré-requisito, verdadeira conditio sine qua non, para a retificação de área perante o cartório de registro de imóveis. Para os registradores de imóveis que defendem que certos imóveis não precisam de georreferenciamento (v.g., todos os imóveis urbanos e alguns imóveis rurais), bastando uma planta e memorial descritivo simples indicando os rumos ou metragem do perímetro do bem de raiz, a retificação de área prescindirá do georreferenciamento. Atualmente, nos casos específicos dos imóveis rurais com área igual ou maior que 25 hectares, além de ser obrigatório o georreferenciamento, também deverá o imóvel estar certificado no INCRA, para só então ser realizada a retificação de área em cartório. Com efeito, é preciso ter um conhecimento prévio destes conceitos, para evitar confusão semântica e entender o funcionamento do procedimento e da averbação de retificação de área que possui regulamentação nos arts. 212 e 213 da lei 6.015/1973 (LRP - Lei de Registros Públicos) e agora, inclusive, no art. 440-AX do Código Nacional de Normas. _______ 1 A retificação de área, como gênero, é um "procedimento". No entanto, sob a acepção do processo civil também podemos conceituá-la como um "processo", espécie de procedimento, visto que garantido o contraditório a partir das notificações, editais e direito de impugnação (art. 213, §§ 2º a 6º e § 17, da LRP). Conforme ensina Miguel Calmon Dantas, "Pode-se conceber o procedimento como um gênero, de que o processo seria uma espécie. Neste sentido, processo é o procedimento estruturado em contraditório, no qual as partes têm o direito fundamental de se manifestar e influenciar a decisão, garantindo a ampla defesa e o devido processo legal" (DANTAS, Miguel Calmon. Direito fundamental à processualização: ln: GOMES JR., Luiz Manoel; WAMBlER, Luiz Rodrigues; DIDlER JR. Fredie (org.) Constituição e processo. Salvador: Editora JusPodivm, 2007, p. 418). 2 O procedimento extrajudicial de retificação de área, realizado no cartório de registro de imóveis, é o equivalente à ação judicial demarcatória, promovida perante o Poder Judiciário. 3 MALLMANN, Jean. "Lei" de georreferenciamento urbano: a partir de agora o registrador de imóveis deve exigir o geo em todos os trabalhos técnicos? Revista de Direito Imobiliário. v. 94. ano 46. p. 247-274. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2023, p. 250, grifo nosso. 4 A divergência da práxis cartorial atualmente diz respeito à exigência da realização da técnica de georreferenciamento para imóveis com área inferior a 25 hectares. Como referido, nosso entendimento é o de que sempre será necessário o georreferenciamento, independentemente do tamanho do imóvel. Por outro lado, pela legislação vigente, não há obrigatoriedade de realização da certificação da poligonal no INCRA quando a área for inferior a 25 hectares. Atualmente, portanto, é obrigatória a certificação da poligonal no INCRA apenas para os imóveis com área igual ou superior a 25 hectares, sendo facultativa a certificação para os imóveis com áreas menores. Vale destacar que o art. 10, VII, do Decreto n. 4.449, de 30 de outubro de 2002, alterado pelo Decreto n. 9.311/2018, estabelece que a certificação da poligonal no INCRA passará a ser obrigatória para todos os imóveis rurais objeto de retificação, desmembramento, parcelamento, remembramento e em qualquer situação de transferência de propriedade após 22 (vinte e dois) anos da data da entrada em vigor do decreto presidencial. Assim, perpassada a data-limite de 20/11/2025, inclusive os imóveis rurais com área inferior a 25 hectares terão de ser certificados compulsoriamente perante o INCRA. Pela redação original do decreto esse prazo já iria ter se esgotado em 2018 (porém, foi prorrogado pelo Dec. 7.620/2011) e em 2022 (novamente prorrogado pelo Dec. 9.311/2018, que fixou o prazo atual). Desse modo, não havendo nova prorrogação, todos os imóveis rurais serão obrigados a ser certificados no INCRA a partir de 20 de novembro de 2025. 5 A Norma Brasileira de Regulação aplicável às plantas e memoriais descritivos prevê expressamente a obrigatoriedade de realização de georreferenciamento para todos os imóveis, urbanos e rurais, objeto de retificação perante o registro imobiliário. Conforme ABNT NBR 17047:2022: "Item 6.1. O levantamento cadastral territorial para registro público deve estar apoiado à Rede de Referência Cadastral Municipal (RRCM) ou, na inexistência desta, deve estar apoiado ao Sistema Geodésico Brasileiro (SGB). [...] Item 8.1 Os vértices da parcela ou do imóvel devem ser registrados com coordenadas geodésicas (latitude e longitude), utilizando como referencial o Sistema Geodésico de Referência vigente no Brasil". De sua vez, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 1990) estabelece, em seu art. 39, VIII, a obrigatoriedade de que os serviços fornecidos observem as normas específicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas. Com efeito, "A NBR 17047:2022 estabelece que os vértices dos imóveis (urbanos e rurais) devem ser registrados com coordenadas geodésicas, utilizando como referencial o Sistema Geodésico de Referência vigente no Brasil. Desse modo, tratando-se naturalmente de relação de consumo, a referida NBR deve ser aplicada aos profissionais técnicos que realizem georreferenciamento, sendo, pois, objeto de qualificação pelo Oficial de Registro de Imóveis" (MALLMANN, Jean. "Lei" de georreferenciamento urbano: a partir de agora o registrador de imóveis deve exigir o geo em todos os trabalhos técnicos? Revista de Direito Imobiliário. v. 94. ano 46. p. 247-274. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2023, p. 250).
Introdução Na arquitetura das blockchains, oráculos são os serviços responsáveis por fornecer dados do "mundo real" para smart contracts. Sem eles, a rede descentralizada permanece como uma fortaleza digital: segura em seus algoritmos, mas privada das informações que circulam além de seus protocolos criptográficos. A questão que se coloca é: e se, no lugar de um código anônimo ou de uma API de reputação incerta, o oráculo fosse um serviço dotado de fé pública? Imagine smart contracts que executam cláusulas contratuais, transferem ativos digitais e liquidam garantias com base em dados certificados por notários e registradores brasileiros. Essa perspectiva não constitui mera especulação tecnológica - representa a aplicação natural de uma premissa que merece constante reafirmação: segurança criptográfica não equivale à segurança jurídica. A primeira protege algoritmos e dados; a segunda protege direitos e relações jurídicas. A função de oráculo nos serviços extrajudiciais Na Web3, oráculos funcionam como a ponte informacional que transporta dados confiáveis para dentro da blockchain. Nos serviços extrajudiciais brasileiros, há séculos exercemos função conceptualmente semelhante: Qualificamos juridicamente atos e documentos, conferindo-lhes adequação ao ordenamento; Atribuímos fé pública às declarações e registros, dotando-os de presunção de veracidade; Preservamos a integridade de arquivos e assentamentos, garantindo sua autenticidade temporal. Quando essa lógica se insere no contexto de um smart contract, o resultado é tecnicamente robusto: um código que somente executa suas funções se o dado oficial originado de um cartório assim determinar. Casos práticos de aplicação A implementação prática dessa integração permite vislumbrar cenários concretos: Tokenização imobiliária: A emissão de tokens representativos de frações ideais de imóveis apenas se efetivaria após o registro da escritura pública no cartório competente, sendo o oráculo notarial responsável por liberar os ativos digitais correspondentes. Garantias e gravames: Averbações realizadas no registro competente seriam automaticamente comunicadas ao contrato inteligente que administra o ativo, atualizando em tempo real o status jurídico do bem. Sucessão de criptoativos: A lavratura de escritura pública de inventário ou a homologação judicial de inventário enviaria o comando automatizado para liberação de carteiras digitais do falecido aos herdeiros legítimos. A força jurídica da fé pública como diferencial competitivo Em um mercado global onde qualquer fragmento de código pode se autoproclamar "seguro", a fé pública constitui ativo de valor incomensurável: a informação presume-se verdadeira até prova em contrário, amparada por dispositivos legais e pela responsabilidade funcional do oficial delegatário. Enquanto oráculos puramente técnicos dependem de reputação circunstancial e validação por consenso, o oráculo extrajudicial oferece lastro jurídico que resiste ao escrutínio judicial, sustentado por normas procedimentais fiscalizadas pelo Poder Judiciário. Requisitos para implementação O desenvolvimento dessa infraestrutura demanda: Arquitetura de rede híbrida: Integração via APIs seguras com blockchains públicas ou implementação de redes permissionadas; Protocolos de validação dual: Sistemas que combinem requisitos de legalidade formal com validação criptográfica; Normatização regulatória: Edição de provimentos que permitam o reconhecimento de atos notariais e registrais como "eventos" válidos para execução de contratos inteligentes. Considerações finais Ao se posicionarem como oráculos da Web3, notários e registradores não apenas acompanham a evolução tecnológica - eles asseguram que o universo descentralizado permaneça ancorado em regras claras, verificáveis e juridicamente eficazes. Na prática, trata-se de transformar a fé pública em um protocolo de confiança institucional, relembrando sempre que segurança criptográfica e segurança jurídica, embora complementares, não se confundem. A implementação dessa convergência tecnológico-jurídica representa, assim, uma oportunidade de modernização que preserva a essência protetiva da atividade extrajudicial, projetando-a para o futuro digital sem comprometer seus fundamentos normativos.
Introdução A desjudicialização vem se consolidando no Brasil como um movimento capaz de ampliar o acesso a direitos, desafogar o Poder Judiciário e oferecer respostas mais céleres, seguras e proporcionais às necessidades reais das pessoas. Nesse cenário, as serventias extrajudiciais deixam de ser meros órgãos de registro e passam a ocupar um lugar central na efetivação de direitos, assumindo competências que antes dependiam exclusivamente de decisão judicial. A Cartilha da Advocacia Multiportas do Conselho Federal da OAB propõe uma atuação profissional ética, estratégica e ampliada. Em vez de reduzir a advocacia ao litígio, essa visão reconhece que o processo judicial é apenas uma das alternativas possíveis. O advogado multiportas atua como gestor de soluções jurídicas, integrando técnica, presença humana e discernimento para escolher, com o cliente, a via mais adequada - judicial ou extrajudicial - a cada caso. No âmbito das serventias extrajudiciais, essa postura se traduz em condução proativa de procedimentos de retificação e suprimento de registros, alterações de nome e reconhecimento de filiação socioafetiva, entre outros. O profissional organiza a documentação, antecipa exigências, dialoga tecnicamente com o oficial, estrutura requerimentos claros e fundamentados e preserva a autonomia do cliente, garantindo que a decisão seja livre, legítima e bem informada. Este artigo apresenta, à luz dessa abordagem, três eixos de atuação do advogado multiportas nas serventias extrajudiciais: (i) retificações e suprimentos no Registro Civil das Pessoas Naturais; (ii) alterações de nome; (iii) reconhecimento de filiação socioafetiva. O objetivo é demonstrar, com base nas normas aplicáveis e na prática profissional, como a advocacia multiportas fortalece a segurança jurídica, a eficiência procedimental e a cultura da pacificação social pela via extrajudicial. No registro civil das pessoas naturais: Das retificações e suprimentos de registro civil no extrajudicial O movimento de desjudicialização vem promovendo profundas transformações no acesso à Justiça, atribuindo às serventias extrajudiciais um papel cada vez mais relevante na concretização de direitos. No âmbito do Registro Civil das Pessoas Naturais, a legislação permite que determinadas retificações e suprimentos sejam realizados diretamente pelos oficiais de registro, sem necessidade de autorização judicial ou manifestação prévia do Ministério Público, desde que preenchidos os requisitos legais. O oficial retificará o registro, a averbação ou a anotação, de ofício ou a requerimento do interessado, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, nos casos de: I - erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção; II - erro na transposição de elementos constantes em ordens judiciais, termos ou requerimentos, cuja documentação ficará arquivada no cartório; III - inexatidões na numeração do livro, folha, página, termo, ou data do registro; IV - ausência de indicação do município do nascimento, quando houver descrição precisa do endereço do local do nascimento; V - elevação de distrito a município ou alteração de suas nomenclaturas por força de lei (Art. 110, lei 6.015/73). Considera-se suprimento o procedimento destinado a corrigir omissões no ato do registro civil, seja para incluir dados obrigatórios ou recomendados não lançados na ocasião da lavratura (suprimento parcial), seja para regularizar atos cuja inscrição no livro competente não se consumou, apesar de terem gerado certidões entregues a terceiros (suprimento total), conforme previsto no art. 205-A, §1º, inc. III, do CNN - Código Nacional de Normas. Poderá ser objeto de suprimento administrativo qualquer ato lançado nos livros do Registro Civil das Pessoas Naturais, desde que instruído com prova documental suficiente, independentemente de autorização do juiz corregedor (Art. 205-I, CNN). O requerimento deverá ser acompanhado da certidão do ato objeto do suprimento e de outras provas inequívocas (Art. 205-K, CNN). Quando o requerente não dispuser da certidão, deverá justificar essa inviabilidade e apresentar outros documentos que permitam, com segurança, a obtenção dos dados necessários (Art. 205-K, §2º, CNN). Nesse contexto, a atuação do advogado é essencial para garantir a segurança e a eficácia do procedimento. Longe de se limitar à redação de requerimentos, o advogado - ao adotar uma postura multiportas - atua como gestor estratégico da solução jurídica, conduzindo o cliente de forma técnica, ética e eficiente por todo o trâmite extrajudicial. Desde a análise inicial da demanda, cabe ao advogado avaliar se o pedido se enquadra nas hipóteses de atuação direta perante a serventia, orientando o cliente sobre a via mais célere e adequada. Sua atuação se destaca também na organização do conjunto documental, assegurando que as provas sejam robustas e capazes de demonstrar, de forma clara, a necessidade da retificação ou suprimento, antecipando eventuais resistências e prevenindo questionamentos futuros. O requerimento, por sua vez, é elaborado como um instrumento de diálogo técnico com a serventia, facilitando a análise pelo oficial de registro e conferindo agilidade à tramitação. Durante o processo, o advogado atua como elo qualificado entre o cliente e o cartório, ajustando formalidades, sanando exigências e promovendo a convergência de entendimentos de forma colaborativa e respeitosa. Nos casos de maior complexidade, o advogado multiportas está preparado para articular outras vias de solução, como mediação ou, se necessário, a provocação ao Judiciário, sempre buscando preservar os interesses do cliente com a solução mais eficiente e adequada ao caso concreto. Essa atuação integrada valoriza a via extrajudicial como espaço legítimo de realização de direitos, ressignificando o papel do advogado como protagonista na construção de soluções jurídicas eficazes, seguras e alinhadas às transformações do nosso tempo. Como ressaltam Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez, (2019, p. 201), "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público", princípio que pode ser adaptado ao extrajudicial, impondo ao advogado a busca pelo método mais adequado, evitando a judicialização quando possível. Marco Antonio Garcia Lopes Lorencini (2012, p. 72) também observa que a escolha do método mais apropriado depende das características do conflito, exigindo análise técnica e estratégica - exatamente o que se espera de um advogado multiportas. Alterações de nome nas serventias extrajudiciais: Atuação estratégica na advocacia multiportas A possibilidade de alteração de prenome e sobrenome diretamente nas serventias extrajudiciais, sem a necessidade de decisão judicial em diversas hipóteses, representa um avanço relevante na desjudicialização e no acesso eficiente aos direitos da personalidade.  A legislação estabelece que a pessoa registrada, após atingir a maioridade civil, pode requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração do prenome, a qual será averbada e publicada eletronicamente (Art. 56, lei 6.015/73). O requerente deve declarar a inexistência de processo judicial em andamento sobre a alteração pretendida ou, caso exista, comprovar seu arquivamento (Art. 515-E, §2º, CNN). Essa alteração imotivada é permitida apenas uma vez, mesmo para pessoas transgênero, e sua reversão depende de sentença judicial (Art. 56, §1º, lei 6.015/73 e Art. 515-D, §2º, CNN). A averbação não é sigilosa e deve conter o prenome anterior, números de documentos pessoais e dados que constarão de todas as certidões, inclusive as de breve relato (Art. 56, §2º, lei 6.015/73 e Art. 515-F, CNN). É possível substituir, acrescer, suprimir ou inverter o prenome (Art. 515-D, §1º, CNN), desde que apresentados os documentos exigidos nos §§ 6º a 9º do art. 518 do CNN.  Quanto ao sobrenome, a alteração pode ser requerida diretamente ao oficial de registro civil, inclusive por mandatário constituído por escritura pública recente, e permite incluir sobrenomes familiares, adicionar ou excluir o do cônjuge (mesmo sem anuência), suprimir originários mantendo vínculo a uma linha de ascendência, ou excluir o do ex-cônjuge após dissolução conjugal. Também é possível alterar sobrenomes por mudança na filiação ou para descendentes e cônjuges nessas situações (Art. 57 da Lei nº 6.015/73; Arts. 515-I e 515-L, CNN).  Algumas hipóteses, como alterações fora das situações previstas ou envolvendo pessoas incapazes, exigem decisão do juiz corregedor (Arts. 515-I, §1º, e 515-J, CNN). Conviventes em união estável registrada podem incluir o sobrenome do companheiro ou alterar conforme as regras do casamento, e retornar ao nome de solteiro mediante averbação da extinção da união (Art. 57, §§2º e 3º-A, lei 6.015/73; Art. 515-L, §3º, CNN). A inclusão do sobrenome de padrasto ou madrasta demanda motivo justificável, consentimento de todos os envolvidos e comprovação da relação de afeto (Art. 57, §8º, lei 6.015/73; Art. 515-M, CNN).  Nesse contexto, o papel do advogado é decisivo. Na perspectiva da advocacia multiportas, ele atua muito além do protocolo documental: é um gestor de soluções jurídicas que integra técnica, estratégia e sensibilidade. A atuação começa com uma escuta qualificada, analisando a viabilidade jurídica e estratégica da alteração, orientando sobre limites legais, repercussões práticas e reunindo a documentação necessária para prevenir exigências e atrasos.  O advogado multiportas organiza o processo de forma clara e robusta, redige requerimentos com fundamentos legais objetivos e constrói um fluxo que facilite a análise pela serventia. Sua postura colaborativa com o oficial de registro permite superar entraves com diálogo técnico e ética. Quando surgem questões mais complexas ou resistências, ele avalia e aciona outras portas - como mediação administrativa ou, se necessário, a via judicial - garantindo segurança jurídica e preservando os interesses do cliente.  Essa abordagem integrada reforça o protagonismo do advogado no movimento de desjudicialização, posicionando-o como agente capaz de transformar a alteração de nome em um procedimento rápido, seguro e alinhado ao novo papel das serventias extrajudiciais como espaços legítimos de realização de direitos. A atuação do advogado no reconhecimento de filiação socioafetiva: Uma abordagem multiportas O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos de idade pode ser autorizado diretamente perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, conforme previsto no art. 505 do CNN. Trata-se de um marco importante no processo de desjudicialização das relações familiares, viabilizando que vínculos afetivos estáveis sejam formalizados com celeridade, segurança jurídica e respeito à dignidade humana. Esse reconhecimento, uma vez efetivado, é irrevogável, só podendo ser desconstituído judicialmente nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação. Os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil, podem requerer tal reconhecimento, desde que observados critérios legais como a diferença mínima de 16 anos entre o pretenso pai ou mãe e o filho a ser reconhecido, e vedações específicas, como o impedimento de reconhecimento entre irmãos ou por ascendentes. A atuação do advogado, nesse contexto, ganha contornos estratégicos e sensíveis, sobretudo quando alinhada a uma postura multiportas, que valoriza a escuta qualificada, a análise interdisciplinar e a construção de soluções eficazes em diferentes níveis. Desde a análise de viabilidade jurídica até o preparo da documentação, o profissional do Direito orienta o requerente com responsabilidade técnica e sensibilidade para as particularidades da dinâmica familiar envolvida. Para que o vínculo socioafetivo seja reconhecido, ele precisa ser estável e socialmente exteriorizado. O registrador é responsável por atestar a existência dessa relação, com base em elementos concretos como registros escolares, plano de saúde, documentos de coabitação, vínculos conjugais com o genitor biológico, fotografias e testemunhos. Ainda que a ausência de tais documentos não impeça o registro, é essencial que a impossibilidade seja justificada e que o vínculo seja devidamente apurado. Aqui, a atuação do advogado se revela essencial na estruturação e apresentação das provas, mitigando resistências e facilitando a análise pela serventia. A prática do advogado que adota uma visão ampliada da advocacia, conectada às transformações do tempo presente, permite inclusive a mediação de dúvidas e o encaminhamento estratégico em casos que envolvam parecer desfavorável do Ministério Público, ou situações de conflito familiar mais delicadas, garantindo o prosseguimento adequado - inclusive, quando necessário, pela via judicial. Além disso, o profissional que atua com base em escuta ativa e visão sistêmica é capaz de articular soluções preventivas, acolhendo não apenas o aspecto legal, mas também as repercussões emocionais e sociais do reconhecimento. O reconhecimento, de forma unilateral, não permite o registro de mais de dois pais e de duas mães na certidão de nascimento, sendo autorizada a inclusão de apenas um ascendente socioafetivo por linha. A inserção de mais de um dependerá de decisão judicial. Em casos que envolvam pessoa com deficiência, serão observadas as normas da tomada de decisão apoiada, podendo o reconhecimento ocorrer também por disposição de última vontade, via documento público ou particular. Ao conduzir esse tipo de demanda, o advogado se posiciona como agente facilitador da desjudicialização e da pacificação social, promovendo um ambiente de segurança e acolhimento dentro das serventias extrajudiciais. Mais do que um executor de procedimentos, ele se torna um articulador de caminhos jurídicos e humanos, capaz de equilibrar técnica, empatia e estratégia. Nesse cenário, a advocacia multiportas se revela não apenas como uma possibilidade, mas como uma necessidade diante da complexidade e pluralidade das relações contemporâneas. Conclusão A atuação do advogado nas serventias extrajudiciais - seja em retificações e suprimentos, alterações de nome ou reconhecimento de filiação socioafetiva - evidencia que a desjudicialização não é apenas uma mudança procedimental, mas uma transformação de paradigma. A advocacia multiportas, ao integrar técnica, escuta qualificada e visão preventiva, coloca o profissional no centro da construção de soluções seguras, céleres e humanizadas. Ao assumir esse papel, o advogado fortalece a via extrajudicial como espaço legítimo de realização de direitos, contribui para a pacificação social e reafirma o compromisso ético com a autonomia do cliente e a eficiência do sistema. Como sintetiza a Cartilha do CFOAB (SCHLIECK, p. 9), "não somos uma porta. Somos todas. Porque cada conflito merece o seu caminho, e cada cliente, a segurança de ser conduzido por alguém que enxerga além do processo". ___________________ 1 CÓDIGO NACIONAL DE NORMAS DA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), Provimento n. 149, de 30 de agosto de 2023. 2 DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 201. 3 LEI Nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. 4 LORENCINI, Marco Antonio Garcia Lopes. Sistema multiportas: opções para tratamento de conflitos de forma adequada. Negociação, mediação e arbitragem-curso básico para programas de graduação em Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 72. 5 SCHLIECK, Eunice. Cartilha da Advocacia Multiportas. Brasília: CFOAB, 2025. Disponível aqui. Acesso em ago. 2025.
1. Introdução A transformação digital dos serviços públicos, intensificada durante e após a pandemia, possibilitou a prática de atos que antes exigiam presença física das partes, agora realizados à distância e com uso de assinatura digital. Trata-se de um avanço incontestável, que trouxe inúmeros benefícios e facilidades aos cidadãos. Entretanto, essa evolução demanda reflexões cuidadosas, sobretudo diante de valores que devem permanecer inegociáveis na prática de atos e na formalização de negócios: a segurança jurídica e a autenticidade das informações. A digitalização não pode prescindir de mecanismos que assegurem a confiabilidade dos procedimentos e a proteção das partes envolvidas. Nesse contexto, destaca-se a plataforma Gov.br, desenvolvida pelo Governo Federal, já amplamente utilizada pela população brasileira para requerer benefícios, emitir documentos e realizar diversas transações eletrônicas. Embora represente um avanço relevante, seu uso traz à tona dois desafios significativos: a inclusão digital, pois é necessário que o cidadão possua conhecimento e familiaridade suficientes para operar o sistema e a robustez na verificação da identidade do usuário e na segurança do acesso, aspectos essenciais para prevenir fraudes e preservar a integridade dos serviços. No tocante à segurança, este tem se revelado o maior desafio da digitalização de serviços públicos. Episódios noticiados pela imprensa e amplamente repercutidos nas redes sociais evidenciaram vulnerabilidades relevantes no sistema, expondo cidadãos a riscos concretos de usurpação de identidade, fraudes financeiras e prejuízos patrimoniais. Tais incidentes demonstram que a tecnologia, embora essencial para a modernização, exige constante aprimoramento de protocolos de autenticação, criptografia e fiscalização, sob pena de comprometer a confiança dos usuários. Diante desse cenário, impõe-se reconhecer que, para determinados atos e negócios jurídicos, permanece imprescindível recorrer a meios que conciliem eficiência tecnológica com segurança jurídica plena, como os serviços notariais e registrais. Essas atividades, atualmente também disponíveis em ambiente eletrônico, operam sob rígida normatividade, fé pública e responsabilidade pessoal do delegatário, oferecendo um nível de proteção substancialmente superior e garantias legais mais sólidas, capazes de assegurar a validade, a autenticidade e a integridade dos negócios formalizados. 2. A vulnerabilidade da conta Gov.br: Casos de fraude e decisões judiciais recusando documentos assinados por meio do Gov.br A conta Gov.br foi instituída pelo decreto 8.936/161 como um meio oficial de autenticação eletrônica destinado à identificação segura do cidadão nos sistemas públicos. Funciona como uma credencial única de acesso a diversas plataformas governamentais, tais como Meu INSS, eSocial, Carteira de Trabalho Digital, Conecte SUS, Portal de Serviços Gov.br e, em integração com o e-CAC, à Receita Federal. Além de centralizar o acesso aos serviços públicos, a conta Gov.br também possibilita, conforme o nível de confiabilidade atribuído ao usuário, a assinatura eletrônica de documentos diretamente pelo aplicativo oficial, nos termos do art. 3º, inciso IX, do decreto 8.936/16. Essa funcionalidade amplia o leque de atos que podem ser praticados à distância, dispensando a presença física do cidadão em órgãos públicos ou repartições, e consolidando o Gov.br como um elemento central na política de digitalização do Estado brasileiro. Embora o decreto 8.936/16 discipline o funcionamento da conta Gov.br e sua utilização para autenticação e assinatura de documentos, a base normativa que define as modalidades de assinatura eletrônica no Brasil está prevista na lei 14.063/202. Essa lei estabelece parâmetros técnicos e jurídicos para o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, entre particulares e em comunicações processuais, classificando-as de acordo com o grau de segurança e confiabilidade que oferecem. De acordo com o art. 4º da lei 14.063/20, as assinaturas eletrônicas são classificadas em três modalidades, distintas pelo grau de segurança e confiabilidade na identificação do signatário.  Assim, tem-se que a assinatura eletrônica simples permite identificar o autor do ato e associar seus dados ao documento eletrônico, mas não utiliza mecanismos avançados de autenticação. A assinatura eletrônica avançada recorre a certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou a outros meios de comprovação de autoria e integridade admitidos pelas partes, devendo estar vinculada de forma única ao signatário, ser operada sob seu controle exclusivo e permitir a verificação de qualquer alteração posterior do documento. Já a assinatura eletrônica qualificada, a mais segura, é emitida com certificado digital da ICP-Brasil, nos termos da MP 2.200-2/01, observando padrões normativos e de segurança específicos. Conforme o § 1º do mesmo artigo, o que diferencia essas modalidades é o grau de confiança quanto à identidade do titular e à manifestação de sua vontade, sendo a assinatura qualificada a que oferece as garantias mais robustas. À luz da legislação, a assinatura Gov.br enquadra-se como assinatura eletrônica avançada, apresentando um nível intermediário de confiabilidade na identificação do signatário. Tanto é assim que o art. 5º, II, da mesma lei, estabelece que esse tipo de assinatura é admitida para interações com entes públicos de menor impacto, que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo, bem como para o registro de atos perante as juntas comerciais. Apresentado o contexto legal e o panorama sobre a assinatura Gov.br, passa-se à exposição de casos concretos de fraude envolvendo sua utilização: 1. Operação Face Off3: Deflagrada pela polícia Federal em 2025, teve como objetivo desarticular uma associação criminosa especializada em fraudar contas digitais vinculadas à plataforma Gov.br. Segundo a matéria publicada no portal de notícias do governo Federal, o grupo realizava alterações faciais para burlar o sistema de autenticação eletrônica e com o acesso indevido às contas das vítimas, os criminosos assinavam documentos, emitiam procurações e contratavam empréstimos em nome de terceiros. 2. Suspensão do uso do Gov.br pela Jucemat (MT)4: A Junta Comercial do Estado de Mato Grosso suspendeu a aceitação de documentos assinados por meio da plataforma Gov.br após identificar mais de 25 casos de fraude praticados com o uso desse tipo de assinatura eletrônica. 3. Relatos em redes sociais e fóruns5: Diversos usuários relataram episódios de invasão de contas, contratação indevida de empréstimos e assinatura de documentos sem consentimento. Um dos casos mais emblemáticos foi narrado por Bruno Clarck, que informou, ema suas redes sociais, ter sofrido alteração da titularidade de sua empresa na Junta Comercial por meio de assinatura Gov.br. A partir dessa mudança, os fraudadores conseguiram modificar os acessos bancários da empresa e obter R$ 300 mil em antecipação de recebíveis de cartão de crédito. O Poder Judiciário também tem restringido a utilização de documentos assinados por meio da plataforma Gov.br em processos judiciais, evidenciando a falta de credibilidade quanto à identificação segura do signatário. No REsp 2.199.052/PB (2025/0059608-7), o ministro Paulo Sérgio Domingues destacou que, embora a Plataforma de Cidadania Digital tenha sido instituída pelo decreto 8.936/16 para interações com entes públicos (art. 3º, IX), o decreto 10.543/20 expressamente vedou seu uso para assinatura de documentos em processos judiciais (art. 2º, parágrafo único, I).  Ressaltou, ainda, que a plataforma não é credenciada na ICP-Brasil, motivo pelo qual considerou apócrifa a petição de recurso especial assinada via Gov.br, determinando a intimação do advogado para regularização no prazo de cinco dias, sob pena de não conhecimento do recurso. De forma semelhante, o CNJ, em resposta à consulta 0003850-52.2024.2.00.0000, rechaçou o uso da assinatura Gov.br para autorizações eletrônicas de viagem. Embora reconheça que a assinatura eletrônica por certificado digital ou pela plataforma possua validade jurídica em outros contextos, o CNJ entendeu que ela não supre, por si só, a exigência legal e regulamentar de reconhecimento de firma em Cartório para autorizações de viagem de menores desacompanhados. O argumento central, nesse caso, foi assegurar a autenticidade do consentimento dos pais ou responsáveis, garantindo maior proteção às crianças e adolescentes. E, aqui, o grande diferencial de segurança está na videoconferência realizada pelo e-Notariado, que permite a verificação, em tempo real, da identidade e da manifestação de vontade do responsável, registrando o ato com fé pública notarial e reduzindo significativamente o risco de fraudes, aspecto que não é plenamente alcançado pela assinatura Gov.br. Todos esses episódios, somados às decisões dos Tribunais e do CNJ, evidenciam a fragilidade do sistema quando utilizado sem critérios rigorosos de autenticação e proteção da identidade, como pode ocorrer com a plataforma Gov.br. Embora a assinatura eletrônica via Gov.br possua validade jurídica, ela não exige, por padrão, o uso de certificado digital ICP-Brasil. A robustez da autenticação varia conforme o nível da conta (bronze, prata ou ouro) e, nos níveis mais baixos, a validação pode ocorrer apenas com login e senha, ou com dados facilmente obtidos por terceiros, sem verificação biométrica obrigatória. Essa configuração abre espaço para fraudes: criminosos obtêm ou interceptam as credenciais de acesso da vítima, invadem a conta Gov.br, elevam o nível de permissão ou exploram recursos já disponíveis e, a partir daí, assinam documentos, emitem procurações, alteram cadastros em órgãos públicos e até realizam transações financeiras, tudo com aparência de ato legítimo. Essa vulnerabilidade gera um cenário de incerteza jurídica quanto à autoria e à integridade dos atos assinados, sobretudo quando não há mecanismos adicionais, como a conferência presencial ou por videoconferência notarial. 3. A segurança jurídica da assinatura pelo e-Notariado O provimento 100/20 do CNJ, atualmente incorporado ao Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, regulamentou a prática de atos notariais eletrônicos com segurança, validade jurídica e fé pública, por meio da plataforma e-Notariado. A assinatura digital realizada por esse sistema utiliza um certificado notarizado, emitido exclusivamente por tabelião de notas, em ambiente controlado e com protocolos de segurança mais rigorosos do que aqueles adotados em plataformas de autenticação genérica. Diferentemente do que ocorre na assinatura pelo Gov.br, cuja robustez varia conforme o nível da conta e que, nos níveis mais baixos, pode depender apenas de login e senha ou de autenticação simplificada, o certificado notarizado exige a identificação presencial ou por videoconferência conduzida pelo próprio tabelião. Essa identificação é complementada pela verificação biométrica facial cruzada com bases oficiais, o que reduz de forma significativa o risco de falsificação ou uso indevido. Além disso, a emissão do certificado é sempre vinculada a um notário específico, que responde civil, administrativa e criminalmente pelo ato, criando um elo de responsabilidade pessoal que não existe nas demais plataformas. A confiabilidade desse certificado decorre da própria fé pública que reveste os atos notariais. Como explicam Vitor Frederico Kumpel e Carla Modina Ferrari (2023, p. 110), a fé pública ou publica fides deriva da confiança social na veracidade e legitimidade dos atos praticados por autoridade pública, relação esta que se entrelaça com a boa-fé e a aparência, em tradição histórico-jurídica de matriz romano-canônica. Outro aspecto relevante é que os documentos assinados com certificado notarizado podem ser submetidos ao módulo "e-Not Assina", que realiza o reconhecimento eletrônico de firma com o mesmo valor jurídico do reconhecimento feito presencialmente no Cartório. Nessa hipótese, o documento não apenas recebe uma assinatura digital, mas também tem sua autoria e integridade certificadas por um agente dotado de fé pública, o que amplia o seu valor probatório. Essa atuação notarial também possui caráter preventivo: o tabelião, no exercício de sua função pública, zela para que o conteúdo do documento seja compreendido pelas partes, que a manifestação de vontade seja livre e consciente e que não haja vícios formais capazes de gerar litígios. Trata-se de uma cautelaridade que não se limita à autenticação da identidade, mas se estende à verificação da regularidade formal do ato e à preservação da segurança jurídica. Em síntese, a assinatura eletrônica pelo e-Notariado combina mecanismos técnicos robustos de autenticação com a responsabilidade pessoal do notário e a fé pública notarial, oferecendo um nível de segurança, rastreabilidade e eficácia jurídica que se mostra especialmente relevante para contratos, procurações, escrituras e demais negócios patrimoniais de maior relevância, cenário em que a mera assinatura eletrônica, sem a chancela notarial, se revela insuficiente para mitigar riscos e prevenir litígios. 4. Conclusão A transformação digital dos serviços públicos é irreversível e representa um avanço histórico na relação entre o Estado e o cidadão. Contudo, a tecnologia, por si só, não garante segurança nem autenticidade. No universo jurídico, confiança não se improvisa: constrói-se com controles rigorosos, responsabilidade e verificação qualificada da identidade. A plataforma Gov.br é um passo importante nesse processo, mas os episódios de fraude, as restrições impostas pelo Poder Judiciário e os posicionamentos de órgãos como o CNJ deixam claro que sua estrutura de autenticação ainda não oferece a blindagem necessária para todos os atos jurídicos, especialmente aqueles de maior impacto patrimonial ou pessoal. Nesse cenário, os serviços notariais eletrônicos, por meio do e-Notariado, representam muito mais do que uma alternativa tecnológica: são a tradução, no ambiente digital, da mesma fé pública que protege negócios e direitos há séculos no meio físico. Aqui, cada assinatura é fruto de uma identificação segura, conferida por um profissional que responde pelo ato e que atua de forma preventiva para evitar litígios. É tecnologia aliada à responsabilidade humana, capaz de transformar um arquivo digital em prova robusta e incontestável. Em um tempo em que a informação circula à velocidade de um clique e a fraude pode se materializar em segundos, adotar o e-Notariado não é apenas modernizar, é blindar. É garantir que a transição para o digital preserve a essência da segurança jurídica, protegendo pessoas, empresas e o próprio Estado. Os Cartórios, agora também no mundo virtual, permanecem onde sempre estiveram: na linha de frente da defesa da verdade, da confiança e dos direitos. _________________________ 1. Disponível aqui. 2. Disponível aqui. 3. Disponível aqui. 4. Disponível aqui. 5. Disponível aqui. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.199.052, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, julgado em 11 jul. 2025. Diário da Justiça Eletrônico Nacional, Brasília, DF, 11 jul. 2025. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Consulta n. 0003850-52.2024.2.00.0000. Brasília, DF, 2024. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023. Dispõe sobre os procedimentos para a lavratura e registro do ato de reconhecimento voluntário de filiação socioafetiva perante os ofícios de registro civil das pessoas naturais e dá outras providências. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 31 ago. 2023. KUMPEL, Vitor Frederico. Tratado de Direito Notarial e Registral: Vol III: tabelionato de notas. 2ª Edição. São Paulo. YK Editora. 2022.
O movimento de desjudicialização Há uma crescente tendência, no país, de retirar demandas do poder judiciário para a esfera extrajudicial. Trata-se do fenômeno da desjudicialização ou extrajudicialização1, como preferem alguns. De acordo com o CNJ, no ano de 2019 a duração média de processos pendentes em fase de execução no Poder Judiciário Estadual foi de, aproximadamente, 6 anos e 2 meses2. De 2019 até os dias atuais, certamente esse número vem crescendo a cada dia. Diante disso, mais que necessário o estímulo para que os procedimentos sejam cada vez mais trazidos para fora do poder judiciário. O movimento da desjudicialização vem ganhando força no país, desde a década de 90. Como exemplo, podemos citar o reconhecimento de paternidade extrajudicial (lei 8.560/1992) e os procedimentos extrajudiciais de alienação fiduciária de bem imóvel (lei 9.514/1997). Nos anos 2000, houve a efetiva consolidação do movimento, com destaque para a lei 11.441/07, que possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios pela via extrajudicial. Nos anos 2010 até o presente, o movimento tomou mais uma crescente, com novos marcos normativos, como o CPC, a lei de mediação (lei 13.140/15), a lei 13.465/17 (que simplificou a regularização fundiária) e, mais recentemente, a lei 14.711/23, que ampliou significativamente as hipóteses de busca e apreensão extrajudicial. O movimento de desjudicialização se insere no contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de procedimentos mais acessíveis, simples e racionais.3 No contexto da desjudicialização, tramita na Câmara dos Deputados o PL 3999/20, de autoria do deputado Hugo Leal. A ideia do projeto é desjudicializar os despejos fundados na falta de pagamento de aluguel e seus acessórios. Trata-se de louvável inovação que, apesar de se tratar de PL, merece debate. As motivações da criação do projeto De acordo com o Censo de 20194, dos 72.395 domicílios analisados, 13.282 são locados. Trata-se de 18,34% da ocupação residencial do país. Diante disso, conforme trazido pela justificação do PL 3999/20, "caminhos que tornem a locação de imóveis mais competitiva, célere e viável, trarão evidentes benefícios a cada um dos atores que integram esse tipo de relação jurídica". De fato, qualquer advogado com o mínimo de prática ou cidadão com o mínimo de vivência sabe o quão tortuoso é um processo de despejo na justiça. E no curso desse processo, muitas vezes quando não há acordo ou o deferimento de medida liminar para desocupação, a morosidade é ainda mais prejudicial. Também é bom lembrar que, como ressalta a justificação do PL, boa parte dos locadores depende da locação de imóvel para subsistência. Razão pela qual, muitas vezes é preciso que o locador renuncie ao recebimento de considerável numerário para conseguir um acordo para uma rápida desocupação por parte do locatário. Por outro lado, se há o inadimplemento do aluguel é notório que o contrato de locação merece ser desfeito. Esse desfazimento pode muito bem ser respaldado pelos profissionais de direito, dotados de fé pública, que são os notários. Para o processamento do despejo, o PL respeitou ainda as competências dos titulares dos cartórios. Sendo que do procedimento participarão o tabelião de notas e o registrador de títulos e documentos, conservando sua competência para o envio de notificações extrajudiciais. Em seguida, passa-se a tratar de alguns aspectos do procedimento. A hipótese do despejo extrajudicial De acordo com a lei 8.245/1991, há inúmeras razões que motivam a ação de despejo, dentre as quais a não apresentação de novo fiador em virtude da exoneração do original, a sublocação não autorizada, infração contratual, etc. No entanto, cuidou o PL por autorizar o despejo extrajudicial somente nos casos do art. 9º, III, da lei 8.245/1991, ou seja: a falta de pagamento de alugueis e demais encargos. É o que se lê no art. 66-A: o procedimento de despejo extrajudicial, previsto nos arts. 66-B ao 66-H, aplica-se, exclusivamente, às hipóteses de desfazimento do contrato de locação por falta de pagamento, nos termos do art. 9º, III desta lei. Portanto, acertadamente o PL deixa de autorizar o despejo extrajudicial para casos que envolvam análise probatória mais rigorosa. O despejo extrajudicial e institutos assemelhados no direito comparado Quando se fala em inovação legislativa, é natural a pesquisa da inovação no direito comparado. Embora, em pesquisa, não se tenha encontrado exatamente um "despejo extrajudicial" no direito estrangeiro, alguns países têm iniciativas legislativas que visam a redução de prazos para maior celeridade. Em Portugal, o decreto-lei 1/13 criou uma modalidade especial de despejo, através do BNA - Balcão Nacional de Arrendamento. Essa modalidade oferece prazos mais curtos que o despejo tradicional no país e conta com a participação do poder judiciário. Na França, o huissier (oficial de justiça) desempenha um relevante papel no despejo5. Quando do inadimplemento, o oficial de justiça notifica o locatário, tentando encontrar uma solução amigável. Não havendo êxito, é solicitada uma ordem de despejo ao juiz. Na Espanha, o despejo ocorre no poder judiciário, mas a lei processual civil6 oferece procedimentos sumários para o despejo por falta de pagamento, com prazos mais curtos. Verificada essa questão, passa-se a tratar de como funcionaria o procedimento de despejo extrajudicial, caso o PL seja convertido em lei. Leia a coluna na íntegra. _______ 1 Há, no meio jurídico, aqueles que criticam o nome desjudicialização. Como se o prefixo "des" trouxesse a conotação de pura negação da judicialização, sem refletir os objetivos construtivos por trás do movimento jurídico.  2 Informação colhida na justificação apresentada no projeto de lei nº 3999/2020, que tramita na Câmara dos Deputados. 3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. 4 Disponível aqui. 5 Lei nº 89-462, de 6 de julho de 1989, que alterou a Lei nº 86-1290, de 23 de dezembro de 1986. 6 Ley 1/2000, de 7 de enero, de Enjuiciamiento Civil (Lei de Processo Civil).
1. Introdução  É possível a inclusão de gênero neutro no registro civil, seja por decisão judicial ou ato de Oficial do Registro Civil de Pessoas Naturais? Este é o desafio proposto para este paper, que analisará o arcabouço histórico, jurisprudencial e constitucional brasileiro para chegar ao seu objetivo. Preliminarmente, contudo, no intuito de dissipar quaisquer confusões terminológicas, cabe apontar as corretas definições acerca dos conceitos de sexo, orientação sexual e gênero. Quanto ao primeiro, pode-se caracterizar o sexo individual de um ser humano como "características biológicas e anatômicas que a pessoa apresenta, associadas ao feminino ou masculino"1. Assim, para definir o sexo de um indivíduo após o nascimento, no caso do macho (sexo masculino), deverá o médico - por meio de constatação visual do fenótipo do recém-nascido - verificar se este apresenta um pênis e bolsa escrotal2. Caso ausente essas características, o sexo do recém-nascido será caracterizado como fêmea/mulher (sexo menino)3. Há, ainda, o caso do intersexo: indivíduos que, portadores de ADS - Anomalias de Diferenciação Sexual, nascem com variação de caracteres sexuais que dificultam sua identificação biológica como totalmente feminina ou totalmente masculina4. Nesses três casos, após a constatação - feita pelo médico - do sexo (masculino, feminino ou intersexo) do recém-nascido, aquele ficará responsável por emitir a Declaração de Nascido Vivo, que dentre outras informações relevantes, indicará o sexo atribuído ao novel cidadão, conforme indicado ao art. 4º da lei 12.662/12. Por sua vez, o conceito de orientação sexual pode ser caracterizado como a "capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas"5. Trata-se de conceito, a exemplo do sexo (com o reconhecimento dos intersexos), que também está em expansão: conquanto se entendia orientação sexual se limitava a "hétero", "homossexual" ou "bissexual", hoje se fala em dezenas de diferentes orientações sexuais. Por fim, é importante definir o conceito de gênero que, nos termos do voto da relatora min. Nancy Andrighi nos autos do REsp 2.135.967/SP, configura "profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos". Cabe lembrar que o gênero binário está associado aos dois gêneros positivados em lei pela sociedade: o masculino e o feminino. Portanto, nota-se que um indivíduo binário pode ser cisgênero ou transgênero. Nesse sentido, conquanto "cisgênero é o termo usado para se referir a uma pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhe foi atribuído ao nascer (sexo biológico), transgênero é aquela cuja identidade de gênero difere do sexo biológico"6. Por fim, há as pessoas não binárias, que são "aquelas que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou feminino, seja por se verem com características de ambos os gêneros (fluídos), seja por não se identificarem com nenhum dos gêneros (sem gênero)"7, cujo registro no RCPN é o objeto desta exposição. Como se adianta, conquanto alterações legislativas, administrativas e jurisprudenciais tenham resultado na possibilidade jurídica de pessoas transgêneras requererem a alteração de prenome e gênero de acordo com sua autoidentificação, será visto que esses avanços levaram em consideração a lógica binária de gênero masculino/feminino, não mencionando os indivíduos não binários ou de gênero neutro, o que torna a hipótese analisada complexa do ponto de vista jurídico e socialmente relevante para os indivíduos afetados. Leia a coluna na íntegra. _______ 1 Definições dadas pelo PL 134/18, que trata do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero que, nos termos do art. 1º da mens legis, "busca promover a inclusão de todos, combater e criminalizar a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos e das minorias sexuais e de gênero". 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez.2024. 3 Para maiores reflexões, recomenda-se a consulta da obra: CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez.2024. 5 Definições dadas pelo PL 134/18, que trata do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. 6 Trecho do voto da relatora no REsp 2.135.967/SP. 7 Trecho do voto da relatora no REsp 2.135.967/SP.
quarta-feira, 23 de julho de 2025

Walter Ceneviva (1928-2025)

Nesta terça-feira, 22/7/2025, aos 97 anos de idade, o advogado, jurista e professor Walter Ceneviva faleceu nesta capital de São Paulo. Nesta oportunidade, junto-me aos muitos juristas brasileiros nesta última homenagem a um grande professor e autor de tão grande importância para o registro imobiliário pátrio. Ceneviva frequentou os cartórios brasileiros desde o final da década de 70, quando veio a lume o seu "Lei de Registros Públicos Comentada", cuja primeira edição foi lançada em 1979 pela grande editora brasileira Saraiva.  Lembro-me que o seu livro tornou-se fundamental para a minha atividade ainda quando exercia a função de escrevente de um cartório de Registro de Imóveis em São Bernardo do Campo. Foi um companheiro constante e fiel ao longo da minha trajetória profissional, acompanhou-me nas andanças pelo interior do Estado e ainda se acha aqui, ao meu lado, numa estante da Biblioteca Medicina Animæ.  Ceneviva era articulista da Folha de São Paulo e dirigiu a coluna "Letras Jurídicas", no caderno "Cotidiano", por quase 30 anos, onde pode divulgar os lançamentos de livros do IRIB, dando sempre o destaque devido, com comentários breves, porém sempre precisos e adequados. A ele devo uma palavra de agradecimento pelo acolhimento em sua coluna. Mais tarde, Walter Ceneviva lançou outro livro de consulta obrigatória: "Lei dos Notários e dos Registradores Comentada", de 1996, além de outros títulos relacionados com o Registro de Imóveis. Acerca da importância da doutrina de Ceneviva na jurisprudência do STJ, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva deixou consignado: "Estes são apenas alguns poucos exemplos da enorme influência exercida pela doutrina de Walter Ceneviva na uniformização do Direito federal brasileiro, sobretudo no que tange à interpretação e aplicação da lei dos registros públicos e da lei dos notários e dos registradores. São incontáveis os acórdãos do STJ em que seu nome figura com destaque entre os doutrinadores de escol citados como autoridades e como referência analítica. Augura-se a Walter Ceneviva, destacado intelectual e professor, uma longa e continuada produção doutrinária, em benefício da certeza e da segurança na aplicação do Direito."1 Estivemos juntos em Moscou por ocasião do XIV Encontro Internacional do CINDER - Centro Internacional de Direito Registral, no ano de 2003, ocasião em que conheceu registradores do mundo todo congregados no tradicional encontro do CINDER.  Ceneviva era um homem amável, cordato e muito atencioso. Um gentleman, como se dizia. No ano de 2005 ele nos visitaria no Quinto Registro de Imóveis em São Paulo, quando presenteou-me com uma nova edição de sua conhecida obra. Falamos de registro, jornalismo, música e tradições jurídicas paulistanas.  Ceneviva bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Turma IV Centenário, 1954). Inscreveu-se na OAB em 1959 (OAB/SP 10.008). Foi consultor geral da República em 1961, mestre em Direito Civil pela PUC (1978) e regente da Cadeira de Direito Civil na mesma faculdade. O professor afastou-se do jornalismo e passou a viver com mais discrição. Deixa muitas saudades. Em nome dos registradores brasileiros, que tive a honra de representar à frente do IRIB, agradeço ao grande jurista que tanta contribuição ofereceu à nossa especialidade. _______ 1 Disponível aqui.
Introdução A violência patrimonial é uma das formas mais silenciosas - e muitas vezes naturalizadas - de violação de direitos praticada contra mulheres e idosos no Brasil. Longe dos holofotes das agressões físicas ou verbais, ela opera com sutileza e aparente legalidade: doações forçadas, procurações obtidas sob coação, transferências patrimoniais com vícios de vontade e atos praticados em evidente estado de vulnerabilidade. Nesse cenário, os cartórios não são apenas receptores de declarações de vontade formalmente manifestadas, mas atores institucionais com capacidade - e dever - de exercer cautela social. Investidos da função pública de conferir segurança jurídica aos atos da vida civil, os notários e registradores atuam como verdadeiros guardiões da legalidade, da boa-fé objetiva e da dignidade da pessoa humana. A crescente judicialização de atos extrajudiciais viciados por coação ou fraude tem evidenciado um ponto crítico: a mera aparência de legalidade não basta. Quando o agente delegado presencia sinais concretos de abuso, a omissão pode se transformar em conivência jurídica - com impactos graves e irreversíveis para o patrimônio e a vida de pessoas vulneráveis. Este artigo propõe uma reflexão sobre o papel dos cartórios como agentes de proteção patrimonial, discutindo os limites da atuação notarial e registral diante de situações de suspeita, os fundamentos jurídicos do dever de cautela, os riscos de responsabilização por omissão, e boas práticas que vêm sendo adotadas por delegatários em diferentes partes do país. A violência patrimonial: conceito, números e perfis de vulnerabilidade A violência patrimonial é uma forma específica de abuso que atinge diretamente a autonomia e a dignidade da vítima, com impactos muitas vezes mais duradouros que a violência física. Segundo a Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006), ela se configura como "qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos". No Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), tal violência também é reconhecida como grave violação de direitos fundamentais. Na prática, trata-se de um fenômeno com múltiplas faces: filhos que convencem pais idosos a transferirem imóveis com base em laços afetivos e promessas vazias; maridos que retiram bens comuns do casal e forçam a dependência econômica; familiares que forjam documentos para se apropriar de heranças ou pensões. Em todos esses casos, há um denominador comum: o esvaziamento do poder de autodeterminação da vítima, quase sempre em situação de vulnerabilidade física, emocional ou informacional. Dados do governo federal apontam que os idosos são as maiores vítimas desse tipo de violência no Brasil, com destaque para os casos de retenção de cartões bancários, desvio de aposentadorias e transferências de bens imóveis feitas sob pressão psicológica. Já entre as mulheres, o ciclo de violência doméstica frequentemente inclui o controle financeiro e a supressão da independência patrimonial como mecanismos de dominação. Casos recentes com grande repercussão pública, como o da atriz Larissa Manoela - que denunciou o controle total de seus bens pelos próprios pais - evidenciam que a violência patrimonial não se restringe a populações de baixa renda ou sem acesso à educação formal. Ela atravessa classes sociais, assume roupagens variadas e se esconde por trás de laços familiares, afetivos e de confiança. A maior parte dos atos de violência patrimonial é formalizada, ironicamente, dentro da legalidade aparente - com escrituras públicas, registros de imóveis ou procurações lavradas e registradas sem qualquer resistência institucional. É nesse ponto que os cartórios se tornam peças-chave: são eles que, muitas vezes, testemunham os sinais de abuso antes de qualquer outra autoridade pública. Se houver silêncio institucional nesse momento, o dano pode se consumar com aparência de legalidade - mas com vício insanável de origem. O notário e o registrador como "gatekeepers" da legalidade e da boa-fé No Brasil, os cartórios exercem uma função pública por delegação do Estado. Embora frequentemente percebidos como simples entes de formalização documental, os serviços notariais e de registro possuem, em sua essência, uma função protetiva e preventiva de altíssima relevância social. São responsáveis por conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos - e, mais que isso, por zelar pela higidez da vontade manifestada. Ao lavrar uma escritura ou registrar um título, o delegatário não é um espectador passivo. Ele atua como guardião da legalidade e da boa-fé objetiva, devendo verificar se os requisitos formais e materiais do ato estão presentes e se há vícios evidentes que comprometam sua validade. Essa responsabilidade é ainda mais acentuada quando estão em jogo atos com impacto patrimonial significativo - como a doação de bens imóveis, lavratura de testamentos, outorga de procurações amplas ou renúncia de direitos. Em contextos de vulnerabilidade - como no atendimento a idosos com sinais de confusão mental ou a mulheres acompanhadas de pessoas que tomam a palavra em seu nome - a função do notário e do registrador se amplia da legalidade formal para a cautela ética e social. Nesses casos, o que está em jogo não é apenas a técnica jurídica do ato, mas a própria integridade da vontade manifestada. Nesse sentido, o delegatário atua como um verdadeiro "gatekeeper" (guardião de acesso) - expressão consagrada na literatura estrangeira para designar profissionais que exercem uma função de filtro entre a legalidade e a moralidade social. Seu papel não é julgar, mas perceber, questionar, interromper e, se necessário, recusar ou postergar o ato até que a vontade se mostre de fato livre, consciente e informada. O Provimento nº 149/2023 do CNJ, por exemplo, ao tratar da atuação extrajudicial em casos envolvendo crianças e adolescentes em situação de acolhimento, reforça esse dever ampliado de zelo com a parte vulnerável, evidenciando uma tendência de evolução da função extrajudicial para além da mera formalização. Essa lógica pode e deve ser aplicada, por analogia, a outros grupos vulneráveis, como idosos e mulheres em contextos de dependência emocional ou financeira. Ignorar sinais de manipulação ou coação pode, portanto, representar não apenas falha ética, mas também responsabilidade jurídica. Afinal, quem presencia o ato e chancela sua validade, mesmo diante de indicativos de vício, pode ser chamado a responder civil e até disciplinarmente por omissão gravosa. Quando desconfiar? Sinais práticos de coação e abuso A atuação proativa do notário ou registrador em situações de suspeita não exige dotes investigativos ou bola de cristal - exige atenção, sensibilidade profissional e compromisso com a função pública que exerce. A coação raramente se apresenta em forma explícita. Ela se manifesta por gestos, olhares, silêncios constrangedores, discursos ensaiados e contradições. Saber reconhecer esses sinais é tão essencial quanto saber lavrar uma escritura pública. Algumas situações demandam atenção redobrada: Presença de acompanhantes que se sobrepõem à vontade do outorgante: quando o interessado é impedido de responder por si mesmo, sendo interrompido ou substituído em sua fala por filhos, cônjuges ou terceiros que "explicam" o que ele quer dizer. Em muitos casos, a própria linguagem corporal do acompanhante transmite domínio ou controle sobre a situação. Idosos em estado de aparente confusão, apatia ou desconexão com o ato: pessoas que demonstram não compreender a extensão patrimonial do que estão fazendo ou que revelam surpresa com a leitura do ato. Frases como "ah, eu achei que era só pra facilitar", "foi meu filho que pediu" ou "me disseram que era o melhor a fazer" indicam ausência de compreensão plena. Contradições internas entre o conteúdo do ato e as manifestações verbais: por exemplo, uma doação integral de bem imóvel a um único herdeiro, quando o declarante diz "vou fazer isso só pra facilitar a administração, mas é de todos os filhos". A divergência entre a intenção declarada e o efeito jurídico do ato deve acender o alerta. Situações inusitadas ou fora do padrão para o perfil do outorgante: lavratura de procuração amplíssima por idoso sem instrução formal, testamento de última hora feito sob pressão hospitalar, venda de imóvel abaixo do valor de mercado por parte de pessoa em visível fragilidade emocional. Pressa injustificada ou resistência à leitura integral do documento: quando os interessados pressionam pela assinatura imediata, recusam a leitura pública ou demonstram impaciência com explicações técnicas, há forte indício de que a formalização está sendo usada apenas como meio de legitimar uma vontade já distorcida. É claro que nenhum desses sinais, isoladamente, prova a existência de coação. Mas a presença de dois ou mais deles em um mesmo atendimento deve levar o agente a parar, repensar e agir com prudência reforçada. A dúvida razoável, nesse contexto, não é fraqueza: é um indício de que o dever de cautela precisa se sobrepor à rotina cartorial. Suspender o ato, solicitar documentação complementar, exigir atendimento reservado ou até sugerir a presença de um curador ou defensor público são medidas preventivas legítimas - e, em muitos casos, absolutamente necessárias. O que fazer? Boas práticas e protocolos de proteção Detectar sinais de coação ou vulnerabilidade é apenas o primeiro passo. A responsabilidade institucional do cartório não se encerra na percepção do risco - ela se projeta sobre a atitude tomada diante do risco. É nesse ponto que entram as boas práticas, os protocolos internos e a consciência de que a função notarial e registral pode ser exercida com zelo sem se tornar arbitrária. Aqui estão algumas diretrizes já adotadas por cartórios modelo no Brasil e que podem servir de referência: 1. Suspensão cautelar do ato Se houver dúvida relevante quanto à manifestação de vontade, o ato pode (e deve) ser suspenso. A suspensão não é negativa, mas ato de prudência administrativa, especialmente em escrituras de doação, procurações irrestritas ou renúncias patrimoniais. O registrador ou tabelião deve formalizar a justificativa em termos objetivos, com base nos sinais identificados. 2. Atendimento reservado Quando possível, o atendimento à parte vulnerável deve ocorrer sem a presença de terceiros. Isso permite ao delegatário verificar a espontaneidade da manifestação de vontade, sem interferência de acompanhantes. Em muitos casos, o simples ato de ficar a sós com o outorgante revela constrangimentos ocultos ou vícios latentes. 3. Registro interno de atendimento atípico Cartórios que prezam pela cautela mantêm registros próprios de atendimentos incomuns - como uma espécie de relatório confidencial sobre o que motivou a suspensão, a recusa ou a postergação de um ato. Essa prática não só preserva o delegatário contra acusações futuras, como demonstra diligência objetiva. 4. Sinalização a órgãos competentes Quando houver suspeita concreta de abuso reiterado - especialmente em relação a idosos - o cartório pode encaminhar comunicação ao Ministério Público, à Defensoria Pública ou aos conselhos tutelares (em caso de incapazes). Não se trata de denúncia formal, mas de dever cívico e funcional de proteção da parte vulnerável, nos termos da legislação protetiva. 5. Protocolo mínimo de avaliação de risco Cartórios podem (e deveriam) estabelecer protocolos internos padronizados, com um checklist de indícios de coação e critérios para acionar medidas preventivas. Isso garante segurança jurídica ao ato e evita decisões arbitrárias. 6. Capacitação continuada da equipe Escreventes, substitutos e demais atendentes precisam estar aptos a reconhecer sinais de abuso, saber como agir e quando escalar o atendimento ao tabelião ou oficial. Cartórios socialmente responsáveis capacitam sua equipe com noções básicas de vulnerabilidade, violência patrimonial e atendimento humanizado. Responsabilidade do notário/registrador: Limites e fundamentos A atuação dos delegatários não é apenas uma função pública delegada pelo Estado - é também uma função técnica sujeita a responsabilidade civil, disciplinar e, em certos casos, até criminal. A ideia de que o cartório é uma "caixa registradora da vontade alheia" já foi superada há muito. O notário e o registrador têm o dever jurídico de recusar atos que ofendam a legalidade, a moralidade e a boa-fé objetiva. Ato jurídico formal não é sinônimo de ato jurídico válido Muitos atos viciados por coação ou simulação passam ilesos pela lavratura cartorial porque aparentam legalidade formal. No entanto, a jurisprudência brasileira já consolidou que a forma não convalida a vontade viciada. Assim, se o tabelião presencia indicativos de vício e ainda assim chancela o ato, pode ser responsabilizado pelos danos daí decorrentes. Responsabilidade civil do delegatário A responsabilidade civil pode emergir quando a omissão ou a conduta negligente do cartório concorre diretamente para a lesão patrimonial sofrida pela vítima. Exemplo: se um tabelião lavra escritura de doação de imóvel por uma idosa de 92 anos, visivelmente confusa, sem leitura prévia e sem atendimento reservado, e depois se comprova que a vontade foi induzida ou simulada, há nexo causal claro entre a omissão funcional e o dano causado. A indenização pode envolver perdas patrimoniais diretas (ex: valor do bem alienado), lucros cessantes e até danos morais - tanto da vítima quanto, eventualmente, de herdeiros prejudicados. Responsabilidade disciplinar O Código de Normas das corregedorias estaduais, em geral, impõe ao notário e ao registrador o dever de zelar pela autenticidade, legalidade e segurança dos atos, podendo responder administrativamente por omissões, atos contrários ao interesse público ou que afrontem os princípios da função pública. Suspensões, multas e até perda da delegação podem ser aplicadas em casos graves de conivência com atos ilegítimos, especialmente quando se comprova que o delegatário teve condições de agir e preferiu o silêncio conveniente. Limites da responsabilidade Claro: o delegatário não tem poder investigativo nem pode presumir má-fé sem fundamento. Sua responsabilidade não é objetiva, mas sim baseada na existência de sinais concretos de irregularidade que foram ignorados sem justificativa plausível. Ou seja: a exigência é razoável e compatível com sua formação técnica e atribuições legais. Fundamentação jurídica do dever de cautela Princípio da legalidade e da boa-fé objetiva (CC, art. 422). Poder-dever de recusa de atos ilegais ou abusivos (art. 30 da lei 8.935/94). Função social do serviço notarial e registral. Dever de indenizar por omissão culposa (arts. 186 e 927 do Código Civil). Princípio da dignidade da pessoa humana como valor estruturante da atuação registral. Em resumo: o preço da omissão pode ser alto - e não só para a vítima, mas para a própria credibilidade institucional do serviço extrajudicial. Proteger a vontade livre, informada e legítima não é ato de coragem heroica, mas sim obrigação funcional de quem exerce a fé pública. Conclusão Em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais e relações de poder nem sempre visíveis, os cartórios ocupam uma posição estratégica e insubstituível: são pontos de contato direto entre o Estado e o cidadão no exato momento em que decisões patrimoniais ganham forma jurídica. Esse poder, legitimado pela fé pública, carrega consigo uma responsabilidade proporcional. A violência patrimonial contra mulheres e idosos, embora muitas vezes travestida de legalidade, revela-se como grave violação de direitos fundamentais - e, não raro, tem início ou se concretiza com a chancela de atos notariais e registrais. Por isso, ignorar sinais de abuso é mais do que omissão: é abdicar da função social que sustenta o próprio serviço extrajudicial. Cartórios que atuam com prudência, escuta ativa, atendimento humanizado e protocolos preventivos não estão extrapolando sua função - estão cumprindo seu dever com excelência e dignidade institucional. A formação humanista dos delegatários, o estímulo à capacitação das equipes, a padronização de boas práticas e o diálogo com o Ministério Público e a Defensoria são caminhos possíveis, reais e já em andamento em algumas serventias modelo do país. Falta, ainda, ampliar essa consciência para além das exceções - transformando o zelo com a parte vulnerável de boa prática em padrão de atuação. A Constituição da República, ao consagrar a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade como fundamentos da ordem jurídica, impõe ao Estado e a seus delegatários a obrigação de atuar com mais do que técnica: exige cautela ética, escuta ativa e compromisso com o bem comum. É tempo de reconhecer: o cartório é, sim, um agente de proteção patrimonial. E negar esse papel é fechar os olhos para o futuro do próprio serviço extrajudicial. Referências bibliográficas Ministério Público do Estado do Mato Grosso. Violência patrimonial: entenda o que é e como afeta a vida de muitas mulheres. Disponível aqui. IBDFAM. Caso Larissa Manoela: especialista explica o que caracteriza a violência patrimonial. Disponível aqui. Conselho Nacional de Justiça. Revista CNJ - artigo sobre cartórios e vulnerabilidade. Disponível aqui. Casa Civil da Presidência da República. Violência patrimonial e financeira: pessoas idosas são as maiores vítimas no Brasil. Disponível aqui. Agência Brasil. OAB alerta para o aumento de violência patrimonial contra idosos. Disponível aqui.
Introdução - O notariado à beira da revolução digital Vivemos um ponto de inflexão histórico. Pela primeira vez, uma tecnologia não apenas sugere modelos genéricos ou responde comandos simples, mas simula com coerência e profundidade a linguagem jurídica. Ferramentas baseadas em inteligência artificial generativa - como Chat GPT, Gemini e Claude - já redigem testamentos, contratos com cláusulas complexas, aditamentos e justificações com fluência e rapidez. Nesse novo cenário, em que o algoritmo escreve, a pergunta central é inevitável: quem assegura a validade jurídica do ato? O crescimento vertiginoso da IA reacende um debate sensível ao Direito: qual o verdadeiro valor da função notarial e registral em uma era em que qualquer cidadão pode gerar um documento digital com aparência jurídica sofisticada? A resposta repousa em fundamentos inegociáveis: a responsabilidade civil, a fé pública e o dever de controle de legalidade exercido pelos delegatários do serviço extrajudicial. Em tempos de automatização sedutora, é preciso reafirmar - com rigor técnico e visão estratégica - o que pode ser delegado à máquina e o que permanece como atribuição indelegável da autoridade humana. Mais do que uma questão tecnológica, trata-se de um reposicionamento institucional. A IA não é inimiga do notariado, mas sua presença expõe uma urgência: modernizar sem diluir competências essenciais. O tabelião não é um mero redator de modelos - é operador jurídico com fé pública e poder estatal para conferir validade, eficácia e segurança jurídica a atos privados e públicos. Este artigo parte dessa premissa: a IA veio para ficar. Cabe ao notariado não resistir à inovação, mas preservar sua essência enquanto assume o protagonismo técnico na era digital. O futuro da atividade será definido no ponto de encontro entre inteligência artificial e responsabilidade jurídica - ou será apenas uma sombra de sua função original. O poder da IA: Minutas em segundos, contratos sob medida A inteligência artificial generativa já consegue produzir, com rapidez e impressionante coesão textual, documentos que antes exigiam conhecimento jurídico estruturado: testamentos, escrituras de doação com cláusulas restritivas, contratos de compra e venda complexos, pareceres técnicos e até textos fundamentados com remissões legais e jurisprudenciais. Esse salto tecnológico representa um divisor de águas para a atividade notarial. A elaboração de atos jurídicos, que pressupunha análise minuciosa, diálogo com as partes e aplicação do direito ao caso concreto, passou a ser aparentemente "resolvida" por linhas de código. No entanto, o que a IA entrega em agilidade, não entrega em responsabilidade. A confiança social no notário não decorre da estética textual de um documento, mas da garantia de legalidade, validade e segurança jurídica que ele confere ao ato. A crescente adoção de minutas geradas por IA escancara um paradoxo jurídico: quem responde por eventuais nulidades, omissões ou cláusulas inválidas inseridas por um sistema automatizado? Se o tabelião se limita a formalizar o instrumento sem a devida intervenção crítica, há omissão funcional? Há responsabilidade civil? A resposta é clara: sim. O delegatário permanece vinculado ao princípio do controle de legalidade (art. 4º do provimento CNJ 100/20), à responsabilidade objetiva decorrente da delegação estatal e à função de orientação jurídica prevista nos Códigos de Normas estaduais. Ainda que o conteúdo venha "pronto", o dever jurídico permanece: examinar o ato, verificar a capacidade das partes, a licitude do objeto, a clareza das cláusulas e os efeitos pretendidos. A fé pública não é um carimbo protocolar - é um instituto de garantia que impõe vigilância ativa e responsabilidade jurídica indelegável. Nesse cenário, o notário não pode assumir papel passivo diante da automatização. Pelo contrário: é justamente agora que sua atuação técnica se torna ainda mais relevante. O futuro da função não está em resistir à tecnologia, mas em reafirmar sua autoridade jurídica sobre os atos - inclusive os redigidos por máquinas. O limite do algoritmo: O que a IA não entrega (e talvez nunca entregue) Por mais avançada que seja, nenhuma IA detém fé pública, responsabilidade civil ou discernimento jurídico humano. E é justamente aí que mora o ponto de ruptura: a IA pode gerar texto, mas não assume dever jurídico nem responde por consequências. O notário, ao contrário, é um agente investido de autoridade pública. Seu papel não se limita à produção documental, mas envolve garantir a higidez do ato jurídico, preservar a autonomia da vontade das partes e assegurar que o instrumento lavrado esteja em conformidade com o ordenamento. Isso exige mais que técnica: exige inteligência jurídica, responsabilidade institucional e sensibilidade humana. A tecnologia não é treinada para ouvir o silêncio da parte mais frágil nem para detectar o desconforto de quem assina pressionado - e isso, nas serventias extrajudiciais, faz toda a diferença entre um ato nulo e um ato válido. Além disso, a inteligência artificial não possui responsabilidade patrimonial. Quando um erro ocorre em um contrato redigido por IA, quem arca com os prejuízos? Certamente não o sistema. Já o tabelião responde objetiva e pessoalmente pelos danos decorrentes de sua atuação - conforme reiterada jurisprudência e previsão normativa nas leis de regência da atividade notarial. Outro ponto: a IA não possui capacidade decisória no plano jurídico. Ela simula argumentação, mas não interpreta conforme os princípios constitucionais, nem pondera valores conflitantes. Isso a torna, no máximo, uma ferramenta auxiliar - nunca um substituto do profissional responsável. O notariado é, por essência, uma função de filtro jurídico. Ele está na trincheira da desjudicialização justamente porque oferece um equilíbrio entre celeridade, tecnicidade e responsabilidade. A fé pública não é uma tecnologia: é uma garantia estatal lastreada na atuação humana qualificada. Portanto, a ideia de que a IA poderia "assumir" funções notariais ignora esses limites estruturais. Pode-se automatizar o texto, o formulário, a estética do documento. Mas não se automatiza o juízo de legalidade, a prudência jurídica nem o compromisso institucional com a segurança jurídica. Integração inteligente: IA como aliada da função notarial Se a inteligência artificial não substitui a função notarial, a pergunta inevitável passa a ser outra: como incorporá-la de forma estratégica, sem comprometer os pilares da segurança jurídica e da fé pública? A resposta está na integração inteligente - um modelo em que a IA atua como ferramenta de apoio à atividade do delegatário, jamais como protagonista do ato jurídico. Nesse arranjo, o notário permanece como agente central de legalidade e responsabilidade, mas utiliza a tecnologia para potencializar sua atuação técnica, aumentar a eficiência e aprimorar a experiência do usuário. Exemplos já são visíveis em algumas serventias mais tecnicamente estruturadas. A IA pode ser utilizada, por exemplo: Na triagem prévia de demandas, auxiliando o atendimento inicial com respostas padronizadas de orientação geral; Na sugestão automatizada de cláusulas contratuais, extraídas de um banco parametrizado de modelos validados previamente pela equipe jurídica; Na análise sintática de documentos e na detecção preliminar de incongruências ou omissões formais; Na organização de dados recorrentes para preenchimento de campos obrigatórios, acelerando a lavratura de atos repetitivos (como procurações, autorizações, declarações simples etc.). Esses mecanismos, contudo, não substituem o juízo técnico do tabelião, nem a sua atuação como garantidor da legalidade e da autonomia das partes. A curadoria jurídica permanece intransferível. Mais do que automatizar, a proposta é usar a IA como um braço auxiliar para qualificar a entrega final ao usuário. Um cartório que se vale da IA para agilizar etapas burocráticas, liberar tempo do corpo técnico e investir mais na escuta ativa, no aconselhamento jurídico e na personalização dos atos, estará ampliando - e não reduzindo - o valor da sua função institucional. Esse modelo de convivência exige cautela, mas também visão estratégica. É hora de debater protocolos éticos, padrões de confiabilidade, filtros de segurança jurídica e limites para o uso de sistemas automatizados no âmbito notarial. A regulamentação desse processo não pode ser empurrada apenas para o futuro: deve ser construída desde já, com a participação ativa dos notários e registradores, sob pena de o setor perder o protagonismo sobre seu próprio destino. A fé pública digital - se é que podemos chamá-la assim - não será uma extensão da IA, mas da inteligência jurídica que conduz sua aplicação. A tecnologia pode ser treinada para escrever. Mas ainda depende do humano para compreender, ponderar, validar e garantir. Fé pública, controle de legalidade e a estrutura jurídica da função notarial A função notarial não é uma prática de conveniência, tampouco uma formalidade protocolar. Ela é expressão de um modelo jurídico de segurança negocial preventiva, consagrado no ordenamento brasileiro como atividade delegada do poder público (art. 236 da Constituição Federal), regida por legislação específica e dotada de fé pública como instrumento de eficácia jurídica e proteção da confiança legítima. O notariado de tipo latino, adotado no Brasil, funda-se na ideia de que os negócios jurídicos, especialmente os atos translativos ou constitutivos de direitos reais, exigem um controle jurídico prévio e técnico - exercido por um agente imparcial, com responsabilidade civil objetiva e fé pública atribuída pelo Estado. Essa concepção vai muito além da produção documental: trata-se da tutela do negócio jurídico em si, conforme já reconheceu o STF ao afirmar que a função notarial atua como filtro de legalidade e de prevenção de litígios, fortalecendo a desjudicialização responsável e protegendo o jurisdicionado da insegurança contratual. A fé pública, nesse contexto, não é uma qualidade pessoal do tabelião, mas um instituto jurídico que confere presunção relativa de veracidade e autenticidade aos atos por ele praticados. A lavratura de um instrumento público implica que houve intervenção estatal qualificada, juízo de legalidade, identificação plena das partes, verificação da vontade, do objeto, da forma e da finalidade lícita do ato. É por isso que a responsabilidade do tabelião é elevada: responde civilmente pelos prejuízos causados por erro, omissão ou negligência, independentemente de dolo, e pode ter a delegação cassada em caso de infrações graves. Não há ferramenta tecnológica que suporte esse grau de responsabilização. Sob a ótica dos princípios gerais do Direito, a atuação notarial está intrinsecamente ligada à segurança jurídica, à confiança legítima, à boa-fé objetiva e à função social dos contratos. E, portanto, não pode ser confundida com serviços automatizados, mesmo que eficientes. A IA, ainda que sofisticada, não é capaz de assumir essa posição jurídica, nem de substituir o papel institucional do notariado. Neste sentido, a integração tecnológica só é válida se vier subordinada à preservação da função jurídica essencial do notário, com respeito aos princípios que estruturam o sistema. Sem isso, corre-se o risco de substituir segurança jurídica por risco automatizado - e isso o Direito não tolera. Conclusão - modernizar sem diluir: A resposta do notariado é estratégica A IA generativa chegou - e não há retorno. Ignorar sua presença seria ingenuidade. Mas admitir que ela possa substituir a função notarial seria um erro conceitual, jurídico e institucional de proporções graves. A função notarial não é uma ferramenta de redação de documentos, mas uma instituição jurídica estruturante da segurança privada no Estado de Direito. É sustentada por princípios, normas constitucionais, responsabilidade civil objetiva, controle de legalidade e pela confiança pública delegada pelo Estado. Nenhum algoritmo, por mais treinado que seja, possui essas credenciais. Isso não significa resistir à inovação. Pelo contrário: significa liderá-la com consciência jurídica. O notariado deve assumir seu papel no processo de transformação digital, utilizando a tecnologia como instrumento de qualificação da atividade - e não como atalho para a precarização da fé pública. A IA pode ser uma aliada valiosa na racionalização de rotinas, na padronização de cláusulas, na filtragem inicial de demandas. Mas o que permanece insubstituível - e deve ser preservado com zelo - é a presença do tabelião como agente de legalidade, filtro jurídico e garantidor da segurança negocial. Neste novo cenário, o verdadeiro desafio não está na técnica, mas na identidade: como modernizar sem diluir? Como inovar sem abdicar da essência? A resposta exige protagonismo institucional, clareza conceitual e compromisso com a função pública delegada. A IA escreve com precisão. Mas não assume responsabilidade. Não responde por vícios. Não garante o Direito. O notariado, sim. __________ BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020. Dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos. WORLD ECONOMIC FORUM. AI Governance: A Holistic Approach to Implement Responsible Artificial Intelligence. Geneva: WEF, 2023. EUROPEAN NOTARIAL NETWORK (ENN). Artificial Intelligence and the Notarial Function. Brussels, 2022. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Obras e artigos sobre responsabilidade dos delegatários extrajudiciais.
Introdução O recente julgamento das ADIs 7.600, 7.601 e 7.608 pelo STF, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, representa um marco decisivo no movimento de desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro. Ao declarar a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais instituídos pela lei 14.711/23 (marco legal das garantias), em uma muito bem fundamentada decisão, o Tribunal estabeleceu importantes parâmetros interpretativos que, quando analisados com rigor sistemático, revelam uma distinção fundamental entre diferentes modalidades de desjudicialização. Uma leitura atenta dos fundamentos da decisão demonstra que o STF, ao validar constitucionalmente os procedimentos de busca e apreensão extrajudicial, baseou sua conclusão na delegação constitucional de funções a agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle do Poder Judiciário, conforme estabelecido no art. 236 da Constituição Federal. Esta fundamentação, contudo, produz um efeito interpretativo que não foi explicitamente declarado na decisão: a inconstitucionalidade implícita dos procedimentos análogos quando realizados por agentes privados desprovidos de fé pública, notadamente aqueles previstos no art. 8-E do decreto-lei 911/1969. A fundamentação constitucional da decisão: O paradigma do art. 236 da CF/1988 2.1. Os fundamentos da constitucionalidade O brilhante voto do ministro Dias Toffoli estabelece como ratio decidendi da constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais três elementos essenciais: a) A natureza constitucional da delegação: O relator reconhece que a desjudicialização legítima pressupõe a transferência de competências para agentes constitucionalmente legitimados, observando que "o credor fiduciário, mediante comprovação da mora, requererá ao oficial de registro de títulos e documentos que notifique o devedor fiduciante", destacando que "o oficial do cartório profere uma espécie de juízo administrativo sobre a defesa apresentada pelo devedor no procedimento extrajudicial". b) A fé pública como pressuposto de segurança jurídica: O voto enfatiza que "os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa. Ele realiza comunicações, faz um juízo administrativo sobre o não cabimento da dívida e averba a consolidação da propriedade, conforme o caso", sendo fundamental que "nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário. A averbação da consolidação da propriedade dispensa a intermediação judicial, correspondendo ao atesto da circunstância objetiva de ausência de quitação da dívida pelo devedor, o que pode ser realizado por agente imparcial dotado de fé pública". c) O controle do Poder Judiciário: O relator é categórico ao afirmar que "o procedimento se desenvolve perante oficial registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle judicial - possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988". 2.2. A interpretação conforme como delimitação constitucional Significativamente, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição aos parágrafos 4º, 5º e 7º do art. 8º- C do decreto-lei 911/1969, estabelecendo que "nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, devem ser assegurados os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor; a inviolabilidade do sigilo de dados; a vedação ao uso privado da violência; a inviolabilidade do domicílio; a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade". Esta interpretação conforme não representa uma mera recomendação, mas uma conditio sine qua non para a constitucionalidade do procedimento, estabelecendo limites intransponíveis que somente podem ser observados por agentes dotados das prerrogativas constitucionais adequadas. A lacuna sistemática: O silêncio sobre o art. 8-E 3.1. A omissão eloquente Uma análise sistemática da decisão revela uma omissão significativa: o STF não examinou expressamente a constitucionalidade do art. 8-E do decreto-lei 911/1969, que autoriza empresas privadas prestadoras de serviços aos Detrans estaduais a realizarem procedimentos de busca e apreensão extrajudicial. Esta omissão não é acidental - ela decorre da impossibilidade lógica de conciliar os fundamentos da constitucionalidade estabelecidos na decisão com a natureza jurídica destes agentes privados. 3.2. A ausência dos pressupostos constitucionais As empresas privadas referidas no art. 8-E carecem dos três elementos fundamentais que, segundo a decisão do STF, justificam a constitucionalidade da desjudicialização: a) Ausência de legitimação constitucional: Estas entidades não estão contempladas no modelo de delegação do art. 236 da CF/1988, operando à margem do sistema constitucional de transferência de funções públicas. b) Carência de fé pública: Desprovidas da prerrogativa da fé pública, seus atos não gozam da presunção de veracidade que fundamenta a segurança jurídica do procedimento extrajudicial. c) Escape ao controle judicial: Não estão submetidas ao regime de fiscalização do Poder Judiciário estabelecido para os serviços notariais e registrais, operando em uma zona de indefinição institucional. A doutrina da inconstitucionalidade por analogia negativa 4.1. O raciocínio jurídico implícito A metodologia interpretativa adotada pelo STF nas ADIs em análise estabelece um silogismo jurídico inequívoco: Premissa maior: A constitucionalidade da desjudicialização pressupõe delegação a agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle judicial (art. 236, CF/1988). Premissa menor: As empresas privadas do art. 8-E carecem de fé pública e não estão submetidas ao controle judicial estabelecido constitucionalmente. Conclusão necessária: Os procedimentos realizados por estas empresas são constitucionalmente ilegítimos. 4.2. A impossibilidade de interpretação conforme Diferentemente dos arts. 8-B a 8-D, que puderam receber interpretação conforme porque realizados por agentes constitucionalmente legitimados, o art. 8-E não comporta salvaguarda interpretativa. A ausência das prerrogativas constitucionais necessárias nos agentes privados torna impossível a compatibilização do dispositivo com os fundamentos estabelecidos na decisão. A violação dos direitos fundamentais 5.1. A reserva de jurisdição e a inviolabilidade domiciliar O próprio voto do ministro Dias Toffoli reconhece a precedência da ADI 1.668, na qual "o Tribunal analisou vários dispositivos relativos à criação e à organização da Agência Nacional de Telecomunicações. Dentre essas normas, constava preceito autorizador da realização de busca e apreensão pela agência, independentemente de ordem judicial. Tal norma foi considerada inconstitucional, por violar a inviolabilidade de domicílio". Se uma agência reguladora federal, dotada de poder de polícia e submetida a controles públicos específicos, não pode realizar busca e apreensão sem ordem judicial, com maior razão empresas privadas desprovidas de qualquer prerrogativa pública não podem exercer tais funções. 5.2. A vulnerabilidade procedimental A ausência de fé pública tornaria os procedimentos realizados por empresas privadas intrinsecamente vulneráveis. É que a ausência de fé pública implica que os documentos produzidos por entidades privadas têm valor de meros documentos particulares, sem a presunção de autenticidade e veracidade que caracteriza os instrumentos públicos". Esta vulnerabilidade probatória compromete não apenas a eficácia do procedimento, mas sua própria legitimidade constitucional, pois a diferença no regime probatório representa um dos principais riscos da desjudicialização para entidades sem fé pública. A vulnerabilidade probatória pode comprometer a própria finalidade da desjudicialização, que é conferir celeridade e segurança aos procedimentos. A jurisprudência consolidada do STF 6.1. O precedente da ADI 1.668 A decisão do STF na ADI 1.668, expressamente citada no voto vencedor, do ministro Dias Toffoli, estabeleceu que "a medida, efetuada sem ordem judicial, com base apenas no poder de polícia de que é investida a agência, desrespeita a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da Constituição)". Este precedente é diretamente aplicável ao caso das empresas privadas, que, desprovidas até mesmo de poder de polícia, carecem de qualquer fundamentação constitucional para a realização de medidas constritivas. 6.2. A coerência sistemática da jurisprudência A jurisprudência do STF tem sido consistente em exigir legitimação constitucional específica para a delegação de funções públicas. Como destacado no voto, "a jurisprudência do STF tem se orientado pela constitucionalidade de procedimentos extrajudiciais de execução", mas sempre condicionada à observância do modelo constitucional estabelecido. A interpretação sistemática da constituição 7.1. O princípio da unidade constitucional A interpretação sistemática da Constituição Federal não permite a criação de ilhas de imunidade constitucional. Se o art. 236 estabelece o modelo para delegação de funções públicas na área jurídica, não é constitucionalmente admissível que o legislador ordinário crie formas alternativas de delegação que contornem este paradigma. 7.2. A supremacia da Constituição Como observa a doutrina constitucional citada no artigo "A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais"1, "a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela realizada dentro dos estritos parâmetros do art. 236 da Constituição Federal, com a transferência de competências para agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle administrativo direto do Poder Judiciário". As consequências práticas da inconstitucionalidade 8.1. A insegurança jurídica sistêmica A operação de empresas privadas em procedimentos de busca e apreensão extrajudicial cria uma zona de insegurança jurídica que compromete todo o sistema. Como alertado na literatura especializada citada no artigo "A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais"1, "a judicialização posterior dos procedimentos extrajudiciais pode ser mais complexa e morosa do que a simples realização judicial do ato original, pois envolve não apenas o exame do direito material, mas também a análise da validade e regularidade do procedimento extrajudicial já realizado". 8.2. O efeito paradoxal Paradoxalmente, a tentativa de desjudicialização por meio de agentes ilegítimos pode resultar em maior judicialização, contrariando o objetivo do movimento, visto que os atos praticados por agentes desprovidos de fé pública são absolutamente vulneráveis a qualquer alegação de irregularidade, quando o ônus da prova quanto à regularidade do ato caberá aos agentes privados. Contrariamente, atos praticados por agentes dotados de fé publica, por gozarem de presunção de veracidade, invertem o ônus da prova quanto a qualquer irregularidade alegada, casos em que o ônus da prova caberá a quem fizer a alegação. A necessidade de declaração expressa de inconstitucionalidade 9.1. A exigência de coerência judicial Embora a decisão do STF nas ADIs 7.600, 7.601 e 7.608 contenha implicitamente a declaração de inconstitucionalidade dos procedimentos realizados por empresas privadas, a segurança jurídica clama para que esta conclusão seja expressa e vinculante. 9.2. A proteção dos direitos fundamentais A omissão na declaração expressa da inconstitucionalidade do art. 8-E deixa os cidadãos em situação de vulnerabilidade, pois permite que empresas privadas continuem realizando procedimentos constitucionalmente ilegítimos até que sejam especificamente questionadas. Conclusões A análise sistemática da decisão do STF nas ADIs 7.600, 7.601 e 7.608 demonstra inequivocamente que os fundamentos da constitucionalidade estabelecidos pelo Tribunal são incompatíveis com a atuação de empresas privadas em procedimentos de busca e apreensão extrajudicial. Ao basear a legitimidade da desjudicialização na delegação constitucional, na fé pública e no controle judicial, o STF estabeleceu parâmetros que excluem necessariamente os agentes privados do art. 8-E do decreto-lei 911/1969. A inconstitucionalidade destes procedimentos não decorre apenas da ausência das prerrogativas necessárias, mas da violação direta dos princípios fundamentais que orientam o sistema constitucional brasileiro. A reserva de jurisdição, a inviolabilidade domiciliar, o devido processo legal e a segurança jurídica são valores que não podem ser relativizados em nome de uma suposta eficiência administrativa. A conclusão é inescapável: se o STF, pelo brilhante voto do relator, ministro Dias Toffoli,  declarou constitucional a desjudicialização em razão de ser realizada por agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle judicial, implicitamente declarou inconstitucional a desjudicialização realizada por agentes desprovidos destas prerrogativas. O que faltou foi tornar explícita esta conclusão lógica e juridicamente necessária. A coerência do sistema constitucional brasileiro e a proteção dos direitos fundamentais exigem que esta lacuna seja preenchida, seja por nova manifestação do STF, seja pela atuação do Ministério Público ou de entidades legitimadas, de modo a tornar expressa a inconstitucionalidade que já está implícita na fundamentação da decisão. O Estado Democrático de Direito não pode conviver com zonas de indefinição constitucional que permitam a operação de agentes privados em funções para as quais não possuem legitimação. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um modelo claro e taxativo para a desjudicialização, e qualquer desvio deste paradigma representa uma ameaça à segurança jurídica e à supremacia constitucional. ________ 1 GUERRA, Emílio. A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais. Migalhas Notariais e Registrais, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 2/7/25. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF. Relator: Min. Dias Toffoli. Julgado em: 30/6/25. DJe, 2025. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. BRASIL. Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a Lei de Falências, regula o processo de concordata preventiva e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1969. BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, para dispor sobre o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis. Brasília, DF: Presidência da República, 2023.
A inteligência artificial já está entre nós, registradores, notários, juízes, promotores, advogados, alunos e professores, pais e filhos, pets e bebês reborn. A IA vai se insinuando na diuturnidade das atividades notariais e registrais, enraizando-se em processos e rotinas internas e já nos perguntamos: como pudemos viver sem ela até os dias de hoje? O desafio posto aos cartórios é o seguinte: como utilizar a IA como ferramenta útil, sem que nos convertamos em meros pacientes no processo? Como evitar que progressivamente degrademos nossas competências intelectivas, analíticas, perceptivas, intuitivas, criativas, pelo fenômeno de deskilling (perda de habilidades ou competências) pelo uso crescente de novas tecnologias de IA generativa? Como evitar a dependência excessiva de respostas rápidas e fáceis a problemas complexos? Abandonaremos o processo reflexivo satisfazendo-nos integralmente com as respostas dadas pela máquina e descartando as boas perguntas? Não pretendo dar respostas; antes, penso que é hora de formular boas perguntas. Ou provocações. Elas nos mobilizam para a ação. Pacientes ou agentes? - that's the question! A IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias? Transferimos a agentes (agentic IA) a realização de rotinas cada vez mais especializadas e complexas, acarretando, por uma estranha descompensação - a perda progressiva de autonomia e independência pessoais. De igual modo, à medida que nos contentamos unicamente com as respostas, abandonando o afanoso iter processual e esquecendo-nos das perguntas, acabamos por perder a própria memória.  Nos encontros de registradores e notários proliferam estandes de prestadores de serviços especializados nessa área. O impacto das novas tecnologias nas serventias se dá feito tempestade de areia no deserto. O uso de blockchain virá em substituição aos tradicionais registros imobiliários? IA aplicada à análise e qualificação registral de títulos já é realidade em alguns cartórios, bem como a extração de dados e lavratura "inteligente" de atos registrais e notariais. A máquina atribui a identidade digital por biometria e cruzamento de dados hauridos do grande lago de big data... Nasce uma profusão de aplicativos especializados na atuação e processamento de tarefas confiadas a agentes autônomos e inteligentes.  A IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias? A diminuição de tempo e o estreitamento espacial, provocados pelas infovias, promove o aumento da eficiência sistêmica, transformando o ecossistema dos cartórios. Afinal, the medium is the message.  Entretanto, tudo isso se faz a que custo humano? A aceleração digital nos desumanizará? O estado de passividade (pati) nos furtará progressivamente o agir humano (agere)?  Novas tecnologias - novo ser humano? O tema do impacto das novas tecnologias na sociedade humana é recorrente na literatura distópica do século XX. Fiquemos num só exemplo, perturbadoramente atual: O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O pano de fundo da ficção huxleyana é a inovação tecnológica que daria impulso, racionalidade e eficiência a processos industriais (no romance, fordistas), promovendo o consumo desenfreado e a concentração de poder nas mãos de grandes corporações que se confundem com o Estado totalitário mundial (globalismo, se preferir). Tudo é feito à custa da alienação progressiva do ser humano, que se vê entorpecido pelo consumo, lazer, sexo e por artefatos tecnológicos.  O hipermaterialismo e a saudades do mistério Engenharia genética, eugenia, condicionamento "neopavloviano", hipnopedia ("sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade"), supressão da curiosidade inata dos seres humanos, substituição do valor e sentido das palavras (ressignificação, se preferir) e o Soma, nome tomado das tradições védicas, que, na distopia huxleyana, já não conduz à revelação, mas à anestesia perfeita, abolindo o sofrimento sem abrir as "portas da percepção".  "Meio grama para uma folga de meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para uma viagem ao suntuoso Oriente, três para uma sombria eternidade na Lua", dirá Huxley. "Bebo ao meu aniquilamento"... (Admirável Mundo Novo) O mundo hedonista, embalado pelos prazeres e confortos materiais, consagraria o direito humano fundamental à felicidade, livrando o homem de suas angústias existenciais, suprimindo, de modo eficiente e eficaz - e sem efeitos colaterais -, a profunda e sentida saudade do Transcendente. A liberdade sexual é fator coadjuvante de diluição e dispersão de tensões, agravando a alienação, a desagregação da psiquê, a fragilização, a infantilização. As sessões orgiásticas são embaladas por estimulação sexual. Na assombrosa passagem do romance em que evoca metaforicamente o ritual do sacramento, os doze partícipes, em comunhão, são conduzidos pela sacerdotisa, Morgana Rothschild (ah... fina ironia do nosso autor!) num transe hipnótico coletivo. A evocação de unidade e comunhão, provocada pelo Soma e pela estimulação sensorial, provocam o aniquilamento do indivíduo, mergulhando sua personalidade na uniformidade comportamental, reforçando o sentimento de pertencimento hipermaterialista e coletivista do Estado Mundial.  "Orgia-folia, Ford e Alegria,  Beija aqueles que amas e faz deles um só.  Rapazes e raparigas em paz se unirão!  Orgia-folia dá-nos a libertação"  (id. Ib p. 96). Racionalidade e uniformismo - o novo capitalismo Huxley sabe que uniformidade e liberdade são incompatíveis. "Esses milhões de pessoas anormalmente normais [...] ainda nutrem 'a ilusão de individualidade', mas na verdade foram em grande medida desindividualizados. Sua conformidade está se expandindo para algo como uniformidade. Mas 'uniformidade e liberdade são incompatíveis. Uniformidade e saúde mental também são incompatíveis.'" (Retorno ao Admirável Mundo Novo, p. 28). "O todo social [...]. É apenas uma organização, uma peça da máquina social. [...] Dar às organizações precedência sobre as pessoas é subordinar os fins aos meios"; (Idem, ibidem, p. 34). Ao deitarmos um olhar atento às inovações tecnológicas que estão em curso em nossa sociedade, veremos que não estamos muito distantes de experimentar os sentifilmes (feelies) da obra huxleyana, dos jogos eletrônicos, da música sintética, da recorrência de posts e reels que se sucedem em ambientes saturados de estímulos visuais e sonoros, projetados diretamente sobre retinas desarmadas, tudo de molde a impedir o silêncio reflexivo, a meditação, a contemplação, o jazimento de intuições...  No futuro não se poderá suscitar dúvidas existenciais! No Retorno ao Admirável Mundo Novo, do mesmo Huxley, alude-se a uma cultura midiatizada que vicia as massas pela dopamina provocada pelas media digitais. Tigrinhos, bets, caça-níqueis viciosos, pornografia, jogos sexuais infantis, sucessão estimulativa de imagens que cria dependência psicológica e fragilidade social. Tudo isso nos remete ao delírio futurista do nosso romancista Distopia ou realidade? As novas tecnologias descritas no livro parecem vaticinar que o futuro nos revelaria um estranho descolamento do sistema nervoso para além do corpo físico, avançando sobre os domínios da hiper-realidade. Achegando-nos, suave e progressivamente, à noosfera, esfera do pensamento (ou do conhecimento, se preferir) que empolgou autores como McLuhan (e sua "aldeia global" midiática), Teilhard de Chardin (e seu Ponto Ômega). Ingressamos nos vestíbulos de um templo que representa uma nova fase evolutiva (disruptiva, se preferir), com o predomínio de uma razão cientificista, tecnocrática, hipermaterialista, de cariz positivista. Um outro nome para isto tudo é transumanismo, se preferir. Huxley fala de homens do futuro. Assusta-nos verificar que na plataformização dos serviços o passado se dissolve em camadas profundas do cyberespaço? Parafraseando um conhecido político, o que será esta "nuvem" abscôndita que se acha no lugar-nenhum de todos os sites? O tempo e o espaço colapsam na instantaneidade das transações eletrônicas. O apagamento do passado é induzido - já ninguém reconhece seus pais, mães, e os seres humanos divorciam-se das tradições que os ligavam à família, à frátria, à pátria. Dos escombros da tradição nasceu um estado onipresente, monolítico, um demiurgo sedutor e simbolicamente violento que embala a narrativa. A humanização da tecnologia - a terceira via? Entretanto, no curso da trama, o autor nos revelará um "outro mundo", contraposto à sociedade hipertecnológica e condicionada do Estado Mundial. No final do romance, Huxley nos apresentará John, um ser humano visceralmente dividido pela origem e pela realidade vivida na Reserva Selvagem. Ele coloca em seus lábios passagens de Shakespeare que expressam a complexidade da experiência humana: amor, dor, piedade, compaixão, morte, ciúme, ambição, transcendência, ideias que ressoam como reminiscências de uma idade áurea perdida (humanidade perdida, se preferir). Com isso, Huxley busca contrastar a linguagem mecânica, redutora e repetitiva do Estado Mundial, com a prosa abonadora do dramaturgo bardo:   Oh, maravilha! Quantas criaturas belas existem aqui! Como é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo, Que tem pessoas assim. (Miranda, Ato 5, Cena 1) As profecias foram lançadas em 1932 e, já na década de 50, revelariam-se assustadoramente verossímeis para o próprio autor. O "pesadelo da organização total [...] espera por nós logo ali na esquina" dirá no Retorno ao Admirável Mundo Novo. Huxley revisitaria o cenário por ele mesmo antevisto - o "mundo civilizado" em contraste com o "mundo selvagem" (representado pela Reserva onde vive o Selvagem, John) - uma escolha binária entre totalitarismo tecnocientífico e primitivismo tribal: "Se eu tivesse de escrever o livro novamente, ofereceria ao Selvagem a possibilidade de fugir - não para o mundo selvagem, mas para uma sociedade organizada, descentralizada e economicamente cooperativa, habitada por pessoas que não apenas aceitassem a ciência, mas também tivessem a mais elevada concepção de objetivos humanos. (...) Uma utopia válida deveria oferecer opções além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva. A ausência dessa alternativa torna o mundo novo mais profético, mas menos útil." (idem, ibidem). Mais profético? Menos útil? Deixo ao caríssimo leitor as cogitações que o texto incomodamente suscita. Habemus machinam. A IA pode representar de fato um admirável mundo novo. Estaremos fadados à servidão voluntária de uma sociedade hipertecnocrática ou seremos condenados ao exílio numa reserva "selvagem", regressiva, tecnofóbica. Haverá uma outra via? A concepção de uma terceira via seria possível? Huxley acena que sim, e sugere temas como a descentralização, a constituição de pequenas greis, sussurra que o manto da espiritualidade deve cobrir e soldar os laços da compaixão e solidariedade humanas, subordinando a ciência à ética. Aponta para o caminho interior - a via pedregosa do autoconhecimento. Enfim, propõe o retorno ao real tangível, sem a intermediação das diáfanas lâminas da hiper-realidade que nos remetem aos domínios pavorosos dos espelhos borgianos. Uma utopia válida, dirá ele, se posta além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva. Enfim, leitor... A IA já está entre nós. Adentramos os átrios de um admirável mundo novo. Que maravilhas ela há de operar? Que tesouros se acham no fim deste sedutor arco-íris? Calma, muita calma, nesta hora. A distopia foi concebida por Huxley na década de 30 do século passado. Como ele poderia imaginar que tudo isto suscitaria as nótulas insones deste velho escriba tradicionalista quando pensa que as facilidades e a sedução das novas tecnologias podem nos levar para o interior de um labirinto? NE: As obras de Aldous Huxley, citadas no texto, acham-se em domínio público e podem ser acessadas facilmente nas bibliotecas digitais da Internet.