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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
A inteligência artificial já está entre nós, registradores, notários, juízes, promotores, advogados, alunos e professores, pais e filhos, pets e bebês reborn. A IA vai se insinuando na diuturnidade das atividades notariais e registrais, enraizando-se em processos e rotinas internas e já nos perguntamos: como pudemos viver sem ela até os dias de hoje? O desafio posto aos cartórios é o seguinte: como utilizar a IA como ferramenta útil, sem que nos convertamos em meros pacientes no processo? Como evitar que progressivamente degrademos nossas competências intelectivas, analíticas, perceptivas, intuitivas, criativas, pelo fenômeno de deskilling (perda de habilidades ou competências) pelo uso crescente de novas tecnologias de IA generativa? Como evitar a dependência excessiva de respostas rápidas e fáceis a problemas complexos? Abandonaremos o processo reflexivo satisfazendo-nos integralmente com as respostas dadas pela máquina e descartando as boas perguntas? Não pretendo dar respostas; antes, penso que é hora de formular boas perguntas. Ou provocações. Elas nos mobilizam para a ação. Pacientes ou agentes? - that's the question! A IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias? Transferimos a agentes (agentic IA) a realização de rotinas cada vez mais especializadas e complexas, acarretando, por uma estranha descompensação - a perda progressiva de autonomia e independência pessoais. De igual modo, à medida que nos contentamos unicamente com as respostas, abandonando o afanoso iter processual e esquecendo-nos das perguntas, acabamos por perder a própria memória.  Nos encontros de registradores e notários proliferam estandes de prestadores de serviços especializados nessa área. O impacto das novas tecnologias nas serventias se dá feito tempestade de areia no deserto. O uso de blockchain virá em substituição aos tradicionais registros imobiliários? IA aplicada à análise e qualificação registral de títulos já é realidade em alguns cartórios, bem como a extração de dados e lavratura "inteligente" de atos registrais e notariais. A máquina atribui a identidade digital por biometria e cruzamento de dados hauridos do grande lago de big data... Nasce uma profusão de aplicativos especializados na atuação e processamento de tarefas confiadas a agentes autônomos e inteligentes.  A IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias? A diminuição de tempo e o estreitamento espacial, provocados pelas infovias, promove o aumento da eficiência sistêmica, transformando o ecossistema dos cartórios. Afinal, the medium is the message.  Entretanto, tudo isso se faz a que custo humano? A aceleração digital nos desumanizará? O estado de passividade (pati) nos furtará progressivamente o agir humano (agere)?  Novas tecnologias - novo ser humano? O tema do impacto das novas tecnologias na sociedade humana é recorrente na literatura distópica do século XX. Fiquemos num só exemplo, perturbadoramente atual: O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O pano de fundo da ficção huxleyana é a inovação tecnológica que daria impulso, racionalidade e eficiência a processos industriais (no romance, fordistas), promovendo o consumo desenfreado e a concentração de poder nas mãos de grandes corporações que se confundem com o Estado totalitário mundial (globalismo, se preferir). Tudo é feito à custa da alienação progressiva do ser humano, que se vê entorpecido pelo consumo, lazer, sexo e por artefatos tecnológicos.  O hipermaterialismo e a saudades do mistério Engenharia genética, eugenia, condicionamento "neopavloviano", hipnopedia ("sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade"), supressão da curiosidade inata dos seres humanos, substituição do valor e sentido das palavras (ressignificação, se preferir) e o Soma, nome tomado das tradições védicas, que, na distopia huxleyana, já não conduz à revelação, mas à anestesia perfeita, abolindo o sofrimento sem abrir as "portas da percepção".  "Meio grama para uma folga de meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para uma viagem ao suntuoso Oriente, três para uma sombria eternidade na Lua", dirá Huxley. "Bebo ao meu aniquilamento"... (Admirável Mundo Novo) O mundo hedonista, embalado pelos prazeres e confortos materiais, consagraria o direito humano fundamental à felicidade, livrando o homem de suas angústias existenciais, suprimindo, de modo eficiente e eficaz - e sem efeitos colaterais -, a profunda e sentida saudade do Transcendente. A liberdade sexual é fator coadjuvante de diluição e dispersão de tensões, agravando a alienação, a desagregação da psiquê, a fragilização, a infantilização. As sessões orgiásticas são embaladas por estimulação sexual. Na assombrosa passagem do romance em que evoca metaforicamente o ritual do sacramento, os doze partícipes, em comunhão, são conduzidos pela sacerdotisa, Morgana Rothschild (ah... fina ironia do nosso autor!) num transe hipnótico coletivo. A evocação de unidade e comunhão, provocada pelo Soma e pela estimulação sensorial, provocam o aniquilamento do indivíduo, mergulhando sua personalidade na uniformidade comportamental, reforçando o sentimento de pertencimento hipermaterialista e coletivista do Estado Mundial.  "Orgia-folia, Ford e Alegria,  Beija aqueles que amas e faz deles um só.  Rapazes e raparigas em paz se unirão!  Orgia-folia dá-nos a libertação"  (id. Ib p. 96). Racionalidade e uniformismo - o novo capitalismo Huxley sabe que uniformidade e liberdade são incompatíveis. "Esses milhões de pessoas anormalmente normais [...] ainda nutrem 'a ilusão de individualidade', mas na verdade foram em grande medida desindividualizados. Sua conformidade está se expandindo para algo como uniformidade. Mas 'uniformidade e liberdade são incompatíveis. Uniformidade e saúde mental também são incompatíveis.'" (Retorno ao Admirável Mundo Novo, p. 28). "O todo social [...]. É apenas uma organização, uma peça da máquina social. [...] Dar às organizações precedência sobre as pessoas é subordinar os fins aos meios"; (Idem, ibidem, p. 34). Ao deitarmos um olhar atento às inovações tecnológicas que estão em curso em nossa sociedade, veremos que não estamos muito distantes de experimentar os sentifilmes (feelies) da obra huxleyana, dos jogos eletrônicos, da música sintética, da recorrência de posts e reels que se sucedem em ambientes saturados de estímulos visuais e sonoros, projetados diretamente sobre retinas desarmadas, tudo de molde a impedir o silêncio reflexivo, a meditação, a contemplação, o jazimento de intuições...  No futuro não se poderá suscitar dúvidas existenciais! No Retorno ao Admirável Mundo Novo, do mesmo Huxley, alude-se a uma cultura midiatizada que vicia as massas pela dopamina provocada pelas media digitais. Tigrinhos, bets, caça-níqueis viciosos, pornografia, jogos sexuais infantis, sucessão estimulativa de imagens que cria dependência psicológica e fragilidade social. Tudo isso nos remete ao delírio futurista do nosso romancista Distopia ou realidade? As novas tecnologias descritas no livro parecem vaticinar que o futuro nos revelaria um estranho descolamento do sistema nervoso para além do corpo físico, avançando sobre os domínios da hiper-realidade. Achegando-nos, suave e progressivamente, à noosfera, esfera do pensamento (ou do conhecimento, se preferir) que empolgou autores como McLuhan (e sua "aldeia global" midiática), Teilhard de Chardin (e seu Ponto Ômega). Ingressamos nos vestíbulos de um templo que representa uma nova fase evolutiva (disruptiva, se preferir), com o predomínio de uma razão cientificista, tecnocrática, hipermaterialista, de cariz positivista. Um outro nome para isto tudo é transumanismo, se preferir. Huxley fala de homens do futuro. Assusta-nos verificar que na plataformização dos serviços o passado se dissolve em camadas profundas do cyberespaço? Parafraseando um conhecido político, o que será esta "nuvem" abscôndita que se acha no lugar-nenhum de todos os sites? O tempo e o espaço colapsam na instantaneidade das transações eletrônicas. O apagamento do passado é induzido - já ninguém reconhece seus pais, mães, e os seres humanos divorciam-se das tradições que os ligavam à família, à frátria, à pátria. Dos escombros da tradição nasceu um estado onipresente, monolítico, um demiurgo sedutor e simbolicamente violento que embala a narrativa. A humanização da tecnologia - a terceira via? Entretanto, no curso da trama, o autor nos revelará um "outro mundo", contraposto à sociedade hipertecnológica e condicionada do Estado Mundial. No final do romance, Huxley nos apresentará John, um ser humano visceralmente dividido pela origem e pela realidade vivida na Reserva Selvagem. Ele coloca em seus lábios passagens de Shakespeare que expressam a complexidade da experiência humana: amor, dor, piedade, compaixão, morte, ciúme, ambição, transcendência, ideias que ressoam como reminiscências de uma idade áurea perdida (humanidade perdida, se preferir). Com isso, Huxley busca contrastar a linguagem mecânica, redutora e repetitiva do Estado Mundial, com a prosa abonadora do dramaturgo bardo:   Oh, maravilha! Quantas criaturas belas existem aqui! Como é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo, Que tem pessoas assim. (Miranda, Ato 5, Cena 1) As profecias foram lançadas em 1932 e, já na década de 50, revelariam-se assustadoramente verossímeis para o próprio autor. O "pesadelo da organização total [...] espera por nós logo ali na esquina" dirá no Retorno ao Admirável Mundo Novo. Huxley revisitaria o cenário por ele mesmo antevisto - o "mundo civilizado" em contraste com o "mundo selvagem" (representado pela Reserva onde vive o Selvagem, John) - uma escolha binária entre totalitarismo tecnocientífico e primitivismo tribal: "Se eu tivesse de escrever o livro novamente, ofereceria ao Selvagem a possibilidade de fugir - não para o mundo selvagem, mas para uma sociedade organizada, descentralizada e economicamente cooperativa, habitada por pessoas que não apenas aceitassem a ciência, mas também tivessem a mais elevada concepção de objetivos humanos. (...) Uma utopia válida deveria oferecer opções além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva. A ausência dessa alternativa torna o mundo novo mais profético, mas menos útil." (idem, ibidem). Mais profético? Menos útil? Deixo ao caríssimo leitor as cogitações que o texto incomodamente suscita. Habemus machinam. A IA pode representar de fato um admirável mundo novo. Estaremos fadados à servidão voluntária de uma sociedade hipertecnocrática ou seremos condenados ao exílio numa reserva "selvagem", regressiva, tecnofóbica. Haverá uma outra via? A concepção de uma terceira via seria possível? Huxley acena que sim, e sugere temas como a descentralização, a constituição de pequenas greis, sussurra que o manto da espiritualidade deve cobrir e soldar os laços da compaixão e solidariedade humanas, subordinando a ciência à ética. Aponta para o caminho interior - a via pedregosa do autoconhecimento. Enfim, propõe o retorno ao real tangível, sem a intermediação das diáfanas lâminas da hiper-realidade que nos remetem aos domínios pavorosos dos espelhos borgianos. Uma utopia válida, dirá ele, se posta além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva. Enfim, leitor... A IA já está entre nós. Adentramos os átrios de um admirável mundo novo. Que maravilhas ela há de operar? Que tesouros se acham no fim deste sedutor arco-íris? Calma, muita calma, nesta hora. A distopia foi concebida por Huxley na década de 30 do século passado. Como ele poderia imaginar que tudo isto suscitaria as nótulas insones deste velho escriba tradicionalista quando pensa que as facilidades e a sedução das novas tecnologias podem nos levar para o interior de um labirinto? NE: As obras de Aldous Huxley, citadas no texto, acham-se em domínio público e podem ser acessadas facilmente nas bibliotecas digitais da Internet.
Imagine que no inventário e partilha de uma pessoa falecida, o cônjuge ou companheiro sobrevivente, que tenha pelo regime de bens, direito à meação, ao invés de ficar com a sua metade ideal sobre cada bem do acervo patrimonial ou com a integralidade de determinados bens, seja a ele atribuído o usufruto dos bens deixados pelo falecido em pagamento de sua meação, enquanto a nua-propriedade seja atribuída em pagamento dos quinhões hereditários dos herdeiros. Essa organização jurídica seria possível? Quais são os impactos patrimoniais, sucessórios e tributários dessa partilha? O usufruto, como um direito real autônomo, reflete expressivo valor econômico. Aquele que detém o usufruto possui os atributos de usar e fruir do bem, sendo titular do direito de posse, uso, administração e percepção dos frutos (art. 1.394, CC/02).  Por ser assim um direito real destacável da nua-propriedade e com valor econômico próprio, entende-se possível que se amolde à meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente em pagamento do que lhe é cabível no monte patrimonial deixado pelo falecido.  Essa organização patrimonial e estratégica no inventário de uma pessoa falecida acaba sendo muito desejada por aqueles que pretendem já realizar um planejamento patrimonial e sucessório, evitando assim um futuro inventário da viúva/viúvo sobre esses bens recebidos e, consequentemente, novas cobranças de impostos.  Isso porque, o cônjuge ou companheiro sobrevivente, ao ser titular apenas do direito real de usufruto, com o seu falecimento, será necessário apenas um ato de mera averbação de cancelamento deste direito registrado na matrícula do imóvel, consolidando-se automaticamente a propriedade plena aos herdeiros nu-proprietários, independentemente da realização de novo inventário e partilha dos bens. Eis aqui, portanto, uma simbiose jurídica entre planejamento sucessório e inventário. Pois bem. O pagamento da meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente com o usufruto dos bens imóveis deixados pelo falecido, enquanto a nua-propriedade é partilhada entre os herdeiros, é um assunto bastante discutido nos seus aspectos cíveis e tributários. Nos procedimentos de inventário, seja ele judicial ou extrajudicial, a partilha pode assumir algumas conformações, quais sejam: (I) os bens deixados pelo falecido podem ser distribuídos de forma que todos os envolvidos fiquem em condomínio sobre partes ideais de cada bem, na proporção do que é meação e do que é quinhão hereditário de cada um - assim deve ser feito nos inventários extrajudiciais quando há herdeiros menores ou incapazes, nos termos do art. 12-A da resolução 35 do CNJ ou (II) é possível atribuir cada bem em sua integralidade para pagamento da meação e dos respectivos quinhões hereditários de cada herdeiro, evitando-se o tão conflituoso condomínio civil, que segundo os Romanos seria a "mãe da discórdia". Esse último formato de partilha dos bens no inventário encontra respaldo Legislativo no CPC, mais especificamente nos arts. 648 e 649 do CPC. Admite-se, portanto, que cada um dos envolvidos no inventário, seja meeiro, seja herdeiro, fique com a totalidade de determinados bens como pagamento da parte que lhes cabe da herança. Segundo o CPC, na instrumentalização da partilha é importante se atentar a máxima igualdade, comodidade e prevenção de litígios (art. 648 do CPC), razão pela qual a partilha com atribuição da integralidade dos bens em pagamento da quota parte de cada um configura verdadeiro incentivo legislativo. Ocorrendo, portanto, o falecimento de um dos cônjuges ou companheiro, é no procedimento de inventário e partilha de bens que será especializada a meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente, o que pode ocorrer em parte ideal dos bens, em um só bem, móvel ou imóvel na sua integralidade, ou até no usufruto dos bens. Lembrando que o meeiro já é proprietário de metade dos bens em decorrência do próprio regime de bens, de modo que o processo de inventário servirá apenas para especializar e atribuir aqueles bens ou direitos que serão utilizados em pagamento desta meação. Alguns Estados, inclusive, já possuem previsão expressa sobre a possibilidade de atribuir o usufruto em pagamento da meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente nos seus próprios Códigos de Normas, a exemplo do Rio Grande do Sul1 e Santa Catarina2.  Já o Estado de São Paulo, apesar de não ter previsão expressa no Código de Normas, possui inúmeras decisões judiciais e administrativas permitindo que o usufruto seja atribuído em pagamento da meação em inventário3, sob o fundamento de que: "A meação, enquanto não especificada, pela morte ou separação do cônjuge, é um direito inespecífico, sendo possível a sua especificação nos direitos de usufruto entre partes maiores e capazes." Em termos práticos, se Pedro, casado com Maria no regime da comunhão parcial de bens, pai de Ana (que é filha comum do casal), vem a falecer deixando no seu acervo patrimonial uma casa de R$ 600.000,00, caso Maria no inventário fique apenas com o usufruto da casa e Ana com a nua-propriedade desta, quando Maria vier a falecer, essa casa não será inventariada, pois simplesmente será averbado o óbito e extinto o usufruto, consolidando-se a propriedade plena do imóvel a Ana. Basta, portanto, mero ato de averbação na matrícula. Veja a economia tributária que permeia essa formatação de partilha. Com o falecimento da usufrutuária, Maria, esses imóveis consolidam-se na propriedade da Ana, sem qualquer inventário e incidência de imposto causa mortis. Fato é que essa conformação de partilha não é aceita, ou até mesmo é desconhecida, em alguns Estados. Além disso, há uma grande discussão tributária sob o aspecto do Imposto de transmissão causa mortis e doação. Os fiscos de alguns Estados interpretam essa conformação jurídica no inventário como atos de disposição que configuram fatos geradores distintos do imposto de transmissão causa mortis e doação, são eles: (I) transmissão da herança aos herdeiros, sob o qual recai o imposto de transmissão causa mortis; (II) ato de cessão gratuita da parte da meeira aos herdeiros, com reserva de usufruto, sob o qual recai o imposto sobre doação e (III) instituição gratuita do usufruto relativo à parte da herança recebida pelos herdeiros em favor da meeira, sob o qual incide imposto de transmissão gratuita de direito. Nesse sentido, a circular 525 de 26/11/24 expedida pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina. Em São Paulo, a posição do fisco quanto ao ITCMD incidente nessa estruturação da partilha é diferente. Como há na lei paulista previsão, para fins de base de cálculo deste imposto, de que o usufruto corresponde a 1/3 do valor do bem e a nua-propriedade corresponde a 2/3 do valor do bem (art. 9º, §2º, lei Paulista 10.705/00), esses valores são considerados como parâmetros para fins de cálculo da partilha em que é utilizado o direito real de usufruto do bem como pagamento da meação.  Veja, no exemplo acima, o patrimônio total deixado por Pedro soma R$ 600.000,00 (composto por uma casa). Tendo Maria meação sobre este bem, pois casada no regime da comunhão universal, a sua meação corresponderá ao valor de R$ 300.000,00. Se Maria, na partilha, ficar com o usufruto deste imóvel, segundo a legislação paulista, ela estará recebendo 1/3 do valor do bem em pagamento de sua meação (1/3 de R$ 600.000,00 = R$ 200.000,00) e a herdeira Ana estará recebendo 2/3 do valor do bem ao receber a nua-propriedade desse imóvel em pagamento do seu quinhão hereditário (2/3 de R$ 600.000,00 = R$ 400.000,00). Ou seja, para o fisco paulista, essa distribuição dos bens na partilha é possível e reconhecida juridicamente, sendo que nesse caso específico, teremos apenas dois fatos geradores do imposto, são eles: (I) transmissão da herança a herdeira Ana, sob o qual recai o imposto de transmissão causa mortis e; (II) cessão gratuita de meação pela diferença de valores entre aquilo que a meeira deveria receber a título de meação (R$ 300.000,00) e aquilo que ela efetivamente recebeu com o pagamento do usufruto (R$ 200.000,00), equivalente a um ato de doação aos herdeiros dessa diferença de valor (R$ 300.000,00 - R$ 200.000,00 = R$ 100.000,00), sob o qual recai o imposto de transmissão por doação.  Fato é que, em São Paulo, se não houver qualquer excesso de meação ou de quinhão hereditário, como no caso acima exposto, não haverá esse segundo fato gerador do referido imposto. Se, por exemplo, houvesse outro(s) bem(s) no acervo patrimonial do falecido Pedro, cujo valor fosse de R$ 100.000,00, e este(es) fosse(em) integralmente atribuídos em pagamento da meação da meeira, não estaria configurada uma partilha desigual, pois no contexto da distribuição patrimonial na partilha, todos receberiam ao final o valor exatamente que lhes era devido, afastada, portanto, a incidência tributária sobre o excesso de meação ou de herança.  Um cuidado, contudo, que se deve ter é quanto a cobrança de ITCMD na extinção do usufruto. Alguns Estados possuem previsão expressa pela incidência do ITCMD quando da extinção do usufruto, a exemplo do RS4. Outros, como o estado de São Paulo, veda referida cobrança, sob o fundamento de que a extinção do usufruto não configura fato gerador do ITCMD, pois não se trata de um ato de transmissão causa mortis e nem por doação5. Esses entendimentos estaduais precisam ser analisados e avaliados para estruturação dessa formatação de planejamento sucessório, pois o que pode ser uma economia em determinados Estados, em outros, o efeito pode ser reverso, onerando a distribuição patrimonial daquela família.  Outro aspecto de reflexão é quanto ao direito à legítima dos herdeiros exclusivos do cônjuge sobrevivente, que terá sua meação paga com o usufruto, pois uma vez atribuindo o direito real de usufruto em pagamento da meação desse viúvo/viúva, seus herdeiros exclusivos (que não são também do falecido) ficarão sem o direito de receber na herança futura desse viúvo/viúva a parte que lhes caberia referente a esses bens.  Como mencionado acima, com o falecimento do usufrutuário (viúvo/viúva), o usufruto será cancelado e a propriedade desses bens se consolidará automaticamente aos nu-proprietários (herdeiros do primeiro falecido), sem que esses bens integrem o inventário desse viúvo/viúva. Consequentemente, seus herdeiros exclusivos nada receberão desses bens sob os quais o viúvo/viúva detinha meação.  Veja, portanto, que a estruturação de um planejamento sucessório não é uma tarefa simples, exige uma análise ampla e aprofundada sob diversas vertentes do direito e suas consequências jurídicas. A utilização do direito real de usufruto como pagamento da meação atribuída e especializada no inventário nos parece ser de fato uma atrativa conformação jurídica de partilha, evitando um condomínio civil sobre os bens e estruturando já, no mesmo ato, um planejamento sucessório e patrimonial dentro dos parâmetros legais.  Se de fato é uma boa solução, isso só será possível apurar de acordo com o caso concreto. ____________________ 1 CNRS, Art. 518 - Os pagamentos a título de sucessão legal, meação ou legado poderão ser integralizados através de direito real de usufruto vitalício, sem prejuízo do pagamento da nua-propriedade a quem de direito a receba. 2 CNSC, Art. 835. É possível o pagamento da partilha por meio da transmissão da nua propriedade e da instituição de usufruto, desde que satisfeitos os tributos incidentes.  3 TJSP - Agravo de Instrumento nº 2231994-72.2016.8.26.0000. VOTO DESEMBARGADOR LUÍS MÁRIO GALBETTI; TJSP - Agravo de instrumento: 2078003-03.2021.8.26.0000; CSMSP - Apelação Cível: 1016723-60.2022.8.26.0405 4 LEI Nº 8.821, DE 27 DE JANEIRO DE 1989. Art. 4º - Ocorre o fato gerador: (...) II - na transmissão por doação: a) na data da instituição do usufruto convencional; b) na data em que ocorrer o fato ou ato jurídico determinante da consolidação da propriedade, tal como nas hipóteses de extinção dos direitos de usufruto, de uso, de habitação e de servidões; (Redação dada pelo art. 3º, I, "b", da Lei 12.741, de 05/07/07. (DOE 06/07/07)) 5 TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1004704-04.2023.8.26.0529; Relator (a): Camargo Pereira; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Santana de Parnaíba - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/02/2025; Data de Registro: 28/02/2025; 6 SEFAZ/SP - RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 24727/2021, de 27 de janeiro de 2022.
O provimento CNJ 195/25, que agora passa a ser conhecido como "Provimento do IERI-e", regulamentou vários procedimentos realizados nos registros imobiliários, criando o IERI-e Inventário Eletrônico Estatístico do Registro de Imóveis, implantando formalmente o SIG-RI - Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis e estabelecendo diretrizes para as averbações de saneamento da matrícula. Uma das novidades mais proeminentes é a normatização de um Processo de Autotutela Registral realizado diretamente no registro de imóveis, previsto no art. 440-BG do CN/CNN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial. O procedimento de autotutela registral não é necessariamente novidade na legislação brasileira, visto que o art. 214 da LRP já estabelece as diretrizes de tal processo na via administrativo-judicial (perante o juiz corregedor). A novidade em si encontra-se na regulação deste procedimento agora na via administrativo-extrajudicial (diretamente em cartório, sob a presidência do registrador de imóveis).1 Autotutela administrativa e autotutela registral  O conceito de "Autotutela" advém do Direito Administrativo e, nesse contexto, representa o poder que a Administração Pública possui de rever, de ofício ou mediante provocação, os seus próprios atos, quando eivados de algum vício, independentemente de manifestação judicial. Esse poder é reconhecido pela Suprema Corte brasileira, inclusive, desde a década de 19602 por meio das súmulas 3463 e 4734 do STF. Atualmente, podemos extrair da própria Constituição Federal o poder de autotutela, notadamente a partir dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, que fundamentam a atuação da Administração Pública (art. 37, CF). Sob o aspecto infraconstitucional, os arts. 53 e 54 da lei 9.784/1999 dão a base legal para o poder-dever de anular atos administrativos ilegais. A autotutela registral - embora se aproxime em certos aspectos da autotutela administrativa - não tem exatamente o mesmo escopo. A autotutela administrativa acaba por ser mais ampla, haja vista que se dirige tanto a corrigir vícios dos atos administrativos como também revogar esses atos por conveniência ou oportunidade. De sua vez, no âmbito da autotutela registral não cabe ao registrador qualquer análise de mérito administrativo, senão apenas a verificação da existência de nulidades e sua respectiva correção. Outra diferença marcante está no fato de que o oficial de registro de imóveis não irá fazer o cancelamento ou modificação de um ato registral sem o estabelecimento do contraditório entre as partes interessadas. Na via administrativa, em geral, a autotutela acaba sendo feita por meio de revogação de ato administrativo anterior, sem a oitiva de eventuais terceiros prejudicados, em geral, cabendo a estes discutir sobre seus direitos, na via administrativa ou judicial, a posteriori. De outro lado, a autotutela registral exige a triangularização prévia do procedimento, com a participação do registrador, presidindo os atos, e das partes que eventualmente forem atingidas. Como se percebe, não se trata de mero procedimento, mas sim um verdadeiro "processo", na acepção do Direito Processual moderna, visto que o contraditório sempre estará presente.5 Competência do registrador de imóveis Em relação à competência para a realização deste ato por parte do registrador de imóveis, trata-se de interpretação da legislação consentânea a ideia de extrajudicialização (ou, como chamam alguns: desjudicialização).6 Ademais, também vai ao encontro com a autonomia ou independência destinada aos notários e registradores, na qualidade de profissionais do direito, no gerenciamento de sua serventia, em sua atuação funcional e na interpretação e integridade jurídica. Outrossim, demonstra a evolução do sistema registral de uma legalidade estrita para um princípio de juridicidade, mediante a aplicação de polícia jurídica registral, que consiste no dever do registrador de qualificar os títulos e os atos jurídicos sob sua tutela, expurgando as ilicitudes porventura existentes, a fim de não dar guarida a atos ou fatos contrários ao direito, bem como zelar pela livre e correta adequação dos atos praticados em sua circunscrição. O processo de autotutela registral decorre, ademais, das diretrizes fixadas na norma legal positiva, que estabelece que o ato inscrito pode ser retificado ou anulado, se não exprimir a verdade dos fatos (art. 213 da LRP e art. 1.247 do CC). Subsidiariedade do procedimento Conforme dispõe o caput do art. 440-BG do CN/CNN/CNJ-Extra, o processo de autotutela registral será realizado "Nos casos de alta indagação ou naqueles em que exista potencial litígio entre titulares de direitos registrados ou averbados nas matrículas ou transcrições". Casos de alta indagação7 são aqueles que demandam a produção de provas que não estão nos autos, exigindo dilação probatória ampla e contraditório pleno. No contexto do registro de imóveis, portanto, são aqueles casos em que não é possível resolver apenas com as informações existentes do acervo do cartório, exigindo exame aprofundado e formação de um conjunto probatório externo. A existência de "potencial litígio" entre titulares de direito constantes da matrícula também determina a abertura de contraditório prévio. Assim, havendo possibilidade de conflito em razão de possível prejuízo a alguma das partes, compete ao oficial de registro promover a notificação destas, possibilitando que se manifestem, entrem em acordo ou produzam provas. A utilização do processo de autotutela registral é, portanto, residual ou subsidiária. Isso porque os casos que não dependam de dilação probatória (alta indagação) ou que não tenham risco de controvérsia (potencial litígio) podem ser resolvidos por outros meios, mediante procedimento próprio, a exemplo do procedimento de retificação administrativa do art. 213 da LRP ou então outros procedimentos legais ou constantes de atos administrativos, como é o caso daqueles regulados pelo próprio provimento 195/25, a exemplo do saneamento de sobreposições de área entre imóveis, da regularização de duplicidade e multiplicidade de matrículas, da restauração e suprimentos do acervo etc8. Nada obstante, se houver maior complexidade probatória ou possível discussão entre partes interessadas, o processo de autotutela será uma meio procedimental possível para resolução de conflitos extrajudicialmente. Além disso, por óbvio, se a questão estiver judicializada, ou seja, havendo processo judicial com o mesmo objeto, não caberá a via administrativa da autotutela registral, salvo se as partes eventualmente desistirem da ação perante o Poder Judiciário. Igualmente, se houver procedimento de autotutela registral tramitando na via administrativo-judicial, perante o juiz corregedor ou a Corregedoria competente (art. 214 da LRP), com mesmas partes, pedido e causa de pedir, também não caberá a abertura de procedimento de autotutela registral diretamente em cartório (via administrativo-extrajudicial), aplicando-se as mesmas regras atinentes à existência de processo contencioso na seara da Justiça Comum. Do processo de autotutela registral Conforme preceitua o art. 440-BG do provimento 195/25 do CNJ, a marcha processual da autotutela registral, na via administrativo-extrajudicial, é a seguinte: a. Portaria de instauração do procedimento: i. o oficial de registro de imóveis deve emitir o ato normativo de abertura do procedimento e prenotá-lo para garantir prioridade registral; e ii. deverá, dentre outras informações que entenda pertinente, delimitar o objeto e os fatos a serem apurados, as matrículas ou transcrições atingidas e as partes interessadas a serem notificadas. b. Relatório preliminar: o oficial deverá descrever de forma específica a situação a ser resolvida, os possíveis meios de solução na via extrajudicial e os respectivos efeitos legais ou consequências às partes interessadas. c. Notificação dos titulares de direitos (aplicam-se as mesmas normas do art. 213 da LRP em relação à notificação, editais e impugnação, sendo o prazo de 15 dias para as partes se manifestarem, com possibilidade de apresentação de provas): i. havendo concordância entre as partes, o oficial finaliza o relatório e pratica os atos registrais necessários para saneamento do registro; ii. se houver impugnação fundamentada, sem acordo, as partes terão a possibilidade de se manifestar novamente, apresentando réplica quanto à impugnação da parte adversa e, posteriormente, ainda serão convidadas para sessão de conciliação, realizada preferencialmente de forma eletrônica: 1. se houver conciliação, o oficial finaliza o relatório definitivo e pratica os atos registrais necessários para saneamento do registro; 2. se não houver conciliação, o oficial finaliza o relatório definitivo e encaminha os autos ao juiz corregedor, que converterá o procedimento administrativo-extrajudicial em administrativo-judicial, prosseguindo com o procedimento de autotutela registral conforme o art. 214 da LRP.         Importante destacar que o registrador possui amplo poder de presidência do processo de autotutela registral, podendo determinar as apurações dos elementos de prova que forem pertinentes. Conforme § 2º do art. 440-BG, "Na condução do procedimento de autotutela registral, ou mesmo antes da abertura do procedimento, o oficial de registro poderá exigir as provas necessárias para comprovação do direito das partes interessadas, inclusive laudos técnicos, certidões e outros documentos oficiais, ata notarial ou realização de vistoria in loco". Conclusão A normatização do procedimento de autotutela registral pelo provimento CNJ 195/25 ("Provimento do IERI-e") representa um avanço significativo na busca por maior eficiência e segurança jurídica no âmbito do Registro de Imóveis. Ao disciplinar a atuação do registrador em situações de alta indagação ou potencial litígio, a norma reforça a importância do contraditório e da participação ativa das partes interessadas, conferindo maior transparência e legitimidade aos atos praticados extrajudicialmente. Além disso, o ato normativo deve refletir em um novo modo de pensar dos próprios oficiais de registro de imóveis, sobretudo, pela ampliação dos poderes procedimentais para decidir e solucionar diretamente as demandas, tornando os procedimentos mais ágeis, simples e acessíveis aos usuários, com menos burocracia e maior eficiência. A distinção entre autotutela administrativa e autotutela registral evidencia a especificidade do papel do registrador, que não atua com discricionariedade, mas sim dentro dos limites quanto verificação de nulidades, sempre com respeito ao devido processo legal. O procedimento, ao exigir a notificação das partes e prever etapas claras de manifestação, conciliação e eventual remessa ao juiz corregedor, demonstra maturidade institucional e alinhamento com um princípio de juridicidade, mais consentâneo com o atual sistema registral brasileiro. A adoção desse modelo fortalece a extrajudicialização de conflitos, reduzindo a sobrecarga do Judiciário e reconhecendo a competência do registrador de imóveis para o controle da malha imobiliária. Além disso, valoriza a independência funcional desse profissional do direito, conferindo-lhe maior autonomia para atuar como protagonista de uma jurisdição administrativa dos registros imobiliários. _______ 1 A utilização da nomenclatura "procedimento de autotutela registral" era, no entanto, meramente doutrinária. Com o advento do Provimento CNJ n. 195/2025 a terminologia passou a ser também normatizada. Ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Procedimento de autotutela registral (art. 214 da Lei de Registros Públicos): limites objetivos. Migalhas Notariais e Registrais. set. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 05 jun. 2025. 2 A súmula 346 é de 1963 e a Súmula 473 é de 1969. 3 Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. 4 Súmula 473. A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial." 5 "Pode-se conceber o procedimento como um gênero, de que o processo seria uma espécie. Neste sentido, processo é o procedimento estruturado em contraditório, no qual as partes têm o direito fundamental de se manifestar e influenciar a decisão, garantindo a ampla defesa e o devido processo legal" (DANTAS, Miguel Calmon. Direito fundamental à processualização: ln: GOMES JR.,Luiz Manoel; WAMBlER, Luiz Rodrigues e DIDlER JR. Fredie (org.) Constituição e processo. Salvador: Editora JusPodivm, 2007, p. 418). 6 Diversos são os exemplos de extrajudicialização, fenômeno pelo qual procedimentos que antes dependiam do Poder Judiciário passam a ser realizados diretamente em órgãos extrajudiciais, como cartórios. Assim, p. ex., inventários e divórcios consensuais, e respectivas partilhas de bens; retificação administrativa de imóveis; registro tardio de nascimento; mudança de prenome extrajudicial para maiores de 18 anos e alteração de sobrenome; Execução de dívida garantida por alienação fiduciária e hipoteca; usucapião e adjudicação compulsória. Sobre o fenômeno da extrajudicialização nas serventias notariais e registrais, ver: MALLMANN, Jean. Extrajudicialização: o fenômeno da desjudicialização com nome certo. Migalhas Notariais e Registrais. mai. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 05 jun. 2025. 7 O artigo 984 do CPC/1973, embora revogado, é a principal referência para o conceito de "alta indagação". No CPC atual (Lei n. 13.105/2015), o artigo 612 trata da remessa dessas questões para o procedimento ordinário. Assim, na via judicial, por exemplo, casos de alta indagação demandam dilação probatória incompatível com inventário e outros procedimentos simplificados. A LRP (Lei n. 6.015/1973) também utiliza o conceito, ao estabelecer que o registrador civil poderá retificar, independentemente de decisão judicial, atos registrais cujos erros "[...] não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção" (art. 110, inc. I). 8 O próprio Provimento n. 195/2025 expressamente determina a subsidiariedade do processo de autotutela registral, remetendo as partes interessadas a este procedimento quando não for possível a resolução por outros procedimentos ali também regulamentados, a exemplo do disposto no art. 440-BA, §§ 4º a 6º ("Constatada a existência de sobreposição material, poderá ser realizado procedimento de autotutela registral") e art. 440-BB, inc. II, alínea c ("não ocorrendo a situação [...], poderá realizar o procedimento de autotutela registral").
O desembargador Alves Braga Jr. consumou uma boutade que me persegue como nótula biográfica hilária. Segundo ele, eu seria "o maior especialista em direito revogado do Brasil". Imagino que o ilustre desembargador pretendeu endereçar-me um elogio. Nas enfadonhas viagens que empreendemos Brasil afora, nas visitas do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, entretínhamo-nos com histórias sobre o regime hipotecário do século XIX e suas vicissitudes e particulares. Ele então se admirava que eu pudesse discorrer sobre hipoteca e penhor de escravos, reserva de prioridade, sistemas hipotecários belga e francês1 no bojo nas discussões conduzidas pelo gênio de José Tomás Nabuco de Araújo no transcurso da década de 1854 a 1864. A publicação deste pequeno volume em homenagem ao grande Ademar Fioranelli é ensejadora de perquirições mais amplas. O tema da hipoteca e do penhor de escravos não mereceu até aqui um estudo profundo e sistemático, nem é este o escopo deste opúsculo, e isto por razões de tempo e especialidade. Não sou historiador, é bom que se diga desde logo. Entretanto, calha ventilar assuntos relacionados ao direito registral pelo viés da história institucional. Toca-me a ideia de que não há futuro possível sem que possamos reatar o curso perene das instituições a partir do reconhecimento dos passos dados pelos nossos maiores no passado. Como disse alhures, a tradição não se reduz a meras cinzas de antigalhas apagadas pelo tempo, mas é chama viva que regenera o passado com virtude para plasmar o futuro. A pergunta que buscarei agitar nesta reflexão e aprofundamento dos mais doutos é a seguinte: por qual razão, descumprindo expressa determinação da Primeira República, os arquivos dos cartórios que continham documentos relativos à escravidão não foram incinerados? Mais especificamente, por que os Registros de Imóveis não cumpriram à risca a determinação legal constante do parágrafo único do art. 11 do decreto 370, de 1891? Eis o texto legal: "Parágrafo único. Os livros do registro sob o n. 6, nos quais era transcrito o penhor de escravos, serão incinerados, e se deles constarem outros registros, estes serão transportados com o mesmo número de ordem para os novos livros de n. 2, 4 ou 5". Algumas pistas podem ser encontradas na literatura. São impressivas as reflexões do velho Conselheiro Ayres - José da Costa Marcondes Ayres -, como se vê em Memorial de Ayres. Machado de Assis, à parte a penetrante perspectiva psicológica de seus personagens, nos dá uma possível chave para dilucidar os temas que ora nos ocupa: qual terá sido a razão de Ruy Barbosa haver determinado a destruição dos documentos sobre a escravidão? Suspeito que somente um registrador especialista em direito revogado perceberia esse dispositivo que remanesceu desgarrado no conjunto normativo da época, obscurecido, um tanto, pela questão decorrente da famosa decisão de 14 de dezembro de 1890, do mesmo Ruy, que determinava a arrecadação e incineração de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda. Eis o teor da decisão: Decisão s/n. de 14 de dezembro de 1890. Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda. Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional: Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão - a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral; Considerando, porém, que dessa nódoa social ainda ficaram vestígios nos arquivos públicos da administração; Considerando que a República está obrigada a destruir esses vestígios por honra da Pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira; Resolve: 1º - Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria. 2º - Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, e do administrador da Recebedoria desta Capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá à queima e destruição imediata deles, que se fará na casa da máquina da Alfândega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer à comissão. Capital Federal, 14 de dezembro de 1890 - Ruy Barbosa2. Ruy Barbosa foi vituperado por esta decisão acabrunhante. "Irreflexão, leviandade ou aleivosia - eis o tríptico da malévola e reiterada acusação a Ruy Barbosa em torno dos arquivos da escravidão", bradará Francisco de Assis Barbosa, refutando as acusações assacadas contra o nosso Águia de Haia3. Seu sucessor, Alencar Araripe, reiteraria a ordem nos seguintes termos: Circular 29 - Ministério dos Negócios da Fazenda - Rio de Janeiro, 13 de maio de 1891. "Convindo, para cumprimento das instruções expedidas por este ministério, em 14 de dezembro de 1890, que fiquem extintos todos os livros e papéis referentes ao elemento servil, recomendo aos Srs. inspetores das tesourarias da Fazenda que providenciem, com toda a urgência, para que sejam incinerados, sem demora, os livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos, e os mandados devolvidos ao juízo que os houver expedido, ex vi do art. 5º da lei 3.396, de 24 de novembro de 1888; desaparecendo por este modo os últimos documentos que atestam a ex propriedade servil. A incineração será feita em presença da Junta da Fazenda, e disto se lavrará uma ata minuciosa, da qual se remeterá cópia a este ministério. E, para que a falta de tais livros não afete a responsabilidade dos exatores, cujas contas ainda não tenham sido tomadas, quanto à arrecadação daquele imposto, deverá a verificação dessa responsabilidade ser feita pela confrontação da importância das certidões extraídas dos talões, com as partidas do livro da receita. T. de Alencar Araripe"4. Veremos, mais à frente, as razões apresentadas pela crítica para justificar a decisão de Ruy e executada por Alencar Araripe. Antes, porém, voltemos a Machado de Assis para destacar uma passagem - aliás da glosa penetrante de José da Costa Marcondes Ayres, o velho Conselheiro Ayres -, que retraça e antecipa a trajetória frustrânea da decisão de 1890. Colhe-se do delicioso texto o seguinte: "Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia"5. Os atos particulares, as escrituras tabelioas, os registros hipotecários, os autos judiciais, o riquíssimo acervo documental que repousa nos cartórios nunca se exauriu completamente pelo tramo da decisão reputada infamante. Este manancial documental remanesce à espera da prospecção inteligente da história. Várias são as razões de se não terem atendidas as determinações da resolução ministerial. Comecemos pela advertência lançada por José Gomes B. Câmara. Segundo ele, a incineração foi motivada por um interesse eminentemente fiscal, restrita ao Ministério da Fazenda. Diz que não se tratou propriamente de uma portaria, mas de uma decisão de cariz administrativo, lançada de modo adequado: "Em lugar próprio, em anotação inserida junto ao texto de tal decisão, e não, a rigor, portaria, como se tem afirmado e designado tal deliberação, vai inserida sucinta nota a respeito. Desde já lembrado que não foi publicada com as demais decisões, não obstante divulgada em O Direito, vol. 54. p. 160, dúvida não persistindo de que é de índole eminentemente de decisão, e não portaria o seu teor, a sua origem, a sua finalidade"6. Vários projetos haviam sido enviados à Câmara e ao Senado para buscar a indenização dos proprietários de escravos. Aliás, o problema "indenizacionista" foi um dos fatores da quartelada de 1889 - ao lado da questão religiosa, militar (Paraguai), da crise econômica e do impulso federalista por seus laivos maçônicos e positivistas. As fogueiras cívicas que se acenderam no Rio de Janeiro e Bahia, e que consumiram os documentos relativos à escravidão, foram qualificadas por Gilberto Freire, com peculiar humor e ironia, como "autos-de-fé republicanos"7. Como nos revela Robert Slenes, "as matrículas [de escravos] e o registro de mudanças constituíam a única base legal para a propriedade em escravos. Foi, provavelmente, por causa deste dispositivo que Rui Barbosa, como Ministro da Fazenda em 1890, mandou destruir as cópias desses documentos guardadas nas coletorias; com esta medida teria dificultado a prova de posse anterior de escravos, e assim sustado qualquer movimento que reivindicasse, perante o governo, a indenização da propriedade perdida com a abolição". E continua: "Entretanto, a ordem de Rui Barbosa não atingiu as cópias de um grande número desses manuscritos que chegaram a ser arquivados nos cartórios. Entre 1872 e 1888 os herdeiros, em qualquer processo de herança, eram obrigados a provar seu direito de posse sobre os escravos do espólio, perante o juiz responsável. Como resultado, em muitos inventários de bens de pessoas falecidas daquele período, encontram-se cópias das listas nominativas de matrícula, sobretudo das relações de 1872-73, e certidões comprovando o nascimento de ingênuos e a compra de novos escravos"8. De fato, "os manuscritos estão enterrados nos cartórios", como disse o professor Slenes. As fogueiras cívicas e os autos-de-fé republicanos Após o golpe militar de 1889 - a que o povo assistiu impotente e "bestializado"9 -, o país viveria um período tumultuado relativamente às questões relacionadas com a lavoura, especialmente após o progressivo livramento servil. Decretada afinal a abolição, vários foram os projetos "indenizaconistas"10 - propostos, por exemplo, por Coelho Rodrigues, Cotejipe e João Alfredo -, somente arrefecendo com a Proclamação da República e, especialmente, com a atuação do próprio Ruy Barbosa. Veja-se a resposta que deu aos "aristocratas mendicantes", que pleiteavam alguma forma de compensação pela abolição imediata e sem indenização, articulada no requerimento firmado por Anfriso Fialho e outros. Vamos ao texto do despacho ministerial: "De José Porfírio Rodrigues de Vasconcelos e seus filhos, José Melo Alvim e o Dr. Anfriso Fialho, apresentando as bases para a fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos ou seus herdeiros, dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888, deduzidos 50% de seu valor em favor da República. Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido"11. A resposta que a todos parecia eficaz para superar as crises do momentoso período foi: eliminar os comprovantes fiscais que se achavam no Ministério da Fazenda e que poderiam servir de base e fundamento à onda indenizatória. Como vimos, o texto da decisão de 14 de dezembro de 1890 pareceu centrar o seu foco nos arquivos da administração fazendária. Segundo Francisco de Assis Barbosa, os objetivos de Ruy Barbosa (e de seu sucessor, Alencar Araripe) se resumiriam a eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, esboroando suas evidências: "É importante insistir no objetivo determinante dos atos, tanto o de Ruy Barbosa, como do seu sucessor Alencar Araripe, que era o de eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, para assim evitar, como salientamos, a situação de fato, sempre questionada na época, em torno da propriedade do escravo, desde que a entrada de africanos fora considerada ilegal pela lei de 7 de novembro de 1831, assinada por Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça, declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores dos mesmos escravos. Lei que, seguida do Decreto de 12 de abril de 1832, e assinada ainda por Feijó, regulamentou a anterior sobre o tráfico de africanos"12. A entrada ilegal de escravos a bordo dos navios negreiros deixou um rastro probatório que alguns gostariam de apagar, desfalcando os constritores de um poderoso foco de tensão política - à parte o evidente comprometimento do orçamento, já minguado, com o pagamento de indenizações vultosas. Entretanto, o que dizer a respeito do Regulamento Hipotecário? O assunto descansou na remansosa diuturnidade de questões técnicas e jurídicas e na praxe cartorária. O que os historiadores perderam para sempre foram os livros de matrícula de escravos, de impostos e de entrada nas alfândegas. Os livros notariais e de registro (além dos autos judiciais de inventários e partilhas) resistiram às labaredas republicanas e se acham ainda espalhados pelos cartórios e arquivos judiciários, "enterrados" nos cartórios judiciais e extrajudiciais. Crimen fué del tiempo. Américo Jacobina Lacombe encerra o seu texto lembrando o verso do poeta hispano-americano: crimen fué del tiempo, no de España13. Com isso absolve Ruy Barbosa do cometimento do que, por outro lado, não hesitou de qualificar como "pedra de escândalo" da nossa história política e cultural. Aliás, diga-se de passagem, Lacombe faz uma defesa paradoxal de Ruy por não deixar de qualificar o ato ministerial de "espetáculo inquisitorial", "desvario", "espantosa obnubilação do pensamento nacional", "espantoso ato de vandalismo", "malefício" - vituperando o ato realmente abominável14, mas exaltando a figura proeminente do personagem. Muito mais lúcida, sem dúvida, terá sido a voz dissonante de Francisco Coelho Duarte Badaró, que, em sessão que aprovaria a moção de apoio à iniciativa de Ruy Barbosa, ousou discordar de seus pares: "Sr. Presidente, não quero que ninguém entenda que, ao levantar para pronunciar-me contra esta moção, eu pretenda condenar a obra meritória dos abolicionistas. O que faço é protestar contra o ato de cremação de todo o arquivo da escravidão no Brasil, porque envolve interesse histórico. Nós, em vez de procurarmos destruir, o que é uma obra de verdadeiros iconoclastas, devíamos ter a nossa Torre do Tombo, um edifício destinado a recolher os papeis de todos os arquivos do país. Somos um povo novo que corremos o risco de ter dificuldades para escrever a nossa história, porque é deplorável o que se observa em todas as municipalidades e nas repartições das antigas províncias: por toda a parte o mesmo abandono, o mesmo descuido, e por último o facto de mandar-se queimar grande número de documentos que podiam servir para se escrever com exatidão a história do Brasil, no futuro. (Muito bem; muito bem.)"15. Eis que os livros de registro sobreviveram... Apesar da "espantosa obnubilação" barbosiana, suas determinações ministeriais e regulamentares não se concretizariam plenamente - apesar das fogueiras acendidas em 1891 no Rio de Janeiro e em 1893 na Bahia. Saúdam os defensores de Ruy Barbosa que a sua criticada decisão não se cumpriria por uma triste sina da administração pública brasileira - afinal, neste país nem todas as leis e decisões são feitas para serem cumpridas. Fosse de outra forma e "a nossa emperrada máquina burocrática terá funcionado eficazmente pela primeira vez, para nossa infelicidade"16. Seja como for, as decisões dos primeiros republicanos não foram atendidas. Comprovam-no os arquivos dos Tabelionatos e Registros de Imóveis espalhados por todo o país, que mantiveram, diligentemente, os seus livros de registro intactos e preservados do incêndio republicano. Ao final e ao cabo, voltando aos velhos e pesados livros, o traslado das ditas transcrições, como determinado no parágrafo único do art. 11 do Decreto 370/1891, seria custoso e de difícil consumação, já que tal implicaria uma investigação afanosa e de duvidosos resultados práticos. Além disso, restariam as escrituras públicas e as hipotecas inscritas ainda sob a égide do Decreto 482/184617 e as hipotecas de fazendas e penhores de seus acessórios (escravos) inscritas a partir de 1865. Hipoteca e penhor de escravos Voltemos no tempo e ao tema de nossa especialidade. O decreto 482, de 1846, aludia à "hipoteca" de escravos (art. 2º). Diz o texto legal: "Art. 2º As hipotecas deverão ser registradas no Cartório do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hipotecados. Fica, porém, exceptuada desta regra a hipoteca que recair sobre escravos, a qual deverá ser registrada, no registro da Comarca em que residir o devedor". A exceção da regra da inscrição na comarca de situação dos bens imóveis, renderia acesa discussão na reforma de Nabuco, razão pela qual o penhor de escravos revestiu-se da fórmula jurídica do constituto possessório. Seja como for, a disposição de 1846 permaneceu em vigor até o advento da Lei 1.237, de 24/9/1864, e de seu decreto regulamentador (Decreto 3.453, de 26/4/1865). As considerações levadas a efeito nas comissões encarregadas de encaminhar a reforma da legislação hipotecária jogam luzes sobre o problema da hipoteca de escravos. Na sessão de 23/5/1864, os senadores que integravam as ditas comissões reunidas de legislação e fazenda - José Tomás Nabuco de Araújo, Visconde de Itaboraí, Bernardo de Souza Franco, Barão de Pirapama, J. M. da Silva Paranhos, J. Ignácio Silveira da Motta - observariam que os escravos não poderiam ser objeto de hipoteca de modo avulso, senão que só poderiam ser hipotecados conjuntamente com as propriedades agrícolas: "Prevaleceu, porém, no ânimo das duas Comissões, o princípio fundamental de que a hipoteca, em razão do direito de sequela que a caracteriza e da certeza e duração de que carece o crédito real, não pode ter por objeto senão os imóveis. Se os escravos, conforme a proposição da Câmara dos Deputados, são suscetíveis de hipoteca, não é senão conjuntamente com a propriedade pelo motivo excepcional de que o valor das propriedades agrícolas entre nós muito depende do número de seus escravos". (...) "Todavia parece às Comissões que cumpre tornar uma providência para prevenir o inconveniente ponderado, e esta providência vem a ser a derrogação do art. 273, 2ª parte, do Código Comercial que proíbe o penhor de escravos: derrogado este artigo bem podem os proprietários recorrer ao penhor com a - cláusula constituti -, por virtude da qual os escravos continuam em seu poder ainda que por título precário". Em síntese, decidiu-se: Que são suscetíveis de hipoteca todos os escravos pertencentes à propriedade agrícola - e não somente aqueles que, conforme a lei de 30 de agosto de 1833, se consideravam aderentes. Que os escravos só podem ser hipotecados conjuntamente com as propriedades agrícolas. Que somente se consideram hipotecados com a propriedade os escravos especificados no contrato. Que as crias nascidas das escravas hipotecadas, como acessões naturais, se consideram compreendidas na hipoteca18. Não passou despercebido da Comissão que o penhor mercantil de escravos era vedado pelo Código Comercial de 1850 (Lei 556, de 25 de junho de 1850, art. 273), mas tal disposição seria derrogada pelo advento da Lei Hipotecária de 1864 (§ 1º do art. 2º)19. O sistema registral brasileiro acolheria a inscrição da hipoteca e do penhor de escravos. Assim dispunha a lei 1.237 de 24 de setembro de 1864: Art. 2.º A hipoteca é regulada somente pela lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejam comerciantes. (.) § 1º Só podem ser objeto de hipoteca: Os imóveis Os acessórios dos imóveis com os mesmos imóveis. Os escravos e animais pertencentes às propriedades agrícolas, que forem especificados no contrato, sendo com as mesmas propriedades. Portanto, a partir de 1865 dar-se-ia a hipoteca de escravos somente com a consequente hipoteca da propriedade, como se vê na parte final do dispositivo. A mesma lei estabeleceria que, no caso de escravos, quando considerados destacadamente, poderiam ser objeto de garantia por meio do penhor de escravos, cuja eficácia da transcrição era dependente da inscrição da hipoteca. Assim dispunha o § 6º do art. 6º do decreto 3.453/1865: § 6.º O penhor de escravos pertencentes às propriedades agrícolas, celebrado com a cláusula constituti, também não poderá valer contra os credores hipotecários, se o título respectivo não for transcrito antes da hipoteca. O penhor, devidamente transcrito com antecedência, prevalecia contra a hipoteca posterior dos mesmos escravos, "hipoteca que não pode ter lugar senão conjuntamente com a hipoteca de algum imóvel"20. Perdigão Malheiro aclara bem a situação: "Desde que a lei hipotecária autoriza, por exceção, a hipoteca de escravos como acessório do estabelecimento agrícola, a inscrição da hipoteca em tais condições deve compreender também esses escravos, que são em tal caso reputados imóveis por destino, aderentes às propriedades. Deve, portanto, ser inscrito no liv. 2º, (inscrição especial). O Iiv. 6 é para a transcrição do penhor de escravos de estabelecimentos agrícolas com a cláusula constituti (Reg. cit., art. 39), cousa muito diversa da hipoteca. Junho, 1874"21. E mais adiante conclui: "E quanto aos estabelecimentos agrícolas, quando constituído o penhor com a cláusula constituti, exigiu o registro (Lei citada, art. 6º, § 6º; regulamento 3.453 de 1865, art. 265); e, ainda, quando dados em hipoteca, só admite, por exceção, como acessórios do estabelecimento (Lei citada, art. 2°, § 10; Regulamento citado, art. 140, § 2°)"22. Lafayette sustenta que "o escravo, suposto por si só, não possa ser objeto de hipoteca, uma vez hipotecado conjuntamente com o prédio agrícola, fica sempre sujeito ao vínculo hipotecário, embora posteriormente seja desligado do mesmo prédio"23. Livro 6 - transcrição do penhor de escravos O decreto 3.453 de 26 de abril de 1865 criaria o Livro 6 - transcrição do penhor de escravos: Art. 30. O livro n.º 6 - Transcrição do penhor dos escravos -, servirá para a transcrição do penhor de escravos pertencentes às propriedades agrícolas celebradas com a cláusula constituti (art. 6º, § 6º, da Lei). A cláusula do constituto possessório reafirma e não descaracteriza a natureza da garantia real pignoratícia (art. 265). Além disso, o regulamento reafirma a classificação dos escravos como bens acessórios da propriedade: Art. 140. Consideram-se acessórios dos imóveis agrícolas e só podem ser hipotecados com estes imóveis: § 1.º Os instrumentos de lavoura e os utensílios das fabricas respectivas, aderentes ao solo. § 2.º Os escravos e animais respectivos, que forem especificados no contrato. O art. 139 é claro: "Pode ser objeto da hipoteca, mas juntamente com os imóveis, a que pertencem, os acessórios dos imóveis, ou os imóveis por destino". Diz Agapito da Veiga: "Os escravos, animais, os instrumentos da lavoura, e os utensílios das fábricas, são considerados acessórios das propriedades agrícolas, e por isso podem ser hipotecados conjuntamente com a propriedade"24. Além disso, a lei de 1864 previa que a hipoteca convencional compreenderia todas as benfeitorias que acrescessem ao imóvel hipotecado - inclusive as acessões naturais, dentre as quais "se consideram incluídas as crias nascidas das escravas hipotecadas" (§ 2º do art. 4º). Já apontava, em 1866, Agostinho Marques Perdigão Malheiros: "A hipoteca de escravos não pode hoje recair senão sobre os que pertencerem a estabelecimentos agrícolas, com tanto que sejam especificados no contrato, e só conjuntamente com tais imóveis como acessórios destes, do mesmo modo que os animais"25. Matrícula de escravos Aliás, sobre a especificação - hoje diríamos especialidade do objeto da garantia - além de identificados pelo nome, idade, procedência etc., os escravos deveriam ser matriculados, nos termos do decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871 (art. 1º). Proibia-se a lavratura de escrituras públicas  de alienação, transmissão, penhor, hipoteca de escravos sem que estivessem presentes "as relações das matrículas ou certidão delas, devendo ser incluídas no instrumento os números de ordem dos matriculados, a data e o município em que se fez a matrícula, assim como os nomes e mais declarações dos filhos livres de mulheres escravas, que as acompanharem" (art. 45). Nos livros de transcrição, obrigava-se a identificação dos escravos pelo nome e característicos (§ 5º do art. 271 do decreto 3.453/1865). Em todos os registros pesquisados verifiquei a existência do nome, indicação de cor - "preto", "crioulo", "negro", "pardo" -, sem qualquer especificação de filiação (salvo quando o objeto do penhor alcançasse o filho do escravo apenhado), naturalidade e matrícula, feita nos termos do Decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871. Os escravos eram matriculados nas coletorias localizadas nas comarcas, como o caso das transcrições abaixo reproduzidas - números 31 e 32, datadas de 18/4/1881 e 8/2/1882, lavradas pelo Oficial Interino do Registro de Imóveis de Franca, Estado de São Paulo, Virgílio Gomes Guimarães26. Extinção da escravidão O fato é que em 1888, pela lei 3.353, de 13 de maio de 1888, houve a "declaração de extinção da escravidão no Brasil" e todas as disposições legais e regulamentares seriam revogadas pelo ato imperial (art. 2º)27. Já antes, a desintegração econômica sustentada pelo sistema servil era percebida pelo fato de os banqueiros se recusarem a conceder empréstimos garantidos por hipotecas de escravos28 e a partir dali já não seriam admitidas igualmente transcrições de contratos de penhor de escravos29. Com base nesse cenário, como ficaram os livros de transcrição de penhor de escravos? O livro de Transcrição de Penhor de Escravos Após o advento da reforma de 1890, o livro de transcrição de penhor de escravos deveria agora servir privativamente para a inscrição do penhor agrícola - "enquanto não for organizado modelo especial para essa espécie de contrato": "A inscrição da escritura de penhor agrícola deve ser feita no livro n. 6, destinado, pelo art. 13 do regulamento 3.453, de 26 de abril de 1865, para transcrição do penhor de escravos, colocando-se na casa dos nomes e característicos destes a declaração do objeto do penhor agrícola"30. Esta disposição seria de duração provisória, isto é, "enquanto não estiverem findos os livros supra eludidos que destarte são aproveitados". De fato, o parágrafo único do art. 11 do Decreto 370, de 2 de maio de 1890, ordenava o traslado de elementos de outros registros relacionados com o penhor de escravos para os livros criados de números 2 (especial de hipotecas), 4 (transcrição dos ônus reais - direitos reais limitados - art. 238) ou 5 (penhor agrícola). Entretanto, a reorganização dos livros de registro gerava controvérsias. Para pôr cobro às dúvidas, seria baixado o decreto 544, de 5 de julho de 1890, na consideração de que deveriam ser tomadas providências "para não ser embaraçada, por falta de livros, a instalação do registro de hipotecas em as novas comarcas". O Oficial deveria "aproveitar e adaptar nas antigas [comarcas] os fornecidos anteriormente à reforma decretada em 19 de janeiro do corrente ano [decreto 169-A/1890]". O decreto visava "remover dúvidas que na escrituração deles e dos novamente criados pelo regulamento de 2 de maio último [decreto 370/1890] se têm suscitado". Eis a redação do parágrafo único do art. 5º do decreto 544/1890: "Art. 5º O livro 5, a que se referem os arts. 11 e 27 do novo regulamento, será escriturado conforme o modelo que acompanha este decreto. Parágrafo único. O antigo livro 6 poderá ser aproveitado enquanto não se fornecer o novo livro 5, substituindo-se a indicação da 5ª coluna pela seguinte - Objeto de penhor agrícola - e aplicando tão somente à escrituração anterior do mesmo livro o disposto no parágrafo único do art. II do novo regulamento". O mesmo decreto 544/1890 consagraria ainda a seguinte disposição: "Art. 1º Nas comarcas em que ainda não houverem sido fornecidos os livros indispensáveis, na conformidade das disposições dos arts. 11, 12, 16, 18 e 19 do regulamento de 2 de maio do corrente ano, o registro se fará provisoriamente em outros tantos cadernos legalizados, segundo as prescrições dos arts. 13 e 14. Parágrafo único. Esse registro provisório será transportado para os livros logo que forem estes fornecidos, sendo em seguida encerrados e mandados arquivar pelo juiz os referidos cadernos". Finalmente, os livros criados pelo decreto 370/1890 seriam providos de partida pelo próprio Governo na Capital Federal e pelos Governadores nos Estados. Posteriormente, os oficiais do registro deveriam indenizar o seu custo à repartição de onde os receberam (art. 16). Concluindo, os cartórios não incineraram os livros de notas, de inscrição hipotecária e de penhor de escravos, descumprindo as decisões ministeriais e a letra expressa do parágrafo único do art. 11 do decreto 370/1891. Encerrados e arquivados, os livros remanesceram "enterrados" até os dias de hoje nas serventias notariais e registrais mais antigas à espera de um historiador paciente e vocacionado. _______ 1 Hoje pálido espelho da importância que tiveram ainda nos séculos XVIII e XIX. V. JACOMINO, Sérgio. Registros de documentos - crônica de uma morte anunciada. São Paulo: Observatório do Registro, 9.12.2013 (com addenda), disponível aqui. 2 Obras completas de Ruy Barbosa, Vol. XVII, 1890, tomo II, pp. 338-40. Disponível aqui. 3 LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo. BARBOSA. Francisco de Assis. Ruy Barbosa e a queima de arquivos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1988, p. 11. 4 Diário Oficial. Rio de Janeiro, 13.5. 1891, pp. 2.037-8. V. também LACOMBE. Américo Jacobina et alii. Op. cit., p. 123. 5 ASSIS. Machado de. Memorial de Ayres. Rio de Janeiro: H. Garnier. 1908, p. 56. 6 CÂMARA. José Gomes B. Obras Completas de Ruy Barbosa. Atos Legislativos, Decisões Ministeriais e Circulares. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1986, p. XXXVII. 7 FREIRE, G. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 1987, p. 300. 8 SLENES, Robert W.  O que Rui Barbosa não Queimou: Novas Fontes para o Estudo da Escravidão no Século XIX. In Estudos Econômicos 13, jan./abr. 1983, p. 120. 9 A expressão que faria fortuna foi esta: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada". Para a contextualização da expressão do jornalista do Diário de São Paulo (ed. 18/11/1989), v. CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Schwarcz, 2010, pp. 9 passim. 10 "Palavra feia para uma ideia igualmente feia", dirá Francisco de Assis Barbosa, LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo. BARBOSA. Francisco de Assis. op. cit., p. 16. 11 Diário Oficial. Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1890, p. 5.216, col. 2. 12 LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo. BARBOSA. Francisco de Assis. Op. cit., p. 19. 13 Op. cit. p. 39. Aparentemente o autor buscou citar o poeta espanhol Manuel José Quintana: "Su atroz codicia, su inclemente saña / Crimen fueron del tiempo, y no de España", A la expedición española, Poesías. 14 Op. cit. p. 33 passim. 15 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22.12.1890, p. 1. 16 LACOMBE. Américo Jacobina. op. cit. p. 35. 17 Os livros de inscrição de hipotecas acolheriam as contratadas anteriormente à vigência do Decreto 482/1846. De fato,  as inscrições das hipotecas "anteriores à instalação do Registro serão feitas em Livro distinto e separado d'aquele em que se fizerem as anteriores, porém com as mesmas formalidades" (art. 16 do referido Decreto 482/1846). 18 Sessão de 23/5/1864, Anais do Senado do Império do Brasil -1864 - 12ª Legislatura. Vol. I. Rio de Janeiro: Correio Mercantil, 1864, pp. 48 et seq. 19 CORRÊA TELLES. José Homem. Doutrina das Acções. TEIXEIRA DE FREITAS, atual. Rio de Janeiro: Garnier, 1880, p. 146, nota 310. 20 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos das Cousas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1905, p. 388, § 164 21 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Consultas Sobre Várias Questões de Direito Civil, Comercial e Penal. Rio de Janeiro: Garnier, 1884, p. 239. 22 Idem, ibidem, p. 349. 23 Op. cit. p. 432, nota 8. 24 VEIGA, Dídimo Agapito. O amigo e conselheiro dos comerciantes... Rio de Janeiro, E. & H. Laemmert, 1873, p. 239. 25 MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico-juríd310.dico-social. Parte 1ª - jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 70, § 49. 26 O Livro de Penhor de Escravos do Registro de Imóveis de Franca foi consultado por mim com autorização expressa do Dr. Lincoln Bueno Alves, a quem agradeço a disponibilidade e interesse. 27 A Lei 3.354/1888, da Princesa Isabel, consoante antigas tradições que nos vem do tabeliado português, seria transcrita em 15/5/1888 (Livro 16, fls. 57/57v.) pelas Notas do Registro Civil de Santo Amaro. O ato foi firmado pelo escrivão do juízo da paz, Joaquim Gonçalves de Oliveira Barreto, servindo ali como tabelião. A reprodução fac-similar está disponível aqui: https://circuloregistral.com.br/wp-content/uploads/2009/12/transcripc3a7c3a3o-da-lei-3-353-de-13-05-1888.pdf. O mesmo escrivão de paz, parece ter sido figura conhecida no período desempenhando, entre outras, a função de carcereiro (Almanach - Província de São Paulo, São Paulo: Jorge Seckler, 1884, p. 81). Consta, ainda, ter sido músico e voluntário da pátria. V. Ordem do Dia 36, de 13/11/1869, do Comando em Chefe de todas as forças Brasileiras em Operações na República do Paraguai. Rio de Janeiro: Francisco Alves de Souza, 1877, p. 478. 28 LOVE. Joseph. A Locomotiva. São Paulo na Federação Brasileira - 1889-1937. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 66-7. 29 MACHADO, Joaquim de Oliveira. Manual do Official do Registro Geral e das Hypothecas. Rio de Janeiro: Garnier, 1888, p. 394, § 240. 30 CARREIRA, Liberato de Castro. História financeira e orc¸amentaria do imperio do Brazil desde a sua fundac¸a~o, precedida de alguns apontamentos acerca da sua independência. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 644, n. II, in fine.
O atual CC português, de 1966, não prevendo o penhor legal, consagrou o direito de retenção enquanto direito real de garantia, no art. 754 e 755. Segundo o art. 754, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Assim, são requisitos para existência do direito de retenção previsto no art. 754 do CC português: i) que o titular do direito detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem; ii) que o titular do direito, obrigado à restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem a deve restituir; iii) que entre os dois créditos exista uma relação de conexão1. O 1.º do art. 755, do mesmo diploma legal, admite o direito de retenção com carácter excecional em relação ao transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que tenha obtido a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. Referimos o carácter "excecional", porque em causa não está um direito de retenção que assegure a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados2. Servindo a recusa de entrega da coisa para compelir o devedor ao cumprimento, dúvidas inexistem quanto à função compulsória do direito de retenção, bem como quanto a consubstanciar uma garantia de cumprimento lato sensu. Acresce que, os direitos de retenção constituídos na constância do atual CC e antes da entrada em vigor do decreto-lei 48/24, de 25 de julho eram, todos, sem exceção, direitos reais de garantia, pois neles se encontravam as duas faculdades distintivas dos direitos reais de garantia, isto é, satisfação do crédito à custa do valor da coisa com preferência em face dos demais credores do devedor (quer comuns quer dotados de garantia real não prioritária)3. E tal, sem que o direito de retenção estivesse, ou esteja, sujeito a registo para consolidar a sua oponibilidade perante terceiros4. Precisamente por em causa estar, sempre, um direito real de garantia, por um lado, apenas podiam (e podem) ser retidas coisas suscetíveis de serem objeto de penhora. E, por outro, recaindo o direito de retenção sobre coisa móvel, a posição jurídica do retentor era equiparada à do credor pignoratício (art. 758 do CC português); já quando o objeto do direito de retenção era um imóvel, o 1.° do art. 759.°, do mesmo diploma legal, atribuía ao retentor, enquanto não entregasse a coisa retida, a faculdade de a executar nos mesmos termos em que o podia fazer um credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor5. Por fim, o 2.º do art. 759, do diploma em apreço, introduzia uma exceção à característica da preferência, determinando que o direito de retenção prevalecia sobre a hipoteca, ainda que esta tivesse sido registada anteriormente. Esta solução compreendia-se tendo presente que o crédito garantido com o direito de retenção resultava, normalmente, de despesas com a fabricação, conservação ou melhoramento de coisa alheia, que beneficiavam todos e ser injusto que os restantes se locupletassem à custa de quem as havia realizado - o retentor. Na verdade, se as despesas para a manutenção e conservação da coisa não tivessem sido realizadas, a coisa poderia ter perecido e, então, nem o seu proprietário, nem o credor hipotecário, nem qualquer outro credor conseguiriam realizar o seu direito. Acresce que, os créditos garantidos pelo direito de retenção em regra correspondiam a quantias de pequeno montante, podendo, por isso, ser satisfeitos com relativa facilidade, assim se extinguindo o direito de retenção. Nenhuma destas razões, sublinhe-se, justificava o direito de retenção do promitente-comprador, que tivesse obtido a tradição da coisa objeto do contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte (cfr. a al. f) do 1 do art. 755). Tal direito foi consagrado na sequência das alterações de 1980 e 1986 ao regime do contrato-promessa e foi extremamente criticado pela doutrina portuguesa dominante. As intenções do decreto-lei 236/1980, de 18 de Julho eram claras: visava-se tutelar o promitente-comprador, de um imóvel destinado a habitação própria permanente, contra o risco de o promitente-vendedor não cumprir o contrato, por lhe ser mais vantajoso pagar o dobro do sinal, depois de alienar o imóvel a um terceiro por preço bem mais elevado, em virtude da inflação desenfreada que se vivia na época. Em suma, o legislador pretendeu desincentivar o incumprimento lucrativo do promitente-vendedor; no entanto, acabou por atribuir uma garantia privilegiada ao promitente-comprador, sempre que ocorresse traditio, mesmo que o objeito do contrato não se destinasse a habitação própria permanente do promissário. Ora, como referido, nenhuma das circunstâncias que estavam na base do comum das situações geradoras do direito de retenção (conexão funcional entre o crédito e a coisa e reduzido montante da quantia em dívida) se verificava nos casos de promessa de compra e venda (com entrega da coisa que fosse objeto do contrato prometido). Efetivamente, nada garantia que a quantia entregue a título de sinal ao promitente-vendedor tivesse sido empregue na construção ou valorização do imóvel. Ademais, os créditos, derivados do incumprimento da promessa, podiam ser de valor idêntico ao da coisa, o mesmo é dizer, ascender a um montante, em regra, bastante elevado. Por fim, a prioridade concedida ao promitente-comprador não se revelava justa, uma vez que, aquando da celebração do contrato, ele conhecia ou não devia ignorar a existência de uma hipoteca que, recordamos, apenas se constitui com a inscrição registral. Ocorre que o decreto-lei 48/24, de 25 de julho, veio alterar o exposto quanto ao direito de retenção que tenha por objeto imóveis. No sumário do referido diploma legal pode ler-se: "Limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca". E, no preâmbulo do decreto-lei o legislador português, além do mais, afirmou: "[O] presente decreto-lei procede ao reforço da hipoteca perante o direito de retenção, que, até à data, prevalecia de forma absoluta sobre a primeira. A posição do credor hipotecário é reforçada através da limitação da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada aos casos em que a não consagração desta solução conduz ao locupletamento do credor hipotecário à custa do titular do direito de retenção. Estas situações ocorrem sempre que o titular do direito de retenção realizou despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento do seu valor. Consequentemente, altera-se o regime legal no sentido de condicionar a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada à circunstância de o crédito garantido assegurar o reembolso de despesas feitas com o imóvel que tenham contribuído para o conservar ou para aumentar o respetivo valor." Para atingir o objetivo anunciado, teria bastado ao legislador português alterar a redação do 2.º do art. 759.°, nele passando a ler-se "o direito de retenção prevalece, sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada anteriormente, exceto no caso previsto no art. 755, 1, alínea f).". Não obstante, o legislador português alterou a redacção do 1.° e do 2.° do art. 759, de forma bem diversa do afirmado no referido sumário e preâmbulo transcritos, passando tal preceito legal a estatuir: "1 - Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais credores do devedor. 2 - Nos casos previstos na parte final do número anterior, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente." Deste modo, foi retirada a preferência ao direito de retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta créditos resultantes de danos por ele causados ou assegure qualquer crédito previsto no art. 755.°, concedendo-se, nestes casos, apenas ao retentor o poder de executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário. Portanto, em tais casos, o direito de retenção deixou de ser um direito real de garantia. Porquanto, atualmente, é inquestionável que a soberania que confere um direito real de garantia não se traduz apenas no poder de o seu titular satisfazer o seu crédito, à custa do valor da coisa onerada, mediante recurso à venda judicial, mas sim no poder de o seu titular promover tal venda, de modo a satisfazer o seu crédito, à custa do valor da coisa onerada6, com preferência sobre os credores comuns, bem como sobre os credores que disponham de uma garantia de grau inferior. De facto, é hoje inequívoco que a característica da preferência é conatural a um direito real de garantia. Uma garantia real desprovida de prioridade ou de preferência é algo de inconcebível, porque contrária à soberania própria do direito real em apreço. Ou seja, tal como não se pode falar de um qualquer direito real destituído de eficácia erga omnes e de um direito real de gozo desprovido de prevalência, também não se pode falar de um direito real de garantia sem preferência ou prioridade. Sublinhe-se ainda, que, sendo certo que é ao legislador que compete elencar os direitos reais - em virtude do princípio da taxatividade -, tal como determinar o critério pelo qual se fixa o grau dos direitos reais de garantia, também é incontroverso que não lhe cabe dar a definição de direito real e está-lhe vedada a possibilidade de prever a existência de um direito real destituído de eficácia erga omnes, uma vez que tal eficácia não é mais do que um corolário da soberania que caracteriza o ius in re. Portanto, repisamos, através do decreto-lei 48/24, de 25 de julho,  o ordenamento jurídico português consagrou um direito de retenção que não é garantia real - o direito de retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta um crédito resultante de danos por ele causados ou um qualquer crédito previsto no art. 755 - a par com o direito de retenção que manteve a sua natureza real inalterada: i) o que têm por objeto móveis - quer assegure a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor) ou de danos por ela causados, quer garanta a satisfação de um crédito previsto no art. 755; ii) o que têm por objecto imóveis se assegurar a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor). Consequentemente, na hipótese de um imóvel retido ser nomeado à penhora em ação executiva proposta por outro credor, segundo o nosso entendimento, ao retentor, destituído de preferência, não deve reconhecer-se o poder de recusar a entrega da coisa, porquanto tal faculdade consubstanciaria, na prática, uma preferência indireta e especial, que colocaria o retentor na posição de estar sempre salvaguardado no pagamento do seu crédito, com preferência sobre todos os outros credores, por mais privilegiados que eles fossem. De facto, reconhecer tal poder ao retentor conduziria a que reconhecesse que a retenção, que não concede qualquer preferência suscetível de ser feita valer diretamente na graduação dos créditos, atribuiria uma preferência indireta, mais forte do que a direta, visto que os outros credores só poderiam executar o imóvel retido pagando o crédito do retentor ou caucionando o pagamento. O que, obviamente, contrariaria clamorosamente o fim visado - mas não declarado no preâmbulo - pelo legislador, com o decreto-lei 48/24, de 25 de julho: retirar a preferência ao retentor de um imóvel quando o crédito não seja o de reembolso por despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor). Acresce que o retentor de um bem imóvel, desprovido de preferência, não pode reclamar os seus créditos em ação executiva proposta por outrem, pois o processo de execução deixou de ter em Portugal, desde 1961, o carácter coletivo universal que anteriormente revestia - e o aproximava da falência ou da insolvência civil -, só admitindo a intervenção dos credores cujos créditos, mesmo que ainda não vencidos, estejam assegurados por uma garantia real anterior sobre os bens penhorados na execução e que disponham de título executivo (art. 788 do CPC português)7. Não se extinguido o direito de retenção - e muito menos o crédito do retentor - em virtude da entrega não voluntária da coisa, ocorrida em virtude da penhora efetuada em ação executiva proposta por outro credor, restará ao retentor, desprovido de preferência, a possibilidade de intentar nova ação executiva e nomear à penhora o bem até ali retido, para, após a sustação da execução por si movida, reclamar o seu crédito no processo mais antigo (art. 792)8 e, assim, tentar satisfazê-lo. Isto, claro está, se o imóvel em causa tiver "forças" para suportar a satisfação dos créditos dos titulares das garantias reais feitas valer na ação executiva e ainda o crédito do retentor.  Por fim, cumpre dar resposta à questão de saber que poderes pretendeu o legislador atribuir ao titular do novo direito de retenção, destituído de preferência, ao afirmar que este pode "executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário". Na nossa perspetiva, equiparando o legislador o retentor ao credor hipotecário, outros bens só poderão ser nomeados à penhora se o valor do imóvel retido se revelar insuficiente para a satisfação da dívida exequenda (penhorabilidade subsidiária). De facto, esta é a solução imposta pelo 1.º do art. 752 do CPC: "[e]xecutando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução". Intentando o retentor do bem imóvel, desprovido de preferência, ação executiva, beneficiará apenas da preferência concedida ao exequente em virtude da penhora (vide, art. 822, 1: "o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior"), não sendo a sua posição muito diversa da posição de um qualquer credor comum, uma vez que também este pode dar início ao processo de execução e nomear à penhora quaisquer bens que façam parte do património do devedor que não sejam impenhoráveis, apenas devendo o credor comum obedecer ao princípio da proporcionalidade e à regra da adequação9-10. Caso o retentor de um imóvel, destituído de preferência - por o seu crédito não resultar de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor) -, intente a ação executiva, os credores com direitos reais de garantia sobre os bens penhorados, registados em data anterior à do registo da penhora, poderão reclamar os seus créditos - após serem convocados (arts. 786, b), e 788, 1, ambos do CPC) - e ser pagos, após a verificação e graduação dos créditos, com preferência ao retentor exequente (art. 822 do CC e 796, 2, do CPC), que só terá a seu favor a preferência resultante da penhora. Acrescente-se, ainda, que, segundo o nosso entendimento, projetando o retentor, desprovido de preferência - por o seu crédito não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar ou aumentar o seu valor), intentar ação executiva, não verá a sua pretensão obstaculizada pelo facto de o devedor haver alienado ou onerado com um direito real de gozo a coisa retida, pois, de acordo com a letra da lei, o retentor: "pode executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário"11. Nesta hipótese, a ação executiva apenas há-de ser movida contra o terceiro adquirente (cfr. 2 do art. 735 do CPC português). Ora, assim sendo, o direito de retenção sobre imóvel, agora desprovido de preferência - por o crédito assegurado não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar ou aumentar o seu valor) -, continua a beneficiar de sequela e a prevalecer perante um direito real de gozo posteriormente constituído. _______ 1 Recorrendo a exemplos-escola, gozará de direito de retenção o arrendatário que estando obrigado a restituir o imóvel, por haver findado o contrato, for titular de um crédito resultante da feitura de obras de conservação ordinárias ou extraordinárias autorizadas pelo senhorio, pois é equiparado ao possuidor de boa fé (cfr. art. 1074.º, n. º 5 e art. 1273.º do Código Civil português); assim como o mecânico, que estando obrigado a restituir um automóvel, ainda não tenha recebido o pagamento dos serviços de reparação nele efetuados (já não para promover o pagamento de um crédito de mútuo que o ligue ao dono do carro e que nada tenha a ver com a prestação dos serviços). 2 Segundo o art. 756.º do Código Civil português, não há direito de retenção: a) A favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta; b) A favor dos que tenham realizado de má-fé as despesas de que proveio o seu crédito; c) Relativamente a coisas impenhoráveis; d) Quando a outra parte preste caução suficiente. 3 O direito de retenção não se confunde com a exceptio non adimplente contractus, porquanto o direito de retenção não assume apenas uma função compulsória, mas também garantistíca. Acresce que o direito de retenção incide sobre coisa móvel ou imóvel pertencente a outrem (em regra, ao credor), enquanto a exceptio tem por objecto a prestação a cargo do devedor, seja qual for a sua natureza (prestação de facto ou de coisa). Por fim, como referido, é requisito do direito de retenção que entre os dois créditos exista uma relação de conexão, enquanto que para que a exceptio se aplique é necessário que as obrigações sejam correspectivas ou correlativas, isto é interdependentes. 4 A publicidade da garantia advém, pois, da retenção material do bem, para efeitos, precisamente, de assegurar o cumprimento do crédito. 5 Sublinhe-se, no entanto que "até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações", mesmo que em causa esteja uma coisa imóvel, uma vez que a hipoteca não pressupõe o desapossamento da coisa (art. 759.º, n.º 3 do Código Civil português). 6 Exceção feita, claro está, à consignação de rendimentos que atribui ao seu titular o direito de satisfazer o seu crédito à custa dos rendimentos da coisa onerada e, por isso, não lhe concede qualquer poder de promover a venda judicial. 7 Segundo o art. 792.º do Código de Processo Civil português: "1- O credor que não esteja munido de título exequível pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta. 2 - Recebido o requerimento referido no número anterior, o agente de execução notifica o executado para que este, no prazo de 10 dias, se pronuncie sobre a existência do crédito invocado. 3 - Se o executado reconhecer a existência do crédito, considera-se formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos do requerimento do credor, sem prejuízo da sua impugnação pelo exequente e restantes credores; o mesmo sucede quando o executado nada diga e não esteja pendente acção declarativa para a respectiva apreciação. 4 - Quando o executado negue a existência do crédito, o credor obtém na acção própria sentença exequível, reclamando seguidamente o crédito na execução. 5 - O exequente e os credores interessados são réus na acção, provocando o requerente a sua intervenção principal, nos termos dos artigos 316.º e seguintes, quando a acção esteja pendente à data do requerimento. 6 - O requerimento não obsta à venda ou adjudicação dos bens, nem à verificação dos créditos reclamados, mas o requerente é admitido a exercer no processo os mesmos direitos que competem ao credor cuja reclamação tenha sido admitida. 7 - Os efeitos do requerimento caducam se: a) Dentro de 20 dias a contar da notificação de que o executado negou a existência do crédito, não for apresentada certidão comprovativa da pendência da acção; b) O exequente provar que não se observou o disposto no n.º 5, que a acção foi julgada improcedente ou que esteve parada durante 30 dias, por negligência do autor, depois do requerimento a que este artigo se refere; c) Dentro de 15 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, dela não for apresentada certidão." Não obstante, nos termos do n.º 3 do art. 791.º do Código de Processo Civil, "quando algum dos créditos graduados não seja vencido, a sentença de graduação determinará que, na conta final para pagamento, se efetue o desconto correspondente ao benefício da antecipação." 8 O art. 794.º tem a redação que de seguida se transcreve:  "1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga. 2- Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação; a reclamação suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provoca nova sentença de graduação, na qual se inclui o crédito do reclamante. 3 - Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição. 4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º. 9 Foi o DL n.º 38/2003, de 08/03, que alterou o antigo Código do Processo Civil português, o diploma que atribuiu ao exequente o poder e dever de nomear os bens a penhorar. Com a entrada em vigor do atual Código do Processo Civil (vide Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) o exequente deixou de ter o dever, mas manteve a faculdade de nomear os bens a penhorar, caso não a exerça, a nomeação é feita pelo agente de execução (cfr. n.º 2 do art.724.º). Antes da entrada em vigor do DL n.º 38/2003, de 08/03, o art. 811 do antigo Código do Processo Civil estatuía "1 - Não havendo fundamento para indeferir liminarmente ou determinar o aperfeiçoamento do requerimento executivo, o juiz determina a citação do executado para, no prazo de 20 dias, pagar ou nomear bens à penhora." 10 Vide n.º 3 do art. 735.º do Código de Processo Civil português, segundo o qual a penhora se limita aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, e o n.º 1 do art. 751.º, do mesmo diploma legal, que prescreve a ordem de realização da penhora, determinando que a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostre adequado ao montante do crédito do exequente. No entanto, de acordo com o n.º 3 do art. 751.º, ainda que o valor pecuniário dos bens não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora de bens imóveis ou do estabelecimento comercial, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 6 meses. 11 Se assim não fosse o direito de retenção seria uma garantia ilusória, pois bastaria ao devedor alienar os bens para que ela desaparecesse.
1. Introdução A dinâmica da usucapião extrajudicial ora inspira, ora absorve, atualizações e renovações instrumentais da maior relevância. Esses influxos podem emergir da lei, da jurisprudência ou dos atos normativos expedidos pelo CNJ e são incorporados pelas normas técnicas expedidas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados.  No DJE de 28/1/2025 foi publicado o provimento conjunto 142/25, que alterou dispositivos do provimento conjunto 93, de 22 de junho de 2020, que "Institui o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, que regulamenta os procedimentos e complementa os atos legislativos e normativos referentes aos serviços notariais e de registro do Estado de Minas Gerais''. No presente artigo comentaremos as atualizações, oportunas para esclarecer pontos antes duvidosos, úteis para viabilizar a usucapião extrajudicial cada vez mais célere e eficiente, com vistas à regularização fundiária e à concreção dos direitos dos cidadãos em obter a declaração de domínio. Os temas que mereceram alteração são examinados suscinta, mas individualmente, a seguir. 2. Da abertura de matrícula para imóveis urbanos ou rurais, com área inferior à fração mínima de parcelamento do solo: Provimento conjunto CGJMG/TJ/MG 93/20 (CNMG): Art. 779-A. É vedado à serventia promover a abertura de matrículas com área e testada inferior ao mínimo estabelecido em lei municipal ou na lei 6.766, de 1979, no caso de imóvel urbano, ou área inferior à fração mínima de parcelamento, no caso do imóvel rural, ressalvadas as exceções previstas no ordenamento jurídico. § 3º. Poderá ser aberta matrícula abaixo do parcelamento mínimo do imóvel urbano ou da fração mínima de parcelamento do solo rural, nas seguintes situações: I - usucapião; (...) Art. 1.165-C. Não se aplicam à usucapião judicial ou extrajudicial, independentemente da modalidade invocada, as restrições de área do imóvel decorrentes da legislação que estabelece frações mínimas de parcelamento do solo rural ou dimensões mínimas para o solo urbano.           O registro da propriedade imobiliária, constitutivo se fundado em título aquisitivo inter vivos ou declaratório se fundado na sucessão causa mortis, encontra, como regra, limites na fração mínima de parcelamento do solo, urbano ou rural. Esses limites são estabelecidos por legislação federal, como a lei 6.766/19791, que trata do parcelamento do solo urbano, e a lei 4.504/1964, para áreas rurais, e ainda, em normas municipais que estabelecem os planos diretores e zoneamento municipais. As regras de parcelamento mínimo de propriedade visam, dentre outros obséquios, a garantir a função social da propriedade mediante ordenamento territorial sem o fracionamento excessivo que resulta em minifúndios improdutivos, economicamente inviáveis na zona rural, e permitir o planejamento da cidade, com lotes que tenham dimensões adequadas para ocupação ordenada, edificações úteis e dignas, servidas por infraestrutura básica como ruas, saneamento e redes de energia. Contudo, na perspectiva do STF e do STJ, a limitação de dimensões do imóvel, embora benfazeja, por si só, não pode conduzir à impossibilidade jurídica de aquisição de propriedade e de formalização de registro imobiliário pela usucapião. O plenário do STF, no julgamento do RE 422.349/RS, assentou que a declaração de usucapião especial urbana (CF/1988, art. 183)2 não é obstada em razão de a área usucapida ser inferior à fração mínima de parcelamento. Os ministros, por maioria, entenderam que, preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos com limitação de parcelamento do solo. Os principais pontos que sustentam o acórdão do STF são: (a) a natureza constitucional do direito à usucapião especial urbana, cujo objetivo é permitir o acesso à moradia para aqueles que preenchem os requisitos estabelecidos; (b) a suficiência do preenchimento dos requisitos exigidos pelo art. 183 da Constituição Federal; e (c) a ilegitimidade de óbices infraconstitucionais, posto que lei inferior não pode impedir o reconhecimento do direito constitucional à usucapião especial urbana. O STF, diante da relevância da questão envolvida, firmou tese de repercussão geral, trazendo um precedente obrigatório, conforme ementa abaixo: Recurso extraordinário. Repercussão geral. Usucapião especial urbana. Interessados que preenchem todos os requisitos exigidos pelo art. 183 da Constituição Federal. Pedido indeferido com fundamento em exigência supostamente imposta pelo plano diretor do município em que localizado o imóvel. Impossibilidade. A usucapião especial urbana tem raiz constitucional e seu implemento não pode ser obstado com fundamento em norma hierarquicamente inferior ou em interpretação que afaste a eficácia do direito constitucionalmente assegurado. Recurso provido. 1. Módulo mínimo do lote urbano municipal fixado como área de 360 m2. Pretensão da parte autora de usucapir porção de 225 m2, destacada de um todo maior, dividida em composse. 2. Não é o caso de declaração de inconstitucionalidade de norma municipal. 3. Tese aprovada: preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote). 4. Recurso extraordinário provido. (RE 422349, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29-04-2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-153; DIVULG 04-08-2015; PUBLIC 05-08-2015; RTJ VOL-00235-01; PP-00134) O STJ, seguindo a linha do STF, também entendeu que a usucapião prevista no art. 191 da Constituição, caracterizada pela posse-trabalho, embora tenha um limite máximo de área a ser usucapida, não está sujeita a área mínima, desde que presentes todos os requisitos exigidos pela norma, conforme precedente abaixo: Recurso especial. Usucapião rural constitucional. Função social da propriedade rural. Módulo rural. Área mínima necessária ao aproveitamento econômico do imóvel. Interpretação teleológica da norma. Constituição Federal. Previsão de área máxima a ser usucapida. Inexistência de previsão legal de área mínima. Importância maior ao cumprimento dos fins a que se destina a norma. 1. A propriedade privada e a função social da propriedade estão previstas na Constituição Federal de 1988 dentre os direitos e garantias individuais (art. 5.º, XXIII), sendo pressupostos indispensáveis à promoção da política de desenvolvimento urbano (art. 182, § 2.º) e rural (art. 186, I a IV). 2. No caso da propriedade rural, sua função social é cumprida, nos termos do art. 186 da CF/1988, quando seu aproveitamento for racional e apropriado; quando a utilização dos recursos naturais disponíveis for adequada e o meio ambiente preservado, assim como quando as disposições que regulam as relações de trabalho forem observadas. 3. A usucapião prevista no art. 191 da Constituição (e art. 1.239 do CC), regulamentada pela lei 6.969/1981, é caracterizada pelo elemento posse-trabalho. Serve a essa espécie tão somente a posse marcada pela exploração econômica e racional da terra, que é pressuposto à aquisição do domínio do imóvel rural, tendo em vista a intenção clara do legislador em prestigiar o possuidor que confere função social ao imóvel rural. 4. O módulo rural previsto no Estatuto da Terra foi pensado a partir da delimitação da área mínima necessária ao aproveitamento econômico do imóvel rural para o sustento familiar, na perspectiva de implementação do princípio constitucional da função social da propriedade, importando sempre, e principalmente, que o imóvel sobre o qual se exerce a posse trabalhada possua área capaz de gerar subsistência e progresso social e econômico do agricultor e sua família, mediante exploração direta e pessoal - com a absorção de toda a força de trabalho, eventualmente com a ajuda de terceiros. 5. Com efeito, a regulamentação da usucapião, por toda legislação que cuida da matéria, sempre delimitou apenas a área máxima passível de ser usucapida, não a área mínima, donde concluem os estudiosos do tema, que mais relevante que a área do imóvel é o requisito que precede a ele, ou seja, o trabalho realizado pelo possuidor e sua família, que torna a terra produtiva e lhe confere função social. 6. Assim, a partir de uma interpretação teleológica da norma, que assegure a tutela do interesse para a qual foi criada, conclui-se que, assentando o legislador, no ordenamento jurídico, o instituto da usucapião rural, prescrevendo um limite máximo de área a ser usucapida, sem ressalva de um tamanho mínimo, estando presentes todos os requisitos exigidos pela legislação de regência, parece evidenciado não haver impedimento à aquisição usucapicional de imóvel que guarde medida inferior ao módulo previsto para a região em que se localize. 7. A premissa aqui assentada vai ao encontro do que foi decidido pelo Plenário do STF, em conclusão de julgamento realizado em 29/4/2015, que proveu recurso extraordinário, em que se discutia a possibilidade de usucapião de imóvel urbano em município que estabelece lote mínimo para parcelamento do solo, para reconhecer aos recorrentes o domínio sobre o imóvel, dada a implementação da usucapião urbana prevista no art. 183 da CF. 8. Na oportunidade do Julgamento acima referido, a Suprema Corte fixou a seguinte tese: Preenchidos os requisitos do art. 183 da CF, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área onde situado o imóvel (dimensão do lote) (RE 422.349/RS, rel. min. Dias Toffoli, 29.4.2015) 9. Recurso especial provido. (REsp n. 1.040.296/ES, relator ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 2/6/2015, DJE de 14/8/2015.) Recurso especial. Ação de usucapião. Usucapião especial urbana. Requisitos do art. 183 da CF/88 reproduzidos no art. 1.240 do CCB/2002. Preenchimento. Parcelamento do solo urbano. Legislação infraconstitucional. Legislação municipal. Área inferior. Irrelevância. Indeferimento do pedido declaratório. Impossibilidade. Julgamento pelo STF. Repercussão geral. RE 422.349/RS. Máxima eficácia da norma constitucional. 1. Cuida-se de ação de usucapião especial urbana em que a autora pretende usucapir imóvel com área de 35,49 m2. 2. Pedido declaratório indeferido pelas instâncias ordinárias sob o fundamento de que o imóvel usucapiendo apresenta metragem inferior à estabelecida na legislação infraconstitucional que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e nos planos diretores municipais. 3. O STF, nos autos do RE 422.349/RS, após reconhecer a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, fixou a tese de que, preenchidos os requisitos do artigo 183 da Constituição Federal, cuja norma está reproduzida no art. 1.240 do CC, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote). 4. Recurso especial provido. (REsp n. 1.360.017/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª turma, julgado em 5/5/2016, DJE de 27/5/2016.)            Mas o afastamento de limitação de área mínima não ficou restrita apenas às modalidades da usucapião com sede nobre na constituição federal. A interpretação dada pelos tribunais excelsos extrapolou essas hipóteses, avançando para a modalidade extraordinária, conforme exemplifica o julgado abaixo: Recurso especial representativo de controvérsia. Usucapião extraordinária. Imóvel usucapiendo com área inferior ao módulo urbano disposto na legislação municipal. Requisitos previstos no art. 1.238 do CC: posse, animus domini, prazo de 15 (quinze) anos. Reconhecimento do direito à aquisição da propriedade não sujeito a condições impostas por legislação diferente daquela que disciplina especificamente a matéria. 1. Tese para efeito do art. 1.036 do CPC/2015: O reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento dos requisitos específicos, não pode ser obstado em razão de a área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal. 2. No caso concreto, recurso especial não provido, a fim de afirmar a inexistência de impedimento para que o imóvel urbano, com área inferior ao módulo mínimo municipal, possa ser objeto da usucapião extraordinária. (REsp 1.667.842/SC, relator ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 3/12/2020, DJE de 5/4/2021.) Por meio do mecanismo dos Temas Repetitivos, o STJ uniformizou a jurisprudência sobre a usucapião de imóvel com área inferior a fração mínima. Foram selecionados como representativos da controvérsia o REsp 1667842/SC e o REsp 1667843/SC, e afetados para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, resultando na tese jurídica seguinte: Tema Repetitivo 985: Questão submetida a julgamento: definir se o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento de seus requisitos específicos, pode ser obstado em razão de a área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal. Tese Firmada: o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento dos requisitos específicos, não pode ser obstado em razão de a área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.            Em face da uniformização da jurisprudência, o código de normas de Minas Gerais, provimento conjunto CGJMG/TJ/MG 93/20, alterado pelo provimento conjunto 142/25, incluiu a possibilidade nos artigos 779-A, ao lado de outras possibilidades.3       O art. 1.165-C do mesmo provimento ampliou a possibilidade ao estabelecer que não se aplicam à usucapião judicial ou extrajudicial, independentemente da modalidade invocada, as restrições de área do imóvel decorrentes da legislação que estabelece frações mínimas de parcelamento do solo rural ou dimensões mínimas para o solo urbano. Pode ser declarada a propriedade, portanto, em qualquer modalidade de usucapião, mediante o cumprimento dos requisitos objetivos e subjetivos próprios, independentemente de a área usucapida ser inferior às frações mínimas de parcelamento do solo urbano ou rural. Oportuno lembrar que, na usucapião, nem sempre haverá a necessidade de abrir nova matrícula para a área usucapida4, principalmente quando a descrição do imóvel usucapido refletir exatamente o que já consta da matrícula: Provimento CNJ 149/23 (CNN/CN/CNJ-Extra): Art. 407. (...) § 10. Se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa e houver perfeita identidade entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento da usucapião extrajudicial, fica dispensada a intimação dos confrontantes do imóvel, devendo o registro da aquisição originária ser realizado na matrícula existente. Provimento conjunto CGJMG/TJ/MG 93/20 (CNMG): Art. 1.163. (...) § 2º. Na hipótese de o imóvel usucapido estar matriculado e o pedido se referir à totalidade do bem, sem alteração da descrição perimetral nela consignada, o registro será feito na própria matrícula existente. Clique aqui para ler a íntegra da coluna. _______1 Lei nº 6.766 de 19/12/1979: Art. 4o. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: (...) II - os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes; (...) 1 CF/1988, Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º. Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. 3 As outras possibilidades presentes no art. 779-A do CNMG são: desapropriação, seja amigável ou judicial; as hipóteses de Regularização Fundiária Urbana, nos termos da Lei nº 13.465/de 2017; na hipótese de seccionamento do imóvel em razão de via pública; na hipótese em que o proprietário seja enquadrado como agricultor familiar, nos termos do inciso III do § 4º do art. 8º da Lei nº 5.868/1972; desmembramentos de iniciativa particular que visem a atender os interesses de ordem pública na zona rural, nos termos do inciso II do art. 2º do Decreto nº 62.504/1968; abertura de matrícula para lotes decorrentes de loteamento que se destina à urbanização específica ou à edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, nos termos do inciso II do art. 4º, parte final, da Lei nº 6.766, de 1979;  abertura de matrícula para áreas verdes e institucionais decorrentes de loteamento; abertura de matrícula para imóvel já descrito em uma transcrição; abertura de uma nova matrícula, em razão de inserção ou alteração de medidas perimetrais em imóvel já matriculado, ainda que em apuração de remanescente; e, genericamente, nas demais hipóteses previstas na legislação. 4 Lei 6.015/1973, art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior. (Incluídos pela Lei nº 14.620, de 2023) (...)
Registrar contratos, documentos e atos jurídicos em geral no Cartório de RTD - Registro de Títulos e Documentos é uma das medidas mais eficientes que se pode adotar na rotina negocial dos cidadãos, das empresas e das entidades corporativas. Esse registro eterniza documentos e pode, se o interessado quiser, tornar-se facilmente acessível por qualquer interessado. Por exemplo, um empresário que assinou um contrato de milhões de reais pode proteger-se de eventual extravio desse documento mediante um registro no Cartório de Títulos e Documentos. Sem o registro, ele sofrerá grandes prejuízos financeiros se o contrato vier a ser perdido. E não há a mesma segurança jurídica na mera digitalização do documento. Isso, porque somente a certidão expedida pelo RTD tem, por lei, a mesma força jurídica do documento original, conforme art. 161 da LRP - lei de registros públicos (lei 6.015/1973)1. Condomínios edilícios também se valem do RTD. Registram as atas das suas assembleias para publicizar o acesso ao seu conteúdo a qualquer interessado. Há um cuidado a ser adotado no momento de demandar o serviço: é preciso especificar o tipo de registro desejado. Há três tipos de registros no RTD: a) Registro obrigatório (art. 127, I a VI2,e no art. 129, "1º" a "11º", da LRP): é aquele indispensável para a criação de uma situação jurídica com eficácia erga omnes, como nos casos de constituição de direitos reais. É acessível a qualquer interessado e é lançado nos Livros A ou B, conforme se trate de registro integral ou de registro resumido (art. 132, I e II, da LRP). b) Registro para conservação (arts. 127, parágrafo único, e 127-A, LRP): é aquele realizado apenas para preservação do título ou documento. É sigiloso: só o requerente terá acesso, salvo: (i) ordem judicial ou (ii) requisição fiscal nas estritas hipóteses de recusa injustificada de autorização voluntária ao Fisco. É lançado no Livro F (art. 132, VI, LRP). c) Registro residual (art. 127, parágrafo único, LRP): é para o registro de qualquer documento ou título fora das hipóteses acima. Serve para conservar e publicidade. É de acesso público: qualquer interessado pode obter certidão. É lançado nos Livros A ou B, conforme se trate de registro integral ou de registro resumido (art. 132, I e II, da LRP). É preciso tomar cuidado na hora de escolher o tipo de registro. As atas de assembleias de condomínios edilícios, por exemplo, devem ser objeto do registro residual, pois a finalidade é a publicização a qualquer interessado (inclusive futuros adquirentes de unidades autônomas). Se for realizado um registro facultativo, ninguém terá acesso às atas, salvo o próprio condomínio por meio do seu síndico. Contratos milionários realizados por empresários, porém, parecem atrair o registro facultativo, pois provavelmente será do seu interesse o sigilo. Por fim, há atos que obrigatoriamente precisam ser registrados, como os contratos de penhor e as penhoras de créditos ou de bens móveis (art. 127, II, e art. 129, "11º", LRP). Sem esse registro, o titular do direito não terá eficácia erga omnes: poderá vir a sucumbir em um eventual conflito com terceiro adquirente. Trata-se aí das hipóteses de registro obrigatório. ___________ 1 Art. 161. As certidões do registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo. (Redação dada pela lei 14.382, de 2022) 2 Entendemos que as hipóteses do art. 127 da LRP também são obrigatórias para a produção de efeitos contra terceiros, apesar do silêncio do caput, pois essa é a razão de ser da previsão legal do cabimento do registro. Os incisos I e II do art. 132 da LRP confirmam isso, ao previrem expressamente a oponibilidade perante terceiros.
Diante do número significativo de imóveis irregulares ou que não refletem a realidade fática no fólio real dos registros imobiliários do país, é crescente a necessidade de institutos que possibilitem ao proprietário meios de resguardar o seu direito, conferindo segurança jurídica às relações imobiliárias.  Aliada à problemática citada, verifica-se, também, que a busca por instrumentos que promovam a desjudicialização e extrajudicialização, retirando do Judiciário a alta carga de demandas, é medida que se impõe, a fim de evitar o colapso do sistema, bem como que litígios que realmente necessitem da atuação jurisdicional fiquem sem soluções rápidas e satisfatórias. Nesse contexto, o extrajudicial se destaca como meio eficiente para atingir os objetivos propostos. A capilaridade das serventias extrajudiciais, presentes na maioria dos municípios brasileiros, permite que o notário e o registrador estejam em contato direto com as demandas locais, resolvendo as questões relativas à propriedade imobiliária com grande conhecimento técnico e maior celeridade. É possível notar este movimento com a regulamentação do inventário extrajudicial, inclusive quando há presença de menores ou incapazes, usucapião, adjudicação compulsória e resolução contratual quando comprovado o inadimplemento por meio de ata notarial, por exemplo. Além disso, o CNJ, por meio da portaria 4/25, dispôs sobre as regras, procedimentos e critérios para a participação no Prêmio Solo Seguro, cujo objetivo descrito no art. 2º, é:  I - Reconhecer e disseminar boas práticas de regularização fundiária urbana e rural no país; II - Premiar e disseminar ações, projetos ou programas inovadores e práticas de sucesso que visem ao aperfeiçoamento da Regularização Fundiária Urbana - Reurb e rural, bem como à identificação de áreas públicas e de proteção ambiental, à simplificação de procedimentos, à gestão compartilhada de informações e à redução da quantidade de tempo e de recursos necessários à conclusão de processos de regularização fundiária; III - Estimular a inovação e a replicação de iniciativas voltadas para a segurança jurídica e proteção ambiental. IV - Incentivar a articulação entre órgãos públicos, privados e a sociedade civil para a promoção da governança fundiária responsável. Neste sentido, um valioso instrumento de regularização imobiliária e que pode ser incentivado na via administrativa, através de uma normatização nacional, é o instituto da estremação, cuja previsão legal está no CPC, art. 571, por meio do qual permite-se a demarcação e a divisão imobiliária de imóveis por escritura pública, desde que os interessados sejam pessoas maiores, capazes e concordes. É importante distinguir o instituto da estremação do da divisão, visto que com a estremação não é necessária a participação de todos os condôminos de uma propriedade, mas apenas dos respectivos confrontantes do imóvel a ser estremado. Desta forma, aquele que não possui os recursos econômicos não impede que quem o possua, possa resolver sua situação.  A segurança jurídica que se extrai do instituto vem da regulamentação sobre as exigências que são pertinentes conforme se esteja estremando imóvel urbano ou rural, e que serão devidamente resguardadas pela atuação do Tabelião de Notas e do registrador de imóveis agindo cada qual no cumprimento de sua função nos momentos e atos respectivos. A estremação tem aplicação prática para os condomínios pro diviso, pois permite a mudança da matrícula ou transcrição em que caracterizado o condomínio geral para a matrícula própria de uma regularização da área que, faticamente, já se encontra perfeitamente demarcada, sem conflito de interesses e sem a necessidade de participação de todos os condôminos como seria. O Tabelião de Notas é o profissional que zela pela segurança jurídica do procedimento de estremação feito na via administrativa em conjunto com o registrador de imóveis, observando o cumprimento da especialidade objetiva na descrição do imóvel estremado, identificado como corpo certo que já é de fato para alcance da matrícula própria e com isso, a conformidade com o princípio da continuidade e controle da disponibilidade. Tais mecanismos garantem o respeito também à CF/88, que trouxe forte respaldo constitucional para a questão da regularização imobiliária, especialmente para priorizar e exigir cumprimento no que tange à função social da propriedade. Não obstante, tem-se que, atualmente, este instituto só é regulamentado em alguns Estados, como Pernambuco, Paraná, Mato Grosso, Tocantins, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, sendo este último, o pioneiro no assunto. Por outro lado, outros estados carecem de previsão normativa, deixando casos reais que poderiam ser solucionados na via administrativa, dependerem de decisões judiciais que, por vezes, são morosas.  Nesse contexto, destaca-se a importância da atuação das Corregedorias Estaduais que, em conjunto com as serventias extrajudiciais, atuam na regulamentação do procedimento e promovem não só a observância do princípio da segurança jurídica e da verdade real nos registros públicos, como também o desenvolvimento de todo o sistema imobiliário, com o acesso dos imóveis regularizados ao mercado formal. Ora, o coproprietário que possui a demarcação fática de seu imóvel dentro da área maior do condomínio geral é um proprietário que entrega a função social de sua propriedade, pois presume-se nela presente. Caso contrário, não existiria a realidade fática de posse e utilização da fração no solo bem delineada e destacada para ensejar o procedimento de estremação. Há um protagonismo da função social da propriedade quando se fala em Direito Imobiliário e da atuação cada vez mais forte e presente do Tabelião de Notas na regularização de imóveis pela via administrativa, que é célere, efetiva e economicamente vantajosa ante a segurança jurídica que proporciona. As vantagens da desjudicialização da estremação são precisas e atendem aos requisitos das dimensões jurídica, registral e urbanística que o instituto exige. Por isso se faz urgente a regulamentação normativa deste procedimento no Estado de São Paulo tal como realizado no inventário e partilha, no divórcio, na usucapião e na adjudicação compulsória, por exemplo. Com a possibilidade de instrumentalização do procedimento de estremação na via administrativa possibilita-se um grande fomento econômico quanto aos imóveis do Estado, pois a circulação de riquezas imobiliárias pressupõe a existência da matrícula que individualiza e identifica cada imóvel, em sua especialidade objetiva, respeitando os princípios da continuidade e disponibilidade, com a correta identificação do proprietário de cada imóvel estremado (especialidade subjetiva), além da segurança na transparência e publicidade que a matrícula própria do imóvel estremado irá gerar. Para o proprietário que alcança a estremação de seu imóvel, permite-se investimentos seguros, garantias imobiliárias, benefícios fiscais, obtenção de créditos, regularização de construções, cadastros municipais, dentre outros. Motivo pelo qual, a padronização do procedimento de estremação administrativa, com a respectiva permissão no Estado de São Paulo, é essencial para fomentar a economia, garantindo segurança e transparência no mercado imobiliário e beneficiando tanto proprietários quanto a sociedade como um todo.
quarta-feira, 30 de abril de 2025

Mandato em causa própria

1. Noções conceituais O mandato em causa própria, tradução da expressão latina mandato in rem suam, permite que o mandante outorgue ao mandatário poderes para que ele favoreça a si mesmo com a transmissão da coisa objeto do mandato, em definitivo, sem obrigação de prestação de contas, de forma que o negócio entre as partes reste pronto e acabado. O tratamento legislativo não é muito minucioso sobre o instituto, estando todo condensado em um único e solitário dispositivo no CC, in verbis: Art. 685.  Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais. Apesar da tipologia, o mandato em causa própria é negócio jurídico que desfigura e descaracteriza o contrato de mandato, essencialmente vocacionado para a representação de (e no) interesse do mandante pois, nesse caso, a procuração é outorgada no interesse do próprio mandatário, que ganha protagonismo maior que o do outorgante. O caráter representativo cede lugar ao negócio jurídico de transmissão, o mandatário atua por sua conta, mas em nome do mandante. Essa procuração não se extingue pela morte das partes, nem pode ser revogada, elementos que, quando presentes, caracterizam o mandato em sua forma pura. É corrente na doutrina que o mandato em causa própria nega a essência da categoria jurídica do mandato, porque, a rigor, não se trata de mandato, mas de operação "por meio do qual a técnica da representação é utilizada para viabilizar negócio jurídico translatício"1. Na lição de ORLANDO GOMES, a procuração em causa própria tem "apenas a forma, ou, quiçá, a aparência" de mandato, mas, trata-se, a rigor, de negócio de alienação.2 Na expressão de FARIAS e ROSENVALD, o mandato em causa própria está muito mais próximo de um negócio jurídico translativo de direitos, reais ou creditícios, do que, especificamente, de um contrato de representação de interesses próprios.3 Clique aqui e confira a coluna na íntegra. ______________________ 1 TEPEDINO, Gustavo. Oliva, Milena Donato. Notas sobre a representação voluntária e o contrato de mandato. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, vol. 12, p. 17-36, abr./jun. 2017. Recuperado de https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/31 2 GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. rev. atual. e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Coordenador: Edvaldo Brito. Atualizadores: Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo De Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 437. 3 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: contratos. 7ª ed. Revista e atualizada. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 993.
segunda-feira, 28 de abril de 2025

O Direito achado na máquina

No artigo anterior, traçamos uma linha de desenvolvimento das especialidades dos ofícios da fé pública no curso da história, mostrando como escrivães, tabeliães e registradores firmaram-se como órgãos especializados, cada qual com suas atribuições bem definidas e demarcadas. Vimos também como as transformações tecnológicas e normativas vêm de esboroar os lindes definidores dessas especialidades, promovendo uma nova concentração de atribuições e funções, com efeitos diretos na arquitetura tradicional da titulação pública no Brasil. De "volta para o futuro", experimentamos a reconformação das especialidades, embora em outros termos. A digitalização dos meios não apenas condiciona os conteúdos - como na boutade de McLuhan -, mas põe em xeque os próprios fundamentos da titulação sob a perspectiva jurídica tradicional. Bits substituem formulários; extratos espiritualizam os títulos, agentes de IA (agentic AI) progressivamente absorvem atribuições do escrivão, do notário, do registrador; e os títulos - outrora celebrados e cercados de ritos cerimoniais e reconhecidos como verdadeiros pelo próprio Estado - agora podem nascer diretamente das máquinas, sem qualquer intermediação dos ofícios da fé pública. Para onde caminha o nobile officium registral, da escrivania e da notaria?  A ressureição da pública-forma Voltando às cartas de sentença notariais, as NSCGJSP-II dispõem o seguinte em seu Cap. XIV, no item 218, que, a critério do interessado, "as cartas de sentença poderão ser formadas em meio físico ou eletrônico, aplicando-se as regras relativas à materialização e desmaterialização de documentos pelo serviço notarial". As expressões contidas na norma paulista representam uma figura de linguagem, eis que a "desmaterialização" (digitalização) e "materialização" (impressão/reprodução/"papelização") nada mais são do que processos de transporte e fixação da informação em um dado suporte material - seja ele magnético, óptico, cartáceo etc. Trata-se do fenômeno de transmigração intermediática, como veremos abaixo, mas note-se: um documento "materializado" não o torna um original para todos os efeitos legais. Será sempre uma mera cópia, à exceção de um original tirado de um original, que é a reprodução dos documentos eletrônicos assinados digitalmente com assinaturas qualificadas. O que nos chama a atenção é que a operação de transubstanciação midiática de documentos públicos e privados (materialização/desmaterialização) nada mais seria do que a revivificação da conhecida figura da pública-forma, ora ressurrecta, depois de abandonada pelo Direito brasileiro há várias décadas. Aqui se dá o ressurgimento de uma antiga figura do tabelionado medieval, repaginada para desafiar as novas demandas do admirável mundo novo dos meios digitais. Voltarei ao tema da pública-forma digital em outro artigo. Noto, de passagem, que admitir-se a registro um título "desmaterializado/materializado" será o mesmo que franquear o acesso de meras cópias reprográficas (mesmo quando autenticadas pelo tabelião) como título inscritível, o que sempre se obviou no âmbito dos registros imobiliários.  Simulacros titulares Estamos prestes a admitir simulacros de títulos no processo registral. A realidade jurídica (um título com origem, materialidade, portando presunções de legalidade e autenticidade) pode ser suprimida e substituída por sua emulação funcional (bits, IA, algoritimização de processos e registros dirigidos por dados (data-driven), um "duplo" que descortina um novo direito. Os espelhos e a cópula são abomináveis, disse um dos heresiarcas de Uqbar: eles "multiplicam o número dos homens". Os novos sistemas multiplicam as imagens arredias à sua densidade material e autêntica, substituindo a realidade jurídica por espelhos multifacetados. A modernidade é disruptiva. No contexto cultural em que essas ideias vicejam, abundam metáforas para qualificar a revolução em curso. Steven Pinker assegura-nos que "a revolução digital, ao substituir átomos por bits, está desmaterializando o mundo bem diante de nossos olhos". Para ele, a tecnologia digital "desmaterializa" o mundo. Ele parece sugerir que os bits representariam os tijolos fundamentais do edifício de um admirável mundo novo da hiper-realidade, como sugerido por Baudrillard. Nessa visão atomista repaginada, nada existiria, exceto bits, exaurido o mundo de tangibilidade concreta e substituído por representações. Pinker reproduz o pensamento original de Nicholas Negroponte, para quem a mudança de átomos para bits seria uma tendência irreversível na sociedade - "não há como detê-la", dirá, com indisfarçável otimismo. "A melhor maneira de avaliar os méritos e as consequências da vida digital - diz ele - é refletir sobre a diferença entre bits e átomos". Assim como os jornais, revistas, livros, títulos, documentos, cartas de sentença, formais, certidões etc., que chegavam até nós sob a forma de átomos (papeis, ofícios, correios etc.), na era da informação nos chegarão por sequências de bits e bytes à velocidade da luz. As palavras-chaves aqui são: descentralização e acesso remoto a instâncias judiciais e extrajudiciais, instantaneidade, fiabilidade tecnológica (não jurídica) - o que pode promover a redução de custos e tempos processuais. O público "será mais bem servido por aqueles que souberem responder com maior rapidez e imaginação no emprego dos bits."  Essa visão mostrou-se excessivamente otimista. É possível cogitar que os meios digitais não apenas transformam os conteúdos, mas, no limite, podem suprimir o real em sua substância tangível, substituindo-o por um conjunto de signos funcionais, desvinculados de qualquer mediação dotada de valor ético ou ancoragem institucional - como tradicionalmente se reconhecia no papel do juiz, do escrivão e do notário. Como a seu tempo sustentou João Mendes de Almeida Jr., os órgãos oficiais "são subordinados somente à verdade e à realidade dos fatos que eles próprios praticam, das declarações que tomam, dos fatos que se passam na sua presença e assistência". E concluiu: "E esta posição é uma garantia, não só para as partes, como também para os próprios Juízes". No contexto dos títulos eletrônicos, formados sem o concurso dos órgãos da fé pública, esvai-se a noção clássica de ato autêntico como fenômeno social, jurídico e comunicativo que produz a prova dita autêntica e pré-constituída (instrumentum), cercada de formalidades publicísticas e ritualísticas para mobilizar a infraestrutura de garantia e segurança jurídica.   Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
Introdução A formação dos títulos judiciais, função tradicionalmente atribuída aos escrivães, passa por significativas transformações. O advento de novas tecnologias e a consolidação dos processos judiciais e serviços notariais e registrais eletrônicos - fenômeno acelerado pelas medidas adotadas durante a pandemia da COVID-19 - deu impulso à reconformação dos títulos e à reestruturação dos canais de comunicação que interconectam o Poder Judiciário e os chamados órgãos da fé pública. Não só. A desestruturação dos tradicionais processos formais e a criação de infovias digitais, permite agora o acesso direto e instantâneo aos processos judiciais eletrônicos, afastando, progressivamente, os chamados órgãos intermediários (escrivães e tabeliães) na formação dos títulos judiciais. Este artigo examina os dois lados deste fenômeno: de uma banda, deita um olhar retrospectivo para colher o desenvolvimento de tais funções ao longo da história. De outro lado, coloca em perspectiva a "plataformização"1 dos serviços judiciais e extrajudiciais, flagrando as mudanças que dão impulso à reorganização das chamadas "especialidades" - núcleos especializados que conformam os órgãos auxiliares da justiça e dos serviços notariais e registrais. Embora centrado nas normas de serviço paulista, o estudo reflete tendências nacionais e globais da digitalização. O texto propõe ao leitor uma reflexão crítica sobre a erosão dos lindes institucionais que tradicionalmente demarcavam as atribuições próprias das especialidades, buscando identificar as possíveis consequências desse processo irrefreável de digitalização da sociedade. Trata-se de um processo disruptivo visto, aqui, da peculiar perspectiva registral. A escolha metodológica visou a flagrar as mudanças infraestruturais no curso da história institucional, abandonando-se análises pragmáticas que possam ser empreendidas. A digitalização oferece benefícios claros - eficiência, acessibilidade, rapidez, redução de custos -, mas desafia a segurança jurídica e a correspondente presunção de autenticidade, autoria e congruência entre a vontade das partes e o ato lavrado, tudo revestido pelo manto da fé pública, que é o reconhecimento estatal dos direitos envolvidos. O sistema registral provê adequado balanceamento entre segurança jurídica, previsibilidade e responsabilidade administrativa, civil e mesmo penal em relação aos atos praticados. Veremos como exsurgem, pelo efeito da plataformização dos serviços, simulacros dos tradicionais sistemas de segurança jurídica e de modelos concorrentes, tendentes a suplantar o papel do próprio estado na adjudicação e garantia de direitos. Formalização dos títulos judiciais A formalização dos títulos judiciais sempre esteve a cargo dos escrivães, que lavravam autos e tiravam dos processos judiciais cartas, formais, mandados, certidões etc. Os escrivães (e seus escreventes) sempre foram os responsáveis pela lavratura de instrumentos que operariam seus efeitos extra-autos. A lei 6.015/1973 reza que os títulos admitidos a registro, em sentido formal, são apenas os indicados no art. 221 da LRP. "Somente são admitidos", diz a lei, entre outros: IV - Cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo.2 A quem compete hoje em dia a formação das cartas de sentença, formais de partilha, extraídos de autos de processo judicial? Sabemos a resposta, mas vamos retroceder um pouco e compreender como se formaram, ao longo do tempo, as "especialidades" dos órgãos da fé pública judiciais e extrajudiciais. Veremos, igualmente, como as mudanças dos meios, com a "plataformização" do Judiciário e dos serviços notariais e registrais, vem provocando mudanças como a reaglutinação das especialidades e a concentração de atribuições de escrivania e notaria, com a supressão de instâncias intermediárias entre o processo judicial e os serviços registrais. Escrivães do feito A função tradicional do escrivão cingia-se, fundamentalmente, à documentação e à execução de ordens judiciais, além de preparar os elementos para atividades externas.3 A lavratura de autos e expedição das cartas de sentença, formais, certidões e mandados, sempre se considerou uma atribuição indelegável e privativa do escrivão judicial.4 Diz Cândido Dinamarco que "ao escrivão competem os serviços de documentação e movimentação processuais, de guarda e conservação dos autos, de comunicação processual (expedição de mandados e cartas, elaboração de editais) e de certificação". 5 Os atos lavrados e os títulos formados pelos escrivães e tabeliães presumem-se autênticos, revestidos pela fé pública, predicado da autoridade estatal de onde dimanam. No fundo, ela é inerente "a toda função estatal certificadora, que, sem se presumir verdadeira, pouca valia poderia ter".6 A função de certificação é uma nota essencial da atividade de escrivania (e tabeliã) e a ela vamos retornar na parte final deste artigo. Por ora, destaquemos que é da tradição do direito brasileiro a atribuição ao escrivão do foro judicial formalizar títulos, verificar sua congruência com as peças integrantes dos autos, formar a carta de sentença ou formal de partilha ou adjudicação (com seus termos de abertura e encerramento), numerar, autenticar suas peças e certificar o trânsito em julgado, além de expedir certidão quando rogada pela parte (art. 152 do CPC). A verdade é que as disposições sobre as atividades de escrivania judicial são escassas no atual CPC. Não há um capítulo específico tratando das atribuições dos órgãos auxiliares - possivelmente porque a definição do regime estatutário dos serviços complementares (auxiliares) se acha endereçada aos tribunais, consoante o disposto na letra "b", inc. I, do art. 96 da CF/1988. Afora a parte funcional, não há no CPC "grande empenho em agrupar as atividades dos auxiliares ou de dar-lhes uma disciplina orgânica e concentrada", como advertia Dinamarco.7 Tais disposições acham-se dispersas nas leis de organização judiciária e nos códigos judiciários dos estados. O tabelião do paço e o tabelião das audiências Já registrava Pires Ferrão, em seu conhecido guia formulário, que o "escrivão é no foro judicial o que o tabelião é no foro civil".8 E segue: No Brasil os Tabelliados de Notas estão em geral ligados aos do judicial, e os Serventuários de taes Officios são por isso chamados - tabelliães publicos do judicial e notas (...). Os escrivães Forenses são também todos Tabelliaes do judicial, por condição inherente áqueles cargos. À toda a Escrivania judicial está, portanto, ligado sempre um tabelliado.9 As tradições remontam à antiguidade. Os actuarii eram os escrivães dos juízes e, ao lado dos notários, desempenhavam papeis muito específicos. Citando Aristóteles, João Mendes de Almeida Jr. dirá: O philosofo classifica entre os funccionarios publicos aquelles que lavram os actos e contractos dos particulares, assim como os que reproduzem as petições, citações, proposições das demandas, accusações, defezas, e as decisões dos juizes, accrescenta que, em alguns lugares, estas funcções dividem-se por diversos funccionarios, para significar ou a funcção de lavrar os contractos, ou a funcção de escrever os actos do processo judicial, ou a funcção de guardar e conservar os documentos publicos e particulares. Estes funcionários denoninavam-se mnemons, epistates e hierommnemons, que costumam a traduzir em latim - notarii, actuarii, chartularii, e em portuguez, - notarios, secretarios e archivistas.10 É certo que as ordenações muitas vezes utilizavam a expressão "tabeliães do judicial".11 Averba Cândido Mendes de Almeida que o "tabelião do notas corresponde ao tabularius romano e o do judicial ao tabellio. Por isso, entre nós, o Tabelião não é simplesmente Notário, mas é cumulativamente Escrivão".12 O mesmo João Mendes de Almeida Jr. dirá que entre os tratadistas grassavam dissensões a respeito da natureza do ofício dos escrivães judiciais. As Ordenações chamavam-nos tabeliães do judicial, "e só chamava escrivães os dos juízos de jurisdição administrativa. Pouco a pouco, porém, foi se aplicando a denominação - tabelião - aos notários e escrivão aos oficiais que funcionavam na assistência dos atos dos Juízes, quer na jurisdição administrativa, quer na jurisdição contenciosa".13 No século XIX, a atribuição dos escrivães era de "escrever em forma legal" os atos do processo.14A distinção entre tabeliães das notas (ou do paço) e tabeliães do judicial (ou das audiências) obedecia a um critério funcional,15 mas muitas vezes as atribuições se confundiam. Nas primeiras nomeações ocorridas no Brasil, as atividades de escrivão do judicial, das sesmarias e do extrajudicial se mesclavam. Deocleciano Mendes de Macedo registra a nomeação do primeiro tabelião do Rio de Janeiro.16 Vê-se que Pero da Costa concentrava as funções de tabelião do judicial e das notas: O primeiro ofício de tabelião público do judicial e Notas do Rio de Janeiro, de acordo com o costume português, foi criado juntamente com a cidade, pelo capitão Estácio de Sá, em 1/3/1565. Pero da Costa foi nomeado seu primeiro serventuário. Por provisão de Mem de Sá, em 20/9/1565, foi anexado a esse ofício o de escrivão das Sesmarias. Pero da Costa renunciou, então, ao ofício de tabelião do judicial, acumulando, somente, as funções de tabelião de Notas e escrivão das sesmarias. Em 2/12/1565, Miguel Ferrão recebeu provisão do governador-geral, na Bahia, para o ofício de tabelião do judicial e notas, em consequência da renúncia de Pero da Costa. Aparentemente, não seguiu de imediato para o Rio de Janeiro, pois sua provisão só foi concertada nesta cidade em 30/11/1566 e, em 16/9 daquele ano, já havia sido nomeado Gaspar Rodrigues de Góes, por provisão do governador da capitania, para o ofício de tabelião do judicial, que até então estava vago. Os acontecimentos que se seguiram à chegada de Miguel Ferrão ao Rio de Janeiro são obscuros. Ficou claro apenas que, nesta ocasião, passam a atuar três tabeliães na capitania: Pero da Costa, tabelião de notas e escrivão das sesmarias, no 1º Ofício; Gaspar Rodrigues de Góes, tabelião do judicial, naquele que se tornaria o 3º Ofício; e Miguel Ferrão, tabelião do judicial e Notas, no 2º Ofício.17 As funções dos escrivães e tabeliães era conatural e atravessaria a noite dos tempos.18 De certa forma, há reminiscências desse fenômeno na lei civil - v. art. 1.806 do CC: "A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial".19 Os escrivães do foro judicial e do extrajudicial20 atuavam cumulativamente - como até há bem pouco os ofícios de notas, registro de imóveis e seus respectivos anexos. Nas pequenas comarcas, por exemplo, o 1º Ofício de Notas acumulava os anexos da escrivania do júri, do crime, das execuções criminais e do Registro de Imóveis; o 2º Ofício de Notas, os anexos de protesto de títulos, de registro de documentos, de registro de comércio e da escrivania civil.21 Confusão de atribuições A confusão de atribuições viria a acentuar-se com o passar do tempo. De acordo com o vetusto Código Judiciário do Estado de São Paulo, os titulares de cartórios e ofícios, tanto do foro judicial quanto do extrajudicial, oficializados ou não, passariam a denominar-se "escrivão", com exceção dos oficiais dos cartórios de registro de imóveis, os quais conservariam a denominação de "Oficial de Registro de Imóveis".22 A especialização e a vedação de acumulação viriam mais tarde.23 Em várias passagens do CPC, a função de lavratura de autos é cometida aos escrivães. Por exemplo, no caso da actio communi dividundo, o respectivo auto, acompanhado de folha de pagamento para cada condômino, será lavrado pelo escrivão do feito (art. 597 do CPC); no caso de partilha, o escrivão deverá destacar os elementos do processo de inventário para formação da carta ou formal (art. 655 do CPC); adjudicação em execução (art. 877 do CPC) etc. O ministro Rodrigues Alckmin, a seu tempo, registrou: O escrito público emanado do Tabelião de Notas ou de escrivão, tem a sua autenticidade assegurada pela mesma fé pública. São escrituras públicas, em sentido amplo, revestidas do mesmo valor. A questão da validade do ato jurídico por eles documentado se desloca, assim, para o âmbito da competência para fazê-lo. Não se cuida de forma, que públicos e dotados de fé pública são os escritos. Mas de saber se podia fazê-lo o serventuário que o fez. Se cabe na competência de um escrivão a documentação de determinado ato, os efeitos destes atos serão aqueles que a lei atribua. Assim, quando se realiza um ato no processo, ou um ato em procedimento, cabe ao escrivão documentá-lo, ainda que dele decorra efeito como o de transmissão da propriedade.24 Tanto o escrivão quanto o tabelião são investidos do poder-dever de dar forma autêntica aos atos jurídicos por eles lavrados, cobrindo-os sob o manto da fé pública, razão pela qual João Mendes de Almeida Júnior os classificava como "órgãos da fé pública" ou "oficiais da fé pública",25 "causas eficientes instrumentais e permanentes auxiliares do juízo".26 Vale reproduzir o seu esquema conceitual, decalcado do dinamismo processual: Conheceremos o movimento forense, estudando os seus motores, moveis, momentos e motivos, ou, por outra as suas causas, a saber: 1º) A sua causa eficiente, isto é, os juízes e os auxiliares da justiça, bem como as partes contratantes ou litigantes; 2º) A sua causa material, isto é, os fatos constituidores de títulos de direitos, ou relações litigiosas; 3º) A sua causa formal, isto é, os atos e termos do processo, quer para declarações de vontade e estipulações, no foro extrajudicial, quer para intenção, ou contestação, prova, julgamento e execução, no foro judicial; 4º) A sua causa final, isto é, no foro extrajudicial, a estipulação ou firmeza, e no foro judicial, o julgamento e a execução do julgado.27 Pode-se concluir que o direito brasileiro sempre tendeu a cometer aos oficiais da fé pública a responsabilidade de formação e expedição dos instrumentos (títulos formais) para produção de efeitos jurídicos. Assim, a formalização dos títulos materiais judiciais (adjudicação, arrematação, alienação judicial, partilhas, divisões etc.) aperfeiçoa-se com a formação dos títulos formais, cuja expedição é cometida ao escrivão do processo.28 Não deixa de ser assaz interessante observar que as atribuições próprias de cada especialidade - escrivães do judicial, tabeliães, registradores -, singularizadas no curso do tempo, venham, nos dias que correm, a experimentar uma nova concentração e acumulação. Velhas figuras do direito tabelional - como as públicas-formas - ressurgem no cenário dos novos meios eletrônicos e plataformas de serviços notariais e registrais na internet e tendem a um processo concentracionário. NSCGJSP - mudanças progressivas A possibilidade de se expedirem títulos judiciais por intermédio dos notários - denominados carta de sentença notarial - foi sancionada pelo provimento CG 31/13.29 Nesse impulso original, somente os notários os poderiam confeccionar e expedir. Nota bene, como se lê no dito ato normativo: a formação do título, pelo notário, não significava simplesmente trasladar in totum as peças do processo judicial para formar a carta notarial; antes, era preciso exercer uma atividade modelar, ação conformadora do título em sentido próprio, com a ordenação lógica das peças e com a observância dos requisitos exigidos pela lei e consagrados pela praxe cartorária (numeração de folhas, autenticação, certidão de trânsito em julgado, termos inicial e final etc.). O pleito de se estender aos registradores imobiliários a possibilidade de extração de peças para formação de títulos seria apreciado mais tarde, no pedido veiculado no processo CG 81.020/18, quando foi então denegado o pleito. Excetuando a hipótese da carta de sentença notarial, decidiu-se que seria "atribuição exclusiva do ofício de justiça responsável pelo feito a composição do formal de partilha, carta de adjudicação e de arrematação. É o que determina expressamente o art. 1.273 das NSCGJ" (Tomo I).30 Posteriormente, no bojo do processo CG 113.660/19, seria reconhecida a competência exclusiva do tabelião ou do oficial de registro civil (com atribuição notarial) para "constituição de título judicial a partir de cópias de processo judicial, física ou digital, formado a partir de sentença definitiva. Tal competência - de produção de carta de sentença, formal de partilha, carta de adjudicação ou arrematação - não é natural ao registrador, nos termos das leis 6.015/1973 e 8.935/1994."31 Entretanto, ao final e ao cabo, seria aprovada a formalização de títulos judiciais pelas unidades de serviços extrajudiciais, sejam elas notariais ou registrais, "na forma de carta de sentença, formal de partilha, carta de arrematação e de expropriação, bem como de outras ordens judiciais". Porém, o mesmo r. parecer registraria, lucidamente, que, no âmbito do foro extrajudicial, "tal formalização é de atribuição exclusiva do Tabelionato de Notas, nos termos do item 218, do Cap. XVI, tomo II, das NSCGJ". E faz o adendo: Percebe-se que, para além da formação do título pela junção de cópias, também se observa a necessidade de certificação de sua autenticidade, seja por ato notarial na emissão de carta de sentença notarial, seja pelo escrivão do Ofício judicial, tudo com a finalidade de garantir que o título judicial apresentado a registro corresponda integralmente às peças necessárias à sua formação. A necessidade da autenticação decorre do fato de tais documentos serem externos aos serviços de registro, não tendo o Oficial de Registros competência para autenticar cópia de documentos que lhes são apresentadas como parte do título judicial. Esta ausência de atribuição legal para autenticar documentos do Registrador foi afirmada no citado parecer 163/20-E32, considerando que, no caso da norma apreciada naquele caso, cabia ao próprio Registrador extrair as cópias de autos físicos para a formação do título, tão somente com a apresentação dos autos.33 Embora essa importante decisão consignasse que ao registrador não se reconhecia competência legal para certificar a autenticidade das peças extraídas dos autos, ela acabaria por estreitar o itinerário entre o processo judicial e a serventia registral, suprimindo-se, pura e simplesmente, a instância intermediária que tradicionalmente detinha atribuições de certificação e autenticação das peças processuais: Na sugestão concreta, de emissão de termos de abertura e encerramento do título judicial - formal de partilha, carta de sentença, carta de arrematação e de adjudicação - com expressa indicação das folhas inicial e final dos autos que compõe o título, assinado pelo juiz e pelo escrivão, não há autenticação de documentos pelo oficial de registro, mas apenas impressão e conferência dos documentos que constam dos autos digitais e são referidos na decisão de expedição do título. Constando do termo de abertura da carta de sentença, do formal de partilha e dos outros títulos judiciais, referência expressa à folha inicial e final que integram o título, atribuindo-se ao Oficial Registrador sua impressão a partir dos autos eletrônicos e simples conferência de integridade, não haveria ofensa à atribuição legal dirigida a aqueles.34 Assim, as NSCGJSP-I seriam alteradas para prever que a formação do título judicial poderia se dar tanto pelo tabelião de notas quanto pelo registrador: Art. 1.273-A. A requerimento da parte, o formal de partilha, a carta de sentença, a carta de adjudicação e de arrematação, e os documentos semelhantes previstos no art. 221 das normas de serviço, originados de processo eletrônico e destinados aos serviços notariais e de registro, poderão ser expedidos para remessa eletrônica aos serviços notariais e de registro, observando-se o seguinte procedimento: I - emissão dos termos de abertura e de encerramento, constando daquele o número da folha inicial e final do processo em que é expedido o termo, bem como senha de acesso aos autos pelo oficial de registro ou tabelião; II - assinatura eletrônica dos termos de abertura e de encerramento pelo escrivão e pelo magistrado; III - liberação dos termos na pasta digital dos autos eletrônicos; IV - intimação da parte interessada, por ato ordinário, para a remessa dos termos por meio eletrônico ao registro Ppúblico ou tabelionato destinatário. Na parte seguinte deste artigo, intitulada O Direito Achado na Máquina, vamos analisar as mudanças ocorridas no microssistema da titulação a partir do impacto das novas tecnologias e inovação da legislação - especialmente após o advento da lei 14.382/22. A arquitetura tradicional dos ofícios públicos vê-se progressivamente tensionada (e até mesmo ameaçada) pela digitalização e pela emergência de sistemas de titulação centralizada e automatizada. ___________ 1 Segundo Ramos Tavares, a sociedade plataformizada seria a infraestrutura "na qual as relações se desenvolvem no espaço imaterial, confundindo fatos com criações e incutindo crenças em imagens inexistentes, copiadas de existências apenas imaginadas". TAVARES, André Ramos. A Nova Matrix. São Paulo: Etheria, 2024, p. 9. 2 Os tipos indicados não exaurem, todavia, o rol do art. 221. Ad exemplum: a sentença nas ações expropriatórias pode servir como título inscritível (art. 29 do Decreto-Lei 3.365, de 21/06/1941), entre outros. 3 ALVIM, Arruda. CPC Comentado. Vol. VI, São Paulo: RT, 1981, p. 190, n. 3.2. 4 Entre tais funções privativas, destacam-se: "escrever e subscrever outros atos do processo nos autos ou em avulso, por exemplo, os termos de continuação, os mandados, as precatórias, as rogatórias, as cartas de sentença e outros atos privativos de seu ofício". REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 96, n. 96. 5 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p.657, n. 348. 6 Op. cit. p. 649, n. 343. 7 Op. cit. p. 651, n. 345. 8 FERRÃO, Manuel Hilario Pires. Guia practica e formulario do tabellião de notas no Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1870, p. 29, nota 46. 9 Op. Cit. p. 29. Ferrão fará certas distinções entre o tabelião do judicial e o de notas (ou notário público, como sublinha). V. p. 31 et seq. 10 ALMEIDA JR. João Mendes de. Orgams da fé publica. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, Vol. V, São Paulo: Typ. Espíndola, Siqueira & cia., 1897, p. 33. ARISTOTELES. Política, VI, 1321b: "Hay otro cargo de los que registran los contratos privados y los veredictos de los dicasterios [órgãos do poder judiciário na democracia ateniense]. Y, además, el registro de los procesos y su institución. En ciertos lugares se subdividen entre varios, aun cuando uno [tiene] jurisdicción sobre los demás. Los apellidan custodios de los archivos sagrados, superintendentes, registradores, y otros títulos similares". [Usei a tradução direta do grego feita por Manuel Briceño Jáuregui, S. J. Publicaciones Del Instituto Caro Y Cuervo, Vol. LXXXIV, p. 550]. Parece-me mais precisa a transliteração de Almeida Jr. 11 Vide Ord. Fil. Liv. I, Tit. LXXIX. Cândido Mendes de Almeida anotaria que, à altura, não se tinha feito, ainda, uma reforma para clarificar a distinção entre as figuras dos escrivães e "notários". V. nota 3 ao L. I, Tit. LXXIX. Diz ainda que "os tabeliães do judicial, como se vê, não passam de escrivães dos juízos, e diferem muito do notário". Anoto, de passagem, que a expressão "notário" não se coadunava com as tradições portuguesas que mantiveram a de tabelião ao longo dos séculos. Vide JACOMINO, Sérgio. Notários, tabeliães, escreventes e escrivães. Uma longa história de confusões. São Paulo: Círculo Registral/Ars Notariæ. 12/01/2008. Disponível aqui. 12 V. nota 1, Ord. Fil. L. I, Tit. LXXVIII. 13 ALMEIDA Jr. João Mendes de. Plano de Reforma Judiciária submetido ao Congresso Legislativo do Estado de São Paulo por Francisco de Paula Rodrigues Alves. 3ª. seção. São Paulo: Siqueira, Nagel & Cia., 1912, p. 10. Vide igualmente: GAMA, Affonso Dionysio. Manuel prático dos tabelliães de notas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 10, n. 5. Sobre os tabeliães do judicial v. Ord. Fil. Liv. I, Tit. LXXVIII, n. 7. Vide igualmente Alvará de 10 de outubro de 1754 - Escrivães e Tabelliães do judicial. No livro V das ditas ordenações, verificamos que as atribuições dos tabeliães e escrivães andavam parelhas, com disposições aplicáveis a ambos. ALMEIDA NETO, João Mendes de, in: prefácio a Órgãos da fé pública. ALMEIDA JR, João Mendes de. São Paulo: Saraiva, 1963, p. VII. 14 Em São Paulo, v. art. 145, 1o, do Decreto 123 de 10.11.1892. 15 A distinção já nos vinha das Ordenações Manuelinas: Liv. I, Tit. LIX (tabeliães das notas) e Liv. I, Tit. LX (tabeliães do judicial). Nas Afonsinas, a distinção que se fazia era entre os tabeliães do paço e tabeliães das audiências. Liv. I, Tit. XLVIII. 16 O nome dos dois primeiros tabeliães a exercer sua atividade no Brasil ainda permanece obscuro. Sabe-se que Martim Afonso de Souza trouxe, a bordo da famosa esquadra por ele comandada, 2 tabeliães, oficiais que teriam sido escolhidos e nomeados ainda em Portugal, conforme se lê da Carta de Poder de 20 de novembro de 1530 conferida por D. João III. A transcrição paleográfica se pode ver aqui: JACOMINO, Sérgio Jacomino. 450 anos de tabeliado no Brasil? São Paulo: Observatório do Registro, 26/01/2015, disponível em: https://wp.me/p6rdw-za. É possível que um deles possa ser o misterioso Pero (ou Pedro) Capico, citado em várias passagens como escrivão. Diz Francisco Martins dos Santos que, "quando Martim Afonso embarcou-se para o Brasil com a Armada de 3 de dezembro de 1530, Pero Capico veio novamente para S. Vicente, na qualidade de conhecedor da região e Escrivão da mesma Armada, aí lavrando todas as primeiras escrituras de terras e cartas de doação até princípios de 1533". SANTOS, Francisco Martins. História de Santos. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1937, p. 62. Há muitos outros monumentos em que se aponta Capico como escrivão como, por exemplo, na famosa carta de sesmaria dada a Pedro de Góes, da qual se extrai: "A 10 de outubro de 1532 foi por este concedida ao cavaleiro fidalgo Pedro Góes uma sesmaria passada pelo tabelião Pedro Capico, das terras fronteiras a Engaguaçu, na qual foi edificado o primeiro engenho de açúcar com o nome de Madre de Deus". MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos..., Tomo II, São Paulo: Livraria Martins, 1954, p. 157. 17 MACEDO. Deocleciano Lei de.Tabeliães do Rio de Janeiro - do 1º ao 4º Ofício de Notas: 1565-1822. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 11. 18 Ord. Fil. Liv. III, Tit. LIX (Das Provas que devem fazer por Escrituras Públicas), alude tanto a tabeliães públicos quanto a escrivães autênticos. 19 Grassa certa controvérsia na jurisprudência acerca da validade de renúncia in favorem e mesmo em instituir-se usufruto em autos e termos judiciais. V. REsp 1.433.650/GO, j. 19/11/19, DJe 4/2/20, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, disponível aqui; REsp 1.236.671/SP, j. 9/10/12, DJe 4/3/13, Rel. Min. Sidnei Beneti, disponível aqui. Contudo, embora o art. 1.806 do CC admita a renúncia à herança por escritura ou termo judicial, a meação não se confunde com a herança e, por revelar-se no caso verdadeira doação, a lavratura de escritura pública é imprescindível (art. 108 do CC). REsp 1.196.992/MS, j. 6/8/13, DJe 22/8/13, Rel. Ministra Nancy Andrighi, disponível aqui. 20 V. Decreto de 1º.3.1833, que aludia a "tabeliães do Público, judicial e Notas". No ano seguinte, ampliando o escopo, previu-se que em cada uma das "Villas referidas haja dous Tabelliães do Publico judicial e Notas, servindo o primeiro de Escrivão das execuções civeis e crimes". Mais tarde, em adendo, previa-se que o 1º tabelião acumularia, não havendo quem queira servir, o ofício de escrivão do júri e execuções criminais, "até que por concurso seja o dito ofício provido em pessoa que o sirva separadamente" (art. 17 do Decreto 9.420, de 28.4.1885). 21 V. o art. 120, II, "b" do Decreto 123 de 10/11/1892 - Organização Judiciária de São Paulo: o oficial do registro geral das hipotecas, com seus anexos, poderia ser substituído por um dos "tabelliães do judicial e notas", designado pelo juiz. Vide, ainda: Decreto 123 de 10/11/1892 - Organização Judiciária de São Paulo. Decreto 5.108, de 15/07/1931; Decreto-Lei 11.464, de 30/09/1940; Decreto-Lei 14.234, de 16/10/1944; Art. 23, parágrafo único, da Lei Estadual paulista 5.285, de 18/02/1959. No Código Judiciário do Estado de São Paulo (Decreto-Lei Complementar 3, de 27/08/1969, reza o seu artigo 197: "Nas comarcas onde o serviço não for oficializado, o Ofício de Justiça é mantido como anexo dos respectivos cartórios, com as atuais numerações ordinais e com a denominação de 'Cartório de Notas e Ofício de Justiça'". V. arts. 100 e 101 da Resolução TJSP 1/1971, de 29/12/1971, DOJ de 30/12/1971, Des. Cantidiano Garcia de Almeida. Disponível aqui, entre muitos outros exemplos que não esgotarei por aqui. 22 Decreto-Lei Complementar 3, de 27/08/1969, art. 262. 23 A chamada "oficialização" dos cartórios judiciais da Capital de São Paulo viria com a Lei 3.331, de 30/12/1955. A partir daí, e progressivamente, foram sendo "oficializados" e desacumuladas as serventias. A Lei 8.935 vai além e prevê a desacumulação das especialidades previstas no seu art. 6º (arts. 26 e 49). 24 STF RE 81.632-PR, j. 25/11/1975, Min. Bilac Pinto. Disponível aqui. 25 ALMEIDA JR. João Mendes de. Direito judiciário brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1940, p. 73, III. A mesma expressão tradicional figura na EC 45/2004 no art. 103-B: "órgãos prestadores de serviços notariais e de registro". Os órgãos notariais e registrais integram, naturalmente, o organismo judiciário. Vide: JACOMINO, Sérgio. Órgãos da fé pública. São Paulo: Círculo Registral - Estudos Bandeirantes, 12.4.2025, disponível aqui. 26 Op. cit. p. 95. 27 Op. cit. p. 18. 28 THEDORO JR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 49ª ed. Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 2014, n. 853-b. No caso da arrematação (título de domínio em sentido material), o ato reclama o seu instrumento, verbis: "acarta de arrematação, que é o instrumento dela", Op. Cit., n. 871. 29 Provimento CG 31/2013, de 21/10/2013, DJe 23/10/2013, Des. José Renato Nalini. Disponível aqui. Vide Processo CG 39.867/2013, parecer de 21/10/2013, DJe 23/10/2013, Des. José Renato Nalini. Disponível aqui. 30 Processo CG 81.020/2018, Colina, parecer de 19/12/2018, DJe 19/12/2018, parecer aprovado pelo Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Disponível aqui. 31 Processo CG 113.660/2019, Barueri, parecer de 24/04/2020, DJe 24/04/2020, Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. 32 Processo CG 113.660/2019, cit. 33 Processo CG 50.357/2020, São Paulo, dec. de 08/06/2020, Dje 09/06/2020, Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. 34 Processo CG 50.357/2020, cit.
Resumo Resumimos, em tópicos, as principais ideias deste artigo: 1) Os juristas sempre precisam tomar cuidado com reflexões abstratas realizadas da Torre de Marfim, de escritórios confortáveis e distantes da realidade. Por vezes, essas cogitações impõem pesadíssimo peso sobre os ombros dos cidadãos, a ponto de os induzir a adotar condutas que frustram os objetivos dos juristas. O excesso de patrulhamento e de ameaça estatais pode gerar o que se conhece como chilling effect (efeito inibidor ou efeito amedrontador), desencorajando condutas que seriam salutares (capítulo 1 e 2.1.). 2) A prestação de contas deve ser por resultado até o limite mensal do valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, desde que não se trate de nenhum curador profissional. O serviço prestado pelo curador consiste em, por 24 horas, gerir o patrimônio do curatelado, cuidar pessoalmente dele, levar para passear, trocar fraldas, dar apoio emocional etc (capítulo 2.3. e 2.4.). 3) Para fins de referência mais objetiva, arbitramos que esse valor atualmente deve corresponder a R$ 15.000,00. Essa quantia é, por equidade, aquela geralmente cobrada por casas de repouso de padrão razoável e, no padrão monetário de hoje, parece ser um parâmetro razoável para a definição da prestação de contas por resultado. Mas esse valor pode vir a ser maior a depender do caso concreto, especialmente se o preço de mercado de serviços de cuidado por 24 horas somado aos serviços de gestão de bens na localidade for maior ainda (capítulo 2.4.). 4) A prestação de contas deverá ser por contabilidade nestas três hipóteses: (a) curatela profissional; (b) rendimentos mensais superiores ao valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador com gastos efetivamente superiores a esse patamar; (c) despesas extraordinárias com recursos do ativo permanente (capítulo 2.5.). 5) Na segunda hipótese retrocitada, a prestação de contas por contabilidade terá de observar duas flexibilidades, que batizamos assim: (1) a zona discricionária de gastos; e (2) a flexibilidade formal da prestação de contas  (capítulo 2.5.). 6) Sempre se deve preferir o ambiente familiar à institucionalização da pessoa incapaz (capítulo 2.6.). 7) A tese acima fundamenta-se na necessidade de reconhecer a Economia do Cuidado no Direito de Família, no princípio da proteção simplificada do agraciado, no princípio da vontade presumível e no princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. 8) Naqueles casos em que há prestação de contas por contabilidade, o controle de mérito a posterior deverá observar três diretrizes: (a) a responsabilidade do curador depende de prova de dolo; (b) respeito à vontade presumível da pessoa incapaz; (c) é indevido controle jurisdicional do juízo de conveniência e oportunidade do curador, salvo caso de manifesta e ululante falta de razoabilidade (capítulo 3).  1. Introdução  Quando uma pessoa perde a lucidez e é submetida à curatela: a prestação periódica de contas pelo curador deve mesmo ser feita por contabilidade em qualquer hipótese em que a pessoa incapaz tiver rendimentos ou bens? Neste artigo, defendemos que a prestação de contas por contabilidade só deve ser feita apenas em determinadas hipóteses, quando o rendimento mensal do curatelado for efetivamente elevado ou quando se tratar de curatela profissional. Sustentamos que, nas hipóteses em que o rendimento do curatelado é inferior à justa remuneração dos trabalhos de cuidado realizados pelo curador, a regra será a prestação de contas por resultado. Trata-se de mais uma decorrência do reconhecimento da Economia do Cuidado no Direito de Família, tema sobre o qual nos debruçamos em outra ocasião1. No presente artigo, como as decisões em processos judiciais de interdição são sigilosas, muitas referências aqui feitas a casos concretos não virão acompanhadas de citação da fonte. Desde logo, agradeço aos amigos civilistas e professores Rolf Madaleno, Pablo Malheiros da Cunha Frota, Pablo Stolze Gagliano, Hércules Alexandre da Costa Benício e Ricardo Calderón, amigos com os quais pude amadurecer a tese ora defendida neste artigo.  2. Problema atual: curador e tutor tratados como presumidamente bandidos  No dia do lançamento da obra "A Reforma do Código Civil", no Salão Negro do Congresso Nacional, em 1º de abril de 2025, eu conversava com o amigo Rolf Madaleno sobre este artigo que já estava para ser publicado. Dizia ao amigo civilista que a prática da fiscalização exercida sobre os tutores e os curadores estava desconectada da realidade. O tutor ou o curador precisa guardar nota fiscal de "danoninhos" e, em alguns casos, ainda tem de motivar a compra. Há casos, ainda, de despesas que são glosadas por "controle de mérito". Relatei-lhe um caso de uma glosa que ocorreu em um processo. O curador havia gastado R$ 150,00 em um restaurante de classe média. O Ministério Público, com a chancela do juiz, acusou o curador de "fazer banquete romano" com o dinheiro do vulnerável e determinou ao curador o reembolso. Os exageros vão além disso. Há casos em que o tutor ou o curador sujeitam-se a uma espécie de "responsabilidade objetiva com base na teoria do risco integral". São, por exemplo, condenados a indenizar prejuízos por decisões tidas como erradas. Se o curador realiza uma despesa por ter caído em um golpe ou se ele compra um bem com um vício oculto, ele tem de indenizar. Há, ainda, outros casos em que o curador é punido a indenizar por alguma suposta omissão: o juízo e o Ministério Público - em uma avaliação a posteriori e sem ter vivido "na pele" do curador - conjecturam que o curador poderia ter obtido um determinado proveito econômico à pessoa incapaz se tivesse adotado uma certa conduta.  O ditado popular é o de que é fácil ser engenheiro de obra já feita. É fácil o Ministério Público ou o juízo censurar uma despesa feita pelo curador sob o argumento de que "a compra deu errado". Ou especular que o curador poderia ter tido uma determinada conduta para obter um proveito patrimonial. Parte-se de uma premissa absolutamente romântica e irreal de que, se a pessoa vulnerável não fosse incapaz, ela não cometeria erro algum na vida, nem mesmo por culpa. O peso que é colocado nos ombros do tutor ou do curador é quase que aterrorizante. A praxe forense exige que o curador ou o tutor seja um super-homem nietzschiano, que nunca erre, que guarde notas fiscais e relatórios de picuinhas e que - em postura estoica - sacrifique a própria vida para se concentrar nos cuidados da pessoa vulnerável. Eu continuava a expor os problemas atuais em preparação do terreno da tese que eu estava defender quando o nosso querido Rolf Madaleno me interrompeu e, com sua vasta experiência de um dos mais destacados advogados e civilistas, resumiu:  - "É por isso que ninguém quer assumir a curatela de ninguém.  Perfeita a colocação do grande civilista! E acrescentamos mais. Muitas pessoas, quando são encurraladas a assumir a curatela, ainda adotam uma forma de "fugir" ao dever de ficar guardando nota fiscal de "daninhos" e de ficar fazendo relatórios justificando essas pequenas compras. Colocam o curatelado em alguma Clínica ou em alguma Casa de Repouso e "lavam as mãos". Em algumas hipóteses, a escolha de uma clínica ou casa de repouso é feita com olhos no melhor interesse da pessoa incapaz. Mas não se pode ignorar que há outros casos em que a motivação do curatelado é escapar ao patrulhamento irracional dos bizantinismos do regime de prestação de contas por contabilidade. Com isso, as pessoas vulneráveis ficam mais ainda isoladas, longe do convívio familiar, tudo por conta da artilharia pesada e injustificada que a prática forense tem apontado contra a cabeça dos curadores. A pretexto de proteger a pessoa vulnerável, esses exageros empurram-na mais ainda para o abismo da solidão e do ostracismo. O pior em tudo isso é que, se o curador ousar reivindicar algum pro labore, muitas decisões judiciais fixam valores absolutamente irrisórios, de meio salário mínimo, em total desconexão com o mister assumido. Em termos de valores, a experiência demonstra que é muito caro contratar serviços de cuidado. Cuidadores cobram R$ 200,00 por turno de 12 horas, o que significaria que, para manter um cuidador ininterruptamente com a pessoa incapaz, o custo mensal passaria de R$ 12.000,00. Não se inclui aí alimentação, deslocamentos, gestão patrimonial etc. Esse valor é apenas para cuidadores dedicados às necessidades básicas da pessoa incapaz, como trocar fraldas, ministrar remédios etc. Se se fossem contratar outros funcionários para essas outras atividades, esse custo mensal dobraria facilmente. Se se fosse "internar" a pessoa em casas de repouso, a média do mercado oscila entre R$ 10.000,00 a R$ 20.000,00, levando-se em conta um padrão de classe média. Mesmo diante desse cenário, o que se verifica é que curadores que querem cuidar pessoalmente da pessoa vulnerável acabam sendo constrangidos a terem de apresentar "notas fiscais de danoninhos", com relatório individualizado de cada despesa. E são ainda injustiçados com condenações a reembolsar despesas tidas por indevidas em controle meritório posterior. A verdade é que os curadores - que geralmente são pessoas movidas por amor e forte ímpeto de solidariedade - são desonrados pela praxe forense, ao serem tratados como "presumidamente bandidos". Há algo de podre no Reino da Dinamarca, diria Shakespeare. Qual seria a correta interpretação da legislação? Passamos a expor a nossa tese.  2. Prestação de contas por resultado vs prestação de contas por contabilidade  2.1. Espécies de prestação de contas pelo curador Os juristas sempre precisam tomar cuidado com reflexões abstratas realizadas da alta Torre de Marfim, de escritórios confortáveis e distantes da realidade. Por vezes, essas cogitações impõem pesadíssimo peso sobre os ombros dos cidadãos, a ponto de os induzir a adotar condutas que frustram os objetivos dos juristas. O excesso de patrulhamento e de ameaça estatais pode gerar o que se conhece como chilling effect (efeito inibidor ou efeito amedrontador), desencorajando condutas que seriam salutares. E isso tem ocorrido na prática do Direito Protetivo de Família, especificamente no tocante ao regime de prestação de contas imposto aos curadores. Quem atua na prática forense nesse ramo sabe que, com exceção de alguns juízos, a tendência é que o curador seja, ao prestar contas, submetido a um patrulhamento detalhista e meticuloso, como se ele fosse algum bandido ardiloso. E o pior é que esse curador, na prática, realiza elevadíssimos sacrifícios pessoais por mero sentimento de amor ou de filantropia. Quando recebe algum pro labore, é algum valor absolutamente irrisório pelo qual nenhum profissional assumiria igual serviço. É preciso corrigir os rumos. Com a interdição de uma pessoa, o juiz nomeia um curador, o qual é obrigado à prestação periódica de contas, conforme arts. 1.755 a 1.757 e 1.774 do CC2. A legislação não detalha, porém, como deverá ser feita essa prestação de contas, razão por que entendemos que há dois tipos de prestação de contas juridicamente possíveis: (1) a prestação de contas por contabilidade e (2) a prestação de contas por resultado.  2.2. Definição da prestação de contas por contabilidade A praxe forense é exigir o que chamamos de prestação de contas por contabilidade, assim entendida aquela que exige a individualização minuciosa de cada despesa acompanhada da respectiva prova escrita. Exige-se, ainda, eventual motivação individualizada do porquê de cada despesa. Aliás, há casos em que se exige provas escritas em total desconexão com a prática informal de grande parte das despesas quotidianas. Há casos de rejeição de faturas de cartão de crédito, de conversas de whatsapp etc3. Em tese, até mesmo para comprovar a compra de um "danoninho", o curador precisa ter a nota fiscal específica, mesmo se tiver comprado o produto de um vendedor de rua que não costuma emitir recibos. Esse tipo de prestação de contas é absolutamente meticuloso e trabalhoso. Um curador perderá muito, muito, muito tempo e energia para ficar coletando notas fiscais de cada despesa, para estruturar as informações em planilhas, para vincular cada despesa a uma nota fiscal, para eventualmente motivar cada despesa etc. Esse trabalho exagerado, na prática, acaba sendo prestado "de graça" pelo curador, sem qualquer remuneração específica. Em muitos casos, a prestação de contas por contabilidade será glosada por alguma picuinha relacionada à prova apresentada da despesa do "danoninho" ou por algum juízo a posterior de inconveniência da despesa. A prestação de contas por contabilidade submete o curador a um verdadeiro inferno dantesco de formalidades absolutamente injustificáveis em grande parte dos casos concretos. Além disso, a prestação de contas por contabilidade acaba, por vezes, exigindo a realização de despesas com profissionais da contabilidade, impondo um gasto adicional com uma burocracia que, em muitos casos concretos, revela-se totalmente injusto.  2.3. Definição da prestação de contas por resultado A prestação de contas por resultado é aquela em que não se exige uma demonstração minuciosa e contábil de cada despesa, mas se contenta com uma avaliação equitativa e global do resultado prático alcançado. No caso de pessoas incapazes sob curatela, essa avaliação equitativa e global poderá ser realizada por fotos, por depoimentos ou por equipe interdisciplinar que avaliará, in loco, se a pessoa incapaz está sendo "bem cuidada". Assim, no caso de um curador que administra um rendimento mensal de R$ 4.000,00, ele não terá necessidade de prestar contas de "compras de danoninhos", com a meticulosidade de um contador. Ele poderá ir realizando as despesas que reputar conveniente para o bem-estar do curatelado, comprando alimentos, pagando boletos etc. Ao final, quando do momento da prestação de contas, o curador deverá apresentar provas de que o curatelado está sendo bem tratado, facultado ao juízo, se quiser, determinar uma inspeção in loco da equipe interdisciplinar. Essas provas podem ser fotos, depoimentos de testemunhas etc. E qual seria o momento da prestação de contas? Entendemos que, em regra, ela deverá ser anual por aplicação analógica do art. 1.756 do Código Civil. Todavia, quando o curador possuir forte vínculo de afinidade e afetividade com a pessoa incapaz, o juízo deverá afastar essa periodicidade automática para a prestação de contas e estabelecer que a prestação de contas por resultado só acontecerá mediante determinação judicial específica. Essa determinação judicial específica dar-se-á, na prática, quando houver alguma denúncia ou algum fato que levante suspeita de maus tratos à pessoa incapaz.  2.4. Quando a prestação de contas deve ser por resultado?  Indaga-se: quais são os critérios a serem observados pelo juízo para determinar a prestação de contas por resultado ou a prestação de contas por contabilidade? Entendemos que a prestação de contas deve ser por resultado até o limite mensal do valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, desde que não se trate de nenhum curador profissional. O serviço prestado pelo curador consiste em, por 24 horas, gerir o patrimônio do curatelado, cuidar pessoalmente dele, levar para passear, trocar fraldas, dar apoio emocional etc. E qual seria esse limite mensal? Para fins de referência mais objetiva, arbitramos, por equidade, que esse valor atualmente deve corresponder a R$ 15.000,00. Essa quantia é aquela geralmente cobrada por casas de repouso de padrão razoável e, no padrão monetário de hoje, parece ser um parâmetro razoável para a definição da prestação de contas por resultado. Mas esse valor pode vir a ser maior a depender do caso concreto, especialmente se o preço de mercado de serviços de cuidado por 24 horas somado aos serviços de gestão de bens na localidade for maior ainda. Assim, suponha que uma pessoa tenha perdido totalmente a lucidez e sequer consiga expressar a vontade. Imagine que essa pessoa tenha um rendimento mensal de R$ 2.000,00. Uma filha, uma amiga ou alguém próximo a ela decidem assumir a curatela. Não é razoável que essa pessoa - que, inclusive, assumiu o pesadíssimo (mas nobre) ato de cuidar de outrem - seja submetida a um patrulhamento excêntrico de prestação de contas e seja obrigada a guarda notas fiscais de "danoninhos". Afinal de contas, o valor mensal de R$ 2.000,00 nem de longe remuneraria o trabalho de cuidado exercido por esse curador. Nessa hipótese, o juízo deverá sujeitar esse curador a um regime de prestação de contas por resultado. Igual resultado ocorreria em relação a uma pessoa incapaz que tenha um rendimento mensal de até R$ 15.000,00. Esse seu rendimento mensal não é suficiente, sequer, para remunerar o trabalho de cuidado exercido pelo curador. E, por isso, não há motivos para apontar "a arma" para a cabeça do curador com a imposição do burocrático e extenuante regime da prestação de contas por contabilidade. Em poucas palavras, a tese acima é reforçada pelo seguinte raciocínio. Se a pessoa incapaz fosse submetida a profissionais (casas de repouso e profissionais de cuidado) por 24 horas, isso custaria mais do que o valor acima. Logo, se a pessoa incapaz ficar sob a curatela não profissional em um ambiente familiar (o que é muito melhor em nome do princípio do melhor interesse da pessoa incapaz), não há razão alguma para transformar o curador em "escravo" ou em "presumidamente bandido" e submetê-lo a um patrulhamento detalhista e formalista de ter de guardar nota fiscal de "danoninhos": o regime de prestação de contas por contabilidade é iníquo nessas hipóteses, ao menos até o valor supracitado. Deixamos claro que não haverá qualquer irregularidade se o curador tomar, para si, parte dos valores dos rendimentos mensais, porque a ideia é que o pro labore dele está embutido nesses rendimentos mensais. Todavia, é dever do curador prover ao curatelado o bem-estar proporcionalmente à condição socioeconômica proporcionada pelo rendimento mensal.  2.5. Quando a prestação de contas por contabilidade?  Daí se indaga: quando a prestação de contas deverá ser por contabilidade?  Há três hipóteses: (1) a de curatela profissional; (2) a de rendimentos mensais superiores ao valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador; (3) despesas extraordinárias com recursos do ativo permanente. A primeira hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando se trata de curador profissional. O profissionalismo da relação justifica a prestação de contas por contabilidade. A segunda hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando, além de o rendimento mensal do curatelado exceder o valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, o gasto total efetivamente superar esse limite. Lembramos que, para fins atuais e objetivos, arbitramos esse valor de mercado dos serviços do curador como sendo de R$ 15.000,00, admitida quantia superior a depender da localidade e das particularidades. Isso significa que, se o gasto mensal não ultrapassar R$ 15.000,00, a prestação de contas será por resultado. A ideia é que o curador terá de motivar eventuais gastos acima de R$ 15.000,00, o que deverá ser realizado por prestação de contas por contabilidade. Mas a prestação de contas por contabilidade aí deverá ser realizada com duas flexibilidades, que assim batizamos: (1) a zona discricionária de gastos; (2) a flexibilidade formal da prestação de contas. Em relação à zona discricionária de gastos, estamos a nos referir à dispensa de prestação de contas até o valor que seria devido a título de justo pro labore. Explicamos. O juízo deverá considerar, como comprovado, um valor razoável que deva corresponder a um justo pro labore que seria devido ao curador. Se o curador usou esse valor de pro labore com o curatelado ou se ele "embolsou" a quantia, isso é irrelevante. O que importa é que não há motivo algum para submeter o curador ao constrangimento e ao transtorno de uma prestação de contas por contabilidade até o limite do justo pro labore. Afinal de contas, muitos curadores sequer querem embolsar qualquer valor a título de pro labore, até porque nenhum dinheiro pagaria efetivamente o trabalho que eles exercem. E é importante que o juízo seja razoável no arbitramento desse valor, porque o Direito de Família precisa reconhecer e valorizar a Economia do Cuidado. Já tivemos a oportunidade de, em outro artigo, apontar que o pro labore fixado ao curador deveria ser mais compatível com a efetiva expressão econômica desses extenuantes trabalhos de cuidado. Transcrevemos aqui nossa advertência4:  "Este artigo levanta reflexões práticas para combater um grave problema observado na prática forense do Direito de Família brasileiro: a desvalorização dos trabalhos de cuidado (costumeiramente referenciado na mídia como um tipo de trabalho invisível1 pelo pouco reconhecimento do Direito) dentro das relações familiares2. Na conclusão, resumiremos, em tópicos, as ideias desenvolvidas neste artigo. O leitor que tenha mais urgência pode ir diretamente à conclusão para extrair, em tópicos, o que defendemos. (...) De fato, a prática forense do Direito de Família nem sempre dá o devido valor ao que se conhece como Economia do Cuidado ou, nos textos ingleses, como care economy ou care work. Trata-se de um problema que agrava a posição ainda vulnerável da mulher, que, dentro da estrutura sociológica brasileira, ainda é principal incumbida em exercer atividades de cuidado. Por Economia do Cuidado, entendem-se os serviços prestados em favor de uma pessoa para seu cuidado pessoal. Abrangem trabalhos domésticos (ex.: cozinhar, limpar casa etc.) e operacionais (ex.: transporte de filhos para escola, gerenciamento do patrimônio de terceiros, etc.). Vários trabalhos de cuidado são remunerados, como os de empregados domésticos, os de casa de repouso, os de assistência médica etc. Outros são exercidos sem remuneração alguma, como os desempenhados no âmbito familiar. (...) (...) Outras aplicações práticas da Economia do Cuidado devem ser realizadas no âmbito do Direito de Família, como em hipóteses de dedicação no cuidado de um familiar que seja uma pessoa idosa ou uma pessoa sob curatela. Nesses casos, é importante que os juristas se preocupem em reconhecer a expressão econômica dos trabalhos de cuidado exercidos pelo familiar generoso. No caso de curatelas, por exemplo, os juízes deveriam ser menos incontinentes na fixação do pro labore (arts. 1.752 e 1.774, CC), especialmente quando inexistir qualquer Diretiva de Curatela sobre o tema5. É claro que se deve atentar para a capacidade financeira da pessoa sob curatela. Mas, em havendo capacidade financeira adequada, o valor do pro labore tem de ser adequado, tendo em vista, inclusive, a média dos preços cobrados por profissionais do cuidado. Soa, por exemplo, absurdo a fixação de pro labore de um salário mínimo, quando o curatelado possui patrimônio considerável e quando se lembra que os estabelecimentos de repouso - para prestar serviço muito menos personalizado - costumam cobrar valores muitas vezes superior. Por exemplo, temos ciência de casas de repouso que cobram mensalidades de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) para o acolhimento de pessoas idosas. Fixar valores irrisórios de pro labore, em situações de alta capacidade econômica da curatela, seria chancelar um vampirismo afetivo indevido: a pessoa vulnerável (e, por reflexo, os seus futuros herdeiros) enriquece-se ao deixar de contratar profissionais para se servir - quase que gratuitamente - do trabalho pessoal do curador. E é importante lembrar que o curador geralmente assume o munus por conta de sua proximidade afetiva com a pessoa vulnerável. Em grande parte dos casos, esse curador prestaria os trabalhos mesmo sem compensação financeira alguma, por conta do forte vínculo afetivo. Não podemos permitir a prática oportunista de explorar essa proximidade afetiva, impondo ao curador um sacrifício patrimonial que, na prática, se reverterá patrimonialmente em favor da pessoa vulnerável (e, por tabela, aos seus futuros herdeiros). O Direito não pode chancelar vampirismos afetivos, repita-se."  No tocante à flexibilidade formal da prestação de contas, estamos a defender que o juízo deverá ter certa flexibilidade e tolerância com eventuais inconsistências ou fragilidades probatórias quando disserem respeito a despesas que a experiência demonstre ser comum acontecer. Não há motivos para o juízo "glosar" a compra de um lanche por falta de nota fiscal. Afinal de contas, as máximas da experiência comum são provas também (art. 375, CC6). Além disso, o curador é alguém que está a agir por amor (quase que por generosidade), e não por profissionalismo: não é razoável impor-lhe um peso exagerado de burocracia. Tal contrariaria o princípio da proteção simplificada do agraciado7. Por fim, a terceira hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando se tratar de despesas extraordinárias que venham a ser custeadas com aplicações financeiras ou com outros bens que integram o que chamamos de ativo permanente da pessoa incapaz (como imóveis). Nesses casos, o curador deverá comprovar, de forma contábil, o endereçamento dos recursos ao custeio das despesas extraordinárias.  2.6. Preferência pela convivência familiar Em matéria de Direito Protetivo de Família, o reinado é do princípio do melhor interesse da pessoa incapaz. E, sob a ótica desse princípio, deve-se sempre prestigiar a convivência familiar em detrimento da institucionalização. Por essa razão, quando familiares - na condição de curadores - manifestarem a disponibilidade e as condições de acolherem a pessoa incapaz em um ambiente familiar, o juízo deverá prestigiar essa solução e deverá "baixar a guarda" do regime castrense da prestação de contas por contabilidade, conforme mencionamos acima. Em suma, não faz sentido o juízo, em uma visão puramente patrimonialista do Direito Protetivo de Família, acabar submetendo a pessoa incapaz a uma curatela profissional ou a uma institucionalização pelo mero fato de isso ser financeiramente mais demonstrável e controlável. Aliás, temos de lembrar que uma pessoa comum costuma preferir ficar com sua família e gastar seus recursos com esse convívio familiar. Até mesmo doações são feitas. O Direito precisa dialogar com o padrão do homo medius, conforme já defendemos ao tratar do princípio da vontade presumível, o qual deve ser levado em conta também em matéria de curatela de pessoas incapazes8. Lembramos, nesse ponto, que, decorre do princípio da vontade presumível a regra do respeito à vontade da pessoa vulnerável ao tempo da sua lucidez. Daí decorrem diversas consequências práticas, até mesmo a de, a depender do caso concreto, autorizar doações da pessoa incapaz, como na hipótese de uma doação feita por uma pessoa incapaz rica para ajudar no custeio do tratamento de saúde de um irmão. Sobre essa interpretação teleológica do art. 1.748, II, e 1.781 do CC), reportamo-nos a outro artigo que escrevemos9.  3. Os limites do controle de mérito a posteriori das despesas feitas pelo curador  Naqueles casos em que há prestação de contas por contabilidade, é possível discutir se o juízo poderá ou não realizar controle de mérito a posterior. Entendemos haver três diretrizes a serem levadas em conta no controle de mérito a posteriori realizada pelo juízo quando da prestação de contas pelo curador. O controle de mérito a posteriori consiste em o juízo avaliar se a despesa realizada pelo curador foi ou não adequada, a partir de uma análise de conveniência e oportunidade. A primeira diretriz diz respeito ao regime de responsabilidade civil do curador. Se o curador não é profissional, a sua responsabilidade civil por danos causados à pessoa incapaz no exercício do munus só deve dar-se no caso de dolo por força do art. 392 do Código Civil. A jurisprudência tende a equiparar o dolo à culpa grave para tal efeito, tese contra a qual já nos manifestamos10. Seja como for, não é devido condenar o curador por falhas na gestão patrimonial da pessoa incapaz sem que haja dolo ou culpa grave. Isso significa que jamais o juízo poderá condenar o curador a reembolsar a pessoa incapaz por eventual despesa tida por inconveniente, salvo no caso de dolo ou culpa grave. O controle de mérito a posteriori das despesas feitas pelo curador tem de levar em conta isso. A segunda diretriz a ser levada em conta no controle de mérito a posteriori é a de respeitar a vontade presumível da pessoa curatelada. Já vimos casos de juízos que "glosaram" uma despesa de R$ 150,00 feita em um restaurante. Considerou que não havia motivos para o curatelado pagar a conta do almoço ocorrido em um domingo para seus familiares comerem, apesar de o curatelado ter alto rendimento mensal. Isso contraria manifestamente a vontade presumível da pessoa incapaz: se ela não fosse incapaz e tivesse a gestão do dinheiro, é intuitivo que ela provavelmente convidaria a família para um almoço dominical eventual, ainda mais se ela dispusesse de recursos financeiros para tanto. Aliás, até mesmo despesas com viagens. Se o curatelado dispõe de recursos elevados, não faz sentido vetar-lhe o prazer de conhecer novos lugares, custeando, inclusive, o curador (que, na prática, atua como um verdadeiro "cuidador). Ora, a experiência demonstra que pessoas com patrimônio elevado viajam e, por vezes, até custeiam empregados domésticos e até mesmo amigos nessas viagens. Na prática forense, tem-se observado que os curadores, por medo de glosas fundadas em controles meritórios a posteriori indevidos, receiam fugir das despesas básicas do "feijão com arroz", mesmo quando o curatelado possui elevados recursos. Trata-se de algo péssimo ao próprio curatelado, que, mesmo dispondo de muito dinheiro, não desfruta - nem mesmo ocasionalmente - de viagens, de refinada gastronomia ou de outros prazeres da vida. Cuida-se de uma situação absurda causada pela excentricidade burocrática dos controles meritórios a posteriori realizados em muitos casos concretos. Aliás, a vontade presumível deve ser levada em conta até mesmo quando o juízo é instado a autorizar despesas extraordinárias. Se, por exemplo, o curatelado possui um elevadíssimo valor de aplicação financeira, é presumível que ele compraria um veículo de maior qualidade para se deslocar. Assim, se, por exemplo, o curador solicitar autorização judicial para a compra de um veículo de maior qualidade (em nome do curatelado, é óbvio), isso deve ser autorizado. Não faz sentido sujeitar o curatelado abastado financeiramente a se deslocar em meios de transportes desconfortáveis, tudo sob o argumento tacanho de que o curador também acabará, por tabela, usufruindo do conforto de um novo veículo. A terceira diretriz a ser levada em conta no controle de mérito a posteriori é o de que, em regra, não cabe ao magistrado adentrar o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo curador, salvo no caso de manifesta e gritante falta de razoabilidade. O magistrado não pode arvorar-se a "engenheiro de obra já feita" e passar a censurar as avaliações de conveniência e oportunidade realizadas por quem estava efetivamente no chão da fábrica: o curador. É o curador que vive o calor dos problemas, que enfrenta os imprevistos dos momentos, que lê os sentimentos quotidianos da pessoa incapaz. É ele quem tem condições de decidir o que é mais conveniente e oportuno à pessoa incapaz. O juízo só deve censurar essas despesas nos casos de manifesta e ululante desproporcionalidade. Assim, se o curador compra uma camisa profissional do Flamengo de R$ 800,00 à pessoa incapaz torcedora desse time Mais Querido do Planeta, essa despesa não deve ser glosada por eventual acusação do juiz de superfluidade, porque é o curador quem foi ungido para interpretar aquilo que fará a pessoa incapaz mais feliz. Não cabe ao juiz glosar essa conta. A exceção é se essa compra se afigurar manifesta e ululantemente desproporcional, o que, em tese, poderia acontecer se o curatelado fosse pobre e dispusesse de um rendimento mensal de R$ 500,00. __________ 1 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível aqui. Acesso em 7 de maio de 2024. 2 Art. 1.755. Os tutores, embora o contrário tivessem disposto os pais dos tutelados, são obrigados a prestar contas da sua administração. Art. 1.756. No fim de cada ano de administração, os tutores submeterão ao juiz o balanço respectivo, que, depois de aprovado, se anexará aos autos do inventário. Art. 1.757. Os tutores prestarão contas de dois em dois anos, e também quando, por qualquer motivo, deixarem o exercício da tutela ou toda vez que o juiz achar conveniente. Parágrafo único. As contas serão prestadas em juízo, e julgadas depois da audiência dos interessados, recolhendo o tutor imediatamente a estabelecimento bancário oficial os saldos, ou adquirindo bens imóveis, ou títulos, obrigações ou letras, na forma do § 1 o do art. 1.753. Art. 1.774. Aplicam-se à curatela as disposições concernentes à tutela, com as modificações dos artigos seguintes. 3 Há alguns manuais ou cartilhas destinados a curadores produzidos por entidades públicas, a exemplo da Cartilha de Orientação aos Curadores de Ministérios Públicos. Citamos, por exemplo, o manual de prestação de contas do MPMG. 4 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível aqui. Acesso em 7 de maio de 2024. 5 Sobre a Diretiva de Curatela, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado, agosto 2023 (Texto para Discussão nº 320). Acesso em: 11 ago. 2023. 6 Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial. 7 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da 8 1) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da vontade presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Acesso 18 jan. 2023. (2) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela de Pessoas Vulneráveis e as Diretivas de Curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023 (Texto para Discussão nº 316). Disponível aqui. Acesso 18 abr. 2023 9 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela de Pessoas Vulneráveis e as Diretivas de Curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023 (Texto para Discussão nº 316). Disponível aqui. Acesso 18 abr. 2023 10 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. Acesso 4 de dezembro 2018.
Resumo Este trabalho analisa o fenômeno da desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro, desde suas origens até os desenvolvimentos contemporâneos. Examina-se a base constitucional e legal que fundamenta este movimento, destacando as diferenças cruciais entre a desjudicialização para agentes dotados de fé pública (notários e registradores) e para entidades privadas desprovidas desta prerrogativa. O estudo aborda as implicações jurídicas desta distinção, principalmente quanto aos aspectos probatórios e à segurança jurídica, alertando para os riscos de procedimentos conduzidos por agentes sem fé pública e seus impactos no sistema judicial brasileiro. Conclui-se que a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela realizada dentro dos estritos parâmetros do art. 236 da CF/88, mantendo o controle efetivo do Poder Judiciário sobre os procedimentos desjudicializados. Sumário Introdução. Origens e evolução histórica da desjudicialização no Brasil. Base constitucional e legal 3.1. art. 236 da CF/88. 3.2. EC 45/04 e seu impacto. 3.3. Legislação infraconstitucional relevante. Categorias de desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro 4.1. Desjudicialização para notários e registradores. 4.2. Desjudicialização para pessoas jurídicas sem fé pública: uma inconstitucionalidade manifesta. Análise jurídica comparativa: questões probatórias e segurança jurídica 5.1. O regime jurídico dos atos dotados de fé pública. 5.2. Atos praticados por entidades sem fé pública: vulnerabilidades. 5.3. Impactos processuais e ônus da prova. Riscos e consequências da desjudicialização inconstitucional 6.1. Insegurança jurídica e vulnerabilidade intrínseca dos procedimentos. 6.2. Efeito paradoxal: aumento da judicialização a posteriori. 6.3. Impactos econômicos e sociais. Experiências concretas e casos paradigmáticos 7.1. Casos bem-sucedidos: desjudicialização para notários e registradores. 7.2. Casos problemáticos: desjudicialização para entidades sem legitimação constitucional. 7.3. O caso da lei 14.711/23: um potencial agravamento do problema. Conclusão. Referências. 1. Introdução A desjudicialização representa um fenômeno jurídico contemporâneo caracterizado pela transferência de determinados procedimentos, anteriormente de competência exclusiva do Poder Judiciário, para outras instâncias e agentes. Este movimento surge como resposta à crescente demanda por celeridade e eficiência na resolução de conflitos e na efetivação de direitos, em um contexto de sobrecarga do aparato jurisdicional brasileiro (RIBEIRO, 2013, p. 43). Conforme observa Pedroso (2002, p. 17), a desjudicialização constitui "um movimento de transferência de competências processuais e procedimentais dos tribunais para outras instâncias de natureza pública ou privada". Este fenômeno se insere em um contexto mais amplo de transformações do sistema de justiça, visando superar entraves estruturais que comprometem a efetividade da prestação jurisdicional. O presente trabalho visa analisar criticamente este movimento no ordenamento jurídico brasileiro, com especial atenção às suas bases normativas, evolução histórica e implicações jurídicas. Busca-se, particularmente, estabelecer uma distinção fundamental entre a desjudicialização realizada para agentes dotados de fé pública, notadamente notários e registradores, e aquela direcionada a entidades privadas desprovidas desta prerrogativa, examinando as consequências jurídicas desta diferenciação. A hipótese central que orienta esta investigação é a de que a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela que transfere procedimentos para agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle do Poder Judiciário, em conformidade com o modelo estabelecido pelo art. 236 da CF/88. Em contrapartida, a delegação de funções judiciais a entidades privadas sem estas características representaria uma violação ao sistema constitucional de segurança jurídica, com potenciais efeitos deletérios para a administração da justiça e para a garantia dos direitos dos cidadãos. 2. Origens e evolução histórica da desjudicialização no Brasil A desjudicialização no Brasil começou a ser implementada de forma mais estruturada a partir da década de 1990, intensificando-se nos anos 2000, como resposta a múltiplos fatores convergentes que evidenciavam a necessidade de reformulação do sistema de administração da justiça. Segundo Mancuso (2015, p. 27), este movimento teve como impulsionadores principais: "A crise de efetividade do sistema judicial brasileiro, marcada pela morosidade processual, alto custo operacional, formalismo excessivo e distanciamento da realidade social, criou o ambiente propício para a busca de alternativas à jurisdição estatal tradicional." Watanabe (2011, p. 5) complementa que a "cultura da sentença" predominante no Brasil, caracterizada pela excessiva judicialização de conflitos, contribuiu significativamente para a sobrecarga do aparato jurisdicional, tornando imperativa a adoção de mecanismos alternativos para a composição de litígios e para a realização de atos jurídicos. Cronologicamente, podem-se identificar marcos significativos deste processo, conforme detalhado por Rodrigues e Ferreira (2013, p. 112-134): Década de 1990: Primeiras iniciativas pontuais de desjudicialização, como o reconhecimento de paternidade extrajudicial (lei 8.560/1992) e os procedimentos extrajudiciais de alienação fiduciária (lei 9.514/1997); Anos 2000: Consolidação do movimento, especialmente após a EC 45/04, com destaque para a lei 11.441/07, que possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais pela via extrajudicial; Anos 2010 até o presente: Ampliação e aprofundamento das hipóteses de desjudicialização, com novos marcos normativos como o CPC/15 (lei 13.105/15), a lei de mediação (lei 13.140/15), a lei de regularização fundiária (lei 13.465/17) e, mais recentemente, a lei 14.711/23, que ampliou significativamente as hipóteses de busca e apreensão extrajudicial. Esse movimento progressivo de transferência de competências foi impulsionado por estudos e diagnósticos que apontavam para a insustentabilidade do modelo exclusivamente judicializado. Como observa Cappelletti (1988, p. 71), "o movimento de desjudicialização se insere no contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de procedimentos mais acessíveis, simples e racionais". É importante notar, entretanto, que esta evolução histórica não ocorreu de maneira uniforme ou sistemática. Ao contrário, como ressalta Brandelli (2016, p. 45), "a desjudicialização no Brasil caracteriza-se por um desenvolvimento fragmentado e nem sempre coerente, reflexo da ausência de uma política judiciária articulada e de uma compreensão clara dos limites constitucionais deste movimento". Esta observação é particularmente relevante quando se considera que, especialmente nas iniciativas mais recentes, tem-se verificado uma tendência de desjudicialização para além dos parâmetros constitucionais do art. 236, com a delegação de funções a entidades desprovidas de fé pública e não submetidas ao controle do Poder Judiciário, tendência essa que suscita os questionamentos críticos que este trabalho pretende aprofundar. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
Na primeira parte deste trabalho, detivemo-nos no retraço do desenvolvimento do instituto da indisponibilidade de bens desde os tempos da Ditadura Vargas, passando pelo Regime Militar de 19641, até chegarmos agora à criação da Central Eletrônica de Indisponibilidades de Bens aninhada no Portal do Extrajudicial pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo.2 No transcurso das iniciativas para a criação da plataforma da CNIB, despontaram estudos e discussões teóricas a respeito da criação de um repositório nacional que pudesse acolher e processar automaticamente as demandas originadas de autoridades judiciárias e administrativas. Pode-se cravar o ano de 2005 como o marco inicial das iniciativas concretas de discussões e estudos acerca da criação de uma central eletrônica compartilhada pelos cartórios brasileiros, no bojo dos trabalhos empreendidos entre o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e a Associação Brasileira de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), no que ficou conhecido como GT Irib/Abecip.3 GT Irib/Abecip - Registro Eletrônico de Imóveis O convênio de cooperação técnica e jurídica celebrado entre o IRIB e a ABECIP, firmado em 06/12/2002,4 deu origem a vários estudos empreendidos ao longo dos anos até que, no ano de 2005, iniciaram-se as discussões que visavam a criação do Registro de Imóveis Eletrônico, abarcando temas conexos como penhora online e central nacional eletrônica de indisponibilidade de bens. Denominada originariamente de CII - Central de Indisponibilidade do IRIB, a ideia seria objeto de cogitação no grupo de trabalho dedicado aos estudos de reforma da legislação registral, "de forma a dar maior segurança jurídica nos negócios imobiliários, com celeridade e diminuição dos custos envolvidos, bem assim definir um cronograma de trabalho com vistas ao aperfeiçoamento do registro imobiliário".5 Entre os objetivos perseguidos, destacavam-se a padronização dos contratos de crédito imobiliário, a criação do Registro Eletrônico e o enforcement da eficácia registral, com a "concentração de informações juridicamente relevantes na matrícula do imóvel" - ideia que mais tarde seria consagrada na Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. No curso dos estudos, cogitou-se, ainda, a "penhora imobiliária online e a criação de uma central de indisponibilidade de bens, com acesso às informações por meios eletrônicos".6 No dia 4 de março de 2005, seria apresentada aos diretores do IRIB uma "exposição pormenorizada" da "Central de Indisponibilidades do Irib (CII), para dar cumprimento ao disposto no arts. 185-A e 191-A" do CTN.7 Mais tarde, no dia 9 de março de 2005, na sede da ABECIP, seria apresentado o esboço do sistema de registro eletrônico em cujo contexto se achava o módulo de indisponibilidade de bens.8 Podemos identificar nessas ideias pioneiras o germe do que mais tarde viria a ser a CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Ao lado da penhora online, do ofício eletrônico, do banco de dados light e de tantas outras ideias que seriam concretizadas mais tarde pela ARISP - Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo, na gestão de Flauzilino Araújo dos Santos, a CNIB já era percebida e concebida como plataforma de serviço eletrônico compartilhado por todos os registradores imobiliários brasileiros. O milagre da multiplicação dos gravames O notável crescimento de demandas para alcançar bens e direitos nas execuções civis e trabalhistas por meio da indisponibilidade de bens fez surgir uma forte reação nos tribunais estaduais. O primeiro tribunal a expor claramente o problema, em sua correta perspectiva, foi o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A Corregedoria Geral daquele estado baixaria o Aviso 029/GACOR/02, por meio do qual estabelecia novas diretrizes sobre o processamento da indisponibilidade de bens e requisições de informações sobre titularidades jurídico-reais. A partir daquela data, a CGJMG não mais acolheria as demandas, triangulando-as com os oficiais de registro de imóveis e isto porque, "consoante o disposto na legislação pertinente, a competência para comunicar a decretação da indisponibilidade de bens aos registradores de imóveis e, consequentemente, para obrigar a sua averbação na matrícula do imóvel respectivo, indubitavelmente, é do Juiz de Direito titular da ação". E segue sugerindo que esse papel superpunha-se às atribuições legais de outros atores: "Outrossim, as comunicações sobre decretação da indisponibilidade de bens realizadas pela Corregedoria Geral de Justiça, através de publicação no Órgão Oficial, atendendo às solicitações das autoridades nomeadas, não têm o condão legal de impingir aos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado de Minas Gerais a incumbência de averbar essas declarações na matrícula do imóvel. Ademais, na prática, essas solicitações dificilmente encontram solução pois, na maioria dos casos, não há indicação do registrador de imóveis competente para o cumprimento da constrição, não existe a individuação dos bens que a indisponibilidade tenha atingido e nem os respectivos emolumentos devidos pela prática do ato".9 Os fundamentos e a razão de decidir eram corretos. A partir dessa decisão de Minas Gerais, progressivamente seriam redefinidas as atribuições das corregedorias estaduais na clivagem de ordens de indisponibilidade oriundas de fontes judiciárias e administrativas. Dois pontos da decisão mineira merecem destaque: (a) não compete à corregedoria acolher e intermediar ordens oriundas de outras fontes e (b) em face de ordens genéricas, não se define a autoridade registral competente para a prática de ato de averbação de indisponibilidade (art. 247 da LRP). A mesma orientação seria adotada por outros tribunais.10 Corregedoria Geral de Justiça de SP Vivíamos no período uma verdadeira avulsão de ordens de indisponibilidade de bens, originadas de várias fontes - judiciárias e administrativas. Havia atos normativos baixados pelas corregedorias de outros estados interrompendo a intermediação e a triangulação de ordens. Em São Paulo, instaurou-se o Protocolado 48.531/2003, que originou o parecer 108/2007-E, aprovado pelo Corregedor Geral de Justiça de São Paulo, Desembargador Gilberto Passos de Freitas.11 É da lavra do Sr. Corregedor: "Tendo em vista, porém, o número expressivo de expedientes oriundos de juízos e autoridades administrativas deste e de outros Estados da Federação, circunstância que vem comprometendo o adequado desempenho das atividades do Departamento incumbido do repasse das informações aos oficiais de registro de imóveis do Estado, determino a suspensão provisória das comunicações de indisponibilidades de imóveis por esta Corregedoria Geral da Justiça, até que se concretize a informatização do setor".12 Despontava a ideia de racionalização do sistema. Seria oficiado à Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, "visando às providências necessárias à informatização das comunicações de indisponibilidades" (...), em especial no sentido de obter o concurso da Secretaria de Tecnologia da Informação do Egrégio Tribunal de Justiça para a disponibilização de link no site do TJSP destinado a recepcionar referidas comunicações de indisponibilidades, garantidas a segurança do sistema e a observância de sigilo, quando este se fizer necessário".13 Originava-se, a partir desse impulso original, a ideia de criação do Portal do Extrajudicial. A fim de ganhar tempo para o desenvolvimento da plataforma alvitrada, foi baixado o Provimento CG 8/2007, com o seguinte teor: "Art. 1º: A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não mais recepcionará solicitações para comunicações a respeito de indisponibilidade de bens a oficiais registradores de imóveis oriundas de autoridades judiciárias e administrativas deste e de outros estados da Federação. Art. 2º: A suspensão das comunicações de indisponibilidade, determinada no art. 1º supra, perdurará até a informatização dos procedimentos necessários ao atendimento adequado das solicitações. Art. 3º: Enquanto perdurar a suspensão das comunicações de indisponibilidade estabelecida por intermédio deste provimento, as autoridades judiciárias e administrativas deverão informar diretamente aos oficiais registradores de imóveis do Estado de São Paulo as indisponibilidades decretadas, para a devida anotação nos registros imobiliários".14 O Provimento CG 8/2007 foi encaminhado às demais corregedorias estaduais, fazendo coro às disposições congêneres baixadas em atos normativos dos demais órgãos dos tribunais de justiça. Portal do extrajudicial e o hub da indisponibilidade A reformulação do sistema não tardaria. Já não era possível dar marcha à ré no acolhimento e processamento de tais demandas e retornar ao modelo de emissão de milhares de ofícios a cada corregedoria estadual que, por seu turno, os redistribuiria a cada serventia imobiliária dos estados da federação. Tampouco a CGJSP se exoneraria da responsabilidade de dar efetividade a ordens oriundas de milhares de processos judiciais e administrativos que se serviam progressivamente do poderosíssimo instrumento da indisponibilidade de bens. O passo seguinte foi o anúncio do Comunicado CG 1.029/2007, por meio do qual o corregedor geral da justiça convocaria "apenas os delegados ou responsáveis pelo expediente de todas as Unidades Notariais e Registrais da Comarca da Capital para a solenidade de apresentação e implantação, nesta Comarca, do Portal do Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça". A solenidade de fato ocorreu no dia 19 de outubro de 2007, sexta-feira, às 10 horas, no auditório do prédio situado na Avenida Paulista n° 750.15 Assim, em janeiro de 2008, todas as serventias imobiliárias bandeirantes já dispunham de um canal de comunicação online por intermédio do Portal do Extrajudicial. Criado o Portal do Extrajudicial, seria dado um novo passo rumo à criação de um hub de informações por meio do qual as comunicações de indisponibilidades seriam recebidas e redirecionadas automaticamente para os registradores imobiliários bandeirantes. Uma vez mais, é possível verificar como a criação de um sistema no formato de broadcasting model, consistente em um só ponto central e ativo de convergência e distribuição de informações para vários receptores passivos, levaria o modelo progressivamente ao colapso e à desnaturação do instituto da indisponibilidade de bens tal como o conhecíamos desde a Era Vargas. A centralização e operacionalização do Portal do Extrajudicial seria posta em funcionamento a partir do parecer aprovado em 10 de abril de 2008, originando o Provimento CG 16/2008.16 O ato normativo foi bastante conciso: Provimento CG 16/2008 (...) Artigo 1º: Fica revogado o Provimento CG nº 8/2007. Artigo 2º: As solicitações encaminhadas à Corregedoria Geral da Justiça para comunicações genéricas de indisponibilidade de bens imóveis a oficiais registradores de imóveis, oriundas de autoridades judiciárias e administrativas deste e de outros Estados da Federação, serão transmitidas aos destinatários pelo Portal do Extrajudicial. Artigo 3º: Este provimento entrará em vigor na data de sua publicação. São Paulo, 18 de abril de 2008. Ruy Pereira Camilo.17 No parecer, aprovado pelo Sr. Corregedor Geral, destacava-se a importância do "auxílio às autoridades judiciárias e administrativas para que decisões judiciais e prescrições legais sejam efetivadas e implementadas, naquilo que concerne à atividade dos registradores públicos". Várias eram as fontes originárias de ordens no bojo de processos de falência, de decisões de natureza cautelar, de ações de improbidade administrativa, de medidas cautelares fiscais, de liquidação extrajudicial ou de regime de direção fiscal de entidades de previdência e saúde, entre outras. A síntese do parecer é a seguinte: 1) Escaninho próprio. a) As comunicações de indisponibilidade serão inseridas em área de acesso restrito aos oficiais de registro de imóveis do Estado de São Paulo. b) Dados a serem reproduzidos no portal: (a) Identificação da autoridade que emitiu a ordem de indisponibilidade; (b) Fundamento da decretação da indisponibilidade; (c) Identificação da pessoa natural atingida (com RG, CPF, naturalidade, estado civil, data de nascimento, para evitar homônimos); (d) Identificação da pessoa jurídica atingida (com CNPJ); (e) especificação de que a indisponibilidade abrange bens imóveis indeterminados (todos do patrimônio da pessoa atingida, até valor especificado, se for o caso); (f) Indicação de segredo de justiça, quando adotado pela autoridade competente. 2) Processo de recebimento e análise: a) O mandado ou ofício recebido será autuado pelo departamento competente com número próprio de procedimento. b) Um juiz auxiliar da Corregedoria analisará a viabilidade da comunicação e determinará sua execução ou correção de falhas. 3) Lançamento e certificação no Portal do Extrajudicial: a) O Departamento da Corregedoria lançará as comunicações de forma célere no portal. b) O escrevente certificará data e hora do lançamento no procedimento respectivo. c) O portal registrará data e hora da inserção, com manutenção de arquivo de segurança. 4) Tratamento de segredo de justiça: a) Dados dispensáveis serão omitidos no portal, mas a identificação da autoridade, da pessoa atingida e dos bens sujeitos à restrição será mantida. b) A publicidade da averbação no registro público torna a restrição de conhecimento geral, dispensando sigilo excessivo. 5) Obrigações dos oficiais de registro de imóveis: a) Verificação diária obrigatória (início e fim do expediente) das comunicações no Portal do Extrajudicial. b) Buscas nos assentamentos para identificar imóveis dos atingidos. c) Impressão da comunicação, lançamento no Livro Protocolo, qualificação e averbação (se positiva). d) Anotação na comunicação da data de disponibilização no portal, com data e rubrica. 6) Arquivamento e segurança: a) Os oficiais poderão usar arquivos informatizados (digitalização ou sistema equivalente) para ordens materializadas. b) Opção entre arquivamento físico ou em mídia digital para atos do Livro de Registro de Indisponibilidade. 7) Levantamento de indisponibilidade: a) Seguirá os mesmos procedimentos de comunicação, qualificação e averbação. 8) Indisponibilidade de bem imóvel determinado: a) Encaminhada diretamente ao oficial de registro competente pela autoridade que a decretou, sem intervenção da Corregedoria (salvo exceções analisadas caso a caso). 9) Revisão e implantação: a) Os procedimentos poderão ser revistos e aprimorados com base na evolução dos sistemas e sugestões dos usuários. b) Prazo de 15 dias para que departamentos e oficiais de registro implantem o sistema proposto.18 Inadequação tecnológica - one size fits all? Entretanto, o modelo não se mostrou plenamente satisfatório, de molde a superar as imensas dificuldades de processamento das crescentes demandas oriundas de instâncias espraiadas por todo o país. Seja como for, estava criado o hub de indisponibilidade de bens no Estado de São Paulo, marco que pode ser considerado o primeiro passo concreto na criação de uma central de indisponibilidades no país. Entretanto, não tardaria e os oficiais logo seriam confrontados com centenas de ordens judiciais e extrajudiciais de indisponibilidade de bens que eram roteadas pelo Portal da Corregedoria. A racionalização do envio de dados por uma nova infovia não encontrava, nos destinatários, a mesma adequação operacional capaz de processá-los, à míngua de ferramentas tecnológicas capazes de assimilar a crescente onda de ordens e contraordens postadas em meios eletrônicos. O espartilho tecnológico, de modelo único, não servia a todos os pontos vinculados ao hub correcional do portal criado. Os cartórios não estavam aparelhados para receber demandas no formato broadcasting (modelo central de difusão), pois trabalhavam no ambiente de infraestrutura assíncrona, sem controle de recepção e acesso, sem logs, sem gestão do arquivo transitivo: imprimiam-se em papel as ordens eletrônicas oriundas do portal para tratamento tradicional (prenotação, exame etc.). A inadequação dos meios para tratamento da informação recebida era evidente. A criação do Portal do Extrajudicial inaugurou a infraestrutura que resolvia parte do problema, representado pelo refluxo das ordens dirigidas à plataforma de permeio (CGJSP). O referido portal abriria avenidas informacionais por onde passaram a correr as ordens instantâneas de indisponibilidade, acarretando o seu represamento nos destinatários finais. Os registradores ressentiam-se da falta de suporte tecnológico para acolher o inesperado crescimento de requisições digitais. Buscava-se enfrentar a profusão informacional com recursos humanos, sem o concurso de ferramentas tecnológicas aptas para processar e gerenciar tais demandas. A boutade de McLuhan - o meio é a mensagem - traduz o fenômeno proporcionado pelos meios eletrônicos no caso concreto: "Each form of transport not only carries, but translates and transforms, the sender, the receiver, and the message".19 A parte final do processo não resistiria à crescente avulsão de requisições - algo semelhante ao ocorrido nas demandas do Ofício Eletrônico, ainda em 2007.20 Os registradores aproveitariam a visita do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Roberto Antonio Vallim Bellocchi, à comarca de Monte Alto para apresentar o pleito de criação de uma "Central de Registro de Indisponibilidade" no Estado de São Paulo. O registrador Oswaldo Ney de Miranda encaminharia o Ofício 109/2009, de 15/06/2009, com o seguinte teor: "Pelo presente, e considerando a deliberação tomada em reunião realizada no dia 27 de junho p. p. [2009], em que estavam presentes diversos Oficiais Registradores da Região de Ribeirão Preto, tenho a honra de me dirigir a V. Exa. com o fim de solicitar os elevados estudos deste E. Tribunal e do departamento competente da Corregedoria Geral da Justiça, no sentido de se buscar a implantação de uma 'Central de Registro de Indisponibilidade', no Estado de São Paulo. "Esclareço que a sugestão tem por escopo a maior celeridade no cumprimento das medidas determinadas pelas autoridades competentes, judiciais e administrativas, visando assegurar direitos e obrigações, tornando o conhecimento por parte dos interessados bastante rápido e seguro acerca da existência de tais gravames sobre os bens envolvidos em transações imobiliárias".21 O advento do Provimento CG 16/2008 representou um embaraço inesperado para as serventias do interior paulista. Na reunião realizada no dia 12 de setembro de 2009, em Ribeirão Preto, os colegas ali congregados decidiriam oficiar à AnoregSP na busca de uma solução para a situação "que está se tornando um problema", como diriam eufemisticamente.22 Os registradores enviaram ofícios ao Presidente do Tribunal de Justiça que, por seu turno, determinou a formação de um dossiê que foi encaminhado à Corregedoria Geral de Justiça.23 Autuado, o presidente da ARISP, Flauzilino Araújo dos Santos, foi convidado a pronunciar-se, logo acolhendo a sugestão de seus pares do interior do Estado. A informação prestada expressava a realidade enfrentada pelos registradores: "Todavia, deve ser compreendido que, atualmente, para os serviços registrais de pequeno porte, ante o grande volume de comunicações, notadamente por decisões judiciais em execuções fiscais, a impressão dos comunicados publicados no Portal Extrajudicial e sua prenotação, inserção nos indicadores, registro, microfilmagem e digitalização final, representa uma enorme carga de serviços, com evidente peso nos orçamentos das serventias. Peço vênia para mencionar que apenas no presente exercício de 2009 já foram publicados 1.479 comunicados de indisponibilidades, envolvendo milhares de nomes, a maioria deles de pessoas que não são titulares de imóveis ou direitos reais que possam ser afetados, registrados nas serventias do Estado."24 Ordens inócuas - index vacuus Despontava, aqui, o fenômeno da proliferação de ordens inócuas que não repercutiam em direitos inscritos e que repousavam em latência nas bases de dados da plataforma, por longos anos, sem qualquer utilidade. Além disso, o presidente da ARISP constatava que o processamento das indisponibilidades representava - especialmente para as pequenas serventias do interior - carga de trabalho superior ao dedicado ao processamento de títulos apresentados a registro, concluindo, realisticamente, que é "de ser reconhecido que, para as serventias de pequeno porte, [o processamento] representa um gasto considerável nas despesas mensais".25 Para obviar os problemas identificados, a ARISP sugeriria a criação e a implantação de um "Sistema Web de Alta Disponibilidade" que pudesse funcionar, de forma segura e eficaz, como uma central interoperável, sistema que foi planejado e desenvolvido pela entidade.26 Entretanto, a proposta não foi acolhida pela Corregedoria Geral da Justiça pelos seguintes motivos: a) A criação de uma central de indisponibilidades implicaria profunda modificação na sistemática atualmente em vigor, com a supressão do Livro de Registro de Indisponibilidades e do Classificador relativo às comunicações de indisponibilidade. b) As comunicações de indisponibilidade constariam de um único cadastro eletrônico, mantido pela ARISP, exonerando-se as unidades de registro de imóveis das tarefas e dos custos relativos à prenotação, à inserção nos indicadores, ao registro e à microfilmagem ou digitalização final. c) A central poria fim à centralização das comunicações na Corregedoria Geral da Justiça, o que não se mostra compatível com as NSCGJSP, por levar à criação de modelo totalmente novo. d) Ao se concentrarem as comunicações de indisponibilidade na central, seria suprimida "a materialização e a anotação dos atos nos livros e registros próprios das serventias prediais, dificultando, consequentemente, a fiscalização e a verificação imediata, em cada uma das serventias, do recebimento dos informes oriundos de autoridades administrativas e judiciais". e) O novo sistema tenderia a retirar dessa Corregedoria Geral a centralização dos comunicados de indisponibilidade, com prejuízo à pronta adoção de providências destinadas a sanar eventuais vícios nos comunicados. À guisa de conclusão, diria o parecerista: "Disso tudo resulta, salvo melhor juízo de Vossa Excelência, a impossibilidade do acolhimento do requerimento apresentado pelos Senhores Oficiais Registradores das Comarcas antes referidas, dada a incompatibilidade da proposição formulada com as Normas de Serviço desta Corregedoria Geral da Justiça, o que não impede, evidentemente, a continuidade de estudos tendentes ao aperfeiçoamento do sistema de recebimento e repasse de comunicações de indisponibilidade de bens imóveis oriundas dos órgãos e autoridades competentes, inclusive com a devida consideração das necessidades e expectativas do conjunto dos Registradores Imobiliários do Estado de São Paulo."27 De fato, o modelo representaria (como de fato representou) a ruptura do modelo tradicional de roteamento de ordens judiciais destinadas a cada unidade de registro imobiliário do Estado. Estávamos às portas de um novo paradigma, representado pelo compartilhamento de recursos tecnológicos pelo oficiais registradores. Os livros tradicionais seriam substituídos pela plataformização dos registros, com repositórios sediados na nuvem e compartilhados por todos os oficiais do Brasil.28 Anteriormente, em 2008, havíamos identificado e apontado o fenômeno de reestruturação das serventias e dos livros tradicionais (media) em razão dos impactos das novas tecnologias de informação e comunicação. Estava em curso uma profunda transformação nos meios e isso acabaria por modificar o próprio sistema registral.29 Vésperas do Provimento CNJ 39/2014 Entrementes, no âmbito de inspeções promovidas pelo CNJ durante os anos de 2009-2010, verificou-se que havia serventias que nem sequer sabiam da existência da figura da indisponibilidade de bens, inexistindo quaisquer registros, cadastros, índices ou outras formas de inscrição para acolher e tornar eficazes as ordens de indisponibilidade emanadas da administração. Vale novamente o depoimento de Flauzilino Araújo dos Santos acerca da situação: "A ideia de se fazer uma central de indisponibilidade de bens decorreu de uma inspeção que o CNJ fez numa cidade chamada Curionópolis.30 Eu tive a honra de participar, no bojo de um projeto que era desenvolvido no Conselho Nacional de Justiça, coordenado pelo Dr. Marcelo Berthe, quando ele foi juiz auxiliar da presidência do CNJ, no âmbito no Fórum de Assuntos Fundiários, para modernização dos cartórios dos estados que compõem a Amazônia Legal.31 (...) Em uma inspeção na cidade de Curionópolis, nós descobrimos que um personagem muito conhecido, processado pela Justiça Criminal Federal de São Paulo, e que estava com os seus bens indisponíveis por decisão judicial, tinha, lá, nessa comarca, 12 fazendas, todas elas (...) livres e desembaraçadas de quaisquer ônus etc., etc., etc., sendo que na realidade ele estava com os bens indisponíveis... Então, surgiu naquela oportunidade a ideia de se firmar um convênio entre a ARISP e o Conselho Nacional de Justiça para desenvolver uma Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Nós desenvolvemos essa Central, o convênio foi firmado na seção solene do quinto aniversário do CNJ, em 2010 (...)"32. O convênio referido seria firmado em 14 de junho de 2010. As entidades representativas dos registradores e o CNJ comprometiam-se a cooperar tecnicamente, envidando esforços para criação da Central Nacional de Indisponibilidades de Bens, buscando "imprimir celeridade nas comunicações das indisponibilidades de bens imóveis decretadas pelo Poder Judiciário e por Autoridades Administrativas aos serviços extrajudiciais de notas e de registro de imóveis de todo o território nacional".33 A celebração do convênio com o CNJ foi o fruto do trabalho empreendido pelos registradores paulistanos Joélcio Escobar e Flauzilino Araújo dos Santos, com muitas sugestões, revelando aos magistrados o esboço da plataforma concebida no Estado de São Paulo. "O modelo proposto visa modernizar o trâmite das comunicações de indisponibilidades de bens imóveis, migrando do papel para o meio eletrônico. A Central Nacional de Indisponibilidade de Bens Imóveis seria um sistema que integraria as informações das indisponibilidades encaminhadas para as Corregedorias Gerais de Justiça dos estados e destas para os cartórios extrajudiciais de registro de imóveis. O sistema gerenciaria eletronicamente as indisponibilidades cadastradas pelas corregedorias estaduais, juízes de direito e autoridades administrativas competentes para decretar indisponibilidades. Comandos digitais seriam gerados e enviados de forma segura para os cartórios de registro de imóveis, com controles do trâmite desde o cadastramento até o retorno dos atos praticados pelos oficiais de registro."34 A central ainda tardaria um pouco mais. Veremos na parte IV deste opúsculo o trâmite dessa ideias no Conselho Nacional de Justiça. LSITEC - o registro de imóveis eletrônico De outra banda, no âmbito dos trabalhos empreendidos no bojo do convênio celebrado entre a União e a Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos - Lsitec, para especificação de modelo de Sistema de Registro Eletrônico para Cartórios de Registro de Imóveis35, o tema da indisponibilidade já havia sido antevisto e sua estruturação consagrada na documentação técnica. Na especificação do modelo, o módulo achava-se assim detalhado: 3.3.2 Base de indisponibilidade de bens. Para auxiliar no serviço de indisponibilidade de bens, o SAEC mantém uma base atualizada e consolidada sobre os pedidos de indisponibilidade de bens. Quando um pedido de indisponibilidade de bem (inclusão ou exclusão) é recebido pelo SAEC, a base de indisponibilidade de bens do SAEC é atualizada e o pedido é encaminhado aos cartórios possivelmente relacionados. A base de indisponibilidade é mantida atualizada e os oficiais podem consultá-la quando do exame de um registro. 3.3.3 Base de CPF. Para otimizar a distribuição de pedidos de indisponibilidade de bens aos cartórios, evitando que cada pedido seja encaminhado a todos os cartórios do Brasil, é fundamental a existência de uma base minimalista de CPF de detentores de direitos reais, passados ou atuais, e respectivo cartório. Dessa forma, os pedidos são encaminhados somente para alguns cartórios nos quais a pessoa teve ou tem algum direito real. Essa base de CPF pode ser utilizada, também, para otimizar o serviço de identificação de propriedade para atendimento a agentes de financiamento imobiliário.36 Destaque-se, de passagem, que já se previa a perquirição prévia acerca de existência de bens e direitos registrados em nome do atingido, o que seria feito a partir da consulta aos indicadores pessoais (CPF). Dessa forma, os pedidos seriam encaminhados, exclusiva e diretamente, para os cartórios nos quais a pessoa tivesse ou teria algum direito real inscrito. Lamentavelmente, o caudal de estudos empreendidos ao longo de uma década não serviu para a criticada reforma da plataforma com o advento da chamada CNIB 2.0. A ela voltaremos mais adiante. Vamos nos debruçar sobre os próximos lances da criação da CNIB na parte seguinte deste trabalho. Veremos como as sementes germinaram e acabaram lançando ramos em várias direções até que viessem os esperados frutos. __________ 1 JACOMINO, Sérgio. Indisponibilidade de bens no registro de imóveis - Parte I. São Paulo: Observatório do Registro, 18/10/2024, disponível aqui. 2 Op. cit. Parte II., loc. cit., disponível aqui. 3 Dossiê do GT/Abecip/Irib. Disponível aqui. 4 Boletim Eletrônico do IRIB 612, de 28/01/2003. O convênio foi datado de 06/12/2002, firmado por Sérgio Jacomino (IRIB) e Décio Tenerello (ABECIP). 5 Registro Eletrônico - parceria ABECIP/IRIB. Relatório ABECIP 009.2005, reunião 28/02/2005, 10h30, sede da ABECIP. Representando o IRIB, compareceram os registradores Sérgio Jacomino, Patrícia André de Camargo Ferraz e Enrique Rajoy Brey, além de Alexandre Assolini (diretor do IRIB), Juliana N. R. Lima (diretora) e Patrícia L. Simões (in memoriam, assessora de imprensa). Disponível aqui. 6 Idem, ibidem. 7 Ajuda-memória da reunião de diretoria do IRIB do dia 04/03/2005, presentes os registradores João Pedro Lamana Paiva, Ricardo Basto Coelho, Eduardo Agostinho Arruda Augusto, Fábio Marsiglio, George Takeda, Rosa Maria Veloso de Castro, Francisco José Rezende dos Santos, Patrícia de André Camargo Ferraz e Flauzilino Araújo dos Santos. Disponível aqui. 8 JACOMINO, Sérgio. GT Irib/Abecip - informática no registro. Abordagem preliminar - prospectando o terreno. No texto oferecido a discussões e debates, foi apresentada a visão geral do sistema - criação de base de dados da central, infraestrutura, acesso, atualização e baixa das inscrições, além da interação com sistemas de RI etc. Vide especialmente o item 3, no documento disponível aqui. O tema seria discutido na reunião seguinte do GT Abecip/Irib, realizada no dia 15/03/2015, na sede da Abecip. Cfr. Relatório ABECIP 020.2005, subscrito por Ana Alice Cardinali. Disponível aqui. 9 Aviso 029/GACOR/02, de 29/09/2002, DJ 02/10/2002, Des. Murilo José Pereira. Disponível em: http://kollsys.org/vkm. 10 Tocantins CGJTO, Ofício Circular 34/2003, de 1.10.2003; Alagoas, CGJAL - Ofício Circular GCG 35/2003, de 21/10/2003; Mato Grosso do Sul, CGJMS, Provimento 7/2004, de 27/07/2004; Maranhão, CGJMA, Provimento 17/2004, de 12/08/2004; Sergipe, CGJSE, Provimento 8/2004, de 12/08/2004; Roraima, CGJRR, Provimento 76/2004, de 24/08/2004; Goiás, CGJGO, Aviso 1/2004, de 10.9.2004; Santa Catarina, CGJSC, Provimento 10/2004, de 20/09/2004; Espírito Santo, CGJES Provimento 7/2004, de 06/10/2004; Acre, CGJAC, Provimento 6/2004, de 23/11/2004; Rondônia, CGJRO Provimento 26/2004, de 20/12/2004; Paraná, CGJPR, Provimento 65/2005, de 10/5/2005. Vide também a Ordem de Serviço 27/2014, de 11/06/2014; Distrito Federal, CGJDF, Provimento 3/2006, de 09/06/2006; Amapá, CGJAP, Provimento 135/2007, de 10/01/2007; Ceará, CJGCE, Portaria 18/2007, de 09/02/2007; Mato Grosso, CGJMT, Provimento 41/2007, de 20/08/2007; Pernambuco, CGJPE, Provimento 25/2008, de 27/08/2008; Pará, CGJPA, Provimento Conjunto 2/2010, de 16/03/2010; Amazonas, CGJAM, Provimento 186/2011, de 19/05/2011; Paraíba, CGJPB, Provimento 6/2001, de 28/07/2011. 11 Processo CG 48.531/2003, decisão de 10/04/2007, Dje 13/04/2007, Des. Gilberto Passos de Freitas. Disponível aqui. 12 Processo CG 48.531/2003, despacho, loc. cit. 13 A Presidência do TJSP informava que o sistema a ser desenvolvido e posto em funcionamento em projeto-piloto em agosto de 2007 "contemplava as funcionalidades necessárias à informatização das comunicações de indisponibilidades". Of. 515/2007-lse, extraído do Processo 60/1995  - DTI  - 6° volume. 14 Provimento CG 8/2007, de 10/04/2007, Dje 13/04/2007, Des. Gilberto Passos de Freitas, disponível aqui. 15 Comunicado CG 1.029/2007, publicado no DJE de 16/10/2007. Disponível aqui. 16 Processo CG 82/2003, decisão de 10/04/2008, Dje 23/04/2008, disponível aqui. 17 Provimento CG 16/2008, de 18/04/2008, Dje 23/04/2008, Des. Ruy Pereira Camilo, disponível aqui. 18 Processo CG 82/2003 cit. 19 McLUHAN, Marshall. Understandig media - the extensions of man, Cambridge: MIT, 1994. JACOMINO, Sérgio. Indisponibilidade de bens - a CNIB 2.0 e a eficácia do registro. São Paulo: Observatório do Registro, 27/01/2025, disponível aqui. 20 JACOMINO, Sérgio. Banco de dados light - ofício eletrônico - nascimento. São Paulo: Observatório do Registro, 30/04/2007, disponível aqui. Vide igualmente: JACOMINO. S. Sistema de Registro de Imóveis eletrônico. Os registros são materialmente o que os meios de suporte da informação pré-configuram. 2016, acesso aqui. 21 Ofício 109/2009, de 15/06/2009, subscrito pelo oficial Oswaldo Ney de Miranda e dirigido ao presidente do TJSP, Des. Roberto Antonio Vallim Bellocchi. Disponível aqui.  22 Ata da reunião dos Oficiais de Registro de Imóveis e Anexos da Região de Ribeirão Preto - SP, de 12/09/2009. Presentes à reunião, os registradores de Bebedouro, Cajuru, Descalvado, Ituverava, Jaboticabal, Monte Alto, Mogi Guaçu, Pitangueiras, Porto Ferreira, Santa Rosa do Viterbo e Tambaú. Arquivo pessoal. 23 Ao Ofício 109/2009, de 15/06/2009, já referido, seguir-se-iam os ofícios dos oficiais de Bebedouro, Descalvado, Jaboticabal, Nuporanga, Orlândia, Porto Ferreira, Quatá, Santa Adélia, São Joaquim da Barra, Tambaú, Taquaritinga. Disponível aqui. Os ofícios seriam autuados, originando o Processo CG 72.070/2009, Monte Alto. Disponível aqui. 24 Ofício 54/2009, de 30 de outubro de 2009, subscrito por Flauzilino Araújo dos Santos. Disponível aqui. 25 Idem, ibidem. 26 Central de Indisponibilidade - Sistema Web de Alta Disponibilidade, v. 1.0, 17/08/2009. O documento acha-se no Processo CNJ 339.314. Disponível aqui. 27 Processo CG 72.070/2009, Monte Alto, decisão de 13/01/2010, Dje 13/01/2010, Des. Munhoz Soares. Disponível aqui. 28 A expressão que se consagrou - serviços eletrônicos compartilhados - foi cunhada por Manuel Matos. MATOS. Manuel. CRSEC, Central Registral de Serviços Eletrônicos Compartilhados: o IRIB na era digital. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 332, 2007, pp. 114-117. Vide igualmente JACOMINO, Sérgio. Manuel Matos e a nova Sagres digital - a invenção do novo mundo dos meios eletrônicos. In: São Paulo: Observatório do Registro, 05/10/2014, acesso aqui. 29 V. JACOMINO, Registro de imóveis eletrônico - ANOREG-SP - jornadas institucionais - 2008. Vídeo aqui. 30 A visita a Curionópolis, Pará, deu-se no dia 08/12/2009 no bojo do programa de inspeção do CNJ. A comissão foi instituída pela Portaria 151/2009, de 06/07/2009, Dje 08/07/2009, baixada pelo Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Gilson Dipp. Disponível aqui. Entre os registradores achavam-se Flauzilino Araújo dos Santos, Sérgio Jacomino, os substitutos Eduardo Oliveira e Alfio Carilo Junior. 31 O Fórum de Assuntos Fundiários foi criado na gestão do Ministro Gilmar Mendes pela Resolução CNJ 110, de 06/04/2010. Fórum de Assuntos Fundiários, de caráter nacional e permanente, destinado ao monitoramento dos assuntos pertinentes a essa matéria e à resolução de conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas. Disponível aqui. A Resolução CNJ 110/2010 seria revogada pela Resolução 384/2021, de 26/03/2021, DJe 05/04/2021, Min. Luiz Fux. 32 SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Centrais eletrônicas compartilhadas e a "molecularização" do registro imobiliário. A experiência da ARISP. Palestra proferida no dia 10/10/2014 no Seminário Registros Públicos e Notas Eletrônicos da EPM - Escola Paulista da Magistratura. Transcrição taquigráfica da palestra, revisada. Arquivo pessoal.  33 Termo de Acordo de Cooperação Técnica 084/2010, de 14/06/2010, firmado entre o CNJ, ARISP e IRIB. Disponível aqui.   34 ESCOBAR, Joélcio. SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Central Nacional de Indisponibilidade de Bens Imóveis - ARISP. Documento assinado em 19/05/2009. Disponível aqui. 35 Processo Administrativo/CNJ Nº 342.891. Contrato firmado entre a União e a Associação LSITEC. 36 BERNAL, Volnys. UNGER, Adriana J. SREI - Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. Parte 1: Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITec, 20/05/2012. Disponível aqui. 
Resumo A separação de fato, instituto jurídico relevante no Direito de Família brasileiro, ganhou nova relevância com a EC 66/10 e a resolução 571/24 do CNJ, que agora permite a sua formalização por escritura pública. Este artigo analisa o conceito, os requisitos e os efeitos jurídicos da separação de fato, com enfoque nos aspectos patrimoniais e sucessórios, bem como nas implicações práticas da formalização extrajudicial. Destaca-se a segurança jurídica proporcionada pela nova regulamentação, ao mesmo tempo em que se apontam lacunas, como a ausência de normas claras sobre o registro e os efeitos retroativos, que ainda demandam regulamentação. 1. Introdução No Direito de Família brasileiro, a separação de fato é uma prática comum há muito tempo. Ela acontece quando os cônjuges decidem interromper a convivência sem dissolver oficialmente o casamento. Apesar de informal, essa decisão tem aspectos importantes, afetando a divisão de bens, a possibilidade de nas uniões estáveis e até questões de herança. Com a EC 66/10, que eliminou a obrigatoriedade da exigência da separação judicial antes do divórcio e, mais recentemente com a resolução 571/24 do CNJ, que permite formalizar a separação de fato em cartório, esse instituto ganhou novo fôlego. Hoje é uma opção reconhecida e que oferece segurança jurídica e praticidade. Neste artigo, vamos explorar o que é a escritura pública de declaração de separação de fato consensual, como ela funciona na prática, seus efeitos jurídicos e as mudanças trazidas pela nova regulamentação. Além disso, discutiremos os desafios que ainda precisam ser resolvidos, como o registro dessa formalização e seus efeitos no tempo. 2. Conceito e requisitos da separação de fato A separação de fato ocorre quando os cônjuges decidem interromper a convivência conjugal, sem necessidade de homologação judicial. O casamento continua existindo no papel, na prática, a relação como casal chega ao fim. Isso pode acontecer mesmo que os dois sigam morando juntos, desde que não haja mais comunhão de vida - ou seja, não compartilhem mais os aspectos de um casamento, como afetividade e rotina conjunta. Para a doutrina, dois elementos são essenciais: o objetivo, que é a cessação efetiva da convivência, e o subjetivo, que é a intenção clara de não retomar a relação, manifestada por ao menos um dos dois. Essa ruptura, apesar de simples, traz efeitos importantes, como na partilha de bens, na possibilidade de pensão alimentícia ou até na proteção contra a usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil), quando um dos cônjuges pode reivindicar o imóvel por abandono do outro. 3. A evolução histórica e normativa Até 2010, o divórcio no Brasil exigia um caminho mais longo. Era preciso passar pela separação judicial ou provar a separação de fato por pelo menos dois anos. A EC 66/10 mudou isso ao alterar o art. 226, §6º, da Constituição Federal, permitindo o divórcio direto, sem requisitos prévios. O STF, no julgamento do Tema 1.053 da Repercussão Geral, em 2020, foi além e declarou que a separação judicial não tem mais lugar no ordenamento jurídico, encerrando a controvérsia doutrinária. Assim, a separação de fato se tornou a única forma de interromper a convivência conjugal sem dissolver o casamento, agora com a possibilidade de formalização em cartório, o que reforça a segurança jurídica. 4. Motivações para a separação de fato Por que alguém escolheria a separação de fato em vez do divórcio? Os motivos são variados. Alguns casais evitam o divórcio por questões religiosas, outros enfrentam dificuldades práticas, como as demoras para avaliar e dividir os bens. Há também casos em que filhos menores complicam o processo, exigindo decisões judiciais sobre a guarda e pensão que podem levar tempo. Além disso, a separação de fato funciona como uma pausa para reflexão, permitindo ao casal decidir entre o divórcio definitivo ou uma reconciliação. Com a nova opção de formalizá-la em cartório, essa etapa ganha mais clareza e segurança jurídica. 5. A formalização extrajudicial pela Eesolução 571/24 A resolução 571/24, que atualizou a resolução 35/2007 do CNJ, abriu a porta para formalizar a separação de fato por escritura pública. Para isso, os dois cônjuges devem comparecer em cartório, acompanhados de um advogado. Vale enfatizar que todos os atos da resolução 35/2007 exigem a figura do advogado. Ademais, a resolução não permite que uma das partes, unilateralmente, compareça ao cartório para declarar a separação, nem mesmo se acompanhada de testemunhas. O ato deve conter, nos termos da resolução, o registro do término da convivência, sem a necessidade de descrever os motivos que levaram à separação. Vale informar que o referido instituto tem respaldo legal nos artigos 1º e 52-A e seguintes da referida resolução, os quais dispõem sobre os documentos necessários e os requisitos importantes a serem cumpridos pelas partes, pelo advogado e pelo tabelião. 6. Efeitos jurídicos da separação de fato Primeiro ponto significativo é que a separação de fato não altera o estado civil dos cônjuges, que permanecem formalmente casados. Porém, serve como parâmetro para pôr fim aos deveres conjugais, como fidelidade e coabitação, assim como estabelece um marco temporal para a divisão de bens. Ainda nesse sentido corrobora a decisão do Superior Tribunal de Justiça: "PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. UNIÃO ESTÁVEL. REQUISITOS LEGAIS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. UNIÃO ESTÁVEL RECONHECIDA MESMO NA CONDIÇÃO DE CASADO DO DE CUJUS. EXISTÊNCIA DE SEPARAÇÃO DE FATO. AFASTAMENTO DE CONCUBINATO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. (REsp 408.296/RJ, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/06/2009, DJe 24/06/2009). Verifica-se que a decisão enfatizada estabeleceu que a separação de fato coloca realmente fim ao dever de fidelidade, uma vez que o novo relacionamento do separado de fato configura união estável e não concubinato. Saliente-se que não é permitido na escritura pública de separação de fato tratar de questões como a definição de guarda, pensão ou visitação dos filhos, uma vez que são matérias exclusivas da esfera do Poder Judiciário. É possível no instrumento público de separação de fato tratar diversas questões relevantes, como quem exercerá a posse do único imóvel da família e o uso dos bens comuns. Isso é importante para evitar o embasamento de eventual pedido de usucapião familiar ou especial urbana por abandono de lar, nos termos do art. 1240-A do Código Civil, modalidade essa que permite cônjuge ou convivente abandonado adquirir, após o abandono voluntário, a propriedade integral do imóvel do casal em decorrência da posse prolonga, contínua e exclusiva do imóvel, pelo prazo de dois anos. Outro aspecto indispensável na escritura pública de separação de fato é o arrolamento dos bens do casal, visto que a data da separação será o marco da divisão patrimonial. Isto é, os bens adquiridos após a separação de fato irão compor um novo acervo, o dos bens particulares. A indispensabilidade dessa medida como requisito para a escritura de separação de fato tem como fundamento a preservação e segurança do patrimônio do casal e como consequência evitar futuras disputas patrimoniais. Como exemplo, a escritura pode evitar que uma das partes utilize recursos comuns do casal para adquirir bens particulares, com consequente prejuízo do outro. Nota-se que o referido arrolamento não substitui a partilha do casal ou dos conviventes que poderá ser efetuada tanto no divórcio como também em partilha posterior. Ainda não se utiliza esses bens arrolados para fins de cobrança do instrumento público. Apesar de separados de fato, nos casos de disposição patrimonial do acervo dos bens comuns, ambos devem comparecer no ato da alienação, não sendo possível que um deles compareça dispondo só da sua metade, sem realizar a prévia partilha dos bens. Pode surgir a situação em que um dos cônjuges, já separado de fato, deseja vender um bem que integra seu patrimônio particular. Nesse contexto, uma decisão recente do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo oferece um exemplo esclarecedor: "Direito de família - Escritura pública de venda e compra de bem imóvel particular -- Outorga uxória inexistente - Inscrição recusada - Dúvida em primeira instância julgada procedente - Apelo provido." (APELAÇÃO CÍVEL nº 1147774-71.2024.8.26.0100) Essa decisão revela que o Conselho Superior da Magistratura entendeu que a separação de fato elimina a necessidade de outorga uxória para a venda de um bem próprio de um dos cônjuges. No caso analisado, o registrador havia negado o registro da transação por falta da autorização do outro cônjuge, mesmo com a separação de fato em curso e um processo de divórcio litigioso em andamento. A exigência do registrador tinha como base o art. 1.647, inciso I, do Código Civil, que determina a anuência do cônjuge para a alienação de bens imóveis, exceto nos casos de regime de separação total de bens. O relator, em seu voto, reforçou essa interpretação ao citar a jurisprudência do STJ, que considera a separação de fato um marco para o fim do regime de bens, interrompendo a comunicação patrimonial entre os cônjuges. Com esse fundamento, o Conselho afastou a necessidade da outorga uxória e determinou o registro da escritura de venda do imóvel. O caso destaca, de forma clara, os efeitos práticos da separação de fato, especialmente no que diz respeito à autonomia para dispor de bens próprios. Vale ressaltar, porém, que esse registro, embora autorizado, não é definitivo. Ele pode ser questionado judicialmente e anulado, desde que isso seja pedido e reconhecido no prazo de dois anos após o fim oficial da sociedade conjugal, conforme prevê o art. 1.649 do Código Civil. Assim, mesmo com a liberdade para vender o bem, o cônjuge deve estar atento a possíveis contestações futuras, o que reforça a importância de agir com cautela nesse tipo de transação e a importância da formalização da separação de fato. Embora a separação de fato ponha fim aos deveres conjugais e ao regime de bens, é preciso ter cuidado ao considerar uma reconciliação, seja ela formalizada judicialmente ou em cartório. Se o casal decidir retomar a convivência, essa volta precisa ser oficializada para evitar confusões patrimoniais, especialmente se bens foram adquiridos durante o período em que estiveram separados. Nessa situação, será necessário definir claramente se esses bens, comprados na fase de separação, serão tratados como comuns ou particulares. Além disso, é importante destacar que, se a reconciliação ocorrer sem ser formalizada por escritura pública ou decisão judicial, esse retorno não será visto como uma simples continuação do casamento. Em vez disso, será considerado o início de uma nova relação, caracterizada como união estável, sujeita ao regime legal vigente - em geral, a comunhão parcial de bens, salvo disposição contrária. Seguindo essa lógica, a retomada da convivência sem formalização não restaura automaticamente o casamento nem o regime de bens anterior. Na prática, ela marca o começo de uma união estável, o que pode gerar implicações inesperadas para o patrimônio do casal. Outro aspecto sensível é a gestação durante a separação de fato. A resolução  571/24 do CNJ impede a formalização extrajudicial da separação se a mulher estiver grávida, provavelmente para proteger a presunção de paternidade prevista no art. 1.597 do Código Civil. Nessas circunstâncias, a questão muitas vezes escapa do alcance da via extrajudicial, deixando às partes como única opção recorrer ao Poder Judiciário para resolver eventuais disputas. 7. Registro e publicidade da separação de fato A formalização da separação de fato por escritura pública, introduzida pela resolução 571/24 do CNJ, traz um desafio prático importante: onde registrar esse ato para assegurar sua publicidade e eficácia perante terceiros? A resposta não é imediata, pois a lei 6.015/1973, que regula os registros públicos, não trata diretamente da separação de fato, exigindo uma interpretação cuidadosa das normas existentes. No registro civil, surge a dúvida sobre o livro adequado. O livro B, destinado aos registros de casamento, parece apropriado, já que, historicamente, a separação judicial era anotada ali. Essa anotação, conhecida como averbação, registra alterações no casamento sem mudar o estado civil - o que se alinha com a separação de fato. Já o divórcio, também averbado no livro B, dissolve o vínculo e altera o estado civil, distinguindo-se nesse ponto. Por outro lado, há quem defenda o uso do livro E, voltado para atos diversos. Nesse caso, a separação de fato seria registrada inicialmente no livro E, com uma anotação posterior no livro B para assegurar sua divulgação. Essa alternativa, porém, depende de diretrizes específicas que o CNJ ou as corregedorias estaduais ainda não estabeleceram. A lei 8.935/1994, que regula os serviços notariais, também é pertinente, embora não mencione a separação de fato. Ela autoriza os tabeliães a formalizar atos jurídicos, como a escritura de separação de fato, mas não esclarece como garantir sua publicidade. Para que a escritura tenha efeito perante terceiros, especialmente em questões patrimoniais, o registro adequado é essencial. Sem isso, credores ou compradores de imóveis, por exemplo, podem desconhecer o fim do regime de bens, gerando potenciais conflitos. Outra possibilidade é o registro da escritura no registro de imóveis. Embora a separação de fato não altere o estado civil, ela encerra o regime de bens, influenciando a aquisição de novos bens. Registrar o ato nesse cartório pode informar terceiros sobre essa mudança, evitando problemas em transações imobiliárias - como a venda de um imóvel sem a anuência do outro cônjuge, algo que a justiça, em alguns casos, já considerou dispensável. A ausência de regras claras cria incertezas. A legislação exige registro para atos que modificam o estado civil, mas a separação de fato não se enquadra nisso, o que pode levar a práticas inconsistentes entre cartórios. Em São Paulo, por exemplo, as normas locais dispuseram apensa sobre a escritura pública de separação de fato, repetindo as disposições da normativa do CNJ. No entanto, não abordaram as questões referentes ao ingresso no registro civil das pessoas naturais e no registro de imóveis. Quanto ao alcance temporal, a resolução 571/24 não trouxe expressamente se os efeitos podem ser retroativos. Porém, para preservar direitos de terceiros, a escritura não deverá retroagir, isto é, seus efeitos devem começam na data da assinatura. Isso impede que a separação de fato seja usada para modificar eventos passados ou escapar de obrigações. O STJ já decidiu que escolhas sobre regime de bens em uniões estáveis não têm efeito retroativo, um entendimento que pode ser aplicado por analogia aqui. Em síntese, o registro da separação de fato é fundamental para sua eficácia, mas a legislação ainda não oferece um procedimento definido. O livro B do registro civil aparece como a opção mais lógica, enquanto o registro de imóveis pode complementar a publicidade em questões patrimoniais. Até que normas específicas sejam criadas, os cartórios devem aplicar as regras vigentes com cautela, assegurando a segurança jurídica. 8. Conclusão A separação de fato evoluiu de uma prática informal para um instituto reconhecido e formalizável, graças à resolução 571/24 do CNJ. Ela oferece uma solução prática para quem quer encerrar a convivência sem o divórcio imediato, com proteção de bens e direitos. É um caminho que dá flexibilidade e segurança. Ainda assim, há questões abertas, como o ingresso no registro civil das pessoas naturais e registro de imóveis, e a possibilidade de efeitos retroativos. Mesmo com esses desafios, a separação de fato já se mostra um recurso valioso, o que traz simplicidade e proteção aos casais brasileiros A separação de fato não é apenas o fim de uma convivência, mas o início de um novo momento, onde a segurança jurídica é essencial para evitar litígios e proteger direitos. ________________ BARBOSA, Águida Arruda; PIMENTEL, Alexandre Freire; BRITO, Anne Lacerda de; VINCENZI, Brunela Vieira de; DAL'COL, Caio de Sá; et al. Família e sucessões. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 15. Fredie Didier Jr. (coord. geral); Fernanda Tartuce, Rodrigo Mazzei, Sérgio Barradas Carneiro (coords.). Salvador: JusPODIVM, 2016. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução nº 571, de 26 de agosto de 2024. Altera a Resolução CNJ nº 35/2007, que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual. Disponível aqui. Acesso em: 15 fev. 2025.  BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui. Acesso em: 15 fev. 2025. BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 15 fev. 2025. BRASIL. Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Art. 3º. Disponível aqui. Acesso em 15 fev. 2025. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1631112 - MT (2019/0359603-6), Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, data de julgamento 15/10/2019. Disponível aqui. Acesso em 15 fev. 2025. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 597.471 - RS. Relator: Ministro Humberto Martins, data do julgamento 09/12/2014. Disponível aqui. Acesso em 15 fev. 2025. CASSETARI, Christiano. Separação, Divórcio e Inventário por Escritura Pública: Teoria e Prática; 4ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Método, 2010. FARIAS, Cristiano Chaves de; OLIVEIRA, Euclides de; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot; TARTUCE, Fernanda; et al. Tratado de Direito das Famílias. Rodrigo da Cunha Pereira (coord.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2015. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Normas Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ/SP). Capítulo XVI, Item 105 e seguintes [n.p.]. Disponível aqui. Acesso em: 14 fev. 2025. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). APELAÇÃO CÍVEL nº 1147774-71.2024.8.26.0100. Disponível aqui. Acesso em: 14 fev. 2025 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
1. Introdução Quais são os atos que devem ser praticados à vista de uma sentença de adoção de criança, adolescente ou adulto? É em torno dessa indagação que gira o presente artigo. Para uma noção conceitual e histórica da adoção, recomendamos leitura de outro artigo nosso publicado na Coluna Civil em Pauta1. 2. Formalização da adoção: Sentença e atos no Registro Civil das Pessoas Naturais A adoção rompe o vínculo jurídico com a família anterior e faz nascer um vínculo com a família adotiva. Os aspectos registrais buscam retratar isso. Há dois desdobramentos formais do fato de a adoção acarreta a ruptura com a família anterior. De um lado, à vista da gravidade do ato, o legislador é rigoroso formalmente, exigindo um procedimento judicial próprio com uma sentença de adoção (art. 47, ECA2). De outro lado, do ponto de vista registral, o mandado judicial deverá ser endereçado ao Cartório de RCPN - Registro Civil das Pessoas Naturais competente, o que geralmente é feito pelo próprio juízo por ofício. Nesse caso, o registrador deverá praticar estes atos (art. 47, §§ 1º a 3º, ECA): a) O primeiro ato é o cancelamento do registro de nascimento anterior, o que se dá por meio de um ato de averbação (com uma redação como esta: Av. 1. Cancela-se o presente assento por força do mandado judicial procedente do juízo da Vara X do Tribunal X no bojo do processo X, mandado esse que fica arquivado nesta serventia). O RCPN competente obviamente é o do assento de nascimento. b) O segundo ato é a prática de um novo ato de registro de nascimento, com os novos pais adotivos. A prática registral demonstra que os cartórios costumam praticar um ato de anotação nesse novo assento vinculando-o à ordem judicial (com um texto como este: An. 1. O presente assento foi aberto por força do mandado judicial procedente do juízo da Vara X do Tribunal X no bojo do processo X, mandado esse que fica arquivado nesta serventia). O RCPN competente pode ser:b.1) o mesmo do primeiro ato ou;b.2) o RCPN de residência do adotante, desde que este tenha requerido ao juízo, que, em regra, tem de deferir o pedido (art. 47, § 3º, ECA). c) Após a prática desses dois atos, o Cartório costuma enviar um ofício respondendo ao juiz (ofício-resposta), informando os atos praticados, com a sua identificação. Esse ofício fica arquivado juntamente com o mandado judicial. No assento de nascimento anterior, alguns cartórios, a lápis, de modo extraoficial, para uso apenas interno, inserem a remissão ao novo ato de registro praticado para facilitar a remissão. Outros cartórios limitam-se a consultar o ofício-resposta enviado ao juiz para identificar o novo registro. Trata-se de técnicas de organização registral válidas. Entendemos, ainda, que não haveria obstáculo algum a que, nos assentos, fossem inseridas remissões recíprocas, a fim de facilitar a consulta sem a necessidade de consulta ao ofício-resposta ao juiz. Afinal de contas, o oficial, quando for expedir certidões, já não poderá consignar nela nenhuma informação que indique a origem da filiação. Para o legislador, o que importa é que o sigilo da origem da filiação seja respeitado. Salvo nos casos legais, essa informação tem de ficar "dentro do Cartório"; não pode sair às ruas, sob pena de expor a pessoa a discriminações (art. 47, § 4º, ECA). Como se vê, não haverá um registro (ou assento) de adoção tampouco haverá uma mera averbação da adoção no assento originário3, até porque isso geraria constrangimento ao filho adotivo e contraria a diretriz do ordenamento em evitar a publicização da origem da filiação. A ideia é que, do ponto de vista registral, surja um novo assento de nascimento. O mandado judicial deverá ser arquivado no Cartório a fim de permitir, sempre, eventual consulta. Mas, diante da natureza sigilosa da adoção, o Cartório não pode expedir certidão desse mandado aos interessados, salvo nos casos legais (art. 47, caput e § 4º, e art. 48, ECA). Há alguns detalhes registrais não mencionados textualmente no ECA a merecerem reflexão. É que o novo assento de nascimento terá de manter os dados relativos à data e ao local de nascimento bem como a indicação do número da DNV - Declaração de Nascido Vivo originária (art. 54, itens 1º e 10º, LRP4). Também, entendemos que se deve manter a naturalidade, mesmo no caso de naturalidade escolhida na forma do art. 54, § 4º, da LRP, bem como eventuais testemunhas do parto ocorrido sem assistência médica (art. 54, itens 9º e 11, LRP). A exceção corre à conta de haver determinação judicial em contrário. O sexo também mantido por não ter sofrido qualquer alteração (art. 54, item 2º, LRP). Os dados, porém, relativos aos pais e familiares originários não poderão constar (art. 54, itens 7º e 8º, LRP). O assento veiculará o nome dos pais e da família adotivos. Também constará - se for o caso - do assento o novo nome do filho adotivo, sem reprodução do seu anterior nome (art. 54, item 4º, LRP; art. 47, § 6º, ECA). Com isso, em nome da necessidade de evitar constrangimentos ao filho adotivo, o assento terá, na prática, uma informação levemente maquiada (quase uma "mentirinha"), insinuando que o vínculo de filiação existe desde o nascimento e que a mãe adotiva deu à luz o filho. Não se trata exatamente de uma mentira, até porque o próprio assento terá uma anotação indicativa da origem da filiação. É a certidão de nascimento que ficará com uma "mentirinha" por força de lei, pois não terá qualquer remissão à origem da filiação. Há outros dados cujo transporte para o novo assento são indevidos, como os relativos a eventual irmão gêmeo ou irmãos de mesmo prenome, porque o vínculo de parentesco com esses irmãos anteriores é rompido com a adoção (art. 54, itens 3º e 6º, LRP). 1 Disponível aqui. 2 Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90. 3 Foi, inclusive, por isso que a lei 12.010/09 (Nova Lei da Adoção) revogou o inciso III do art. 10 do Código Civil, que mencionava a adoção como averbável no registro civil das pessoas naturais, além de aludir a via extrajudicial para a adoção (o que não é admitido atualmente). 4 Lei de Registros Públicos, lei 6.015/73.
segunda-feira, 10 de março de 2025

Estamos aqui

Nos últimos meses, as conversas, presenciais e digitais têm sido dominadas por um assunto: o filme Ainda Estou Aqui. Em linhas gerais, o filme narra a história da família Paiva e os horrores enfrentados durante a ditadura. Eunice Paiva protagoniza a saga familiar em busca de respostas e justiça pela prisão e desaparecimento de seu marido, Marcelo Rubens Paiva, que foi sequestrado, preso, torturado e morto. O filme evidencia como a prisão e o "desaparecimento" - termo que coloco entre aspas por não se tratar de um desaparecimento propriamente dito - permeiam de maneira cruel a dinâmica dessa família ao longo dos anos. Um dos pontos altos do filme - e da própria trajetória da Eunice Paiva - é o momento em que a viúva recebe, quase 25 anos após a prisão do marido, a certidão de óbito. No registro do óbito, encontra-se o elemento simbólico: diante da ausência do corpo, é o registro no livro que concretiza o fim. O luto e sua vivência são questões trans-históricas, atravessam o tempo. Ainda na Grécia Antiga, no século V a.C., Sófocles narrava, em Antígona, a história de uma mulher que reivindicava o direito natural de enterrar seus mortos. Dois mil e quinhentos anos depois, como se o tempo não tivesse passado, Eunice Paiva e tantas outras mulheres continuam reivindicando do Estado o direito de velar e  sepultar seus mortos. Mais do que um direito hoje positivado, trata-se de uma marcação simbólica. Eunice, uma Antígona do mundo contemporâneo, exige justiça, insta que o Estado brasileiro reconheça a tortura, o sequestro e a ocultação de cadáver. Segundo a psicanalista Maria Homem, aquilo que permanece inimputável, sem julgamento, nunca pode ser elaborado. E o que não pode ser elaborado retorna como repetição, como pulsão de morte, culminando na ideia de que se pode confiar no poder da força e na idealização de um passado que seria... Aqui, permito-me um breve retorno ao direito positivado. A lei 9.140/95 reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas. Nos termos do art. 3º da referida norma, o cônjuge, companheiro(a), descendente, ascendente ou colateral até o quarto grau pode requerer ao oficial de registro civil de seu domicílio a lavratura do assento de óbito. Recentemente, em 2024, o CNJ publicou a resolução 601, que dispõe sobre o dever de reconhecer e retificar os assentos de óbito de todas as pessoas mortas e desaparecidas vítimas da ditadura militar. Conforme a resolução, as lavraturas e retificações dos assentos de óbito devem ser baseadas nas informações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na declaração da CEMDP - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e direcionadas aos cartórios de registro civil. Observe que, em ambas as normas, os pedidos são encaminhados para os ofícios de registro civil. Nesses casos, para além do múnus legal, o registro civil atua no campo simbólico. A certidão de óbito representa um corpo e escancara o luto que tantas famílias não puderam vivenciar no tempo oportuno. O registro do óbito é o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da violência imposta a essas pessoas e a suas famílias. Eis a marcação simbólica abre caminho para não repetição. Nós, registradores, representamos, com o fruto do nosso ofício, a concretização de direitos - inclusive o direito de enterrar os mortos. E que possamos nos lembrar diariamente da nossa principal atividade: concretizar os direitos fundamentais. Estamos aqui!
Resumo Este artigo analisa os principais riscos associados à implementação de Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs - Central Bank Digital Currency, no inglês), com ênfase no projeto Drex brasileiro. A pesquisa evidencia a necessidade de preservação e integração do sistema constitucional de registros públicos brasileiro com as novas tecnologias blockchain, em vez de sua substituição. São analisados riscos jurídicos, operacionais, tecnológicos e geopolíticos, com destaque para as ameaças emergentes da computação quântica. Conclui-se que um modelo híbrido de implementação, com a manutenção do sistema de registros públicos com base constitucional, a ele incorporando tecnologias blockchain como camada complementar, representa a alternativa mais segura para a modernização do sistema financeiro brasileiro, em padrões de segurança jurídica, segurança nacional e inclusão de todos os estratos sociais. 1 Introdução A crescente digitalização do sistema financeiro global tem impulsionado diversos bancos centrais a desenvolver suas próprias moedas digitais. No Brasil, o desenvolvimento do Real Digital (Drex) representa um passo significativo na modernização do sistema financeiro nacional, mas também suscita questões fundamentais sobre sua implementação, segurança e impactos. Este artigo busca analisar criticamente os riscos associados à implementação do Drex, especialmente no que tange à proposta de substituição do sistema de registros públicos existente por registros em blockchain geridos por empresas privadas. A análise parte da premissa constitucional de que o sistema brasileiro de registros públicos, previsto no art. 236 da Constituição Federal, constitui pilar fundamental do sistema de segurança jurídica nacional, e deve ser preservado e integrado às novas tecnologias, nunca descartado. Confira a íntegra da coluna.
Introdução Em brevíssima exposição, pretendo levantar algumas questões que me parecem substantivas para o Direito Registral, em especial sobre a impossibilidade deste caminhar ao largo da Teoria do Direito, da Filosofia, da Sociologia, e dos paradigmas apresentados e eventualmente já superados por estas áreas do conhecimento - como tenho feito neste ainda breve percurso acadêmico -, além de uma crítica para com a crise da simplificação. Comecemos por este último. Simplificação Vivemos tempos ansiosos e de imediatismo. Não houve, na história, tamanha perda da capacidade de compreender que certas coisas levam tempo. E o tempo, em maior ou menor grau, passa a ser ressignificado. Isso me remete à Mujica que, ao contrariar o brocardo de que "tempo é dinheiro", assevera que não compramos coisas com dinheiro e, isto sim, com o tempo que gastamos para conseguir o dinheiro. Assim, dinheiro é tempo. Tudo é tempo. Nesta linha de aceleração, com a advento e evolução das redes sociais e outros meios eletrônicos de informação, acentuados pelo período de distanciamento imposto pela pandemia da Covid-19, o ensino a distância (EAD) ganhou espaço e força. Este, ao mesmo tempo que democratiza e, em certa medida, capilariza o acesso ao estudo, traz consigo uma questão que Streck identifica como crise: a simplificação do Direito, como consequência da simplificação da própria linguagem. Surgem, então, os resumos dos resumos, os esquemas dos esquemas, os cursos  que supostamente simplificam e/ou descomplicam o Direito e que prometem retorno financeiro elevado e rápido. Em uma simples analogia, é provável que não nos operaríamos com um cirurgião formado no curso "Cirúrgica Cardíaca Simplicada". Há de se admitir que estudar demanda esforço sem atalhos. Embora não se trate de uma crítica direta aos incontáveis programas/cursos no Direito eventualmente denominados com o adjetivo citado - até porque é possível que, em alguns destes, refiram-se tão somente a uma nominata que chame a atenção para o produto vendido -, há um compromisso assumido, mesmo que velado, de que os tópicos abordados serão 'mastigados' aos adquirentes. Tal qual algo que se mastiga, após o ato de mastigar, de tão deformado o objeto em questão, já não é mais o mesmo; de modo semelhante, é o que ocorre com o fenômeno da simplificação. A percepção deixada é de não ser (mais) necessário estudar a sério para exercer uma profissão.1 Ainda que consigamos desembaraçar alguns conceitos para que atinjam um alcance compreensivo maior, não é correto reduzirmos as coisas, as ideias, as teses, sob pena de uma simplificação que, ao fim e ao cabo, resulte em uma metamorfose: uma teoria (ou um conceito), de tão abreviada que foi, deixou de ser. Interdisciplinaridade e fomento É neste contexto que surge a ideia que denomino dialógica registral, como o diálogo necessário do Direito Registral com outras disciplinas fundamentais, em uma direção diametralmente inversa ao predadorismo da simplificação e suas implacáveis consequências. Quanto ao diálogo, não me refiro a outras áreas do Direito, pois a prática registral está intimamente conectada, por sua própria natureza, com o Direito de Família, das Sucessões, Tributário, etc; refiro-me, isto sim, às matérias alheias ao Direito - no sentido de não serem derivadas do Direito - que participam da sua própria construção. Importa dizer, então, que além de pensarmos em, por exemplo, Filosofia do Direito, precisamos fazer Teoria, Filosofia, Sociologia, Psicanálise no Direito (Registral), desvelando e evidenciando o aspecto interdisciplinar que recai sobre o estudo do Registro de Imóveis, ou seja, um caráter preponderantemente pluralista. Temos, assim, a ideia de interdisciplinaridade registral. A questão posta já é enfrentada por notáveis juristas do meio registral que abordam temas da área a partir de paradigmas relevantes assentados na Teoria do Direito, Filosofia e Sociologia. Cito os seguintes: (i) Jéverson Luís Bottega, com a paradigmática Teoria Hermenêutica da Qualificação que dialoga com Lenio Streck (e a Crítica Hermenêutica do Direito), Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer; e (ii) Izaías Gomes Ferro Júnior e Márcia do Amaral2, com estudos sobre o Registro de Imóveis a partir do sociólogo Niklas Luhmann e sua teoria dos sistemas sociais. Estes são exemplos de estudos e teses que fogem de uma atuação costumeira da academia registral e que dão novo fôlego a um pensamento - crítico ou não - estrutural e estruturante do Registro de Imóveis enquanto instituição indispensável ao bom funcionamento da sociedade. Com o exposto, não parece adequado que a temática dogmático-procedimental, mesmo inquestionavelmente necessária, seja objeto majoritário de quase a totalidade dos trabalhos acadêmicos produzidos no círculo registral. É mais ou menos uma repetida (re)produção do que já-está-aí de cima para baixo, depois de baixo para cima e, por fim, da direita para a esquerda - ou vice-versa -, alcançando o mesmo resultado, uma vez que a ordem dos fatores não altera o produto. Não há, em maior ou menor grau, propostas minimamente críticas que procurem se afastar do senso comum teórico solidamente estabelecido. Em um caminho no mínimo vanguardista, destaco também uma relevante iniciativa do IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil na condição de fomentador da academia registral. Refiro-me ao "RDI em Debate", que se propõe a convocar autores de artigos científicos publicados na Revista de Direito Imobiliário3 para apresentarem seus trabalhos e discorrerem sobre suas pesquisas em uma live com os coordenadores da revista. Este programa está na sua quinta edição e, por suas acertadas virtudes, deve(rá) permanecer em execução por um longo período. O projeto é um excelente cânone gerador de ambientes de debate - finalidade substantiva da academia - e de produção acadêmica em si, que, ao fim e ao cabo, redunda no desenvolvimento do próprio Direito Registral e reflete diretamente na atuação dos registradores e na prestação do serviço aos usuários e sociedade como um todo. Outro exemplo que não poderia deixar de ser mencionado, em razão das tantas contribuições que fez e faz (e fará), é do registrador Sérgio Jacomino com o blog de sua autoria denominado "Observatório do Registro", onde publica valiosas crônicas e colunas sobre os mais variados assuntos em Direito Registral. Através de uma abordagem diferente, dissemina com precisão a história do Registro de Imóveis e efetua o resgate da memória de registradores que contribuíram sobremaneira para a formação e progressão dos registros. Considerações finais Assim, recomendo a qualquer estudioso do Registro de Imóveis e do Direito Notarial e Registral em sua plenitude que se debruce acerca das questões aqui levantadas e acompanhe os trabalhos desenvolvidos pelas pessoas mencionadas neste breve escrito. Por fim, fica o convite para contribuirmos em colunas como esta, em futuras edições da Revista de Direito Imobiliário e, quem sabe, em outros meios de produção acadêmica registral que surgirão (pois precisam despontar), buscando estabelecer um diálogo interdisciplinar profundo, isto é, pôr em evidência a dialógica registral como instrumento de desenvolvimento e compreensão da profundidade que esta seção do Direito necessita para ser adequadamente estudada. Somente com a participação ativa dos mais diversos atores do meio registral será possível estabelecer debates que contribuirão substantivamente para o amadurecimento de ideias e paradigmas em sede de Direito Registral. 1 Disponível no texto "Simplificação da linguagem, Fahrenheit 451 e Homem-Aranha". 2 Foi objeto da tese de doutorado da referida autora, culminando na publicação da obra "Segurança Jurídica Registral no Brasil" pelo IRIB Academia. 3 A RDI - Revista de Direito Imobiliário é a revista mais longeva e por muito o mais relevante meio de produção acadêmica registral em âmbito nacional.
Introdução Com o objetivo de dar amparo jurídico a uma realidade bastante presente na sociedade brasileira e admitida pela jurisprudência, o texto constitucional de 1988, em seu art. 226, § 3º, reconheceu a união estável como entidade familiar, assegurando-lhe especial proteção do Estado. Reconheceu ainda a possibilidade de sua conversão em casamento. A conversão da união estável em casamento, instituto no qual a celebração é dispensada, foi regulamentada pelo art. 8º da lei 9.278/961 e pelo art. 1.726 do Código Civil2. A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a lei 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual, mesmo antes da publicação da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, já existia a opção entre a via judicial e a extrajudicial. A lei 14.382/22 veio disciplinar a conversão extrajudicial da união estável em casamento, alterando a redação do art. 70-A e parágrafos da Lei de Registros Públicos - lei 6.015/73). A conversão deverá ser requerida pelos companheiros perante o oficial de registro civil de pessoas naturais de sua residência e, recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, devendo constar dos proclamas que se trata de conversão de união estável em casamento. Em caso de o requerimento de conversão ser feito por mandato, a procuração deverá ser pública, uma vez que a manifestação de vontade dos nubentes quanto ao casamento se dá nesse momento, e com prazo máximo de 30 (trinta) dias3. A lei 14.382/22 também esclarece que, se estiver em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização judicial, prescindindo o ato da celebração do matrimônio. Já que não há celebração, o registro do referido ato será lavrado no Livro B, sem algumas indicações que são obrigatórias nos demais registros de casamento, quais sejam a indicação da data e das testemunhas da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, devendo constar no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento. Antes da publicação da lei 14.382/22, na maioria dos Códigos de Normas do Extrajudicial dos Estados, a diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento era que, na forma extrajudicial, havia vedação do reconhecimento da data de início da união estável, o que somente podia ser feito no procedimento judicial.4 A norma de 2022 reconheceu que a conversão em casamento da união estável dependerá da superação dos mesmos impedimentos legais existentes para o casamento civil, sujeitando-se à adoção do regime patrimonial de bens, na forma dos preceitos da lei. De outra parte, foi introduzido o procedimento de certificação da união estável, realizado perante o Oficial de Registro Civil, com o qual se autoriza a constar no assento de casamento a data de início da união estável. É o dois em um: na conversão de união estável em casamento em que é apresentada a certificação da data de início, o casal terá reconhecida e publicizada a união estável, bem como será formalizado e publicizado o casamento. A lei 14.382/22 definiu, por fim, no § 7º do art. 70-A, que, se estiver em termos o pedido, o falecimento de um dos nubentes no curso do processo de habilitação não impedirá a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento. Esse singelo parágrafo tem uma enorme repercussão, cuja análise será objeto deste artigo. A conversão da união estável em casamento conforme Provimento 149/CNJ A regulamentação da lei 14.382/22 veio com o Provimento 141/CNJ, hoje compilado no novo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) - o Provimento 149/CNJ5. A norma da Corregedoria do CNJ estabelece a possibilidade da conversão da união estável em casamento mediante procedimento administrativo praticamente idêntico ao processo de habilitação para o casamento comum, dispensando apenas a celebração. Como já antecipado acima, até a publicação do Provimento 141/CNJ, a maioria dos Códigos de Normas das Corregedorias Estaduais previa, como diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento, a vedação ao reconhecimento da data de início da união estável pela via administrativa, o que somente podia ser feito em procedimento judicial. Era o que ocorria nos Códigos de Normas de Minas Gerais, do Espírito Santo, da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul, por exemplo. Essa restrição não tinha fundamento legal e tampouco estava em consonância com a tendência de desjudicialização. Uma exceção era o Código de Normas do Paraná, que estabelecia, no requerimento apresentado pelos conviventes, a possibilidade de indicação da data do início da união estável, devendo constar a referida data na certidão de casamento. Com o Provimento 141/CNJ, esse cenário modificou-se, tendo sido consolidada a normatização a partir do art. 549 do Provimento 149/CNJ, a saber: Art. 549. No assento de conversão de união estável em casamento, deverá constar os requisitos do art. 70 e art. 70-A, § 4.º, da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, além, se for o caso, destes dados: [...]III - a data de início da união estável, desde que observado o disposto neste Capítulo [...] Os parágrafos 4º e 5º de referido artigo, ademais, regraram, quando do registro do instrumento público declaratório ou de dissolução da união estável, o disposto no parágrafo 6º do art. 70-A da Lei de Registros Públicos: § 4.º O registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de um dos seguintes meios:I - decisão judicial, respeitado, inclusive, o disposto no § 2.º do art. 544 deste Código de Normas;II - procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil na forma deste Capítulo; ouIII - escrituras públicas ou termos declaratórios de reconhecimento ou de dissolução de união estável, desde que:a) a data de início ou, se for o caso, do fim da união estável corresponda à data da lavratura do instrumento; eb) os companheiros declarem expressamente esse fato no próprio instrumento ou em declaração escrita feita perante o oficial de registro civil das pessoas naturais quando do requerimento do registro.§ 5.º Fora das hipóteses do § 4.º deste artigo, o campo das datas de início ou, se for o caso, de fim da união estável no registro constará como "não informado". Note-se que, por ocasião do registro da união estável, somente será possível indicar data precedente se assim for determinado por ordem judicial ou se realizado o respectivo procedimento de certificação eletrônica. Nos demais casos, a data do início ou do fim da relação corresponderá à data da lavratura do respectivo instrumento público ou à data do requerimento do registro. A questão da data em que se considera que ocorreu o casamento quando da conversão da união estável em casamento A conversão administrativa da união estável em casamento é instituto jurídico que prestigia o ditame constitucional, de modo a facilitar, de modo célere e abreviado, o casamento dos conviventes. Surge, no entanto, um grave problema, qual seja: a falta de segurança jurídica no que tange à data que deve ser considerada como de realização do casamento. Nos casamentos civis, existe a celebração e não há dúvida acerca da data em que os nubentes manifestam, perante o juiz de paz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal. O juiz de paz os declara casados e é assim o que determina o art. 1.514 do Código Civil6. A data relevante é aquela da celebração, a partir da qual os nubentes passam ao estado civil de casados. Na conversão da união estável em casamento, por sua vez, não há celebração e não há lei disciplinando qual seria a data considerada para fins dos efeitos civis do casamento. Portanto, pode-se indagar: na conversão de união estável em casamento administrativa seriam os conviventes considerados casados a partir da data em que foi feito o requerimento de conversão ao Oficial de Registro ou da data em que lavrado o registro do casamento? A resposta a essa pergunta gera inúmeras repercussões. Examine-se um caso concreto em que os conviventes apresentam o requerimento de conversão ao Oficial, mas, antes expedida a certidão de habilitação ou mesmo antes do registro da conversão, um deles desiste do matrimônio. Estarão eles casados ou não? Se o entendimento for no sentido de que os efeitos da conversão retroagem à data do requerimento, sim, estarão casados. Já se o entendimento for no sentido contrário, somente serão considerados casados na data do registro de casamento. Outra situação: se os conviventes apresentam hoje o requerimento de habilitação e a lei vigente estabelece que o regime legal para aqueles que se casam sendo maiores de 70 (setenta) anos é o da separação de bens. Se a lei vier a ser alterada no curso da habilitação, passando o limite de idade a ser de 80 (oitenta) anos, qual será o regime aplicável? Analisando o disposto pelas leis 9.278/96 e 14.382/22, parece prevalecer o entendimento de que, manifestada a vontade dos nubentes quando iniciado o procedimento administrativo de conversão da união estável em casamento, e estando devidamente habilitados, devem ser eles considerados casados desde a data em que apresentaram o requerimento, gerando o registro efeitos retroativos. A lei 9.278/96 determina: Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. (sem grifos no original) Observe-se que essa lei exige o requerimento ao Oficial e nada mais. E é no requerimento, feito ao Oficial de Registro, que as partes capazes manifestam a sua livre e espontânea vontade de que a união estável seja convertida em casamento, apresentando duas testemunhas. Não há outra oportunidade para manifestação de vontade pelo casal, já que nesse procedimento não há celebração. Apresentado o requerimento por ambos os conviventes ao Oficial de Registro Civil, o requisito previsto em lei para a conversão já terá sido observado. A lei 14.382/2022, ademais, corrobora o acima defendido ao prever que, em caso falecimento de um nubente no curso da habilitação, não se obstará a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento (Art. 70-A, § 7º). Ora, por não haver celebração, o único momento em que o Oficial de Registro recebe a manifestação de vontade dos conviventes é na data do requerimento: depois dessa oportunidade, não há outro contato entre o Oficial ou seu preposto e os nubentes. Após a assinatura do requerimento, o processo de habilitação terá seu curso e, expedido o certificado de habilitação, em seguida será registrado o casamento. Portanto, o Oficial sequer terá conhecimento de falecimento ocorrido durante o processo de habilitação ou antes do registro. Importante ressaltar que o fato de ocorrer o falecimento após o requerimento é irrelevante, uma vez que a manifestação de vontade já foi feita pelos conviventes e os efeitos do casamento, desde que inexistentes os impedimentos matrimoniais, ocorrem a partir do requerimento. Situação muito semelhante, em que é admitido efeito retroativo, é o casamento religioso celebrado sem prévio processo de habilitação para casamento. O Código Civil7, nesse caso, retroage os efeitos à data da celebração religiosa, admitindo que, requerida pelo casal a habilitação posteriormente, a qualquer tempo, e não sendo encontrado impedimento, seja registrado o casamento civil. Para a conversão da união estável em casamento, no entanto, falta expressa regulamentação no sentido de que a data de realização do casamento, após o curso do processo de habilitação, é aquela em que houve o requerimento ao Oficial. Apesar de faltar essa norma expressa, parece-nos que deva prevalecer a interpretação ora apresentada. A data do registro da conversão em casamento será aquele em que realizado o respectivo ato no Livro competente. Por sua vez, a data da conversão em si deveria ser aquela em que firmado o requerimento dos nubentes com vistas a dar o início da habilitação para o casamento. Temos aqui, portanto, dois dados distintos que possuem repercussão jurídica distinta. Foi nesse sentido que a Corregedoria Geral de São Paulo, no processo CG 747/048, decidiu, com força normativa, a interpretação aqui defendida. No caso concreto, em virtude do falecimento de um dos nubentes antes do registro da conversão da união estável em casamento, foi considerada a data do requerimento como a data de realização do casamento. A ementa está abaixo reproduzida: REGISTRO CIVIL - Conversão da união estável em casamento - Requerimento regularmente subscrito por ambos os conviventes - Posterior falecimento do varão - Processo de habilitação concluído, com expedição do correspondente certificado - Desnecessidade de celebração e, consequentemente, de assinatura dos cônjuges no assento - Possibilidade de sua lavratura - Ato do Oficial - Pedido submetido, de resto, ao crivo do Juiz Corregedor Permanente - Inteligência do art. 226, § 3º, da Constituição da República e do art. 1.726 do Código Civil - Análise do item 91, com os subitens 91.1 a 91.5, do capítulo XVII das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça - Recurso provido - Força normativa, inclusive para que pleitos quejandos sejam sempre submetidos ao Juiz Corregedor Permanente, sem prejuízo do disposto naqueles subitens, enquanto não sobrevier ampla modificação das Normas de Serviço para adaptá-las à nova legislação. Do inteiro teor da referida decisão são reproduzidos os seguintes excertos, pela pertinência: Para correto enfoque do tema proposto, cumpre trazer à colação o texto que rege a matéria no plano constitucional e deve servir de norte à interpretação dos dispositivos ordinários que possam ser invocados. Cogita-se da orientação insculpida no parágrafo 3º do art. 226 da Magna Carta, segundo a qual, "para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". O emprego do vocábulo facilitar induz, por óbvio, no que diz respeito às normas concernentes à comentada conversão, ao entendimento menos oneroso para os conviventes, assim como tão consentâneo à singeleza procedimental quanto possível. [...] Não faz sentido exigir que os conviventes, transmudados em cônjuges, assinem o assento, uma vez que a legislação pertinente, tratando da conversão da união estável em matrimônio, exige um único e apropriado momento para a manifestação da vontade de ambos: o da apresentação do pedido formal nesse sentido. Desse teor o art. 8º da lei 9.278/96 e, agora, o art. 1.726 do Código Civil. Eis o que basta. Esta - e não outra - a correta interpretação que merecem as disposições legais e normativas e apreço, por harmoniosa em relação ao comando do parágrafo 3º do art. 226 da Constituição da República, segundo o qual, já se sabe, dita conversão será facilitada pelo ordenamento. [...] Aqui o alvo colimado é de constitucional limpidez: facilitar a transformação da união firme em casamento. Daí a exegese que se impõe, com o reconhecimento de que a formulação conjunta do pedido basta para espelhar a vontade, prescindindo-se de solenidade ou celebração e, ipso facto, de comparecimento dos interessados (assim como de testemunhas) para assinatura do assento. Firmará o registrador, tão-somente, ao lavrá-lo como ato de ofício. O próprio Código Civil, em hipótese semelhante, qual seja a do casamento religioso informalmente celebrado, prevê expressamente a possibilidade de enunciação do consentimento antes da habilitação, ao admitir que, realizada esta a qualquer tempo, registre-se tal matrimônio, com o reconhecimento de efeitos civis (art. 1.516). Voltando, porém, à hipótese concreta ora em análise, convém observar que em nada altera as conclusões expostas o perecimento do varão. Aperfeiçoada a manifestação de vontade pela manifestação do requerimento de fls. 8 (devidamente subscrito pelo falecido, que também assinou as declarações de fls. 10 e 11), já cumpridas as providências necessárias à habilitação, com expedição do correspondente certificado (fls. 15), e submetido o pedido ao Juiz (bem como, agora, a esta Corregedoria Geral, concluindo-se pela viabilidade), basta que o Oficial, independentemente de quaisquer solenidades ou formalidades adicionais, pratique o ato administrativo que exclusivamente lhe compete, lavrando e firmando o respectivo assento. Neste deverá, dada peculiaridade do caso, ser anotado o falecimento, nos termos dos arts. 106 e 107 da lei 6.015/73, observando-se reciprocidade em relação ao assento de óbito, para que lá passe a constar a conversão da união estável em matrimônio. (sem grifos no original) Tendo sido devidamente regulamentadas as regras sobre o falecimento de um dos nubentes, seja na esfera legislativa quanto normativa (art. 70, § 7º, da lei 6.015/73 e art. 552, Provimento CNJ 149/23), a questão que envolve a desistência ou renúncia à conversão parece seguir o mesmo regramento. Ou seja: a desistência de um dos nubentes não teria o condão de desfazer a manifestação de vontade, uma vez que, para fins dessa modalidade de casamento, ela já teria sido feita no momento do requerimento da habilitação. Se inexistir qualquer impedimento matrimonial, em fase de habilitação, as únicas hipóteses de desfazimento do negócio jurídico matrimonial seriam aquelas da nulidade (efeitos ex tunc), a anulação (efeitos ex nunc) ou o divórcio (efeitos ex nunc). Uma vez devidamente habilitados, com a expedição do respectivo certificado de habilitação, a conversão ao casamento ocorre de per si, isso porque os efeitos do casamento retroagem à data da manifestação de vontade das partes e não à data do registro. A desistência, portanto, somente será plausível se realizada antes de finalizada a habilitação seja porque o certificado ainda não foi expedido ou se verificada alguma causa impeditiva do casamento. Conclusão Logo, a Lei de Registros Públicos e o Código de Normas Nacional agora têm regra clara: se não for constatado impedimento no processo de habilitação, consideram-se casados os conviventes na data em que foi feito o requerimento ao Oficial. Mesmo que o art. 70-A, § 7º da LRP e o art. 552 da CNN tenham mencionado somente o caso que envolve o falecimento no curso do processo de habilitação, a regra segundo a qual a data do requerimento deve ser considerada como aquela em que o casamento se concretizou parece ser a melhor interpretação tanto por preservar a vontade das partes quanto por observar o que a lei 9.278/96 determinou. O entendimento apresentado neste artigo decorre da interpretação das normas vigentes, por não haver regra expressa. Se no caso concreto houver alguma questão que cause dúvidas, a decisão final quanto à data em que se considera realizado o casamento não caberá ao Oficial de Registro, mas sim ao Judiciário. Apesar da omissão legislativa, não há dúvidas sobre a importância da data do requerimento de conversão de união estável em casamento apresentado pelo casal, por isso sugere-se que o Oficial de Registro faça incluir, tanto no livro quanto na certidão respectiva, a data em que o requerimento foi apresentado. Tal procedimento em nada prejudica as partes e pode facilitar a análise da questão quando de eventual discussão judicial. Observa-se que a solução acima proposta é bastante razoável e garante a segurança jurídica. 1 O art. 8º da lei 9.278/96 assim determina: "Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio." 2 O art. 1.726 do Código Civil tem a seguinte redação: "Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil."  3 O prazo reduzido de vigência de 30 (trinta) dias para a procuração é uma inovação, cabendo ressaltar que os prazos para as procurações que envolvam poderes para celebração do casamento - civil e/ou religioso com efeitos civis - é de 90 (noventa) dias, conforme art. 1.542, § 3º, do Código Civil. 4 Em se tratando da conversão da união estável em casamento, pela via administrativa, os Códigos de Normas das Corregedorias Extrajudiciais, em regra, vedavam, salvo em caso de expressa previsão em ordem judicial, a inclusão no registro da data de início da união estável, comprometendo, assim, a prova da existência da união em período anterior à sua conversão em casamento. 5 CONSELHO Nacional de Justiça. Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), Provimento 149/CNJ. Disponível aqui. Acesso em: 24 set. 2024. 6 Código Civil: Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. 7 Código Civil: art. 1.516, § 2º. O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532. 8 Publicado no Diário Oficial do Poder Judiciário de São Paulo, Caderno 1, Parte I, em 24 de novembro de 2004.
Os sistemas jurídicos de Civil Law e Common Law diferem profundamente em sua estrutura e aplicação. Enquanto o Civil Law, predominante em países como Brasil, França e Alemanha, é baseado em códigos detalhados e na atuação preventiva de figuras como o notário, o Common Law, adotado em países como Estados Unidos e Inglaterra, prioriza a jurisprudência e a resolução de conflitos por meio de precedentes judiciais. Essa distinção tem reflexos diretos na maneira como litígios são evitados, geridos e resolvidos, especialmente na interação entre a atividade notarial preventiva e o processo civil. Principais diferenças entre esses sistemas jurídicos Como dito acima, o Common Law é baseado na jurisprudência, ou seja, em decisões judiciais que servem como precedentes para casos futuros. Por outro lado, o Civil Law fundamenta-se em códigos legais abrangentes e detalhados, que orientam a aplicação do Direito de maneira sistemática. Enquanto o Common Law valoriza a flexibilidade interpretativa e o papel do juiz na construção do Direito, o Civil Law privilegia a clareza normativa e a uniformidade das leis. Outra distinção marcante é o papel das provas e da oralidade no processo judicial. No Common Law, os processos são predominantemente orais, e as partes apresentam seus argumentos diretamente em juízo, sendo o julgamento frequentemente decidido com base em precedentes e em depoimentos. Já no Civil Law, a prova documental tem maior peso, e o processo é mais formal e escrito, com ênfase na análise detalhada dos atos e contratos prévios. Essa diferença reflete uma abordagem mais pragmática no Common Law, enquanto o Civil Law tende a ser mais técnico e estruturado. Essas características também influenciam a percepção de justiça em cada sistema. O Common Law prioriza a resolução rápida de litígios e a adaptabilidade a novas circunstâncias, mas pode gerar incertezas jurídicas em situações de interpretações variáveis e menor defesa do hipossuficiente. O Civil Law, por sua vez, busca oferecer maior segurança jurídica por meio da codificação detalhada, mas muitas vezes é criticado pela morosidade e pelo rigor excessivo. Ambas as abordagens têm vantagens e limitações, moldando-se às necessidades e culturas das sociedades que as adotam. Os sistemas Common Law e Civil Law são produtos das necessidades e culturas das sociedades onde se desenvolveram, refletindo valores e prioridades distintas. O Common Law nasceu em contextos que valorizavam a pragmatismo e a descentralização do poder. Sua base permite maior flexibilidade e adaptabilidade. Essa abordagem proporciona soluções rápidas e específicas, atendendo à necessidade de dinamismo e à preferência por soluções personalizadas para conflitos individuais, onde há maior predisposição à aceitação das decisões. Por outro lado, o Civil Law reflete uma cultura que privilegia a ordem, a segurança jurídica e a previsibilidade. Surgido em contextos de centralização política e jurídica, esse sistema responde à necessidade de estabilidade social e econômica por meio de códigos detalhados que padronizam a aplicação do direito. Em sociedades onde há maior valorização da formalidade e do papel do Estado como garantidor da justiça, o Civil Law oferece confiança na legalidade e proteção contra arbitrariedades, mesmo que isso implique um sistema mais lento e burocrático. Prepondera onde há maior necessidade de mecanismos de pacificação. Essas diferenças mostram como cada sistema jurídico é moldado pelas expectativas e pela história das sociedades que os adotam. Enquanto o Common Law privilegia a autonomia individual e a resolução pragmática de conflitos, o Civil Law reforça a coesão social e a uniformidade de tratamento jurídico. Ambos os sistemas evoluem para atender às demandas contemporâneas, mas sempre preservando os traços culturais que os tornam únicos em suas respectivas regiões. As características culturais predominantes entre os latinos e os cidadãos da Europa Continental, de maneira geral, não se alinham naturalmente ao sistema de Common Law. Traços culturais dos latinos, como a valorização da formalidade em certas interações, a preferência por normas claras e a expectativa de um papel ativo do Estado como garantidor de direitos, são mais compatíveis com o sistema de Civil Law. Os latinos tendem a buscar segurança jurídica e previsibilidade nas relações, o que pode entrar em conflito com a menor ênfase do Common Law em regras codificadas e sua dependência de decisões casuísticas. O casuísmo característico das decisões no sistema Common Law, baseado na aplicação de precedentes judiciais e na interpretação específica de cada caso, pode gerar inconformismo, especialmente quando as partes percebem disparidades entre decisões aparentemente semelhantes. A dependência de precedentes pode levar a resultados diferentes para situações parecidas, dependendo da interpretação do juiz ou da qualidade dos argumentos apresentados, criando uma sensação de imprevisibilidade ou até de injustiça. Além disso, a evolução contínua da jurisprudência, embora adaptável, pode ser vista como instável por aqueles que buscam segurança jurídica, reforçando um sentimento de insatisfação em contextos onde a consistência e a uniformidade são esperadas como pilares da justiça. Assim, enquanto os latinos podem se adaptar ao Common Law em situações que demandam flexibilidade e pragmatismo, o alinhamento completo com esse sistema pode exigir uma mudança significativa em valores e expectativas culturais profundamente enraizados. Características do processo civil no sistema common law e no civil law O processo civil nos sistemas Common Law e Civil Law apresentam diferenças marcantes, refletindo as filosofias jurídicas e culturais de cada modelo. No Common Law, o processo é caracterizado pela predominância da oralidade e pela centralidade dos precedentes. As partes apresentam seus argumentos de forma verbal em audiências, e o julgamento frequentemente depende da interpretação de decisões anteriores. Essa abordagem oferece flexibilidade e permite que o direito se adapte às particularidades de cada caso. O juiz atua como um árbitro, garantindo a imparcialidade do procedimento, enquanto as partes desempenham um papel ativo na apresentação de provas e argumentos. Em alguns contextos, como nos Estados Unidos, o júri desempenha uma função decisiva, trazendo um aspecto comunitário à resolução de disputas. Por outro lado, no Civil Law, o processo civil é estruturado em torno de normas codificadas e da formalidade escrita. A condução do processo é mais rigorosa e segue etapas bem definidas, com grande peso atribuído às provas documentais. Essa formalidade reflete o objetivo de garantir segurança jurídica e previsibilidade, valores centrais do sistema. O juiz desempenha um papel ativo na instrução do processo, determinando a produção de provas e buscando a verdade material. Diferentemente do Common Law, os precedentes possuem menor influência, já que a fundamentação das decisões é prioritariamente baseada em leis codificadas. Essa abordagem mais estruturada e técnica contribui para a uniformidade das decisões e a redução de conflitos posteriores. Enquanto o Common Law prioriza a flexibilidade e a adaptabilidade, o Civil Law valoriza a estabilidade e a clareza, demonstrando como cada sistema responde às necessidades e expectativas das sociedades em que está inserido. No sistema Civil Law, o processo civil é estruturado para oferecer às partes amplo espaço processual e diversas possibilidades de recurso, refletindo a prioridade desse modelo em assegurar a exaustão de todas as etapas e a percepção de justiça plena. A ênfase em procedimentos formais, prazos definidos e produção de provas robustas cria um ambiente que favorece a análise detalhada de cada aspecto do conflito. Esse rigor processual, embora frequentemente criticado por sua morosidade, é projetado para garantir que as partes tenham oportunidade total de apresentar seus argumentos e contestar decisões, reforçando a legitimidade do processo. Esse processo detalhado, embora demorado, atende à necessidade cultural de muitos países de Civil Law, especialmente os latinos, de proporcionar pacificação social por meio de um processo percebido como exaustivo e justo. Essa abordagem, embora mais custosa e burocrática, privilegia a segurança jurídica e a confiança na justiça. Vale reforçar que a morosidade processual não deve ser interpretada apenas como uma falha, mas como uma característica funcional. O amplo espaço processual cumpre um papel social ao oferecer às partes o tempo necessário para amadurecerem o conflito e assimilarem suas consequências. Esse processo mais longo gera o efeito psicológico da pacificação social, garantindo que as partes percebam que tiveram todas as oportunidades para expor seus argumentos e buscar uma solução justa. Em contraste, no Common Law, a resolução mais rápida, embora eficiente em termos práticos, pode não proporcionar a mesma sensação de justiça plena, especialmente em culturas onde a litigiosidade é vista como um último recurso. Nos países de Civil Law, o processo é frequentemente moldado pela ideia de que o tempo e a formalidade ajudam a estabilizar relações e a evitar ressentimentos, promovendo um senso de encerramento mais duradouro. Nesse contexto, a prevenção ganha evidente importância, máxime diante da tendência do sistema Common Law, como comprovado estatisticamente, de gerar maior judicialização em comparação com o Civil Law, especialmente em relação a disputas privadas. Essa maior judicialização decorre de características estruturais do Common Law, como a ausência de codificações abrangentes e a dependência de precedentes judiciais para resolver conflitos. Em muitos casos, questões que poderiam ser resolvidas preventivamente por meio de atos jurídicos formalizados, como ocorre no Civil Law, acabam sendo levadas ao tribunal no Common Law, pois é lá que os parâmetros para solução são estabelecidos e interpretados. Além disso, a cultura jurídica dos países de Common Law muitas vezes incentiva a resolução de disputas por meio de litígios, pois os tribunais têm um papel central na criação e adaptação do direito. Por outro lado, no Civil Law, a forte ênfase em normas codificadas e a presença de figuras preventivas, como os notários, reduzem significativamente a necessidade de judicialização, já que muitos conflitos são evitados por atos previamente validados e com força probatória robusta. Assim, enquanto o Common Law é mais litigioso por natureza, o Civil Law busca minimizar conflitos por meio de segurança jurídica e soluções extrajudiciais. A relação da atividade preventiva no processo civil do sistema civil law A relação entre a atividade preventiva e o processo civil no sistema Civil Law é intrinsecamente ligada à busca pela segurança jurídica e pela redução de litígios. O sistema Civil Law ao valorizar a codificação detalhada das normas e a formalidade nas relações jurídicas, permite que muitos conflitos sejam evitados por meio de atos preventivos, como os realizados pelos notários. Essa atividade preventiva tem como objetivo principal garantir que os atos jurídicos sejam constituídos de forma clara, legítima e equilibrada, minimizando a possibilidade de controvérsias futuras. Esse alinhamento entre a atividade preventiva e o processo civil reflete o compromisso do sistema Civil Law com a pacificação social e a previsibilidade das relações jurídicas. Ao transferir uma parcela significativa da solução de conflitos para o campo preventivo, o sistema reduz a carga sobre o Poder Judiciário e promove a confiança nas instituições jurídicas. Essa relação simbiótica fortalece o objetivo maior do Civil Law: criar um ambiente jurídico estável, onde os litígios sejam exceção, e não regra, e onde a justiça preventiva complemente a justiça processual. Em comparação, o sistema Common Law não tem, como característica central, a prevenção de litígios, ao contrário do sistema Civil Law, que valoriza a segurança jurídica por meio de atos prévios e normas codificadas. No Common Law, a resolução de conflitos tende a ocorrer de forma reativa, com a maior parte das disputas sendo tratada nos tribunais, onde os precedentes judiciais e a interpretação do juiz desempenham papéis fundamentais. A lógica desse sistema é menos voltada para evitar disputas e mais para fornecer soluções adaptadas e pragmáticas quando os conflitos surgem. Assim, enquanto o Common Law pode lidar bem com disputas já existentes, ele é menos focado na prevenção, confiando mais na capacidade das partes e do mercado para regular suas relações, em vez de se socorrer de estruturas jurídicas preventivas formalizadas. Vemos assim, que o sistema Civil Law possui duas pernas bem delimitadas, uma formada pelas estruturas de prevenção dos litígios, como a atividade notarial, e outra por um processo civil com amplo espaço probatório e de manifestação das partes, como forma de se atingir o conformismo necessário à pacificação social. O papel preventivo do notariado no Civil Law Dentro das estruturas de prevenção de litígios do sistema Civil Law, destaca-se a atividade notarial. Nos países de Civil Law, a atividade notarial é um pilar do sistema jurídico, com a função primordial de evitar conflitos antes que eles se materializem. O notário, como agente público imparcial, assegura que os atos jurídicos sejam elaborados de maneira conforme à legislação e ajustados às necessidades das partes, reduzindo significativamente o risco de litígios futuros. Em contraste, nos países de Common Law, não há a mesma ênfase na prevenção formal. Transações e documentos geralmente são preparados por advogados ou pelas próprias partes, sendo posteriormente validados em caso de disputa judicial. Essa abordagem, embora mais flexível, como já mencionado, frequentemente leva a uma maior judicialização, pois as ambiguidades só são resolvidas após o surgimento do conflito. No Civil Law, os atos notariais possuem força probante robusta, sendo considerados autênticos e exequíveis desde a sua confecção. Contratos e testamentos lavrados por notários, por exemplo, carregam presunção de veracidade e são menos propensos a questionamentos no âmbito judicial. Já no Common Law, a força probante de documentos depende de análise judicial, o que demanda mais esforço na fase processual. Impacto na segurança jurídica e na pacificação social A segurança jurídica é um pilar fundamental dos sistemas jurídicos, mas sua construção e manutenção variam significativamente entre os modelos de Civil Law e Common Law. No sistema Civil Law, a segurança jurídica é alcançada por meio da formalidade e da previsibilidade, sustentadas pela atividade preventiva de notários e pela estrutura rigorosa do processo civil. Em países latinos, onde há uma forte demanda por um sistema jurídico robusto e transparente, essa abordagem atende às expectativas culturais e sociais, promovendo estabilidade e confiança nas instituições legais. A formalização detalhada e a análise exaustiva das demandas garantem que as partes percebam o processo como justo, favorecendo a pacificação social. Já no sistema Common Law, a segurança jurídica é baseada na força dos precedentes judiciais, que fornecem previsibilidade, e na rapidez da resolução de conflitos. Essa agilidade responde bem a sociedades mais pragmáticas, mas pode não ser suficiente em contextos que exigem uma percepção mais abrangente de justiça. A ausência de uma estrutura preventiva robusta e o menor formalismo processual podem deixar lacunas na pacificação social, especialmente em situações em que as partes esperam um processo mais detalhado para validar a legitimidade das decisões Litigiosidade nos sistemas de Common Law e Civil Law: Uma análise comparativa A litigiosidade nos sistemas jurídicos é um tema central para compreender a dinâmica da justiça e os impactos sociais e econômicos do volume de processos judiciais em diferentes países. Os sistemas de common law e civil law, as principais tradições jurídicas no mundo, apresentam diferenças estruturais e culturais que influenciam diretamente o número de litígios por habitante. Em países que adotam o sistema de common law, como os Estados Unidos e o Reino Unido, o número de processos judiciais tende a ser significativamente maior. Essa característica decorre, em grande parte, do método adversarial, no qual as partes possuem ampla liberdade para apresentar provas e argumentos, enquanto o juiz assume um papel moderador. Essa abordagem faz do litígio a principal ferramenta para a resolução de conflitos, consolidando o processo judicial como um meio central para a interpretação e aplicação da lei. Além disso, a força vinculativa dos precedentes judiciais - decisões que servem como referência obrigatória para casos futuros - incentiva a judicialização de disputas, em busca de decisões inovadoras ou favoráveis. Por outro lado, os países de tradição civil law, como Alemanha, França e Brasil, apresentam uma abordagem distinta, focada na prevenção de litígios. Nesse sistema, as transações e contratos frequentemente exigem a intervenção de notários e outras autoridades para garantir a segurança jurídica. Esse formalismo preventivo reduz significativamente a ocorrência de conflitos posteriores, pois oferece maior clareza e precisão às partes envolvidas. Ademais, o papel mais ativo do juiz no civil law, que pode conduzir investigações e determinar provas, contribui para a celeridade e centralização do processo, desestimulando litígios desnecessários. Aliado a isso, a cultura de soluções extrajudiciais, como atos notariais e mediação, fortalece mecanismos alternativos para a resolução de conflitos, diminuindo a pressão sobre o Judiciário. As consequências dessas diferenças estruturais vão além do volume de litígios. Nos países de common law, o alto número de processos pode levar à sobrecarga judicial e a custos elevados, tanto para o Estado quanto para os cidadãos. Em contrapartida, os sistemas de civil law priorizam a eficiência e a previsibilidade, mitigando os impactos econômicos e sociais do litígio por meio de mecanismos preventivos. Embora cada sistema jurídico tenha suas vantagens e desafios, o civil law se destaca por sua capacidade de prevenir conflitos e promover soluções pacíficas. Ao formalizar preventivamente as relações e incentivar o uso de meios extrajudiciais, este modelo oferece um sistema mais acessível e funcional. Já o common law, apesar de sua litigiosidade elevada, proporciona flexibilidade e inovação jurídica, evidenciando a relevância dos precedentes na evolução das normas. Em síntese, a comparação entre common law e civil law evidencia como diferentes tradições jurídicas refletem valores culturais e econômicos distintos. A escolha entre litigação e prevenção, entre flexibilidade e formalismo, molda os sistemas de justiça e influencia diretamente a vida dos cidadãos e a estrutura das sociedades. O impacto do enfraquecimento das estruturas de prevenção no Brasil Com a tendência atual de enfraquecimento da atividade de prevenção, observa-se um aumento expressivo na litigiosidade, gerando impactos significativos tanto no Poder Judiciário quanto na sociedade. A atividade notarial, que há muito funciona como uma barreira preventiva contra conflitos judiciais, vem sendo gradualmente desvalorizada, o que já leva muitas questões, antes resolvidas extrajudicialmente, a serem levadas aos tribunais. Esse movimento resulta em um crescimento contínuo no número de processos, aumentando a pressão sobre o sistema judiciário. Essa elevação na demanda processual agrava a já crítica sobrecarga do Judiciário brasileiro, que enfrenta desafios estruturais de morosidade e excesso de litígios. Sem documentos dotados de fé pública e força probante robusta, os processos tornam-se mais complexos, exigindo maior produção de provas e prolongando o tempo de tramitação. Como consequência, a celeridade processual diminui, prejudicando a eficiência do sistema e gerando crescente insatisfação entre os cidadãos, que já percebem, ainda que na maioria das vezes injustamente, a justiça como lenta e inacessível em muitos casos. Para a sociedade, os reflexos dessa tendência são igualmente preocupantes. A ausência de mecanismos preventivos encarece as disputas, tanto em termos financeiros quanto emocionais, enquanto cidadãos e empresas enfrentam maior incerteza jurídica e longos períodos de instabilidade. Esse ambiente desestimula acordos consensuais e prejudica o clima de negócios, reduzindo investimentos e corroendo a confiança no sistema jurídico. Além disso, o aumento de conflitos judiciais sem resolução ágil compromete a pacificação social, exacerbando tensões entre as partes envolvidas e minando a percepção de justiça. Adicionalmente, a retirada dessas estruturas poderia minar a pacificação social, uma vez que a ausência de mecanismos preventivos deixaria as partes mais vulneráveis a conflitos e disputas prolongadas, ampliando ressentimentos e desconfianças. Nunca é demais repetir que atividade notarial no Brasil desempenha um papel essencial na prevenção de litígios, oferecendo segurança jurídica e eficácia aos atos jurídicos por meio de documentos revestidos de fé pública. A diminuição de sua atuação implica em uma redução significativa na confiabilidade dos contratos e transações. Em resumo, o enfraquecimento da atividade notarial no Brasil produz, além de desvirtuar a lógica preventiva e formalista desses sistemas, efeitos em cascata, comprometendo não apenas a eficiência do sistema processual, mas também a segurança jurídica e a coesão social. A prevenção desempenha um papel indispensável em países de Civil Law, especialmente em contextos latinos, onde há uma forte dependência de estruturas formais para garantir a estabilidade das relações jurídicas. Sem esses mecanismos, o sistema enfrentaria um desequilíbrio estrutural, com consequências potencialmente graves para a sociedade e a economia. Conclusão: A importância de preservar as bases do sistema Civil Law ou o caos que se avizinha se a tendência de enfraquecimento dos mecanismos de prevenção perdurar O equilíbrio e a eficácia do sistema Civil Law dependem de suas duas bases fundamentais: os mecanismos de prevenção, como a atividade notarial, e um processo civil com amplo espaço para as partes. Esses pilares complementares garantem a segurança jurídica e a pacificação social, prevenindo conflitos antes que se materializem e oferecendo um espaço processual robusto para a resolução daqueles que inevitavelmente surgem. Os mecanismos preventivos desempenham um papel essencial ao formalizar relações jurídicas com clareza e autenticidade, reduzindo a judicialização e promovendo estabilidade nas relações sociais e comerciais. Por outro lado, o processo civil com amplo espaço assegura que, nos casos em que o conflito se torna inevitável, as partes tenham a oportunidade de apresentar plenamente seus argumentos e de buscar soluções exaustivas, reforçando a percepção de justiça. A retirada ou enfraquecimento de qualquer um desses pilares compromete a funcionalidade do sistema, resultando em aumento da litigiosidade, sobrecarga do Judiciário e instabilidade social. Assim, preservar a harmonia entre prevenção e processo não é apenas uma necessidade técnica, mas também um compromisso com a estabilidade e a confiança no sistema jurídico, assegurando que ele continue a atender às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e exigente.
A indisponibilidade de bens na era digital: Uma análise crítica do provimento CNJ 188/24 e seus impactos no registro de imóveis. O presente artigo analisa o Provimento CNJ 188/24, que reformou a plataforma da CNIB 2.0. Aborda a hipertrofia da ferramenta e o recrudescimento das indisponibilidades de bens em função direta da plataformização do registro público, com foco nos efeitos jurídicos da prenotação e na problemática do § 3º do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, que impede o registro de títulos prenotados em caso de superveniência de ordem de indisponibilidade. Argumenta-se que a norma em questão, ao fulminar o direito vestibular de prenotação, afronta o direito de propriedade e seus atributos, criando anomalias no sistema civil, registral e processual. Defende-se a necessidade de revisão do dispositivo, com vistas a garantir a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos cidadãos. Palavras-chave: Indisponibilidade de bens, CNIB 2.0, Provimento CNJ 188/24.  Introdução O Provimento CNJ 188 de 4/12/24 reformou a plataforma da Central Nacional de Indisponibilidade de bens (CNIB 2.0), ajustando e aperfeiçoando o sistema com vista a torná-lo mais eficiente e racional. O instituto jurídico da indisponibilidade de bens nasceu com objetivos claros e muito específicos - combate à dissipação patrimonial decorrente de improbidade administrativa, intervenção em instituições financeiras, combate à lavagem de dinheiro e financiamento de terrorismo internacional, confisco de bens por tráfico de drogas e outras atividades excepcionais e de grande repercussão social.1 Note-se a preponderância de um interesse geral em todas essas iniciativas legislativas em contraste com a explosão de ordens oriundas de processos ordinários de execuções trabalhistas e civis. O sistema criado em 2014 (Provimento CNJ 39/14) vem de substituir progressivamente as figuras tradicionais do processo civil brasileiro, como a penhora, arresto e sequestro em execuções civis e trabalhistas. No caso das execuções trabalhistas, ainda que se possa argumentar, com base na Teoria do Diálogo das Fontes,  que a decretação de indisponibilidades no processo trabalhista encontra seu fundamento no art. 185-A do CTN, não se deve esquecer que no caso dos créditos privilegiados se exige o preenchimento de pré-requisitos para a deflagração da indisponibilidade: a) haver devedor tributário; b) ocorrer citação; c) faltar nomeação de bens à penhora; e d) ser impossível localizar bens passíveis de constrição, o que não ocorre ordinariamente nas ordens oriundas tanto do foro trabalhista como do cível.2 De fato, nos termos do art. 889 da CLT, os preceitos da Lei de Executivos Fiscais (lei 6.830/80) aplicam-se à execução trabalhista de forma subsidiária desde que não contrariem o processo da Justiça do Trabalho. Sabemos que os instrumentos processuais para garantia da execução trabalhista pressupõem a citação do executado. Não pagando, nem garantindo a execução, "seguir-se-á penhora dos bens, tantos quantos bastem ao pagamento da importância da condenação", nos termos do art. 883 da mesma CLT. Baseados em dados fidedignos, do total de quase 2 milhões de inscrições feitas na plataforma, só a Justiça do Trabalho é responsável por cerca de 63.48% do total das ordens postadas na plataforma. Acrescente-se: uma profusão delas versa sobre execuções por valores irrisórios e desproporcionais, em afronta ao art. 8º do CPC, afetando e imobilizando o patrimônio de devedores reconhecidamente solventes.3 Além disso, tais ordens teratológicas geram um custoso processo de averbações em milhares de imóveis de propriedade das instituições financeiras, para logo seguir-se a ordem de cancelamento, em regra sem qualquer fundamento jurídico. Plataformização do Registro Público O fato é que não compreendemos perfeitamente o fenômeno do impacto que os meios eletrônicos têm nas transações econômicas, jurídicas e sociais. Num recorte exemplificativo, pensemos que a CNIB transportou para a nova plataforma "mais de 200 milhões de atos já cadastrados na central original"4 - o que nos dá a exata noção de magnitude da base de dados cuja gestão é humanamente impossível de se realizar sem o concurso das máquinas. A criação dessa importante infovia desencadeou a irrupção de problemas inesperados - como a hipertrofia da ferramenta, fenômeno que exsurge de modo claro para o observador atento. O estudo da magnificação de eventos sugere que ela se dá em função direta da plataformização do registro público, o que acaba por transformar substancialmente o ecossistema registral e notarial, ocasionando fenômenos originais e não previstos. Pode-se cogitar de uma distorção que guarda certa semelhança com o Paradoxo de Jevons5: à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência da plataforma, maior é geração de demandas que tendem a se diversificar e a acolher hipóteses análogas de constrição - one size fits all. Isto ocorre porque a maior eficiência da infovia tende a reduzir o custo de utilização do serviço, estimulando o crescimento da demanda. Ou seja, a facilidade de acesso, aliada à eficiência dos recursos tecnológicos, terá acarretado a aceleração inesperada (e quiçá ilegal) de novas modalidades de constrições, substituindo, como se viu, os instrumentos tradicionais de gravames judiciais. O fenômeno levou à explosão de indisponibilidades de bens, desfigurando a função original, estimulando a opacidade nos negócios jurídicos e gerando maiores e mais significativos custos transacionais. Há uma década tivemos ocasião de alertar: "Enfim, que diabos de indisponibilidade é essa que acaba por inibir a própria aquisição? É evidente que, decretada que seja uma indisponibilidade de bens, tal circunstância jazerá em estado de latência nos escaninhos labirínticos do sistema, ativando-se com o registro da aquisição. (...). Calharia um estudo para se apurar em que medida o uso desse instrumento é contraproducente. Nem me refiro, aqui, à indisponibilidade de bens decretada no bojo de ações de improbidade administrativa, intervenção em instituições financeiras, combate ao terrorismo; falo da vulgarização do instrumento nos processos de execução fiscal e trabalhista. (...) Como se vê, o grande drama dos gravames ocultos, que inspirou os legisladores no Século XIX a criarem o Registro Hipotecário, continua presente e embaraçando o livre intercâmbio de bens, onerando o sistema com crescentes custos transacionais. É o chamado "Custo Brasil".6 O meio é a mensagem Estamos, possivelmente, diante de um fenômeno disruptivo percebido por Marshall McLuhan: os meios eletrônicos não apenas conduzem, mas traduzem e transformam o transmissor, o receptor e a mensagem, como na sua famosa formulação - the medium is the message.7 O ecossistema da CNIB que não será tão-somente um envoltório passivo e neutro, mas uma alavanca disruptiva, processo ativo e dinâmico tendente a reconformar o próprio registro e o processo executivo pátrios. O problema não é novo e já em 2015 propúnhamos que previamente à inscrição na plataforma, a autoridade deveria ser "conduzida a um processo preliminar de consulta acerca da existência de bens ou de direitos inscritos cujos titulares poderiam ser atingidos pelo gravame. O processo é simples e não envolve qualquer custo para a sua formulação e gestão. Não se faria a inscrição na CNIB sem antes certificar-se que inexiste bens e direitos em nome das pessoas atingidas". Na mesma ocasião propugnávamos a reforma do sistema, com os argumentos abaixo expendidos.8 Os efeitos jurídicos da prenotação Um dos inesperados efeitos surgidos no desenvolvimento da plataforma encontram-se no Provimento CN-CNJ 188, de 4/12/24, que introduziu os arts. 320 e seguintes no CNN-CN-CNJ.Extra. O dispositivo que nos toca referir é o seguinte: Art. 320-I. Os oficiais de registro de imóveis deverão consultar, diariamente, a CNIB e prenotar as ordens de indisponibilidade específicas relativas aos imóveis matriculados em suas serventias, bem como devem lançar as indisponibilidades sobre o patrimônio indistinto na base de dados utilizada para o controle da tramitação de títulos representativos de direitos contraditórios. (...) § 3º A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário. A prenotação é ato próprio de registro (art. 182 e ss. - Do Processo de Registro). A prioridade registral, que nasce da prenotação, é um direito de eficácia material cujos efeitos retroagem à data da inscrição do título no Livro 1 - Protocolo. É indiscutivelmente um direito material, consoante o disposto no art. 1.246 do Código Civil, in verbis: Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo. É certo que o lançamento do título no Livro Protocolo proporciona o controle do transcurso posicional do título na esteira do processo de registro, graduando os acidentes representados por eventuais títulos concorrentes. A eficácia da prenotação, nesta perspectiva, é demarcatória de um direito posicional, de caráter formal. Todavia, o aspecto que deve merecer a nossa melhor consideração reside no aspecto material que decorre da eficácia jurídica que nasce diretamente da prenotação. Diz Pontes de Miranda: "No art. 534 diz o Código Civil [atual art. 1.246], como regra, portanto, de direito privado (material): 'A transcrição datar-se-á do dia em que se apresentar o título ao oficial de registo, e esse o prenotar no protocolo'".9 Até a prenotação do título e a ulterior consumação do ato de registro, a situação jurídica do alienante ainda é de dono do imóvel, sujeito às dívidas cobráveis. O adquirente, antes do registro, "não pode dispor do imóvel, nem constituir sobre ele direitos reais, nem lhe cabem as ações de domínio, inclusive a de reivindicação. A sua situação é como a do comprador de bens móveis antes da tradição. Nada lhe é dado contra as ações reais e as constrições (penhoras, arrestos, sequestros), que partam de terceiros ou do próprio alienante". Todavia, segue o Tratadista: "Desde a data em que a promove e obtém a protocolização, o bem imóvel é seu. O negócio jurídico do acordo investe-o de tal poder. Todavia, a eficácia mesma da transcrição [registro] é desde a data da protocolização, mas depende do bom êxito do pedido-exigência. Se houve protocolização e se não procedeu à transcrição, ou porque se retirou a provocação (pedido-exigência), ou porque foi denegada, a eficácia é nenhuma; se foi feita a transcrição, a eficácia é desde a data em que se protocolizou o pedido".10 O próprio Pontes de Miranda aludiria aos efeitos da decretação de falência ou insolvência do alienante no intervalo periclitante que calha entre a prenotação do título e o seu registro que "retroage, nesse caso, à data da prenotação". O tratadista referia-se ao art. 535 do CC/16, sem correlato no atual, muito embora a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, preveja no inc. VII do art. 129 o seguinte: Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: (...) VII - os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior. A mesma regra se colhe do art. 215 da LRP, disposição que é tributária do direito registral brasileiro.11 A ressalva da lei releva os efeitos materiais da inscrição primigênia (prenotação), in verbis: Art. 215 São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente.   A regra é tradicional e prestigiada pela nossa melhor doutrina. Serpa Lopes sustenta que ocorrendo a prenotação, chave do registo imobiliário12, o "ato da transcrição ou inscrição, uma vez realizado, remonta, em seus efeitos, à data da prenotação".13 Em outra passagem, registra: "Se a inscrição ou a transcrição representa o ato principal, a sua eficácia está até certo ponto dependente da prenotação no protocolo, pois a prioridade do registo funda-se na data de sua feitura. Exerce função precípua quanto a uma das finalidades do registo, consistente, inegavelmente, não só na de constituição de direitos ou de requisitos de sua disponibilidade e de sua publicidade, como a de ser o fundamento da prioridade dos direitos que lhe estão afetos. A posição dos direitos inscritos ou transcritos em relação a um imóvel, susceptíveis de entrarem em conflito entre si, fica necessariamente fixada pela ordem das prenotações, no protocolo, solução que se impõe, como bem refere René Morel, por se harmonizar com um bom sistema de publicidade imobiliária e que, além disso, aparece como uma consequência do princípio do nascimento do direito real a partir da data de sua inscrição. Daí a razão do art. 202 [atual art. 186 da LRP] preceituar que o número de ordem determina a prioridade do título, e esta, a preferência dos direitos reais".14 Afrânio de Carvalho segue na mesma senda: a "data da inscrição é, em regra, a data da apresentação do título, vale dizer, da sua prenotação do protocolo", e segue: "Quando o título passa para o livro de inscrição, por se mostrar apto a adquirir a posição registral, leva consigo a data da sua prenotação no protocolo. A data da inscrição, porém, será ordinariamente mais avançada do que a do protocolo. Não obstante, a numeração que lhe tiver sido dada nessa data assegurar-lhe-á a prioridade em relação a outro sobre o qual tiver precedência na cronologia da entrada. Só o título que, em confronto com outro, tiver essa prioridade é que deve ser transportado do protocolo para o livro de inscrição, ficando o outro retido na prenotação, como num verdadeiro limbo".15 Jurisprudência Pode-se dizer que é igualmente clássica a lição prestigiada pelos tribunais brasileiros, consubstanciada na parêmia tempus regit actum. Ainda que o título tenha sido formalizado antes da decretação da indisponibilidade, o registro interdita-se em razão da prévia averbação da constrição. A contrario, tendo sido prenotado o título, a disposição voluntária será válida e eficaz, embora a decretação da indisponibilidade lhe suceda in itinere. É o que se decidiu na Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100: "ao menos sob o ponto de vista dos princípios registrais, os requisitos de validade e eficácia do título são observados ao tempo da prenotação (art. 1.246 do Código Civil)".16 De fato, os requisitos de validade e eficácia do título são observados ao tempo da prenotação e assim, "em face do princípio da prioridade, gerado pela prenotação, os títulos contraditórios, preponderam sobre o título prenotado posteriormente (art. 186 da Lei 6.015/73)".17 Noutra passagem, o mesmo CSMSP aponta: "se o art. 1.246, do Código Civil, dispõe que o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao Oficial de Registro, e este o prenotar no protocolo, fica claro que a marcha até a inscrição é um verdadeiro processo, no qual, protocolado o título, compete ao registrador, em observância ao disposto na Lei de Registros Públicos, fazer seu exame, qualificação e devolução, com exigências ou registro, no justo prazo".18 As Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo consagram o mesmo princípio no item 108.3, Capítulo XX: "108.3. Quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade. Contudo, os títulos que forem posteriormente protocolados terão suas prenotações suspensas como previsto no item 108".19 No STJ, o tema da graduação dos direitos já foi objeto de apreciação no caso de duplicidade de arrematações sobre o mesmo bem imóvel, firmando a corte a tese de que deve prevalecer a data da primeira prenotação nos termos do art. 186 da LRP, "tendo em vista que, nos termos do art. 1.246 do CC/02, a aquisição do imóvel, embora perfectibilizada com o respectivo registro (7.7.2009), retroage à data de sua prenotação (25.6.2009)".20 Igualmente no REsp 1.339.876/PR: "A data da transcrição é a mesma da prenotação (arts. 182, 183 e 186 da Lei 6.015/73). Esta define a prioridade dos direitos que lhe são afetos. Seus efeitos só cessarão se o interessado deixar de atender as exigências legais no prazo de trinta dias (art. 205 da Lei 6.015/73)".21 A determinação postada na plataforma da CNIB, ao fulminar o direito vestibular, acaba por atingir reflexamente os efeitos materiais da inscrição, afrontando o direito de propriedade e malferindo um de seus principais atributos que é o da disponibilidade. Ao final e ao cabo, interrompendo-se o curso natural do processo de registro no decêndio (art. 188 da LRP), sem qualquer culpa ou responsabilidade do adquirente - presumidamente de boa-fé -, tal fato nos conduz à necessidade de decisão judicial específica, apreciando o caso concreto e atacando, fundamentadamente, o ato de inscrição. O direito de propriedade, na latência suspensiva da eficácia da prenotação, no caso da norma do CNJ, acaba por jazer numa espécie de limbo jurídico. Nem mesmo se pode cancelar a prenotação, pois este ato constitutivo negativo levaria à aniquilação dos efeitos jurídicos da prioridade sem o devido processo legal e, ipso facto, a obliteração da preferência dos direitos reais. Por fim, calha uma pequena observação - decalcada do artigo de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. O CNN-CN-CNJ-Extra permite a lavratura de escrituras, mas impede o registro - não só destas, mas também daquelas lavradas e prenotadas antecedentemente no registro. Pergunta-nos o autor citado: "Qual a lógica, tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título totalmente hígido".22 Ressalvado o título prenotado anteriormente à constrição, tanto a lavratura da escritura quanto o registro sucessivo podem representar mera ineficácia em face da execução, e não nulidade de pleno direito. Valeria, em todo o caso, sopesar o menor impacto que a constrição representaria aos interessados. Conclusões O sistema eletrônico transformou-se em ferramenta draconiana na medida em que os vários meios postos à disposição do credor para promover a execução e a satisfação de seus créditos, a indisponibilidade de bens, entre todos eles, é o modo mais gravoso para o devedor, subvertendo a ordem e os princípios tradicionalmente consagrados na lei processual civil (art. 805 do CPC). Por essa razão, toda ordem genérica deve ser utilizada de modo prudente e consentâneo com os princípios da boa-fé, preservando e garantindo o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Em suma, prenotado o título e sem que o interessado deixe escoar o prazo decadencial da prenotação (no caso de não atendimento a exigências do Cartório por omissão ou desinteresse - art. 205 da LRP), o registro há de se efetivar, perfectibilizando-se no iter legal e consagrando o direito. Proposta de alteração Seria possível aperfeiçoar o sistema trocando simplesmente a ordem do referido § 3º: § 3º A superveniência de ordem de indisponibilidade não impede o registro de títulos anteriormente prenotados, salvo ordem judicial expressa em sentido contrário. § 4º No caso de prevalência da ordem de indisponibilidade, nos termos do § 3º, o registro será consumado no prazo legal, porém será ineficaz em relação ao processo do qual se originou a constrição. Seja como for, a regra estampada no § 3º do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, in fine, deve ser revista. Ela cria uma inesperada anomalia no sistema civil, registral e processual brasileiro e a consequente fragilização dos direitos e garantias de direitos fundamentais. __________ 1 Para um excurso retrospectivo, v. JACOMINO, Sérgio. Indisponibilidade de bens no Registro de Imóveis - Partes I e II. São Paulo: Observatório do Registro, 2024. Disponível: Parte I: https://wp.me/p6rdw-3bs; Parte II: https://wp.me/p6rdw-3cz. Vide elenco de leis e dispositivos normativos sobre o tema da indisponibilidade em: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da Indisponibilidade de Bens no Registro de Imóveis. São Paulo: IRIB, 2024, pp. 180 et seq. 2 STJ AgRg no Ag n. 1.429.330/BA, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 22/8/2012, DJe de 3/9/2012. V. CLAUS, Ben-Hur Silveira. A aplicação da medida legal de indisponibilidade de bens prevista no art. 185-A do CTN ao processo do trabalho - Execução trabalhista efetiva, por juiz do Trabalho. 13.1.2014. disponível: https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/108635. Vide, igualmente, a tese n. 137 do 3º Fórum Nacional de Processo do Trabalho (FNPT): "A Teoria do Diálogo das Fontes é fundamento para a aplicação da medida legal de indisponibilidade de bens, prevista no art. 185-A do Código Tributário Nacional, ao Processo do Trabalho". NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC comentado. São Paulo: RT, 17ª ed., 2018, p. 66. 3 Ad exemplum: Banco do Brasil (202412.1213.03755670-IA-031), Bradesco (202412.0516.03741645-IA-490), Prefeitura Municipal de São Paulo (202401.0919.03105495-IA-560), Caixa Econômica (202408.1911.03520312-IA-470), Itaú (202410.2209.03654741-IA-210), Petrobrás (202410.2209.03654741-IA-210) entre tantos outros. Dados extraídos da fonte. 4 Informe do ONR - Atualizações sobre a Central de Indisponibilidade de Bens (CNIB 2.0), postado nas redes sociais no dia 16/1/2025, às 19h:52min. 5 A referência não é perfeita, mas nos faz pensar, como William Stanley Jevons, que à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência no uso de um recurso, o consumo total desse recurso pode aumentar, em vez de diminuir. 6 JACOMINO, Sérgio. A Reforma Indisponibilidade de Bens - Um Vírus: Sua Latência e Potência. São Paulo: Observatório do Registro, 19.9.2015, disponível: https://wp.me/p6rdw-dm. 7 McLUHAN. Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. PIGNATARI, Décio (trad.). São Paulo: Cultrix, 1969, p. 108-9. 8 JACOMINO, Sérgio. Op. cit. loc. cit. 9 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo XI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, § 1.220. Data do Registo, p. 332, n. 1, passim. 10 Op. Cit. § 1.245, p. 435-6, n. 5 11 V. art. 230 do Decreto 4.857/1939. 12 A expressão é esplêndida por encerrar uma figura de linguagem que encerra a ideia de processo cuja culminância é a consagração do direito real. A feliz expressão se acha consagrada desde a Reforma de Nabuco (art. 25 do Decreto 3.453, de 26 de abril de 1865), repetida sucessivamente nos regulamentos subsequentes, mas abandonada na atual LRP. 13 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado. Vol. IV, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p. 363. 14 Op. Cit. p. 328. 15 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis, 3ª ed. 1982, Rio de Janeiro: Forense, p. 398. 16 Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 15/8/2024, Dje 15/8/2024, Rel. Des. Francisco Loureiro. Disponível: http://kollsys.org/us5. 17 Ap. Civ. 1003007-96.2021.8.26.0664, Votuporanga, j. 2/12/2021, Dje 24/2/2022, Rel. Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível: http://kollsys.org/rbm. 18 Ap. Civ. 1006060-52.2022.8.26.0114, Campinas, j. 24/3/2023, Dje 25/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível: http://kollsys.org/st5.  19 A redação das NSCGJSP originou-se do Provimento CG 17/1999 que se baseou, por seu turno, em parecer oferecido no Processo CG 1.671/1998. Destacamos: "De outro lado, no entanto, se a ordem for genérica, não poderá atingir os títulos que já estejam tramitando e já tenham a sua prioridade assegurada, mas impedirão o registro de outros títulos que sejam prenotados em seguida ao mandado, pelos mesmos motivos". Processo CG 1.671/1998, parecer da lavra de Antonio Carlos Morais Pucci, Francisco Antonio Bianco Neto, Luiz Paulo Aliende Ribeiro, Marcelo Fortes Barbosa Filho, Marcelo Martins Berthe, Juízes Auxiliares da Corregedoria Geral. Disponível: http://kollsys.org/4o4. 20 REsp n. 1.242.656/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 7/6/2011, DJe de 10/6/2011. 21 REsp n. 1.339.876/PR, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 26/4/2016, DJe de 3/5/2016. 22 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Averbação de indisponibilidade de bens - O CNJ prestigia a insegurança jurídica. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 16.12.2024. Disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/421591/averbacao-de-indisponibilidade-de-bens--cnj-e-inseguranca-juridica.
Neste breve ensaio, pretendemos discorrer sobre a discricionariedade decisória enquanto predadora no plano do Direito Registral e de que maneira a THQ - Teoria Hermenêutica da Qualificação se evidencia como teoria suficiente ao seu enfrentamento. Comecemos, então, com breves notas contextualizadoras. O registrador de imóveis exerce uma atividade pública em caráter privado, delegada formalmente através de concurso público. Estabelece-se aqui a primeira premissa: o serviço é de titularidade do Estado, e este, por sua vez, delega ao particular o exercício. Portanto, o agir registral se dá sempre em nome do Estado, o que impõe certos compromissos. A segunda é que o sistema registral pátrio é o de registro de direitos de duplo requisito (título e modo)1, que exige do registrador, ao recepcionar um título, aferir se o mesmo está formalizado de acordo com o Direito. Esse exame pode resultar em uma (i) qualificação positiva, culminando no registro daqueles que foram pactuados de acordo com o ordenamento jurídico ou em (ii) qualificação negativa, onde serão expostos, por escrito e fundamentadamente, os motivos pelos quais se denega o registro, podendo ou não ser passíveis de correção. Isto posto, ao qualificar um título, entendido que o agir registral é operado em nome do Estado, há um dever de se apresentar uma resposta (correta) ao cidadão que tem a pretensão de ver o seu direito devidamente registrado. No intuito de possibilitar tal pretensão, a decisão que será exarada pelo oficial registrador deve atender parâmetros de adequação ao Estado Democrático de Direito, ou seja, estar fundamentada e ser não-discricionária. Estabelecido que o registrador decide e, tal qual um juiz, suas decisões criam, modificam e extinguem direitos (reais), reforçamos a ideia de não ser possível conceber que a (ir)registrabilidade de títulos seja aquilo que os registradores digam que é. Há de se estabelecer um mecanismo norteador sobre o decidir, para que este não se torne escolha. Em quase dois séculos de história do registro predial em terrae brasilis, apenas duas teorias propriamente ditas se estabeleceram acerca da qualificação registral: a teoria do saber prudencial do registrador, de Ricardo Dip, e a teoria hermenêutica da qualificação.2 Sumariamente, o propósito dessas teorias, ainda que sustentadas em paradigmas substancialmente opostos, define-se pela tentativa de fornecer ao registrador um agir estruturado no qualificar dos títulos recepcionados na serventia. Destas, apenas a última será objeto deste lacônico escrito. Sendo assim, diante da insuficiência das normas jurídicas frente aos casos concretos, pode o registrador escolher a melhor solução a partir do seu livre convencimento? É possível que o juízo registral se sobreponha ao próprio Direito? Os questionamentos são pertinentes na medida em que a redação do Art. 198 da Lei dos Registros Públicos é substancialmente abstrata ao determinar que os registradores devem indicar, por escrito, "exigência a ser satisfeita, se houver". Neste aspecto, o agir discricionário se caracteriza(ria) pela escolha (e não decisão) e autoriza(ria), por sua vez, que o registrador selecione uma resposta fundada em suas pré-compreensões. A discricionariedade decisória é muito bem definida por Abel como uma metafórica "cestinha" cheia de "decisões possíveis" e, como a solução demanda uma única decisão, o julgador, exercendo uma prerrogativa voluntarista, escolhe e retira do cesto uma das "decisões possíveis" e descarta as demais.3 Ora, se não existe uma resposta correta em Direito e por isso se escolhe uma entre outras que se apresentam possíveis, presume-se também, por óbvio, que não existe resposta errada. Eis o problema, muito resumidamente, de se adotar uma tese com estas pretensões, em que não há respeito à autonomia que deve ter o Direito. A ideia de autonomia (do Direito) pressupõe que questões políticas e morais sejam debatidas exclusivamente nos meios próprios para tanto, isto é, nas esferas políticas de decisão.4 Dito de outro modo, a interpretação passa a ser voltada e simultaneamente limitada pelo Direito e não por outros agentes externos. Dessa forma, se busca construir uma verdadeira blindagem aos predadores endógenos (economia, moral e política) e exógenos (discricionariedade, voluntarismos, etc) do Direito, que, ainda que estejam na base de sua construção, não influenciarão a tomada de decisão porque não podem pretender substituir o Direito posto.5 O risco de permitir perturbações externas - como a situação social do registrador ou os meios de comunicação se tornarem as causas reais da decisão - é metamorfosear em irrelevante saber o que as normas afirmam e em substancial apenas o que os registradores dizem que as normas dizem.6 É neste horizonte - e na contramão de uma espécie de senso comum teórico-registral há muito estabelecido - que nasce a THQ - Teoria Hermenêutica da Qualificação, arquitetada pelo registrador gaúcho Jéverson Luís Bottega e lastreada na CHD - Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck, que entende o Direito como um conceito interpretativo e se apoia na viragem ontológico-linguística. Em virtude dos seus pressupostos teóricos, a hermenêutica registral bottegiana  bebe das fontes de matrizes da própria CHD, quais sejam o pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer no paradigma da filosofia, e Ronald Dworkin no paradigma jurídico. Não é à toa que a própria concepção da THQ surge em obra denominada "Qualificação registral imobiliária à luz da Crítica Hermenêutica do Direito". A principal finalidade da THQ está no enfrentamento ao elemento discricionário que tende a contaminar as decisões tomadas no âmbito da qualificação registral. A discussão que aqui se levanta é muito bem sintetizada por Bottega nos seguintes termos: [...] o direito à obtenção de respostas corretas também se aplica ao cidadão que se dirige ao registro de imóveis com o objetivo de que o registrador lhe diga (através da qualificação registral) se o direito, formalizado em um título, está apto a ingressar no registro a fim de gerar os efeitos que lhe são próprios. Assim, é inadequado, para falar o mínimo, que se admita que os registradores não mantenham a coerência entre as suas decisões, ora acatando um título, ora rejeitando-o, sob as mesmas circunstâncias, sem fundamentar a ruptura, ou que cada registrador decida com base em critérios não jurídicos, que desrespeitam a autonomia do Direito. Isso porque, só é possível falar em resposta correta se a autonomia do Direito for reconhecida.7 Para tanto, o autor apresenta oito etapas para estruturar a qualificação registral. São elas a análise preliminar, o saneamento, a verificação da validade do fato jurídico inscritível (e sua aptidão para produzir eficácia), as especialidades objetiva e subjetiva, a especialidade do fato jurídico inscritível, os requisitos extrarregistrais e a decisão fundamentada. Com efeito, a proposição de etapas apresenta mecanismos de controle às manifestações arbitrárias que pode(ria)m ocorrer ao qualificar um determinado título. Além da qualificação de modo faseado - e já compreendido que é o Estado quem legitima a atuação do registrador de tutelar direitos (privados) relacionados à propriedade - Bottega aduz que A circunstância de a Lei 6.015/73 não ter um dispositivo semelhante ao art. 489 do CPC. (thq rdi p. 85), que estabelece a fundamentação como elemento da sentença, não serve de justificativa para que os registradores sintam-se autorizados a praticar atos em fundamentá-los. Isso porque a exigência de motivar as decisões decorre tanto da estrutura dos atos administrativos quanto da responsabilidade política de um registrador em um Estado Democrático [...] que evitará o encobrimento de discricionariedades e permitirá que se exerça controle sobre as decisões [...].8 Compreendida a estrutura jurídica do Registro de Imóveis, é preciso também definir a sua intencionalidade. Ao interpretar, o registrador deve compreender e observar o point do registro predial, que Bottega define como o registro de direitos reais, direitos obrigacionais com efeitos reais e outras situações jurídicas previstas em lei.9 Logo, direitos que não estejam abarcados pelas hipóteses acima não serão registrados, sob pena de gerar falsa presunção de oponibilidade para com terceiros que não participaram do negócio jurídico. Pelo exposto, não há dúvidas que o agir do registrador deve estar alicerçado em uma teoria que permita a promoção de decisões íntegras e coerentes, por ser este um eixo substantivo à segurança jurídica que se espera dos registros públicos. Aliás, não deve(ria) ser possível conceber uma atuação que não esteja orientada por teorias que forneçam critérios suficientes para nortear o agir registral. Isso porque já resta superada a ideia de separabilidade entre teoria e prática, uma vez que uma é condição de possibilidade da outra.10 Deste modo, temos que a paradigmática THQ funda uma nova escola de pensamento registral que não mais admite uma "tranquilidade tentadora" (para se utilizar de uma linguagem heideggeriana), isto é, uma espécie de habitus onde os pré-juízos dos registradores tornam a atividade refém da quotidianidade.11 Há de se compreender os compromissos teóricos assumidos ao se adotar determinada teoria e também as consequências decorrentes desta adoção. Por fim, a dificuldade de realizar determinada tarefa não pode servir de fundamento para não fazê-la, sobretudo naquela que é a principal atribuição do registrador e viabiliza o cumprimento de diretivas constitucionais e direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito. 1 A exigência de duplo requisito ocorre porque, para que um seja possível o registro de um direito real, deve haver um título, e.g. uma escritura pública, e esta, por sua vez, deverá ser registrada no registro de imóveis competente. É neste sentido que dispõe o Art. 1.227 do Código Civil. 2 Há também a 'teoria da legalidade', de Afrânio de Carvalho, que não será objeto do presente escrito por não se tratar de uma construção que objetivava ser teoria com maiores pressupostos jurídico-filosóficos. 3 Abel, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo. Ed: Lumen Juris, 2022. p. 76. 4 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.32 5 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.26 6 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.382 7 Bottega, Jéverson Luís. Teoria hermenêutica da qualificação registral imobiliária. Revista de Direito Imobiliário. vol. 95. ano 46. p. 85. São Paulo: Ed. RT, jul.-dez. 2023. 8 Ibid. 9 Bottega, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Brasil, Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2021. p. 186. 10 Neste sentido, ver "A função social da Teoria do Direito". 11 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.408-409.
Resumo: Este opúsculo objetiva demonstrar duas maneiras diferentes de interpretar o critério temporal de imposto de transmissão intervivos (ITBI): Enquanto a primeira confunde fato gerador (critério material) com o critério temporal, implicando uma exação prévia à lavratura de escritura pública, a segunda, ao revés, conjuga vários critérios da regra matriz de incidência tributária (material, temporal e espacial), permitindo a exação posterior à lavratura de escritura pública. 1. Introdução O agronegócio é o principal responsável pelo desenvolvimento dos municípios pertencentes à Região Sul do Maranhão, entre eles, o seu expoente é o Município de Balsas. Nessa toada, o mercado imobiliário acompanha o desenvolvimento naquela região, refletindo uma intensa atividade notarial e registral. Entre tais atos, foi analisada uma escritura pública de transmissão onerosa de imóvel urbano/rural, na qual constava que o imposto de transmissão intervivos sobre bens imóveis (ITBI) seria apresentado no registro de imóveis. Ocorre que, havendo interpretação literal de normas, será forçoso reconhecer a "irregularidade" administrativo-fiscal daquele ato notarial, uma vez que enfatizam apenas aspecto temporal do tributo. D'outro lado, havendo interpretação à luz da Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT), conceito desenvolvido pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, conjugando os critérios temporal, espacial e material, também será forçoso reconhecer a "regularidade" administrativo-fiscal do prefalado ato notarial. No tocante às normas, o art. 45, inciso I, do Código Tributário Municipal de Balsas (lei municipal 1.005/07) enfatizou o critério temporal do ITBI, ao determinar o seu recolhimento até a data de lavratura do instrumento que servir de base à transmissão, à cessão ou à permuta de bens ou de direitos transmitidos, cedidos ou permutados, quando realizado no citado Município. Outrossim, o §2º do art. 1º da lei Federal 7.433/85, também deu ênfase ao critério temporal do citado imposto, ao determinar que o tabelião consigne no ato notarial a apresentação do pagamento do prefalado imposto. No mesmo sentido, o regulamento daquela lei (decreto Federal 93.249/86) também reforça o pagamento prévio daquele imposto antes da lavratura de ato notarial (inciso I do art. 1º, do decreto supra). Note-se, portanto, que as referidas normas regulamentam apenas o aspecto temporal daquele tributo. Logo, sob essa diretriz interpretativa, será forçoso reconhecer a necessidade de prévio pagamento de ITBI, antes da lavratura de escritura pública. Por outro lado, a Constituição Federal deu ênfase ao critério material do citado imposto para fixar a competência tributária municipal no momento de transmissão intervivos por ato oneroso, de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis, bem como cessão de direitos a sua aquisição (inciso II do art. 156 da CF/88). Nesse contexto, há previsão na parte final do inciso I do art. 1º do decreto Federal 93.249/86, que permite o pagamento do imposto após a lavratura de escritura pública ("ressalvadas as hipóteses em que a lei autorize a efetivação do pagamento após a sua lavratura"). Ora, essa ressalva remete-se ao caput do art. 1.245 do Código Civil de 2002, ao dizer que "transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no registro de imóveis". Desse modo, e considerando a transferência de titularidade dominial com o registro, o seu aspecto tributário encontra-se previsto no inciso I do art. 35 do Código Tributário Nacional (lei 5.172/66), à luz da Constituição Federal de 1988, significa que "compete aos Municípios instituir impostos sobre transmissão intervivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis". Note-se que as citadas normas constitucionais e infraconstitucionais regulamentam o aspecto material e o sujeito ativo do prefalado imposto. Logo, sob essa diretriz interpretativa, será forçoso reconhecer a permissividade de pagamento de ITBI, após a lavratura de escritura pública. Em suma, verifica-se uma aparente contradição entre o aspecto temporal e o aspecto material do ITBI. Uma forma de resolver tal contradição poderá ser por meio da Súmula 671 do STJ como fundamento aliunde, cuja ementa diz que "não incide o IPI quando sobrevém furto ou roubo do produto industrializado após sua saída do estabelecimento industrial ou equiparado e antes de sua entrega ao adquirente", uma vez que o seu fato gerador não é a saída do produto do estabelecimento industrial ou a ele equiparado, mas apenas na transferência de propriedade ou posse de produtos industrializados. Ou seja, a legislação do IPI apenas enfatizou a antecipação temporal da hipótese de incidência, que por si só, não configura o fato gerador (critério material) do tributo. Portanto, este opúsculo será dividido da seguinte maneira: inicialmente será analisada a natureza jurídica do tributo, a fim de caracterizar os tipos de tributos. Em seguida, será conceituado o "fato gerador" tributário, à luz da Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT), ilustrando sua aplicação na Súmula 671 do STJ. E por fim, será resolvido o conflito normativo aparente sobre qual é o momento válido e eficaz para pagamento de ITBI. 2. A natureza jurídica dos tributos e suas teorias É fato que, nos termos do art. 4º do CTN, a natureza jurídica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, a despeito de sua denominação legal ou destinação legal do produto de sua arrecadação. Com isso, exsurgiu a teoria tripartite (imposto, taxas e contribuição de melhoria), oriunda inicialmente na Constituição Federal de 1946, que continha a previsão de impostos (arts. 15 e 19) e, ainda, de taxas e contribuição de melhoria (art. 30). Entrementes, tudo indica insuficiente aquele conceito legal, uma vez que, nos termos do §2º do art. 145 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), se "as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos", então, conclui-se ipso facto que a base de cálculo também é deveras importante para definir o fato gerador da respectiva obrigação tributária. Ademais, e à luz das normas constitucionais, os tributos também podem ser determinados por sua destinação legal, a exemplo das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico (contribuição de intervenção no domínio econômico - CIDE: art. 149, da CF/88). Com isso, exsurgiu a teoria pentapartite (imposto, taxas, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuições especiais). Note-se que, uma vez que a denominação e destinação legal da arrecadação configuram a natureza da contribuição tributária, tudo indica que o art. 4º do CTN não abrange os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais (SABBAG, 2024, p. 457). De toda sorte, e a despeito da divergência doutrinária sobre a quantidade de tributos (teorias bipartite, tripartite ou pentapartite), o fato é que o Supremo Tribunal Federal pacificou o assunto, determinando que o sistema tributário brasileiro tem 5 (cinco) tipos de tributos, razão pela qual prevalece a teoria pentapartite (SABBAG, 2024, p. 456). Nesse contexto, é possível concluir que a natureza jurídica do imposto de transmissão intervivos (ITBI) dar-se-á por seu fato gerador, sendo irrelevante a denominação legal ou a destinação legal do produto de sua arrecadação. Sendo assim, será deveras importante a definição de fato gerador, o qual será determinado pela Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT), conceito desenvolvido, como já dito, pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho. 3. Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) A regra-matriz de incidência tributária (RMIT) é "(...) por excelência, uma regra de comportamento, preordenada que está a disciplinar a conduta do sujeito devedor da prestação fiscal, perante o sujeito pretensor, titular do direito de crédito" (CARVALHO, 2007, p. 261). Ou seja, é uma forma lógica de estruturar e organizar hipótese de incidência + fato jurídico tributário, os quais compõem o "fato gerador", quando há subsunção absoluta do fato à hipótese. Os elementos lógicos e abstratos da hipótese de incidência são dois: o antecedente e o consequente. Porém, conquanto sejam conceituados tais elementos lógicos, será analisado apenas o antecedente, necessário para resolver o problema apresentado neste opúsculo. Dito antecedente da Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) é composto por três critérios: material, temporal e espacial. O primeiro critério - o material - é "um comportamento de pessoas, físicas ou jurídicas, condicionado por circunstância de espaço e tempo" (CARVALHO, 2007, p. 269), sendo um absurdo, nas palavras do Prof. Paulo de Barros Carvalho, imaginar tal critério alheio ao espaço e ao tempo (2007, p. 269). Em geral, configura-se pelo verbo e seu complemento. Ou seja, o verbo é "transferir" e o seu complemento, "bens imóveis". Então, o critério material de ITBI é a transferência onerosa/voluntária/derivada de bem imóvel. Do contrário, a transferência forçada tem natureza originária (arrematação, desapropriação e usucapião), não configurando, por isso, o aspecto material daquele imposto. O segundo critério - o espacial -, por sua vez, é a definição do local onde ocorre o fato jurídico ou, ao revés, ausente a definição do local específico ou genérico, as normas apenas deixam indícios de onde nascem as obrigações tributárias (CARAVALHO, 2007, p. 270). Em suma, o local de incidência do tributo. No caso de ITBI, o critério espacial é definido pela localização do imóvel dentro de um Município. Por isso, é deveras importante a delimitação exata de seus limites territoriais, a fim de evitar dúvidas sobre o sujeito ativo, de quem é responsável pela exação tributária do devedor. Por fim, é irrelevante para o critério espacial, se o imóvel é rural ou urbano, se a escritura foi lavrada no tabelionato ou pelo e-notariado, pois o importante é o Município onde fica o imóvel. E o terceiro critério - o temporal -, por fim, é a descrição exata de ocorrência do fato descrito na hipótese de incidência, ensejando o nascimento da relação jurídica entre o devedor e o credor fiscal, em função de prestação obrigacional de pagar um valor pecuniário (CARVALHO, 2007, p. 275). Na hipótese de ITBI, o critério temporal dar-se-á no momento do registro imobiliário. De seu turno, o consequente da Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) objetiva a identificação dos sujeitos da relação tributária (ativo e passivo). No caso de ITBI, o sujeito ativo é o Município onde se localiza o imóvel, e o passivo, o comprador do imóvel (art. 325 do Código Civil c/c o art. 42 do CTN), cujo valor da prestação obrigacional será determinado pela base de cálculo (valor venal) e a alíquota, um percentual sobre a base de cálculo. Em suma, o antecedente da hipótese de incidência é formado pelo critério material, condicionado no tempo e no espaço, ao passo que o consequente da hipótese de incidência definirá o critério pessoal (sujeito ativo/passivo) e quantitativo (base de cálculo e alíquota). Por se tratar de uma regra lógica, toda vez que ocorrer o antecedente, implicará automaticamente a realização do consequente, no qual, por sua vez, acontecerá as implicações do "(...) dever-se modalizado, ou seja, a incidência dos comandos deônticos de obrigatório, proibido ou permitido" (CALIENDO, 2009, p. 128). Entretanto, como a teoria da RMIT é um resultado de três vertentes doutrinárias (Alfredo Augusto Becker, Geraldo Ataliba e Lourival Vilanova), o Prof. Paulo de Barros Carvalho admoestava que "(...) o estudo da norma não pode esgotar-se em si mesmo" (CALIENDO, 2009, p. 128). Não obstante, o critério temporal foi exacerbado pela legislação, a ponto de "(...) dar nome de fato gerador dos impostos (...), o que muito contribuiu para o desalinho teórico formado em derredor de graves como o IPI (...)" (CARVALHO, 2007, p. 275). Nesse contexto, será analisada a regra-matriz de incidência tributária (RMIT) do imposto de produtos industrializados (IPI), de competência federal (art. 153, inciso IV, da CF/88), regulamentado pelo decreto Federal 7.212/10, que servirá de diretriz interpretativa para definir o antecedente do imposto de transmissão intervivos (ITBI). 3.1 RMIT do IPI A hipótese legal de incidência do fato gerador do IPI será a "saída de produto do estabelecimento industrial, ou equiparado a industrial", nos termos do inciso II do art. 35 do decreto Federal 7.212/10. Mas a 1ª seção do STJ adequou a regra-matriz de incidência tributária do IPI (RMIT do IPI), sem necessidade de alterar o texto legal, quando tratou de condição resolutória daquele tributo, ao divulgar a Súmula 671 com a seguinte ementa: "Não incide o IPI quando sobrevém furto ou roubo do produto industrializado após sua saída do estabelecimento industrial ou equiparado e antes de sua entrega ao adquirente". O cerne jurisprudencial dessa súmula encontra-se num trecho lapidar da ementa do acórdão da Segunda Turma do STJ, no REsp 1203236-RJ, publicado no DJe de 30/8/12, a saber: 4. O fato gerador do IPI não é a saída do produto do estabelecimento industrial ou a ele equiparado. Esse é apenas o momento temporal da hipótese de incidência, cujo aspecto material consiste na realização de operações que transfiram a propriedade ou posse de produtos industrializados. 5. Não se pode confundir o momento temporal do fato gerador com o próprio fato gerador, que consiste na realização de operações que transfiram a propriedade ou posse de produtos industrializados. 6. A antecipação do elemento temporal criada por ficção legal não torna definitiva a ocorrência do fato gerador, que é presumida e pode ser contraposta em caso de furto, roubo, perecimento da coisa ou desistência do comprador. 7. A obrigação tributária nascida com a saída do produto do estabelecimento industrial para entrega futura ao comprador, portanto, com tradição diferida no tempo, está sujeita a condição resolutória, não sendo definitiva nos termos dos arts. 116, II, e 117 do CTN. Não há razão para tratar, de forma diferenciada, a desistência do comprador e o furto ou o roubo da mercadoria, dado que em todos eles a realização do negócio jurídico base foi frustrada (grifos nossos). Sob a regra-matriz de incidência tributária, é possível concluir que a antecipação legal do critério temporal não é suficiente, por si só, para definir o fato gerador do IPI, sem conjugá-lo com os critérios material e espacial. Na verdade, o critério temporal em si, fica sujeito a uma condição resolutória, para além das situações descritas no art. 38 do decreto Federal 7.212/10, a exemplo do roubo ou furto descrito na precitada Súmula 671 do STJ. 3.2 RMIT do ITBI O objeto deste opúsculo é uma escritura pública de compra/venda sobre um imóvel localizado no Município de Balsas/MA, no qual consignava que o ITBI, seria apresentado no momento do registro de imóvel. Pois bem, sob uma interpretação literal, será forçoso reconhecer a ausência de respaldo legal naquele ato notarial, indo de encontro ao art. 45, inciso I, do Código Tributário Municipal de Balsas c/c o art. 1º, § 2º, da lei Federal 7.433/85, e mais o art. 1º, inciso II, do decreto Federal 93.249/86. No mesmo sentido, também dispõe o Provimento 16/22, referente ao Código de Normas da Corregedoria Geral de Foro Extrajudicial do Estado do Maranhão (COGEX-MA), no seu art. 542 c/c o inciso VIII do art. 641, os quais determinam o recolhimento de imposto de transmissão intervivos anterior à lavratura de ato notarial. Note-se que, à luz de uma interpretação literal das normas, as referidas legislações antecipam o critério temporal do fator gerador do ITBI, sem conjugá-lo com o critério material e espacial da RMIT do imposto mencionado. Não obstante, o STJ pacificou o assunto, ao dizer que o fato gerador do ITBI dar-se-á no registro de imóveis (AgInt no AResp 1.760.009, Segunda Turma, DJe de 27/6/22), reafirmando o entendimento no STF, sob o tema 1.124 com repercussão geral, nos autos do ARE 1.294.969, cuja ementa diz o seguinte: "O fato gerador do imposto sobre transmissão intervivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro". Logo, deduz-se que as referidas decisões têm como fundamento o art. 35, inciso I, do Código Tributário Nacional, c/c o caput do art. 1.245 do Código Civil ("Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis"). Por outro lado, a referida jurisprudência vincula apenas as demandas judiciais, e não os atos administrativos dos demais poderes públicos (União, Estado e Município), incluindo os cartórios de imóveis/notas. Logo, tudo indica que, à luz de uma interpretação literal do critério temporal do Código Tributário Municipal de Balsas/MA, será obrigatório o pagamento antecipado do imposto até a lavratura de escritura pública, mesmo que o Código Civil e o Código Tributário Nacional, a contrario senso, determinem a ocorrência do fato gerador no registro de imóveis, exatamente porque "se houve[r] recolhimento em favor de município que posteriormente se comprovou que não é o sujeito ativo, deve ocorrer a repetição do indébito" (STJ, AREsp 1.760.009-SP, Segunda Turma, julgado em 19/4/22). Por exemplo, vamos imaginar o seguinte: se pago antecipadamente o ITBI a um Município "X", e posteriormente se verificou a localização do bem imóvel em outro município limítrofe "Y", então, neste caso, o contribuinte será impingido a quitar novamente aquele imposto ao ente "Y", bem como ensejará uma repetição de indébito em face do Município "X". No caso, e considerando que o inciso I do art. 45 do referido Código Tributário Municipal exige o pagamento do ITBI antes da lavratura da escritura pública, bem como as decisões com repercussão geral não vinculam os atos administrativos do cartório extrajudicial, tudo indica que a referida norma tributária municipal será observada pelos tabelionatos de notas e de imóveis, uma vez que são responsáveis pela fiscalização do recolhimento do imposto (e não pelo valor do recolhimento do imposto), nos termos do art. 30, inciso XI, da lei Federal 8.935/94 c/c o art. 289 da lei Federal 6.015/73. Agora, se houver interpretação da mesma situação, à luz da regra-matriz de incidência tributária, tudo indica que a exigência de pagamento de ITBI será somente após a lavratura de escritura pública, utilizando a Súmula 671 do STJ como fundamentação per relationem, sem qualquer alteração textual da lei. Então, sob a diretriz dos fundamentos daquela súmula, fica evidente que o art. 45, inciso I, do Código Tributário Municipal de Balsas c/c o art. 1º, § 2º, da lei Federal 7.433/85, e mais o art. 1º, inciso II, do decreto Federal 93.249/86, simplesmente refletem uma "antecipação do elemento temporal criada por ficção legal [que] não torna definitiva a ocorrência do fato gerador [do ITBI]". Desse modo, e antecipando o critério temporal, deixará o fato gerador do ITBI sujeito a uma condição resolutiva, não sendo suficiente o momento da prática dessa condição previamente constituída, nos termos do inciso II do art. 116 c/c o art. 117, ambos do CTN, pois as diversas situações factuais, como a desistência de registrar a escrita ou a perda eventual do imóvel pela desapropriação, afastam completamente o critério material daquele imposto, frustrando, por conseguinte, a concretização do direito obrigacional pactuado entre as partes (compradora/vendedora), podendo configurar até mesmo, uma repetição de indébito. Ademais, e considerando que o critério material do ITBI ocorre, de fato, após o registro no cartório de imóvel, conforme entendimento pacificado no STJ (AgInt no AResp 1.760.009) e no STF (tema 1.124 com repercussão geral), entende-se perfeitamente possível que a escritura pública não contenha a comprovação de pagamento do citado imposto. D'outro lado, é importante frisar que o fisco municipal não será prejudicado com a ausência de pagamento prévio, pois o crédito tributário sub-roga-se na pessoa do respectivo adquirente (art. 130 do Código Tributário Nacional), indicando uma natureza propter rem do ITBI. Logo, entende-se perfeitamente válido e eficaz constar na escritura pública, que a comprovação de pagamento do ITBI será apresentada no registro de imóveis, sem qualquer tipo de irregularidade administrativo-fiscal, conquanto a norma legal permaneça exigindo o pagamento fiscal prévio à lavratura de escritura, dando ênfase no critério temporal, o qual, por si só, não configura o fato gerador daquele imposto, mas somente no registro de imóveis. 5. Conclusão A título conclusivo, verifica-se que a evolução jurisprudencial do critério temporal do ITBI não acompanhou a do IPI, a ponto de o STJ sumular o tema sob o número 671, que praticamente consolida a crítica doutrinária do Prof. Paulo de Barros Carvalho, ao dizer que não se pode confundir o critério temporal da hipótese de incidência do IPI com o seu próprio "fato gerador". Tanto é verdade, que é muito comum os Municípios e Tribunais Estaduais ainda exigirem o prévio pagamento de ITBI antes da lavratura de escritura pública, a exemplo do Código Tributário Municipal de Balsas/MA e o Código de Normas da Corregedoria Geral de Foro Extrajudicial do Estado do Maranhão (COGEX-MA). Dessa forma, à luz de uma interpretação literal, será forçoso reconhecer a "irregularidade" de escrituras públicas sem constar o pagamento do ITBI. Por outro lado, à luz da teoria da regra-matriz da incidência tributária, confirma-se que, de fato, as normas legais apenas anteciparam o critério temporal daquele imposto, razão pela qual, ao se conjugar com os demais critérios material e temporal, a fim de criar o denominado "fato gerador", o limite jurídico obrigacional entre o sujeito ativo e passivo, a respeito de prestação pecuniária de um crédito. Portanto, esse opúsculo pretendeu reler o imposto de transmissão intervivos, à luz da doutrina do Prof. Paulo de Barros Carvalho e da evolução jurisprudencial do IPI, a fim de iluminar as vindouras interpretações sobre o momento do pagamento do ITBI. ________________ 1 CALIENDO, Paulo. Direito tributário: três modos de pensar a tributação: elementos para uma teoria sistemática do direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 2 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2007. 3 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2024.
No dia 10/12/24, o Conselho Nacional de Justiça editou o provimento 188 que dispõe sobre a nova CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens 2.0, destinada ao cadastramento de ordens de indisponibilidade de bens específicos ou do patrimônio indistinto, bem como das ordens para cancelamento de indisponibilidade. A normativa tem efeito em âmbito nacional e altera o Código Nacional de Normas (provimento 149/23), trazendo inovações no trato dos negócios imobiliários. A alteração revoga o provimento 39 de 25/7/14 e poder-se-ia aperfeiçoar o cadastramento das ordens de indisponibilidade, entretanto, na forma como foi editado traz insegurança ao mercado imobiliário e à atividade comercial imobiliária em massa. A Constituição da República Federativa do Brasil, reservou à União, com exclusividade, a competência para legislar sobre registros públicos, cujo comando está insculpido no art. 22, XXV da Carta Magna. Com essa reserva, fica determinado que qualquer norma relativa a registros públicos, incluindo o de imóveis, portanto, somente pode ser de iniciativa de membro do Congresso Nacional ou do presidente da República. Veja-se que a competência para legislar é exclusiva à União. O CNJ fundamenta a edição de suas normativas no poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário em relação aos atos praticados por seus órgãos, regramento contido no art. 103- B, § 4º, I, II e III, da CF/88. Pela mesma EC 45 de 30/12/04, constituiu-se atribuição da Corregedoria Nacional de Justiça a expedição de provimentos e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro, com diretriz específica no art. 8º, X, do Regimento Interno do CNJ. Ocorre que a novel alteração normativa altera significativamente dois princípios basilares do Direito Registral Imobiliário, quais seja, o da prioridade e o da concentração, com intercorrências diretas ao princípio da publicidade. Na lição de Carlos Roberto Gonçalves: "Para proporcionar maior segurança aos negócios imobiliários, criou o legislador um sistema de registros públicos, informado por diversos princípios que garantem a sua eficácia. O primeiro desses princípios é o da publicidade. O registro confere publicidade às transações imobiliárias, valendo contra terceiros. Qualquer pessoa poderá requerer certidão de registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou o interesse do pedido (LRP, art. 17)" (Direito das Coisas, Ed. Saraiva, São Paulo, 1997, p. 90). (grifei) O que ocorre é que o provimento 188 do CNJ, dispõe o § 3º do art. 320, I - que altera o Código Nacional de Normas - legisla o seguinte: "A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". (grifei) A concentração dos atos na matrícula tem como fundamento jurídico os dispositivos contidos nos arts. 54 a 58 da lei 13.097/15. O art. 54 regra especificamente o instituto, trazendo segurança aos adquirentes de boa-fé pela inoponibilidade de atos não constantes da matrícula imobiliária. O comando contido no art. 54 busca a dinamização da atividade comercial imobiliária, sujeitando os direitos reais à publicização mediante registro ou averbação na matrícula do imóvel. O art. 1.227 do Código Civil Brasileiro dispõe que os imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro dos referidos títulos translativos, no competente Cartório de Registro de Imóveis. Assim, tem preferência ou prioridade de direito aquele que primeiro alcança o fólio real, seja credor ou adquirente. Os demais comandos contidos no art. 54 e seus parágrafos tratam sobre eventual conflito de interesses entre credores do alienante e o próprio adquirente. O professor Olivar Vitale, em sua obra Curso de Direito Imobiliário Brasileiro (2. ed. São Paulo: Tomson Reuters Brasil, 2022, p.199), relata sobre a simplificação da atividade comercial imobiliária pela análise precípua da certidão atualizada da matrícula extraída do fólio real: "Em apertada síntese, o novo ordenamento jurídico afastou a necessidade da análise numerosa de certidões e documentos, ancorada na interpretação do regramento contido principalmente no Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973, visando à demonstração da boa-fé pelo adquirente para delimitar essa comprovação ao exame da certidão atualizada da matrícula, e ostentou a inovação jurídica para legitimar a alteração do viés de proteção do credor ao adquirente de boa-fé. Acerca disso é importante mencionar a nova redação do art. 54 da lei 13.097/15 dada pela lei 14.382/22, que visa reforçar o conforto do adquirente de boa-fé pelo simples exame da matrícula do imóvel." (grifei) Existem discussões doutrinárias sobre se a concentração matricial se trata de princípio registral ou tão somente regramento legal. Segundo critérios de solução de conflitos legislativos, a lei 13.097/15 - concentração de atos - após sua ratificação pela lei 14.382/22, que instituiu o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, verifica-se a existência de critérios de especialidade e hierarquia em relação ao comando normativo do CNJ. O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen - tido como um dos nomes mais importantes do Direito moderno - em sua obra "Teoria Pura do Direito", leciona que o Estado deve ser o único e principal detentor do poder de elaborar leis, sendo que essas legislações devem seguir uma hierarquia: as normas gerais derivam das normas específicas. Como poderia o regramento contido em uma normativa emanada pelo CNJ arrebatar o princípio da concentração, trazendo uma exceção à prioridade do protocolo registral? As normas contidas no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (o prov. 188/24 o altera), que se destina a regulamenta os serviços notariais e de registro seria oponível a terceiros ou somente aos notários e registradores? O CNJ, por diversos provimentos e resoluções, ultimamente, vem inferindo na atividade notarial e registral trazendo regramentos e normas, muitas vezes, contrárias à legislação, veja-se a recém autorização para a lavratura de inventários e divórcios extrajudiciais com a participação de menores e/ou incapazes, o que é defeso no Código de Processo Civil Brasileiro. Entretanto, tais modificações não alteram princípios e trazem benefícios aos usuários, tanto quanto à opção pela celeridade notarial, quanto pela economia nos custos de tramitação, que em muitos Estados é maior quando tramitam pelo Judiciário que os emolumentos se processados pelos cartórios. O princípio da prioridade impõe que os títulos submetidos ao registro imobiliário tomarão, no livro 1 (protocolo), um número de ordem que obedecerá rigorosa sequência de apresentação, e este número determina a preferência dos direitos objeto da qualificação registral. O Art. 320-F do Código Nacional de Normas, incluído pelo provimento 188, regra que a consulta ao banco de dados da CNIB será obrigatória para todos os notários e registradores de imóveis, no desempenho de suas atividades, bem como para a prática dos atos de ofício, nos termos da lei e das normas regulamentares, devendo o resultado da consulta ser consignado no ato notarial. A regra contida neste artigo se contradiz com o que denominamos de princípio do arrebatamento, insculpido no § 3º do art. 320, I, ora, se o notário consultar a CNIB antes da lavratura do ato notarial, consignando o seu resultado negativo, nada impedirá de que uma ordem de indisponibilidade superveniente arrebata os princípios concentração e da prioridade, alcançando a publicidade real antes do título em tramitação de registro, tornando o negócio imobiliário eivado de incertezas e de insídia ao adquirente. O registro efetivo da propriedade será um evento de celebração e festividade. Não se trata, aqui, de incentivo de fraude à execução - conflito legal previsto no inciso IV, do art. 792, do CPC - mas à garantia de higidez do negócio imobiliário ao adquirente. A regência contida no § 3º do art. 320, I do CNN/CNJ traz insegurança ao adquirente privilegiando o credor que, eventualmente, foi indiligente ou desidioso quanto a publicização de suas pretensões creditícias. Necessário, lembrar, contudo, que o STJ sumulou sob número 375, o entendimento jurisprudencial, de que para se possa reconhecer a fraude à execução, dependerá do registro da constrição sobre o bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. O mercado imobiliário desempenha um papel crucial no crescimento econômico e social de um país, veja-se a crise e bolha imobiliária nos Estados Unidos em 2008 que, por motivos outros, retratou uma das piores crises financeiras da história recente. Em nada adianta a consulta antecipada à CNIB vez que o parágrafo único do art. 320-F do CNN normatiza que a existência de ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escritura pública, mas obriga que as partes sejam cientificadas, cientificação esta que pode sofrer mutação imediata e on-line. Diante desses raciocínios, na eventual permanência da inteligência do contido no provimento 188 do CNJ - ainda sob vacatio legis até 10/1/25 - logo, pendente de eficácia até então, para a higidez do negócio imobiliário e da correta instrução notarial, imperativa a volta da apresentação das certidões pessoais em nome e cadastro dos alienantes, já que a indisponibilidade de bens terá o condão arrebatar a concentração e a prioridade registral.
1. Resumo Começamos por resumir as principais ideias deste artigo: Este artigo parte de didático artigo escrito pelo Professor Pablo Stolze Gagliano acerca do prazo prescricional das pretensões dos segurados contra a seguradora no ambiente que se inaugurará com a entrada em vigor do Marco Legal dos Seguros - MLS (lei 15.040/24). O MLS pecou em drenar do Código Civil (CC) as regras civis de seguro, seja por rebaixar o status normativo desse importante contrato, seja por ter mantido várias outras leis sobre seguros, seja não ter tido nenhum ganho sistemático-axiológico: o deslocamento geográfico da disciplina civil dos contratos, em nada, alterará a função interpretativa e integrativa dos princípios e das normas abertas do Código Civil (capítulo 3). Três diretrizes interpretativas devem ser observadas em relação ao MLS: (a) prestígio ao que foi contratado ou legislado com clareza; (b) in dubio pro inertia; e (c) in dubio pro misero (capítulo 4). Até antes da entrada em vigor do MLS, ao acontecer o sinistro, o segurado tem o prazo prescricional de um ano para pleitear a cobertura (art. 206, § 1º, do CC1). Esse prazo prescricional fica suspenso durante o que chamamos de procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro (que se inicia com o aviso do sinistro e que se destina a apurar o cabimento e o valor da cobertura securitária). É a Súmula 229/STJ. Desconhecemos julgados sobre nova suspensão do prazo prescricional diante de eventual pedido administrativo de reconsideração: Defendemos o cabimento. Há um precedente da 3ª Turma que perfilha uma corrente mais favorável ao segurado: o termo inicial da prescrição seria a ciência, pelo segurado, do desfecho desfavorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro, e não a data da ciência do sinistro (capítulo 5.1.). Após a entrada em vigor do MLS, o ambiente legal é, no geral, mais favorável ao segurado, embora, no geral, decorra do objetivo de positivar o que era admitido pela jurisprudência anterior, com adoção da corrente jurisprudencial alternativa supracitada, inaugurada por um julgado da 3ª Turma do STJ (capítulo 5.2.1.). A prescrição da pretensão do segurado contra a seguradora é de 1 ano da ciência da recusa administrativa da seguradora, ou seja, da ciência do desfecho desfavorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro (art. 126, II, MLS). Eventual pedido de reconsideração suspenderá o prazo prescricional até a ciência de seu indeferimento, vedada nova suspensão do prazo diante de posteriores pedidos de reconsideração (art. 127, MLS) (capítulo 5.2.3.4.). No caso de desfecho favorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro, a prescrição para a cobrança da cobertura securitária reconhecida administrativamente é de 10 anos, a contar de 30 dias da data da ciência, pelo segurado, da decisão favorável (art. 205, CC; e art. 87, MLS) (capítulo 5.2.3.2.). No caso de extrapolação do prazo máximo legal de processamento do procedimento administrativo sem resposta da seguradora (hipótese em que haverá um deferimento tácito do pedido - sunset clause), o prazo prescricional para o segurado cobrar a cobertura é de 10 anos (art. 205, CC). O termo inicial será o 31º dia seguinte à consumação desse prazo máximo de processamento. Esse prazo máximo de processamento será de 30 dias ou, se houver ato da Susep, de até 120 dias, os quais devem ser somados aos períodos em que esses prazos tenham sido suspensos por conta de pedidos de complementação de documentos na forma dos §§ 2º a 4º do art. 86 do MLS (arts. 86 e 87, MLS) (capítulo 5.2.3.3.). Inexiste prazo prescricional ou decadencial contra o segurado antes do término desfavorável do procedimento administrativo de regulação do sinistro. Logo, em tese, o segurado tem o direito potestativo a deflagrar esse procedimento muitos anos depois do sinistro. Todavia, a demora culposa ou dolosa em comunicar o sinistro pode vir a acarretar a perda total ou integral da cobertura, desde que tenha havido prejuízo à seguradora (art. 66, II e §§ 1º a 4º, MLS). O único esforço doutrinário em tentar colocar limite temporal a isso seria forçar a aplicação analógica do prazo prescricional de 10 anos do art. 205 do CC, o que nos parece afrontar a vontade deliberada do legislador bem como as diretrizes interpretativas que indicamos acima (capítulos 5.2.2.1. e 5.2.3.1.). Em regra, temos por nula cláusula que fixe prazo decadencial para o segurado realizar o aviso de sinistro, salvo em contratos de seguro paritários e simétricos (capítulo 5.2.2.2.). O prejuízo da seguradora com a demora na comunicação do sinistro (aviso de sinistro) consiste no eventual apagamento, pelo tempo, dos rastros probatórios de eventual "golpe do seguro" ou de fatos indispensáveis ao eventual direito de regresso da seguradora contra o terceiro culpado pelo sinistro no caso de seguro de dano (capítulo 5.2.4.2.1.). A ciência, pela seguradora, do sinistro por outro meio torna irrelevante a demora do segurado em efetuar o aviso do sinistro (art. 66, § 3º, MLS). Essa hipótese, porém, deve ser interpretada restritivamente para abranger apenas comunicações específicas feitas por terceiros. O mero fato de o sinistro ter repercutido na mídia não é suficiente (capítulo 5.2.4.2.2.). Não basta a existência de prejuízo à seguradora para eventual perda total ou parcial do seguro. É também preciso que o segurado tenha agido com dolo ou com culpa nessa demora. E, a depender do tipo do elemento anímico, a consequência será a perda total ou parcial do direito à cobertura (capítulo 5.2.4.3.). Se houver dolo do segurado na demora em comunicar o sinistro, haverá a perda total do direito à cobertura (art. 66, § 1º, CC), ressalvado o dever de restituir a reserva matemática. Não se trata de qualquer dolo, mas o de apagar os rastros probatórios sobre eventual "golpe do seguro" ou culpa de terceiro vinculado ao segurado. O ônus de provar esse dolo é da seguradora, observado, porém, o dever de colaboração probatória do segurado a pedido da seguradora (capítulo 5.2.4.3.1.). Se houver culpa (e não dolo) do segurado na demora em comunicar o sinistro, haverá a perda apenas do direito à cobertura dos danos causados pela omissão (art. 66, § 2º). É da seguradora o ônus probatório em demonstrar que o dano poderia ter sido evitado caso ela tivesse sido comunicada do sinistro logo após a ciência do segurado (evitabilidade do dano) (capítulo 5.2.4.3.2.). Em contratos paritários e simétricos - os quais geralmente ocorrem nos casos de seguros para cobertura de grandes riscos -, são lícitas cláusulas relativas ao ônus probatório e a prazos decadenciais para o aviso do sinistro. É nula, porém, cláusula que altere o prazo prescricional (capítulos 5.2.2.2. e 5.2.4.4.). No caso de pretensão de terceiro beneficiário contra a seguradora, o prazo prescricional foi reduzido pelo MLS de 10 anos para 3 anos, contados da ciência do fato gerador. Não se aplicam contra o terceiro beneficiário os deveres de comunicação imediata do sinistro, sob pena de perda total ou parcial da cobertura (capítulos 5.1. e 5.4.). No caso de desfecho do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro envolvendo pleito do terceiro beneficiário, o prazo prescricional voltará a fluir: (a) com a ciência, pelo segurado, da recusa da seguradora; ou (b) no 31º dia seguinte à ciência, pelo segurado, da decisão favorável (capítulo 5.2.). Se a seguradora extrapolar o prazo máximo de processamento do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro envolvendo pleito do terceiro beneficiário, haverá o deferimento tácito do pedido (sunset clause) e o prazo prescricional voltará a fluir no 31º dia seguinte à consumação desse prazo máximo (capítulo 5.3.). Sem prévia tentativa extrajudicial de recebimento da cobertura, falta interesse de agir ao terceiro beneficiário para a cobrança judicial. O juiz, porém, deixará de extinguir o feito se a seguradora vier a se insurgir contra o pleito na contestação, por conta da superveniência do interesse de agir. Entendemos que haverá interesse de agir quando o prazo prescricional trienal estiver perto do fim, mas, se a seguradora reconhecer o pedido na contestação, o terceiro beneficiário é que terá de suportar os ônus sucumbenciais (capítulo 5.5.). 2. Introdução O Professor Pablo Stolze Gagliano, com o didatismo e o talento que o caracteriza, enfrentou um tema importantíssimo: o prazo prescricional de pretensões do segurado e do terceiro beneficiário contra a seguradora2. Fê-lo, comparando o cenário atual com o ambiente que se descortinará em dezembro deste ano (2025), com a entrada em vigor do Marco Legal dos Seguros (lei 15.040/24). No presente artigo3, partiremos das incensuráveis reflexões do genial civilista baiano para enfrentar duas questões extremamente sensíveis: qual é o prazo para o segurado comunicar o sinistro para a seguradora? E qual é a consequência da não observância desse prazo? 3. Deslocamento geográfico da disciplina dos seguros e a impropriedade do nome de batismo da nova lei Temos que o Marco Legal dos Seguros - MLS (lei 15.040/24) - comete um pecado grave: arranca do Código Civil a disciplina de Contrato de Seguro. Ele revoga todos os dispositivos do Código sobre seguros. Segue caminho diverso do que foi proposto no Anteprojeto de Reforma do Código Civil pela Comissão de Juristas do Senado Federal, a qual promovia alterações no próprio Código Civil4. Parece-nos um grave equívoco, porque o Código Civil representa a centralidade normativa do ordenamento privado. Matérias nele tratadas desfrutam de igual centralidade. Nesse ponto, lembramos estas didáticas palavras do jurista italiano Sandro Schipani na sua consagrada obra "El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos": (...) Sem dúvida, nunca nos tempos modernos o código foi expressão da totalidade do direito produzido pelas leis de um Estado (...). Com efeito, o código só é o lugar onde foi fixado o núcleo mais sistematicamente ordenado do direito, e constitui o centro ao redor do qual o sistema se torna estável, com a ajuda da doutrina, no marco de um trabalho de aprimoramento contínuo.5 O MLS jogou a disciplina civil dos contratos para uma posição periférica do ordenamento, como mais uma das várias leis que orbitam ao redor do Código. Talvez essa mudança geográfica acabará por repercutir no próprio estudo da matéria, visto que a grade curricular dos cursos de Direito (e até os editais de concursos públicos) costuma focar o Código Civil e nem sempre incursiona na legislação extravagante. Enfim, o Contrato de Seguros - que é um dos mais importantes da nossa sociedade - não mais integra o núcleo do Planeta do Direito Privado e passou a enfileirar-se entre os vários satélites que o orbitam. Mas o deslize não está apenas nesse rebaixamento de status do contrato de seguros, até porque o mais importante é a aplicação prática das leis. O pecado está no fato de que a nova lei, apesar de ostentar o apelido de Marco Legal, limitou-se a disciplinar alguns aspectos de Direito Civil do Contrato de Seguro, sem, porém, reunir outros aspectos do tema. Portanto, a nova lei coexistirá com outras leis que disciplinam o contrato de seguro (ainda que em relação a aspectos de Direito Administrativo Regulatório ou a espécies próprias de seguros). Assim, seguem em vigor outras leis que também tratam do contrato de seguro: a lei das Seguradoras (decreto-lei 73/66), a lei do Seguro DPVAT (lei 6.194/74), o decreto-lei 2.063/40. A falta de uma lei única aumenta riscos de contradições e dificulta a sistematicidade da regulamentação. Portanto, até mesmo o nome de batismo "Marco Legal dos Seguros" não se revela adequado para a nova lei (lei 15.040/24). Além disso, esse nome contrasta com o nome de batismo do decreto-lei 73/66 (conhecido como lei das Seguradoras). Seja como for, o epíteto "Marco Legal dos Seguros" grassou no meio jurídico durante a tramitação do processo legislativo, razão por que convém dar continuidade ao apelido para evitar confusões terminológicas. Por fim, há mais um fato que também demonstra o pecado do MLS em extrair do Código Civil a disciplina do tema. É que, do ponto de vista axiológico-normativo, nada absolutamente mudará. Explica-se. Nos corredores dos ambientes jurídicos, costumam ouvir-se críticas (muitas vezes, exageradas) de que o Poder Judiciário agiria com forte intervencionismo nos contratos, frustrando a autonomia privada e a previsibilidade das partes. E um dos culpados disso seria o fato de que o Código Civil teria se valido de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas. Assim, sob a lógica desse zunido de corredores jurídicos, uma saída seria retirar do Código Civil a disciplina de determinados conteúdos. Trata-se de infundado raciocínio. Além de muitas das críticas de intervencionismo serem descabidas - ao menos pelo que podemos observar da razoabilidade e temperança própria dos julgados do STJ -, a verdade é que o Código Civil é o Planeta ao redor do qual orbitam as leis privadas extravagantes. Por isso, todos os princípios, cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados do Código Civil exercem determinante força gravitacional sobre as leis extravagantes. Isso significa que o deslocamento geográfico da disciplina civil dos contratos, em nada, alterará a função interpretativa e integrativa dos princípios e das normas abertas do Código Civil. Aliás, é importante lembrar que o próprio Código Civil de 2002, quando de seu nascimento, foi elogiado pela comunidade jurídica, conforme registra o Professor Flávio Tartuce no volume 3 de sua coleção: Quanto ao contrato de seguro e ao Código Civil de 2002, lembram Jones Figueirêdo Alves e Mário Delgado que "as mudanças do Código Civil relativas aos contratos securitários foram consideradas positivas durante o III Fórum de Direito do Seguro, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), em São Paulo (nov. 2002). Juristas brasileiros e estrangeiros que compareceram ao seminário jurídico demonstraram entusiasmo com as cláusulas gerais e com os princípios do Código, segundo afirmou o presidente do IBDS, Ernesto Tzirulnik. Em sua avaliação, 'foi unânime durante o evento que o novo Código é um passo enorme para a modernidade. Com ele, agora é possível ter uma lei de seguro moderna' (...)"6. Confira a íntegra da coluna. ___________________ 1 Art. 206. Prescreve:§ 1º Em um ano:I - A pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos;II - A pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo: Disponível aqui. Disponível aqui.a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador;b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze. A lei 15.040/24 (marco legal dos seguros) e a prescrição. Disponível aqui. Publicado em 6/1/25. 3 Este artigo também foi desenvolvido no contexto do estágio pós-doutoral em Direito Civil que este autor tem realizado na USP, sob a supervisão do professor doutor Eduardo Tomasevicius Filho. 4 Disponível aqui. 5 Tradução livre de excerto extraído de: SCHIPANI, Sandro. El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos. Fondo Editorial: Lima/Peru, 2015. 6 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 662.
segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A ameaça da indisponibilidade retroativa

O nosso direito tem como fonte o direito romano, que por sua vez tem um brocado que diz: prior in tempore, potior in iure. Esse brocardo latino pode ser traduzido como "que for primeiro no tempo, é mais forte no direito". É intuitivo que numa fila a prioridade é de quem chegou primeiro. Vemos isso quando notamos que normalmente a prioridade dos créditos é determinada pela anterioridade da penhora do bem, quando a preferência de trânsito em uma rotatória é de quem nela chega primeiro ou ainda a prioridade para estacionar é de quem numa vaga antes estaciona. Os exemplos do dia a dia seriam muitos. E no registro de imóveis não é diferente. Nele há o princípio da anterioridade, que estabelece qual direito deve prevalecer quando dois direitos contraditórios colidirem. Isso está previsto na Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), no art. 186, que diz: o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente. Há raras exceções, mas igualmente previstas em lei (arts. 189 e 192). Além de ser intuitiva a prioridade de um documento primeiro apresentado, esse princípio da anterioridade é desdobramento de outro princípio ainda maior, que é o princípio da segurança jurídica. Todo o sistema notarial e registral é sustentado por esse verdadeiro princípio mãe. Se compararmos com uma árvore, o princípio da segurança jurídica é o tronco, do qual saem vários os galhos de outros princípios, como o da anterioridade, da disponibilidade, da especialidade, da unitariedade da matrícula, etc. Todos os juristas sabem que um princípio é muito mais importante que uma norma isolada, pois ele é fundamento de todo um sistema lógico e coeso. O princípio jurídico, comparativamente a uma construção, é uma coluna de sustentação ou uma viga muito importante. É possível retirar de um prédio uma janela, uma porta ou até uma parede inteira. Mas a retirada de uma coluna ou de uma viga pode causar graves danos ou até a ruína do edifício. Infelizmente, o Conselho Nacional de Justiça, neste mês de dezembro de 2024, ao editar o Provimento 188, estabeleceu no § 3º do art. 320, I que: "A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". Assim nasceu a regra de que a ordem de indisponibilidade superveniente se sobrepõe a qualquer título, como uma escritura de compra e venda que tenha sido feita num tabelionato e protocolada no cartório de imóveis. Essa previsão é desastrosa, pois não há o menor sentido em ser proibido o registro de uma escritura feita quando nenhuma indisponibilidade existia, especialmente se essa escritura já tinha sido protocolada no registro de imóveis antes mesmo de a indisponibilidade existir. Imagine que você queira comprar um imóvel, além da escritura, é do nosso sistema que ela tenha que ser registrada no cartório de imóveis. Você toma todas as cautelas do mundo para que o negócio não tenha riscos, paga todo seu dinheiro pelo bem, inclusive tributos, leva a escritura para o cartório de imóveis e lá, dentro de alguns dias o registro será feito. Digamos que dois dias depois disso, surge uma ordem de indisponibilidade, que chega de imediato pela via eletrônica. Segundo a regra aqui criticada, não poderá o imóvel ser registrado em nome de quem o comprou e pagou: você. Isso é um absurdo. Não se pode presumir a má-fé ou o conluio de quem agiu com todo o cuidado e diligência. Se a justiça identificar algo errado, pode dar uma ordem para que um título certo e determinado não seja registrado. Igualmente, em certos casos, pode ser a matrícula do imóvel bloqueada. Mas ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Isso é assegurado pela nossa Constituição (Art. 5º, LIV), entre os direitos e garantias individuais, que são cláusulas pétreas, que nem podem ser objeto de supressão por emenda constitucional. Com maior razão, não é uma regra administrativa que poderá fazer isso, ainda que proveniente do CNJ. Evidentemente, por mais respeito que mereça o Conselho Nacional de Justiça, cujos membros integram a elite intelectual do direito nacional, não pode esse órgão, de natureza administrativa, por um Provimento, ir contra a Constituição Federal, contra a Lei 6.015/73 e os mais basilares e importantes princípios de direito em geral e notarial e registral em particular. O Provimento em questão tem vários méritos e aprimoramentos. O seu propósito foi o de melhorar o regramento anterior (Provimento 39) sobre o mesmo tema: a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Esse objetivo foi alcançado e merece elogios. Porém, a regra de que a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, é um tumor maligno que foi inserido num organismo até aqui sadio e plenamente funcional, pois havia 10 anos que a CNIB vinha produzindo ótimos resultados, sem essa regra draconiana, que ameaça direitos civis fundamentais. O Provimento 188 do CNJ é bom e merece vários elogios. Ele melhorou a CNIB. Mas a regra em questão precisa ser urgentemente suprimida ou ao menos ter sua eficácia suspensa, para maiores estudos, debates e para evitar prejuízos e males maiores. Vamos citar um exemplo hipotético, mas perfeitamente factível. Uma pessoa vende na mesma escritura dois imóveis, situados nas áreas de diferentes cartórios. A escritura é protocolada eletronicamente, no mesmo dia, nos dois cartórios. Ambos trabalham dentro dos prazos legais, mas um consegue ser mais ágil e registra a aquisição no dia 05. No dia 07 chega no sistema uma ordem de indisponibilidade. O outro cartório vai fazer o registro no dia 09, dentro do prazo legal. O que ocorre, segundo essa terrível regra? O comprador dos dois imóveis adquirirá de forma válida o imóvel registrado no dia 05, mas estará impedido de adquirir o outro, que seria registrado no dia 09. Como explicar isso a alguém? Por que a aquisição do segundo imóvel deve ser sacrificada? O comprador vai precisar mover um processo para conseguir ter o bem em seu nome? Quanto tempo isso vai demorar? Ele terá que desfazer o negócio e pedir o dinheiro de volta? O vendedor ainda terá o dinheiro para poder devolvê-lo? Vejam que essa regra cria problemas, que vão gerar processos, que até aqui eram evitados. O conflito entre direitos não pode gerar mais conflitos ainda. Isso vai na contramão da finalidade dos serviços extrajudiciais.  No nosso sistema, a aquisição de um imóvel exige o título e o modo, ou seja, é preciso que se tenha um documento que retrate um negócio e que esse documento, normalmente uma escritura, seja levado ao cartório de imóveis para ser registrado e assim produzir todos os efeitos legais, inclusive contra terceiros. A ordem de indisponibilidade deve ser protocolada e entrar na ordem cronológica como qualquer outro documento, para que produza efeitos a partir daí e não retroativamente. A retroatividade da restrição de direitos é algo que não se admite. Imagine alguém ser proibido hoje de fazer algo e isso alcançar os negócios feitos na semana passada, no mês passado? Imagine isso alcançar e prejudicar quem negociou com a pessoa afetada e não tinha a menor condição de saber que corria tamanho risco? A indisponibilidade é uma restrição ao direito de a pessoa dispor de seus bens. Ela é normalmente estabelecida no interesse de outra pessoa, como um credor. A pergunta que se faz é: por que um terceiro, normalmente detentor apenas de direito pessoal, deve ter seu direito prevalecendo sobre o credor de um direito real, como o direito de propriedade, mesmo tendo este já protocolado seu título aquisitivo consistente em um ato jurídico perfeito, em momento que direito do credor da indisponibilidade nem sequer existia? Em outras palavras, por que um direito até então inexistente pode prevalecer sobre outro perfeitamente hígido? Seria preciso uma importante ponderação que justificasse essa prevalência. Mas, como é sabido, a ponderação exige a análise de um caso concreto e jamais uma regra geral, especialmente uma regra administrativa, ilegal, ilógica e inconstitucional. A regra em questão afronta o propósito de aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro, que é uma finalidade prevista no art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça. Entre nós vigora um novo princípio chamado de "princípio da concentração dos atos na matrícula". Ele existe há quase 10 anos e está previsto na Lei nº 13.097/2015, nos artigos 54 a 58. Isso foi reforçado quando recentemente se instituiu a certidão de situação jurídica do imóvel, prevista na Lei 14.382/2022. Esse princípio estabelece que as informações a respeito da situação jurídica de um imóvel devem estar inseridas na matrícula desse imóvel. Até mesmo as indisponibilidades são inseridas nas matrículas e depois são canceladas quando elas deixam de existir. O que juridicamente importa é a publicidade do registro e não a inserção da restrição na CNIB, que não tem a mesma publicidade que o registro tem.  A não surpresa é um princípio expressamente previsto no processo civil. Mas, a norma em questão implementa a surpresa e até mesmo o medo no processo registral imobiliário. A quem beneficia a regra que criticamos e que coloca a perder todas essas conquistas? Em conclusão, podemos dizer que a indisponibilidade de bens trouxe inúmeras vantagens e deve ser cada vez mais aprimorada. Porém, não podemos ter a indisponibilidade retroativa. A Constituição, as leis, os direitos, a boa-fé e os princípios registrais devem ser respeitados pelo mais elevado órgão da administração da justiça do Brasil, por meio da revisão da regra em questão. Isto é o que respeitosamente defendemos neste singelo artigo acadêmico, mas escrito por pessoas especializadas que vivem teoria e a prática diária do direito notarial e registral imobiliário.
Assinatura eletrônica qualificada Os atos e assentos eletrônicos praticados pelo registrador e as certidões por ele expedidas e, em geral, qualquer documento que deva ser por ele assinado, serão firmados com sua assinatura eletrônica qualificada (art. 241 da LH). No caso brasileiro, reza a Lei 14.063/2020, para os "atos de transferência e de registro de bens imóveis", é imprescindível o uso da assinatura eletrônica qualificada (inc. IV, § 2º, do art. 5 c.c. letra "a", inc. III, art. 4º do Decreto Federal 10.543/2020). LSC - Lista de serviços confiáveis No Brasil não há ainda qualquer previsão legal das chamadas Listas de Serviços Confiáveis - ou TSL's Trusted Services Lists, como há na Europa (Regulamento (UE) 910/2014).1 A assimilação de figuras do sistema europeu, que difere essencialmente do modelo de assinaturas eletrônicas adotado no Brasil, parece desconsiderar que a ICP-Brasil é uma infraestrutura de chave-raiz única e que, portanto, prescindiria de uma autenticação colateral de prestadores qualificados de serviços de confiança (Qualified Trust Service Providers - QTSPs), criados para garantir a confiabilidade da identidade digital e a interoperabilidade de assinaturas eletrônicas, certificados digitais, carimbo do tempo etc. Deve-se fazer a ressalva da possível utilização para fins de reconhecimento de autenticidade entre o Brasil e outros países ou blocos e a utilização progressiva no âmbito corporativo.2 No âmbito da UE adota-se uma certificação colateral, descentralizada, diferente essencialmente do modelo brasileiro que adota  uma árvore hierárquica com as AC's (Autoridades Certificadoras) de 1º e 2º níveis e Autoridades de Registro vinculados à AC-raiz.3 Adotar o modelo de LSC não faz muito sentido no caso concreto do Registro de Imóveis brasileiro, já que, como vimos, no Brasil a Lei de Assinaturas Eletrônicas não as prevê - muito menos como condição para a prática de quaisquer atos de registro imobiliário.4 Mesmo no caso das assinaturas avançadas, não há qualquer necessidade de se publicar LSC's de prestadores qualificados de serviços de confiança, já que, por definição, o uso das assinaturas avançadas extrai os atributos de validade e eficácia de um prévio acordo de vontades, consoante o disposto no inc. II do art. 4º da Lei 14.03/2020: "assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento". Vale dizer: "há presunção de acordo de vontades quanto à utilização do método de assinatura eletrônica (avançada)", como vem de decidir recentemente o STJ.5 Seja como for, o CNJ tem regulamentado a criação de LSC's no âmbito do SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Ainda há pouco o ONR - Operador do Sistema Nacional do Registro Eletrônico baixou a Instrução Técnica de Normalização (ITN) 2/2024, dispondo sobre os serviços "descritos na Lista de Serviços Eletrônicos Confiáveis do Registro de Imóveis (LSEC-RI) e sobre o uso de assinatura eletrônica nos atos de registro de imóveis"6. O art. 329-A da CNN/CN/CNJ-Extra prevê que a composição da LSEC-RI deverá descrever os serviços considerados confiáveis pelo ONR e conterá, "pelo menos, os serviços de assinatura eletrônica".7 Prevê-se, igualmente, que a LSEC-RI "será regulamentada mediante Instrução Técnica de Normalização (ITN), expedida pelo ONR, que poderá alterar, incluir e excluir serviços nela previstos, bem como disciplinar a extensão do acesso das assinaturas previstas neste artigo ao Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis - SREI" (§ 3º do art. 329-A da CNN/CN/CNJ-Extra). Após a publicação da ITN 2/2024, o agente regulador a homologaria, embora com restrições, suspendendo cautelarmente os parágrafos 1º e 2º do artigo 5º da ITN 2/2024.8 A matéria ainda há de ser discutida no âmbito da Câmara de Regulação, de modo que calham algumas observações. O art. 6º da ITN 2/2024-rev. prevê que os atos de constituição, transferência, modificação, extinção ou renúncia de direitos reais sobre imóveis quando promovidos por entidades como SFI, SFH, cooperativas de crédito, companhias securitizadoras e agentes fiduciários, administradoras de consórcio de imóveis e instituições financeiras autorizadas pelo Bacen poderão usar todas as modalidades de assinatura previstas na LSEC-RI. A lista parece ter sido decalcada dos Provimentos CNJ 172 e 175, de 2024, e possivelmente incorre numa confusão entre os requisitos formais substanciais dos títulos (imprescindibilidade da escritura pública - art. 108 do CC) com a autenticidade das assinaturas eletrônicas nele apostas. São coisas distintas e o paralelismo revela certa incompreensão do sistema. Vejamos ligeiramente a questão, partindo-se do pressuposto de que a decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes invalidou os Provimentos CNJ 172/2024 e 175/2024, assegurando o registro de contratos de alienação fiduciária de imóveis, independentemente da natureza do credor fiduciário.9 A Lei das Assinaturas Eletrônicas prevê uma exceção à regra da assinatura eletrônica qualificada (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020). Trata-se do art. 17-A, que reza: "Art. 17-A. As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta Lei". Conjugando-se as expressões instituições financeiras, crédito imobiliário e partícipes dos contratos podemos chegar facilmente às seguintes conclusões: a) Não é necessário arrolar no art. 6º hipóteses que se acham estabelecidas na própria lei. Elas independem de reconhecimento de admissibilidade e confiabilidade que decorre do microssistema da própria lei - não de ato administrativo do ONR. b) As companhias securitizadoras "são instituições não financeiras, constituídas sob a forma de sociedade por ações" (art. 18 da Lei 14.430/2022). Portanto, não se enquadrariam na regra do art. 17-A supra referido - nem deveriam figurar no rol do art. 6º da ITN. Elas são fiscalizadas pela CVM (inc. I e III do art. 8º da Lei 6.385/1976, dentre outros). c) Anteriormente, com a apresentação física dos instrumentos do crédito imobiliário diretamente no cartório não se exigia qualquer tipo de autenticação - nem das instituições, nem tampouco dos partícipes dos contratos. Todavia, em meios eletrônicos houve o robustecimento das exigências formais dos instrumentos, de modo que os contratantes (partícipes) agora deverão firmar os instrumentos, elegendo a modalidade de assinatura avançada ou qualificada.10 Enfim, quando não haja a conjunção dos elementos destacados no art. 17-A da Lei 14.063/2020, salvo melhor juízo, será imprescindível o uso de assinatura qualificada. O fato é que a ITN confunde conceitos muito distintos, como assinatura eletrônica e certificado digital, módulos de digitalização e repositórios (Decreto 10.278/2020), criação de Trusted Services Lists etc. Uma coisa é uma coisa - outra coisa é outra coisa O CNN/CN/CNJ-Extra admite algumas modalidades de assinaturas eletrônicas, mas não discrimina em quais hipóteses específicas as assinaturas avançada ou qualificada podem ser utilizadas no processo de registro, o que leva o intérprete a perscrutar a ITN, onde há indicações que poderiam nortear o dia a dia do registrador. Embora a ITN se encontre em vigor, ainda é possível agitar os seguintes argumentos: a) O uso de assinaturas avançadas, abrangendo tout court quaisquer atos de constituição, transferência, modificação, extinção ou renúncia de direitos reais sobre imóveis contraria frontalmente a lei 14.063/2020 (inc. IV, § 2º, do art. 5º - "atos de transferência e de registro de bens imóveis"). b) A CN-CNJ não delegou ao ONR (e nem poderia) a competência, a ela atribuída expressamente pela lei, para que o Operador pudesse dispor sobre o uso de assinaturas avançadas ou qualificadas, conforme o caso (parágrafos do art. 17 da LRP e art. 38 da lei 11.977/2009). A regulamentação e normatização dos serviços notariais e registrais é próprio das atribuições cometidas ao Corregedor Nacional de Justiça e é matéria indelegável, nos termos do inc. X do Art. 8º do Regimento Interno do CNJ.11 c) Tratando-se de efeitos jurídicos materiais (não formais) das assinaturas eletrônicas (autoria, validade, integridade e eficácia jurídica), não caberia ao ONR, pessoa jurídica de direito privado, regulamentar, mediante ITN, matéria de tal jaez. O "N" do acrônimo não é sinônimo de "normatização", mas de mera "normalização" (aspectos tecnológicos e administrativos - plataformas, sistemas e serviços eletrônicos (art. 228-I da CNN-CN-CNJ-Extra). d) Os parágrafos do artigo 17 da LRP tratam de hipóteses de rogação, trânsito e expedição de certidões (publicidade formal), não acerca de títulos admitidos a registro, nem de seus efeitos, atributos e requisitos (art. 221 da LRP). e) Já o § 2º do art. 38 da Lei 11.977/2009 alude a "hipóteses de admissão de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis", o que faz presumir, naturalmente, que deva haver a ponderação entre as hipóteses admitidas. A exegese deve conduzir à conciliação de tais disposições com a lei especial de regência (Lei 14.063/2020). f) A assinatura eletrônica qualificada é a "que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos", consoante o § 1º do art. 4º da Lei 14.382/2022. Tratando-se de instrumento pré-constituído para efeitos de registro, todo o rigor é necessário para fortalecer o sistema registral. g) Segundo a lei, a Corregedoria Nacional deverá estabelecer os "padrões tecnológicos (...) de recepção e comprovação da autoria e da integridade de documentos em formato eletrônico, (...) observada a legislação" (inc. III do art. 7º da Lei 14.382/1011). A lex specialis (14.063/2022) impõe o uso da assinatura qualificada. É muito sensível a questão da extrapolação dos limites impostos pela lei (e pelos atos normativos do próprio CNJ). Por decisão do Sr. Ministro Corregedor-Nacional, a matéria objeto da ITN 2/2024-RCPN (Registro Civil), acaba de ser fulminada em virtude de a ITN exorbitar os limites estritos de "normalização", na medida em que teria avançado sobre matéria reservada à Lei. O art. 228-I da CNN-CN-CNJ-Extra reserva às ITN's "o detalhamento de orientações aos oficiais de registros públicos sobre o cumprimento de determinações legais ou normativas que digam respeito às plataformas, sistemas e serviços eletrônicos". As instruções que exorbitem das atribuições estritas conferidas pela Corregedoria Nacional, ou quando "incorram em colidência com disposição legal ou normativa", podem ser suspensas de modo cautelar ou mesmo ser cassada (§ 3º do art. 228-I). Ou seja, as ITN's devem dispor sobre aspectos meramente administrativos e tecnológicos, não podendo avançar sobre os efeitos jurídicos materiais relativos à presunção de autoria, autenticidade e integridade dos instrumentos que acedem ao Registro. Em suma, a definição acerca da validade e eficácia dos instrumentos eletrônicos admitidos a registro - títulos que, como já demonstrado anteriormente, são aparelhados com requisitos formais obrigatórios (art. 221 da LRP)12 - não pode ser objeto de uma ITN.R Registro eletrônico - o suporte material Vimos que o Registro Imobiliário se fará com base na técnica do fólio real em formato e suporte eletrônicos, por meio de um sistema eletrônico registral (art. 238, 1, da LH). Entretanto, não se fez qualquer alusão à matriz e a seu representante digital, fazendo presumir que os atos de registro se farão exclusivamente em plataformas e repositórios inteiramente eletrônicos. De fato, diz a lei que o fólio real eletrônico será criado por ocasião da primeira inscrição, seja pela matriculação do imóvel ou por qualquer outra inscrição sucessiva (à exceção dos assentos acessórios13). Far-se-á, então, a apuração da situação jurídica do imóvel e de seus titulares, indicando-se os ônus e demais circunstâncias que nela interfiram (art. 238, 2). A primeira questão que exsurge é a seguinte: os livros de registro tradicionais serão descontinuados? Os registros serão feitos exclusivamente em meios eletrônicos? Parece ser assim, contrariamente ao que dispôs a própria lei espanhola em relação aos protocolos notariais, como vimos acima, na parte I. Esta opção legislativa encontra relativa correspondência com a reforma promovida pela Lei 14.382/2022, que criou, entre nós, o fólio real inteiramente eletrônico - § 1º do art. 3º c.c. art. 7º-A da LRP. As disposições legais acerca dos nossos livros tradicionais não se aplicam "à escrituração por meio eletrônico de que trata o § 3º do art. 1º desta Lei". Na Espanha suprimiu-se, pura e simplesmente, a escrituração em livros tradicionais, devendo cada novo ato - de registro ou de matriculação - inaugurar o fólio real eletrônico (à exceção dos assentos acessórios, como vimos). No sistema brasileiro, poderão coexistir, a partir do advento da Lei 14.382/2022, três sistemas de suporte material dos atos de registro ainda ativos e que poderão, eventualmente, acolher inscrições: (a) livros anteriores à criação do sistema de matrícula14, (b) livros de matrícula e de registro auxiliar15 e (c) fólio real eletrônico16. Ainda no sistema da Lei 6.015/1973, sustentei que os livros de transcrição estavam simplesmente encerrados. A coexistência de diversos modelos organizativos de suporte das inscrições era uma interpretação equivocada do conjunto normativo representado pelos artigos 295 e 297 da LRP.17 No sistema espanhol, "os arquivos digitalizados, os documentos e livros físicos anteriores à implantação do fólio real em formato eletrônico, formam parte do arquivo do Registro e seguirão produzindo plenos efeitos jurídicos (art. 238, 5). A digitalização do acervo dos nossos registros de imóveis, consoante o parágrafo único do art. 39 da Lei 11.977/2019, demanda a regulamentação da gestão documental das serventias extrajudiciais18. A supressão da matriz tradicional dos livros de registro em papel é objeto de críticas formuladas pela melhor doutrina. FERNANDO P. MÉNDEZ, por exemplo, afirma que a supressão do "duplo suporte" do registro (papel e eletrônico) terá sido uma decisão quiçá precipitada. O seu argumento é ponderável, vejamos: "O principal problema que surge ao se dispensar o suporte em papel e adotar apenas o eletrônico para os assentos registrais (ao contrário do que ocorre com o protocolo notarial, que ainda mantém ambos os suportes, papel e eletrônico, com prevalência do primeiro em caso de divergência), é que a engenharia eletrônica ainda não resolveu satisfatoriamente o problema da conservação de longo prazo de documentos eletrônicos. Por esse motivo, é aconselhável manter o duplo suporte em papel e eletrônico"19. Cita vários exemplos e conclui de modo muito realista: "Além disso, deve-se acrescentar que uma das características do papel é sua autossuficiência, ou seja, uma vez impresso, não são necessários meios adicionais para acessar seu conteúdo, basta lê-lo, o que significa que não são necessários mecanismos adicionais para a leitura e interpretação dos dados ao longo do tempo. Por outro lado, os dados armazenados digitalmente sempre exigem elementos externos ao próprio suporte para acessar as informações. Por fim, o papel não requer sistemas caros e tecnologicamente complexos para sua conservação"20. Um aspecto marginal e que merece ser realçado é o fato de que na Espanha a titulação é essencialmente pública. Ao dispor a Lei do Notariado que os protocolos notariais serão mantidos e pareados com os representantes digitais, dá-se ensanchas a que se mantenha um repositório estável e protegido que permitirá a reconstituição do próprio registro nos casos de desastres tecnológicos e apagamento de dados. No caso brasileiro, a titulação é em grande medida privada, títulos volantes que podem facilmente se extraviar. Ao alterar o art. 194 da nossa Lei de Registros Públicos, a Reforma de 2022 pode ter deixado o sistema desfalcado de um arquivo auxiliar que serviu ao longo de muitas décadas para reconstituição, retificação ou simples aclaramento dos atos de registro. A partir do advento da Lei 14.382/2022, somente os títulos "físicos" deverão ser digitalizados, "devolvidos aos apresentantes e mantidos exclusivamente em arquivo digital nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça". Pergunta-se: e os títulos natodigitais e os digitalizados? A lei silencia, presumindo-se, contudo, que estes deverão ser igualmente mantidos em repositórios arquivísticos digitais confiáveis (RDC-arq) dos cartórios para que se dê certidão quando solicitado (art. 18, in fine, da LRP). Repositórios, aliás, que não foram até hoje regulamentados. Por fim, não é possível que se crie um repositório inteiramente eletrônico (fólio real eletrônico) sem que se proceda, previamente, a escrupulosa especificação dos tipos e classes de inscrições, com a criação e manutenção de preciso vocabulário das variáveis que articulam a estrutura semântica-registral (ontologia registral)21. No Brasil, busca-se uma espécie de reforma big bang, com a supressão imediata da lavratura de atos em livros tradicionais e substituição dos meios tradicionais por plataformas e repositórios inteiramente eletrônicos22. Como disse alhures, ficamos a meio caminho da ambiciosa pretensão de inauguração do admirável mundo novo do registro eletrônico.[ Registro de Imóveis padrão e a segurança de dados registrais Os Registros eletrônicos aplicarão, obrigatoriamente, um esquema de segurança que será definido com base em um modelo de registro imobiliário estereotipado pelo órgão competente do Colégio de Registradores da Propriedade, Mercantil e de Bens Móveis da Espanha (CORPME). Os Registros Públicos adotarão esquema de segurança eletrônica padrão que deverá ser encaminhado à Direção Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública (DGSJFP) para aprovação23. Dá-se especial atenção à garantia de "leitura e verificação dos assentos e documentos registrais ao longo do tempo, com os processos necessários para a atualização periódica dos sistemas, aplicativos e dados, de forma a garantir a permanência destes a longo prazo, incluindo, quando for o caso, nova assinatura eletrônica dos documentos ou técnicas semelhantes que possam ser desenvolvidas" (art. 239 da LH). Vê-se a preocupação, desde a partida, com a padronização e protocolos de conservação de dados, o que não é possível sem a especificação de um bom sistema de gestão de repositórios digitais confiáveis (RDC-Arq)24. Por outro lado, a estereotipação (modelo de oficina registral) busca harmonizar os processos do sistema registral para interoperação num sistema de registro eletrônico orgânico e funcional. No Brasil, o modelo análogo é o SREI, especificado pelo CNJ-LSITec25 e regulamentado pelo Provimento 89/2019 da Corregedoria Nacional de Justiça (art. 321 do CNN/ CN/CNJ-Extra). Molecularização dos registros Um aspecto importante a ser destacado é a singularidade do poder/dever de qualificação de cada registrador imobiliário in suo ordine, exercido no âmbito de sua própria serventia, interagindo com as demais unidades por meio de interconexão e interoperabilidade (não centralização decisória e concentração de dados).26 O modelo é molecularizado27. Assim, "tanto a base de dados de cada Registro como o arquivo formado pelos assentos registrais, dos quais derivam os efeitos previstos nas leis e regulamentos, devem estar localizados no cartório de registro, sob a custódia do registrador" (art. 239 do LH)28. Quando seja necessário transmitir os dados para além das fronteiras lógicas de cada serventia - como no caso de backup incremental - os dados deverão ser "criptografados na origem por meio de um certificado eletrônico exclusivo de cada cartório de registro imobiliário sob responsabilidade do registrador titular da circunscrição, que será o único que poderá autorizar sua descriptografia e uso" (art. 239, in fine).29 No caso brasileiro, após a criação do BD-Light30 e do T-Box (backup de imagens de matrículas), foi adotado o Next Cloud SAS (Serventia Avançada Segregada). "Essa nova solução", diz Flauzilino Araújo dos Santos, "desenvolvida em nuvem, (...) visa implementar alto nível de segurança utilizando tecnologia de segmentação, segregação e criptografia de rede ponto a ponto, implementados em nuvem, com ambiente dedicado e exclusivo para cada uma das serventias". E segue: "A solução atende, perfeitamente, ao preceito do art. 30, inciso XII, da Lei nº 8.935/1994, pois prevê a facilitação de acesso à documentação existente nas serventias às pessoas legalmente habilitadas, porém, de forma controlada, preservando, outrossim, a integridade do acervo das serventias, que fica sob o controle do respectivo Oficial de Registro de Imóveis. Ademais, trata-se de um serviço de armazenamento de dados que oferece disponibilidade, estabilidade, performance, escalabilidade, economia de custos e muito mais". (...) "O NEXT CLOUD SAS fornece um ambiente dedicado com exclusividade por serventia, onde cada serventia tem projeto e compartimento únicos localizados no território brasileiro. Essa infraestrutura é composta por Bucket no Cloud Storage e NoSQL DataBase como serviço, com recursos de gerenciamento e monitoramento para que o oficial ou seu técnico de confiança possa configurar o acesso aos dados dos quais é o controlador, para atender aos requisitos específicos da aplicação.  O SAEC/ONR tem permissão de acesso restrito a leitura e somente mediante utilização da API.31 Conclusões Como vimos, há uma tendência incontornável de digitalização dos serviços notariais e registrais. A "plataformização" do Registro de Imóveis - neologismo revelador dos impactos da tecnologia de comunicação e informação na atividade - traz consigo uma série de riscos que devem ser sopesados de modo prudente e criterioso. O Brasil compõe o seleto grupo de países que adotam o modelo institucional de registro de direitos que releva a qualificação jurídica dos títulos apresentados a registro (princípio da legalidade).32 As novas tecnologias exercem uma influência poderosa, muitas vezes provocando a reconformação do arcabouço infraestrutural do sistema pela assimilação de padrões e influências oriundas de outros modelos - como os chamados registro de títulos. A abordagem de direito comparado, com todos os riscos envolvidos, pode nos dar elementos para compreender o movimento de transformação das instituições jurídicas no Brasil e ao redor do mundo. A reforma da LRP, dependendo de como ela for implementada, pode nos levar a uma mudança de paradigmas, atentos ao fato de que a disrupção pode representar simplesmente a destruição do modelo adotado há mais de uma centúria pelo registro imobiliário brasileiro. __________ 1 eIDAS (Electronic Identification, Authentication and Trust Services), Regulamento (UE) 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23/7/2014, relativo à identificação eletrônica e aos serviços de confiança para as transações eletrônicas no mercado interno. 2 O Decreto Legislativo 24 de 11/04/2024, aprovou o acordo de Reconhecimento Mútuo de Certificados de Assinatura Digital do Mercosul de 5/12/2019 e o ITI - Instituto Nacional da Tecnologia da Informação será o coordenador operacional do acordo, órgão responsável por manter e executar as políticas da ICP-Brasil. No mundo corporativo, por exemplo a LSC da Microsoft para os hubs de eventos do Azure, vide: https://learn.microsoft.com/pt-br/azure/key-vault/general/network-security 3Para uma visão geral da estrutura da árvore hierárquica da ICP-Brasil acesse: https://estrutura.iti.gov.br/ 4A ideia originou-se das iniciativas do RCPN (Arpen). V. art. 228-F do CNN-CN-CNJ-Extra. 5 REsp 2.150.278/PR, j. 24/9/2024, Dje 27/9/2024, Min. Nancy Andrighi. Disponível: http://kollsys.org/v9v. 6 ITN 2/2024, de 15/10/2024, disponível em http://kollsys.org/v2n. 7 Provimento CN-CNJ 180/2024, de 16/8/2024, Dje 20/8/2024, Min. Luís Felipe Salomão. Disponível em http://kollsys.org/ut4. 8 Processo 1999715, decisão de 6/11/2024, Ministro Mauro Campbell Marques. Disponível: http://kollsys.org/v6c. 9 MS 39.930-DF, dec. de 13/12/2024, Dje 16/12/2024, Min. Gilmar Mendes. Disponível: http://kollsys.org/veb. 10 Não se reconheciam as firmas dos contratantes. Esta foi a razão fundamental que permitiu a construção da infraestrutura que admitiu o envio de instrumentos particulares das instituições financeiras do crédito imobiliário com a singela assinatura qualificada do agente financeiro. Agora a lei exige assinaturas avançadas ou qualificadas dos partícipes do negócio jurídico. 11 O Regimento do CNJ é "ato normativo primário, cujo fundamento de validade é extraído diretamente do art. 5º, § 2º, da EC nº 45/2004", consoante vem decidindo o STF (MS 35.151, j. 19/9/2017, Dje 21/9/2017, rel. Min. ROSA WEBER). Mais recentemente, O STF consolidou o entendimento de que o § 2º do art. 5º da EC 45/2004 conferiu competência ao CNJ para que, mediante resolução, possa não só disciplinar seu funcionamento, mas "definir as atribuições do Corregedor, enquanto não normatizada a matéria pelo Estatuto da Magistratura" (ADI 4.709-DF, j. 30/5/2022, Dje de 9/6/2022, rel. Min. ROSA WEBER). 12 Os instrumentos particulares são admitidos a registro quando preencham as formalidades previstas no inc. II do art. 221 da LRP. Amaral Santos anota que o instrumento particular é prova pré-constituída do ato jurídico, e averte: "o instrumento particular difere do documento particular (no sentido estrito), que é uma prova casual. Como todo instrumento, o particular é dotado de força orgânica para a realização ou exequibilidade de um ato jurídico". E conclui: o "instrumento particular é o escrito que, emanado da parte, sem intervenção do oficial público, respeitada certa forma, se destina a constituir, extinguir ou modificar um ato jurídico". SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV. São Paulo: Max Limonad, 4ª ed., 1972, p. 180, n. 94. O instrumento é "forma especial, dotada de força orgânica para realizar ou tornar exequível um ato jurídico". ALMEIDA JR. João Mendes de. Direito Judiciário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 194. Reproduzi os argumentos dos nossos maiores na crítica à criação dos extratos eletrônicos pela Lei 14.382/2022. V. JACOMINO, Sérgio. Extratos, títulos e outras notícias - pequenas digressões acerca da reforma da LRP (Lei 14.382/2022). In: NALINI, J. Renato, org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos. São Paulo: Forense, 2022, p. 375. 13 O art. 41 do RH espanhol prevê as seguintes classes de assentos ou inscrições: asientos de presentación, inscripciones propiamente dichas, extensas o concisas, principales y de referencia; anotaciones preventivas, cancelaciones y notas marginales. O sistema brasileiro prevê basicamente duas classes - registro e averbações - embora abranja as espécies que mereceram destaque na lei espanhola (protocolo, registros, penhoras e demais constrições judiciais, cancelamentos e averbações). 14 Livros de registro previstos no Dec.-Lei 4.857/1949 (art. 182) e mesmo livros criados anteriormente a 1939 (Decreto 18.542/1928 e anteriores), inscrições que se farão à margem de transcrições e inscrições eventualmente ativas. 15 Art. 172 da Lei 6.015/1973. 16 O Fólio Real Eletrônico acha-se ainda pendente de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça (§ 3º do art. 1º da LRP c.c. art. 7º da Lei 14.382/2022 e art. 37 da Lei 11.977/2009). 17 JACOMINO, Sérgio. O estado agônico dos antigos livros de registro: uma proposta de encerramento após o encerramento in Revista de Direito Imobiliário. São Paulo, v. 37, n. 77, p. 107-124, jul./dez. 2014. 18 Sobre a gestão documental, v. JACOMINO, Sérgio. Original e cópia - o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios. São Paulo: Observatório do Registro, 19.2.2024. Disponível em: https://wp.me/p6rdw-3pv. 19 MÉNDEZ, Fernando P. Problemas associados à digitalização do Registro Mercantil. Texto inédito confiado ao autor deste opúsculo. 20 Idem, ibidem. Tão verdadeiro é o que nos revela que enfrentamos um problema de recuperação de fitas DAT - Digital Audio Tape, método de backup que utiliza fitas magnéticas para gravar dados. Foi necessário adquirir equipamentos da década de 2000 para acessar e recuperar os dados... 21 No âmbito dos estudos acerca da ontologia registral, empreendidos no bojo do NEAR - Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis, chegou-se à conclusão de que seria necessária uma modelagem de um vocabulário técnico pré-definido e estruturado que servirá de base para a classificação dos atos registrais e permitir, assim, a sua recuperação e relacionamento com outros objetos digitais. O estudo da ontologia registral deteve-se na especificação da Pessoa, Imóvel, Ato e Situação Jurídica do Imóvel. Sobre o tema da ontologia registral, v. BRASILEIRO. Freddy. POC-SREI. Capítulo VII - Ontologia Registral. 1/12/2019. Acesso: https://near-lab.com/2020/02/14/poc-srei/. Vide também LAGO. Ivan Jacopetti. Ontologia registral - sujeitos de direito e suas representações nos Registros Públicos. BIR, São Paulo: IRIB, jun. 2020, p. 93. Do mesmo autor, Atos, fatos e negócios jurídicos. O que se registra? O que se constitui? O que se publica? Ontologia registral. BIR 365, São Paulo: IRIB, maio de 2023, p. 93 et seq. JACOMINO. Sérgio. Por que ontologia registral? BIR 365, São Paulo: IRIB, maio de 2023, p. 101 et seq. 22 Sobre as iniciativas de reformas big bang, v.  NOGUEROLES. Nicolás. ¿Reforma Big Bang o Reforma Gradual? Inglaterra y Alemania: dos reformas recientes. São Paulo: Folivm. 5.4.2011. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2011/04/dos-maneras-de-reformar-ref-big-bang-2.pdf. 23 A Direção Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública é órgão do Ministério da Justiça da Espanha e tem por atribuição legal, entre outras, a regulamentação e supervisão dos serviços notariais e de registro daquele país. No caso brasileiro, temos a estrutura orgânica criada na Corregedoria Nacional de Justiça com base no art. 103-B, §4°, III, da Constituição Federal, no art. 5°, §2°, da Emenda Constitucional n. 45/2004, no art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, nos arts. 41 e 46 da Lei Federal n. 8.935/1994, no § 4º do art. 76 da Lei 13.465/2017 e inc. X do art. 8º da Resolução CNJ 67 de 3.3.2009. A Câmara de Regulação foi instituída pelo Provimento 109/2020, de 14.10.2020, baixado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Com o advento da Lei 14.382/2022, houve a necessidade de readequar a infraestrutura regulatória alcançando outras especialidades. V. art. 220-A e ss. do Provimento 149 de 30.8.2023 que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). 24 No âmbito dos órgãos arquivísticos, v. CONARQ - Conselho Nacional de Arquivos. Diretrizes para implementação de repositórios arquivísticos digitais confiáveis (RDC-Arq). Resolução CONARQ 51, de 25.8.2023. Este documento detalha os requisitos e procedimentos para a criação e manutenção de repositórios digitais confiáveis, abordando aspectos como preservação digital, segurança, metadados e acesso. No âmbito do Foro Extrajudicial, v. Portaria 12/2022, de 10.2.2022, Dje 11.2.2022, Min. Maria Thereza de Assis Moura, não revogada, disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4364. A portaria instituiu a Comissão Permanente de Gestão Documental, Preservação Digital e Memória no âmbito do Foro Extrajudicial. Na consolidação normativa do CNJ a questão da gestão documental remanesce sem qualquer regulação. V. JACOMINO, Sérgio. CRUZ, Nataly. Gestão Documental no Registro de Imóveis. A Reforma da LRP pela Lei 14.382/2022. Revista de Direito Imobiliário 93, jul./dez. 2022, p. 13 passim. 25 BERNAL, Volnys. UNGER, Adriana. Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. Parte 1 - Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: Folivm/LSITec, 20.05.2012 passim. Disponível:  https://folivm.com.br/wp-content/uploads/2011/04/srei_introducao_v1-0-r-7.pdf. 26 Este conceito vem de ser confirmado no voto do Ministro Dias Toffoli: "caberá aos próprios oficiais de registro a responsabilidade sobre a segurança, a guarda e a conservação dos dados, tal qual já ocorre hodiernamente, não havendo interferência nas atribuições dos oficiais e, portanto, não havendo que se falar em falta de segurança ou em publicidade indevida dos dados armazenados, como faz supor o requerente", o que confirma o que sempre vínhamos defendendo. Voto proferido nas ADIs 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787, ações pendentes de julgamento final. 27 Tenho denominado o sistema registral pátrio de sistema molecularizado. V. JACOMINO, Sérgio. Câmara-e debate modernização dos registros. São Paulo: Observatório do Registro, 17.4.2006. Antes mesmo do advento do SREI-ONR, dizia que deveríamos "ultrapassar o modelo de atomização dos registros, alcançando o modelo de molecularização, integrando cada ponto numa ampla rede de interconexões. É justamente na questão da informatização dos registros públicos brasileiros que essa deficiência se nota mais agudamente". disponível em https://cartorios.org/2006/04/17/camara-e-debate-modernizacao-dos-registros/ 28 No caso brasileiro, v. artigos 22 e seguintes da LRP e art. 46 das Lei 8.935/1994. 29 Sempre fui um crítico ferrenho da centralização de dados nas centrais estaduais criadas à margem dos sistemas institucionais. Vide, ad exemplum, o caso paradigmático de compartilhamento de dados pessoais das titularidades para a formação de índices estatísticos. JACOMINO, Sérgio. LGPD. Centrais Estaduais de Serviços Eletrônicos Compartilhados. São Paulo: Observatório do Registro, 28.11.2020, disponível em https://cartorios.org/2020/11/28/lgpd-centrais-estaduais-de-servicos-eletronicos-compartilhados/. 30 Provimento 1VRPSP 1/2009, de 16/3/2009, Dje 27/4/2009, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Disponível: http://kollsys.org/ebi. 31 SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Reconectando o Registro de Imóveis do Banco de Dados Light (BDL) ao Next Cloud SAS (Serventia Avançada Segregada). São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 18.mai.2022, acesso: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/366210/do-registro-de-imoveis-do-banco-de-dados-light-ao-next-cloud-sas. 32 Sobre as distinções entre registro de direitos e registro de títulos, v.  ALIENDE RIBEIRO. Luís Paulo. Registro Imobiliário, contrato, organização social e fortalecimento institucional. In Revista de Direito Imobiliário n. 60, 2006, p. 30; ARRUÑADA. Benito. Organização do Registro da Propriedade em países em desenvolvimento. In Revista de Direito Imobiliário n. 56, 2004, p. 139 et seq. JARDIM. Mónica. Os sistemas registrais e a sua diversidade. In Revista Argumentum, v. 21, n. 1, 2020, jan.-abr. 2020, p. 437 et seq.
Este artigo analisa a modernização dos registros públicos brasileiros e espanhóis, com foco na digitalização dos serviços notariais e registrais. A Espanha, com a lei 11/23, implementou o protocolo eletrônico notarial e o fólio real eletrônico, priorizando a segurança e interoperabilidade dos sistemas.  O artigo discute a necessidade de padronização, segurança de dados e enfatiza a importância da qualificação jurídica própria dos "registro de direitos", alertando para os riscos da assimilação de modelos de "registro de títulos" com a progressiva descaracterização do sistema registral brasileiro. Keywords: Digitalização, registros públicos, fólio real eletrônico, protocolo eletrônico, interoperabilidade, segurança de dados, lei 11/23 (Espanha), lei 14.382/22 (Brasil), União Europeia, modernização, registro de imóveis, registro de direitos. Na vaga das transformações que se acham em curso na UE - União Europeia, com a transposição de diretivas da comunidade para a ordem interna dos Estados-membros, as discussões relacionadas com a modernização dos serviços notariais e registrais estão na ordem do dia.  Este movimento aponta para a transformação digital da sociedade e dos próprios Estados membros do bloco e é tida como elemento fundamental para o desenvolvimento econômico e social do espaço comum europeu. As diretivas da UE, transpostas para a ordem interna, modificam vários aspectos do relacionamento do cidadão com a administração. O acesso online aos serviços notariais e registrais, bem como a digitalização dos seus processos e ferramentas, permitirão a melhoria na prestação de serviços públicos, além de propiciar a interconexão com a administração e com os demais Estados-membros da comunidade. Os processos baseados em livros tradicionais devem ser digitalizados. "Most Member States have registers that are digitalised and can be accessed online. Yet, it appears that this is not the case for every register. Paper-based registers will need to digitalise their documentation, processes and tools for the interconnection with their European counterparts to be realized"1. A Decisão (EU) 2022/2481 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14/12/22, que busca estabelecer o programa Década Digital para 2030, prevê a digitalização dos serviços públicos, de modo que 100% dos serviços essenciais deverão ser prestados eletronicamente, com acesso e interação pelas plataformas digitais, com o uso de meios de sistemas de identificação pessoal eletrônica (eID) seguros e reconhecidos em toda a União2. Espanha - digitalização das notas e registros Na Espanha, como em vários outros países, a digitalização das atividades notariais e registrais é uma realidade que se vai consumando em etapas planejadas e previstas em cronograma baixado pela Direção Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública.  A lei 11/23, de 8 de maio3, transpôs as diretivas da União Europeia em matéria de digitalização de atos notariais e registrais, reformando a lei do notariado de 28/5/62, o Código de Comercio (real decreto de 22/8/85) e a lei hipotecária, aprovada pelo decreto de 8/2/464. Tais reformas visam pavimentar a infovia que permitirá a prestação dos serviços notariais e registrais sem necessidade de deslocamentos e presença física dos cidadãos nos balcões de serventias e cartórios, além de modernizar a organização interna, informatizando a realização de atos próprios.  Quanto à lei hipotecaria, "as modificações centram-se, fundamentalmente, na regulamentação do site eletrônico geral, na possibilidade de comunicações dos cidadãos e outros organismos por meios eletrônicos, na execução da publicidade registral por esses mesmos meios, na criação de um sistema registral digital e num repositório eletrônico com informação atualizada dos direitos imobiliários"5. Prevê-se a criação de canais de interoperabilidade entre notários e registradores por meio de sistemas e plataformas compartilhados, utilizando-se assinaturas eletrônicas qualificadas6.  As palavras-chaves da reforma são: segurança, disponibilidade, acesso, integridade, autenticidade, interoperabilidade, confidencialidade e preservação dos dados7. Note-se: interoperabilidade - e não concentração de atribuições e funções com centralização de dados.  Notários e seus protocolos digitais A lei do notariado foi reformada com o objetivo de regulamentar a criação e o uso do protocolo eletrônico que deve refletir (nota bene: não substituir) as matrizes das escrituras públicas, além de possibilitar a consulta em meios eletrônicos (por meio de rogação motivada), com base em índice único informatizado, organizado e gerido pelo próprio Conselho Geral do Notariado.  Em linhas muito gerais, as matrizes dos instrumentos públicos terão um reflexo digital no "protocolo eletrônico" - denominado livro de registro de operações eletrônico - gerado e mantido estritamente sob o manto da fé pública do próprio notário. Os instrumentos incorporados ao protocolo eletrônico serão considerados originais (matrizes), porém, diz a lei, em "caso de contradição entre o conteúdo da matriz em suporte de papel e do protocolo eletrônico, prevalecerá o conteúdo daquela sobre o deste" (§ 2º do art. 17 da lei do notariado de 1862). Ou seja, sempre valerá, no caso de dúvida, extravio ou perdimento, o que se acha consagrado nos tradicionais meios cartáceos dos protocolos notariais. O protocolo notarial eletrônico será custodiado, mantido e conservado pelo notário que o depositará no Conselho Geral do Notariado - depósito este que será realizado com a utilização de tecnologia criptográfica, podendo acessá-lo, exclusivamente, o próprio notário, munido de chaves criptográficas na modalidade de assinatura qualificada. O Conselho Geral do Notariado adotará medidas técnicas que garantam a integridade, inviolabilidade e não manipulação do referido protocolo eletrônico e tais medidas serão comunicadas à Direção Geral de Segurança Jurídica e Fé Pública, que poderá ordenar sua modificação ou adaptação caso as considere inadequadas. Nesse sentido, o modelo é muito similar ao adotado em relação ao Registro de Imóveis brasileiro. O ONR - Operador do Sistema Nacional do Registro Eletrônico, deverá editar ITN's - Instruções Técnicas de Normalização "destinadas ao detalhamento de orientações aos oficiais de registros públicos sobre o cumprimento de determinações legais ou normativas que digam respeito às plataformas, sistemas e serviços eletrônicos". Tais ITN's "ficam sujeitas, a qualquer tempo, à suspensão cautelar e à cassação, caso exorbitem da atribuição de normalização dos Operadores ou incorram em colidência com disposição legal ou normativa, o que pode ser feito de ofício pelo Agente Regulador ou a requerimento de qualquer interessado".8 Publicidade notarial - requisitos Por meio da plataforma digital, qualquer interessado poderá solicitar ao Conselho Notarial que, por meio de consulta no índice único informatizado, identifique o notário, número de livro, folhas e data de lavratura dos instrumentos públicos nos quais esteja interessado, a fim de solicitar certidão do ato, desde que o requisitante ostente legitimidade para postular e receber a informação. Se o requisitante não for parte no instrumento, deverá pleitear a certidão contra a apresentação de um princípio de prova que justifique o seu legítimo interesse.  Cumpridas tais formalidades, o notário poderá expedir certidões com a utilização de assinatura eletrônica qualificada e certificado de carimbo do tempo. A requisição e o envio da resposta se darão por intermédio da plataforma notarial. Somente o notário responsável pelo tabelionato poderá expedir certidões dos atos ali lavrados - jamais uma plataforma corporativa ou qualquer outro organismo substitutivo centralizado. A expedição da informação, pelo Conselho Geral do Notariado, "em nenhum caso substituirá o juízo do notário a quem se solicitar a cópia, o qual deverá avaliar o direito ou interesse legítimo para sua expedição".9 Por fim, a plataforma notarial deverá ser interoperável com o Poder Judiciário para o cumprimento de disposições previstas nas leis processuais. Especialmente, deverá ser implementado protocolos de interoperabilidade dos sistemas de informação entre notários e registradores, a fim de facilitar a comunicação e integração.10 Aqui calha um parêntese. Como bem salientou Flauzilino Araújo dos Santos, em entrevista concedida ao Observatório do Registro, o que realmente importava e seria necessário é buscar a interoperabilidade entre o registro de imóveis com os notários, com o registro do comércio, Poder Judiciário, instituições de crédito imobiliário. E segue:  "O serviço de registro de imóveis se relaciona muito mais com os tabelionatos de notas do que com os demais serviços de RTDPJ e RCPN. O que ainda continua sendo necessário é a interoperabilidade do serviço extrajudicial. Essa interoperabilidade seria uma consequência lógica do desenvolvimento dos sistemas, independentemente de estar ou não codificada em lei criando um serviço eletrônico de registros públicos. Penso que uma interoperabilidade máxima deveria começar com as notas e não com o registro civil ou com o RTDPJ".11 Registro de Imóveis - extrato reverso - certidão da situação jurídica atualizada No caso do registro imobiliário, o Oficial receberá o título para registro e procederá ao regular exame. Qualificado o título e imperando a sua registração, promoverá, desde logo, a inscrição e expedirá certidão eletrônica, indicando os dados da prenotação, do título que a tenha motivado, circunstâncias do processo registral, extratando-se os atos concretos praticados na matrícula correspondente (livro de inscrições). Note-se que o extrato se perfaz na saída do sistema, não na entrada. Além disso, o registrador expedirá certidão eletrônica em resumo, contendo informações estruturadas da nova situação jurídico-registral de cada imóvel, após a prática de novos assentos (art. 19 bis da LH).  A ideia de consolidação da situação jurídica da matrícula, após a prática de quaisquer atos que a atualize, dá-se igualmente no modelo que vem de ser especificado no caso brasileiro, no SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, embora a reforma promovida pela lei 14.382/22 tenha assimilado de modo ligeiro e açodado (e igualmente equivocado) as ideias que, em essência, guardavam, originalmente, muita semelhança com o modelo espanhol. Tive ocasião de criticar o vacilo conceitual da reforma nos seguintes termos: "A elegante especificação do SREI, em seus rasgos gerais, migrou para o Provimento CNJ 89/2019. Partiu-se do pressuposto de que o registro eletrônico somente se viabilizaria com a criação deste novo ente - a 'matrícula eletrônica da situação jurídica atualizada do imóvel (descrição do imóvel, direitos reais sobre o imóvel e restrições existentes)' que se formaria 'após cada registro e averbação' (inc. IV do art. 10º do Provimento CNJ 89/2019). A norma nos revela, com clareza lapidar, que 'a matrícula eletrônica deve conter dados estruturados que podem ser extraídos de forma automatizada, contendo seções relativas aos controles, atos e situação jurídica do imóvel, constituindo-se em um documento natodigital de conteúdo estruturado' (inc. VII do mesmo artigo). [...] É fácil concluir que a expedição da certidão da situação jurídica pressupõe, necessariamente, a instituição, implementação e funcionamento do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, não de qualquer plataforma paliativa que se possa erigir como simulacros eletrônicos anacrônicos e disfuncionais, tenham, ou não, nomes e adjetivos retumbantes ou sedutores"12. Sensível ao problema que se prenunciava - a impossibilidade concreta de se expedir a certidão no exíguo prazo previsto no inc. II, § 10, do art. 19 da LRP (um dia) - a Corregedoria Nacional de Justiça emitiu a orientação 12/23, de 16 de maio, estabelecendo que "enquanto o SERP não estiver implementado e integrado ao SREI, o prazo de emissão da certidão de situação jurídica atualizada do imóvel será de 5 (cinco) dias, na forma do inciso III, in fine, do § 10 do art. 19 da Lei n. 6.015/1973"13. Melhor seria dizer - enquanto o SREI não estiver implementado... Voltando à reforma espanhola, no caso da qualificação negativa, a nota devolutiva deverá ser assinada pelo registrador, que consignará as causas impeditivas, suspensivas ou denegatórias do acesso do título, bem como a fundamentação jurídica da recusa. O registrador deve indicar, de modo expresso, os meios de suscitação de dúvida, indicando prazos, meios etc., "sem prejuízo de o interessado exercer, quando apropriado, qualquer outro meio que considere adequado". Publicidade registral por meios eletrônicos A publicidade jurídica formal acerca do conteúdo dos assentos registrais, sempre a cargo do registrador, dar-se-á por nota simples informativa ou por meio de certidão. Esta será a expressão do tratamento jurídico a cargo do profissional jurista, garantindo-se que "seja efetiva a possibilidade de publicidade sem qualquer intermediação, garantindo, outrossim, a impossibilidade de manipulação ou extravasamento e exposição de dados" (§ 2º do art. 222 da LH). A nota simples informativa não é cópia integral do assento registral, mas informações estruturadas, sem o valor jurídico próprio de uma certidão. A publicidade registral se realizará em formato e suporte eletrônicos, "sem prejuízo de sua materialização em papel, sempre que necessário" (art. 222, 2). Já as chamadas notas simples serão garantidas quanto à origem e integridade, autenticadas com aposição de selo eletrônico do registro de imóveis e assinatura eletrônica qualificada do registrador, com código eletrônico de verificação de autenticidade (idem). Fólio real eletrônico A lei hipotecária espanhola, em seu art. 238, define o que se deve entender por sistema registral eletrônico: "sistema registral eletrônico [é] o conjunto de elementos informáticos, físicos e lógicos, sediados em cada serventia registral, devidamente interconectados entre si e com os serviços centrais do Colégio de Registradores Imobiliários, Mercantis e de Bens Móveis de Espanha, por intermédio da rede corporativa correspondente". Dispõe a lei, ainda, que somente gozarão dos efeitos legais previstos no regulamento hipotecário "os atos de registro, lavrados e firmados pelo registrador competente", bem como a publicidade registral decorrentes.  A fim de promover um contraste entre os sistemas brasileiro e espanhol, indicamos a seguir alguns pontos de contato entre eles, conforme a documentação produzida no âmbito do ONR-SREI, especialmente o SC - Sistema de Cartório e o SAEC - Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado14. Em cada unidade de registro haverá um SC (sistema de cartório, na nomenclatura do SREI pátrio);  Cada unidade deve interconectar-se com todas as demais e com o colégio de registradores. Forma-se, assim, o "círculo registral", com a interconexão e interoperabilidade de todos os pontos do grafo registral (molecularização do sistema). Todas as unidades estarão vinculadas à rede corporativa correspondente. O exemplo do Brasil é o § 5º do art. 76 da lei 13.465/17, que reza que as "unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal integram o SREI e ficam vinculadas ao ONR". Somente os atos praticados pelo registrador competente e a publicidade deles decorrentes são reconhecidos nos termos da lei. A especificação do nosso SREI - sistema registral eletrônico guarda estreita semelhança com o sistema espanhol - seja na implantação de um sistema em cada serventia (SC - sistema do cartório), seja na interconexão entre elas e o colégio de registradores, tendo por suporte a rede corporativa mantida e integrada por todos os registradores imobiliários.  No caso do nosso SC, por exemplo, o projeto LSITEC/CNJ previu que ele corresponderia ao sistema existente em cada cartório de registro de imóveis, responsável por automatizar as atividades internas dos seus processos, manter o registro eletrônico imobiliário, auxiliar no atendimento de solicitações de usuários presenciais, realizar o atendimento de solicitações eletrônicas encaminhadas por meio do SAEC e interagir com outras entidades e com a administração da justiça. O SC é composto por diversos subsistemas, sendo os mais importantes: NSC - Núcleo do Sistema do Cartório, SAPU - Sistema de Atendimento Presencial do Usuário, SAEU - Sistema de Atendimento Eletrônico do Usuário, opcional, específico para oferecimento de serviços eletrônicos via Internet para um determinado cartório15. O SAEC, destina-se "ao atendimento remoto dos usuários de todas as serventias de registro de imóveis do País por meio da internet" (art. 16 do Provimento 89/2019). Esse módulo do SREI tem por escopo exercer a coordenação e o monitoramento dos serviços eletrônicos compartilhados com a finalidade de permitir a "universalização do acesso" a cada uma das unidades de Registro de Imóveis no país para que "prestem os mesmos serviços, velando pela interoperabilidade do sistema" (§ 3º do art. 24 do dito provimento). É o ponto único de acesso na internet e que concretiza o conceito de universalidade de acesso e distribuição de atribuições. Como diz Flauzilino Araújo dos Santos, "o Registro de Imóveis brasileiro é uno. A sua operacionalidade é fracionada por meio das diversas unidades de serviços, denominadas cartórios ou ofícios. Porém, o funcionamento em todo o território nacional deve ser padronizado, simétrico e interoperável"16. Já o sistema registral eletrônico espanhol se articula tendo por base uma sede eletrônica geral e única, de caráter nacional, cuja titularidade, desenvolvimento, gestão e administração caberá ao CORPME, por intermédio do qual se poderá "apresentar, tramitar e acessar toda a informação e os serviços de registro disponíveis" (art. 240 da LH). Por fim, o registro de imóveis eletrônico "será realizado sob a técnica do fólio real em formato e suporte eletrônicos, por meio de um sistema informático registral" (idem). Outro aspecto, aliás relevantíssimo e que merece destaque, é o relativo aos efeitos jurídicos que decorrem da inscrição, feita nos termos da lei hipotecária espanhola (inoponibilidade e fé pública registral). Tais efeitos jurídicos somente se produzem quando os assentos registrais forem lavrados e assinados pelo registrador competente - não por entidades extravagantes, centrais estaduais ou nacional, e outros organismos para-registrais que possam coadjuvar o registro de imóveis. O mesmo ocorre com a publicidade formal: somente valerão e produzirão efeitos legais as certidões expedidas nos termos da lei, autenticadas e firmadas pelo próprio registrador da circunscrição imobiliária competente. Na parte II deste artigo vamos discutir aspectos relacionados à assinatura eletrônica e sua regulamentação pela CNJ. __________ 1 EUROPEAN COMMISSION. Study on the harmonisation and interconnection of real estate registers. Final report. Brussels: UC, 2021, p. 47, n. 3.1 2 Decisão (UE) 2022/2481 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de dezembro de 2022. Jornal Oficial da União Europeia 19.12.2022.  3 Todas as referências literais à legislação espanhola são de tradução livre. O interessado poderá cotejar a tradução com o texto legal publicado no BOE n. 110, de 9/5/2023.  4 Transposição da Diretiva (UE) 2019/1151 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20.6.2019, que altera a Diretiva (UE) 2017/1132.  5 Lei 11/2023, de 8 de maio, de transposição para o ordenamento jurídico espanhol de Diretivas da União Europeia em matéria de digitalização de atos notariais e registrais, dentre outras. 6 No âmbito da União Europeia são utilizadas as assinaturas simples, avançadas e qualificadas, nos termos do Regulamento (UE) 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23/7/2014 (eIDAS). As assinaturas eletrônicas qualificadas produzem efeitos jurídicos e legais equivalentes ao de uma assinatura manuscrita (art. 25, n. 2) - desde que sejam criadas observando-se os requisitos previstos no Regulamento. Para efeitos de simplificação, é possível estabelecer uma equivalência entre as assinaturas qualificadas previstas no regulamento europeu e na Lei 14.063/2020 e MP 2.200-2/2002. 7 LH, disposição adicional 1ª, n. 1. 8 § 3º do art. 228-I do CNN/ CN/CNJ-Extra. 9 Ley del Notariado de 28 de mayo de 1862, art. 17, 3.  10 V. artigo 111 ter da Lei 24/2001: "Os sistemas de informação e comunicação que forem utilizados pelos registradores e notários deverão ser interoperáveis entre si para facilitar a sua comunicação e integração". 11 O ONR ontem, hoje e amanhã. Entrevista concedida a Sérgio Jacomino por Flauzilino Araújo dos Santos acerca da criação do SREI-ONR pela MP 759/2016. 12 JACOMINO, Sérgio. A MP 1.085/2021 - breves comentários - parte III. Certidão da situação jurídica atualizada do imóvel. São Paulo: Migalhas, 2022, disponível aqui.  13 Orientação 12/2023, de 16/5/2023, Dje 30/5/2023, Min. Luís Felipe Salomão. Disponível aqui. Vide, no site indicado, a manifestação do Presidente do ONR, Flauzilino Araújo dos Santos, justificando a regulamentação dos prazos de expedição de certidões. 14 Para um panorama geral do Projeto SREI/ONR, acesse: BERNAL, Volnys. UNGER, Adriana. SREI - Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário - Parte 1 - Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITec, 2012. Disponível aqui.  15 PA 1.2.6 - Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p. 8, item 2.2.2. Sistema de Cartório (SC). 16 SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Inovações Tecnológicas no Registro de Imóveis. I Encontro de Corregedores do Serviço do Extrajudicial promovido pela Corregedoria Nacional de Justiça. Brasília, 7.12.2017.
Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo: O EES - Empreendimento de Economia Solidária não é uma espécie autônoma de pessoa jurídica de Direito Privado, apesar do texto do art. 44, VII, do CC; O EES é uma qualidade de Direito Administrativo atribuível a qualquer tipo de pessoa jurídica - geralmente sociedade cooperativa - e até mesmo a grupos informais, desde que estejam presentes os requisitos do art. 4º da LES - lei da economia solidária - lei 15.068/24; Entendemos que, excepcionalmente, associações (apesar de não distribuírem lucros por carecerem de finalidade econômica no sentido técnico-jurídico) podem vir a ser enquadradas como EES, se atenderem aos requisitos do art. 4º da LES, no que couber; A afirmação de que o EES não possui finalidade lucrativa deve ser entendida no sentido de que os lucros obtidos por ela se destinam a serem distribuídos entre os seus membros, a custarem sua estrutura ou, até mesmo, a servirem de auxílio a outros EES similares que estejam em situação de vulnerabilidade; Os órgãos registrais devem recusar o registro de estatutos sociais que se limitem a invocar a qualificação de EES, sem, porém, indicar a natureza jurídica de um dos tipos de pessoas jurídicas existentes (sociedade ou, de modo bem excepcional, associação); Os órgãos registrais serão a JUCOM - Junta Comercial no caso de sociedades empresárias ou de sociedades cooperativas ou o RCPJ - Registro Civil das Pessoas Jurídicas no caso de associação ou outras sociedades simples. 1. Introdução Uma nova PJDPriv - pessoa jurídica de Direito Privado nasceu com a lei Paul Singer, também chamada de LES - lei da economia solidária - lei 15.068/24: O EES. O nome de batismo é uma homenagem a Paul Singer, que nasceu na Áustria, mas adquiriu nacionalidade brasileira. O referido pensador dedicou-se intensamente à economia solidária tanto no âmbito acadêmico (como professor da USP e como escritor) quanto na atividade política (especialmente como secretário Nacional de Economia Solidária entre 2003 e 2016, durante os governos dos presidentes da República Lula e Dilma. Mas será que temos uma nova PJ mesmo? Discutiremos o tema neste artigo. 2. Economia solidária: Definição e pessoas jurídicas Economia solidária é conceito já há muito tempo trabalhado na economia. Reflete um conjunto de atividades econômicas que prestigia os trabalhadores, entregando-lhes o protagonismo na utilização dos meios de produção, na gestão do negócio e na distribuição dos lucros. Caracteriza-se pela autogestão. Contrapõe-se à noção de índole capitalista de os trabalhadores serem meras ferramentas utilizadas pelo proprietário dos meios de produção. Convém a leitura das didáticas palavras de Paul Singer (SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, pp. 16-19): Talvez a principal diferença entre economia capitalista e solidária seja o modo como as empresas são administradas. A primeira aplica a heterogestão, ou seja, a administração hierárquica, formada por níveis sucessivos de autoridade, entre os quais as informações e consultas fluem de baixo para cima e as ordens e as instruções de cima para baixo. Os trabalhadores de nível mais baixo sabem muito pouco além do necessário para que cumpram suas tarefas, que tendem a ser repetitivas e rotineiras. À medida que se sobe na hierarquia, o conhecimento sobre a empresa se amplia porque as tarefas são cada vez menos repetitivas e exigem iniciativa e responsabilidade por parte do trabalhador. Nos níveis mais altos, o conhecimento sobre a empresa deveria ser (em tese) total, já que cabe a seus ocupantes tomar decisões estratégicas sobre os seus rumos futuros.(...)A heterogestão, para atingir seus objetivos, tem de suscitar o máximo de cooperação entre os empregados, agrupados em seções, departamentos e sucursais. Competição e cooperação são, a rigor, incompatíveis entre si: Se você coopera com seu rival, você o fortalece e ele pode vencê-lo na competição; se você não coopera com seu colega ou com o setor que depende de sua ajuda, a empresa inteira pode fracassar. Dentro dessa contradição a heterogestão funciona, sempre à procura de novas fórmulas que lhe permitam extrair o máximo de trabalho e eficiência do pessoal empregado.(...)A empresa solidária se administra democraticamente, ou seja, pratica a autogestão. Quando ela é pequena, todas as decisões são tomadas em assembleias, que podem ocorrer em curtos intervalos, quando há necessidade. Quando ela é grande, assembleias-gerais são mais raras porque é muito difícil organizar uma discussão significativa entre um grande número de pessoas. Então os sócios elegem delegados por seção ou departamento, que se reúnem para deliberar em nome de todos. Decisões de rotina são de responsabilidade de encarregados e gerentes, escolhidos pelos sócios ou por uma diretoria eleita pelos sócios. Em empresas solidárias de grandes dimensões, estabelecem-se hierarquias de coordenadores, encarregados ou gestores, cujo funcionamento é o oposto do que ocorre em suas congêneres capitalistas. As ordens e instruções devem fluir de baixo para cima e as demandas e informações de cima para baixo. Os níveis mais altos, na autogestão, são delegados pelos mais baixos e são responsáveis perante os mesmos. A autoridade maior é a assembleia de todos os sócios, que deve adotar as diretrizes a serem cumpridas pelos níveis intermediários e altos da administração.Para que a autogestão se realize, é preciso que todos os sócios se informem do que ocorre na empresa e das alternativas disponíveis para a resolução de cada problema. Ao longo do tempo, acumulam-se diretrizes e decisões que, uma vez adotadas, servem para resolver muitos problemas frequentes. Mas, de vez em quando surgem problemas que são complexos e cujas soluções alternativas podem afetar setores e sócios da empresa, de forma positiva alguns e negativa outros. Tais soluções podem exigir o encerramento de atividades consideradas obsoletas e sua substituição por outras, a aprendizagem de novas técnicas, a revisão do escalonamento das retiradas etc. O que ocasiona conflitos de opinião e/ou de interesse que dividem os sócios e ameaçam a solidariedade entre eles. Pelo visto, a autogestão exige um esforço adicional dos trabalhadores na empresa solidária: Além de cumprir as tarefas a seu cargo, cada um deles tem de se preocupar com os problemas gerais da empresa. Esse esforço adicional produz ótimos resultados quando se trata de envidar mais esforços para cumprir um prazo, eliminar defeitos de um produto ou para atingir algum outro objetivo que todos desejam. O fato de todos ficarem a par do que está em jogo contribui para a cooperação inteligente dos sócios, sem necessidade de que sejam incentivados por competições para saber quem é o melhor de todos. Mas o esforço adicional torna-se desgastante quando é preciso se envolver em conflitos, tomar partido pró ou contra companheiros, participar de reuniões cansativas etc. O maior inimigo da autogestão é o desinteresse dos sócios, sua recusa ao esforço adicional que a prática democrática exige. Em geral não é a direção da cooperativa que sonega informações aos sócios, são estes que preferem dar um voto de confiança à direção para que ela decida em lugar deles. E a direção tende, às vezes, a aceitar o pedido, sobretudo quando se trata de decisões que podem suscitar conflitos entre os sócios. É, em geral, mais fácil conciliar interesses e negociar saídas consensuais num pequeno comitê de diretores do que numa reunião mais ampla de delegados, que têm que prestar contas aos colegas que representam.A prática autogestionária corre o perigo de ser corroída pela lei do menor esforço. Os gestores da cooperativa enfrentam frequentemente questões urgentes, que têm de ser resolvidas sem haver tempo de consultar outros sócios. Nas assembleias, os problemas e as soluções adotadas costumam ser relatados como fatos consumados. É muito raro que algum participante se preocupe em discutir se a solução encontrada foi realmente a melhor. Se não houver algo emocionante, é provável que a assembleia aprove rapidamente e sem prestar atenção os relatórios dos gestores. Se a desatenção virar hábito, as informações relevantes passam a se concentrar em círculos seletos de responsáveis, cujas propostas têm toda chance de ser aprovadas, pelos sócios ou seus delegados, por inércia. Como se vê, a economia solidária diz respeito a um modo de organização de uma atividade econômica em que os trabalhadores cooperam entre si, gerem coletividade com o uso do modo de produção e atuam de modo de solidário. Do ponto de vista do Direito Civil, indaga-se: Quais pessoas jurídicas poderiam viabilizar essas atividades? A principal pessoa jurídica utilizada aí é a sociedade cooperativa, que é regida pelos arts. 1.093 a 1.096 do CC e pela lei do cooperativismo - lei 5.764/71. Sociedades são união de pessoas com fins econômicos, por envolverem distribuição de lucros entre os sócios. No caso das cooperativas, há também finalidade econômica, pois os sócios se unem com o objetivo de obter o lucro com as atividades da pessoa jurídica. A particularidade é que a sociedade cooperativa parte do pressuposto de que os sócios buscam colaborar entre si e manter uma gestão coletiva da sociedade. Por isso, a lei do cooperativismo estabelece diversas regras destinadas a manter esse perfil, como estas: a) A sociedade cooperativa (ao menos a singular) tem de possuir, no mínimo, 20 sócios cooperados, com o objetivo de permitir a composição dos órgãos administrativos (art. 6º, I); b) O voto não é censitário (por capital social), e sim por cabeça (art. 4º, V e VI); c) Inexiste relação empregatícia entre a cooperativa e o cooperado (art. 90). As cooperativas acabam prestando serviços aos cooperados, com o objetivo de favorecer a rentabilidade do seu trabalho. Por exemplo, é comum que pequenos produtores rurais filiem-se a uma cooperativa local com o objetivo de maximizar os resultados. As cooperativas recebem os produtos colhidos pelos pequenos agricultores e realizam a venda desses produtos no mercado. Com o lucro obtido, fazem a distribuição entre os cooperados, geralmente de modo proporcional ao trabalho de cada cooperado. Além disso, a cooperativa presta auxílio aos produtores rurais, ajudando-os na produção. A economia solidária também pode ser exercida por meio de associação, que é uma pessoa jurídica fruto da união de pessoas sem fins econômicos. A falta de fins econômicos aí significa que os lucros obtidos pela associação não são distribuídos aos associados como sendo dividendos. Nada, porém, impede que os associados recebam "pro labore" por serviços prestados à associação, à semelhança da remuneração paga a qualquer outro prestador de serviço. Teoricamente, nada impede que sociedades não cooperativas (como sociedades limitadas) desempenhem atividades de economia solidária. Basta que o contrato social preveja regras que prestigiem a cogestão da atividade econômica entre os sócios. Em suma, a economia solidária é apenas um modo de organização da atividade econômica, e seu exercício sempre foi realizado especialmente por meio de sociedades cooperativas. 3. Empreendimento de economia social como uma qualidade de Direito Administrativo A Lei Paul Singer - ou LES - buscou fomentar a economia solidária no país. Para tanto, obrigou o Poder Público a adotar medidas destinadas a incentivar a economia solidária, por meio da Política Nacional de Economia Solidária (arts. 3º a 14, LES). Na prática, as pessoas jurídicas que se enquadrarem como beneficiários dessa Política Nacional receberão benefícios estatais, como linhas de crédito generosas pelos bancos públicos ou isenções fiscais. Quem são os beneficiários? A LES não faz distinção entre o tipo de pessoa jurídica. É, inclusive, textual em afirmar que "o enquadramento do empreendimento como beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária independe de sua forma societária" (art. 4º, § 1º, da LES). Acolhe, inclusive, grupos informais, embora incentive estes à regularização jurídica para fruição plena dos benefícios (art. 9º, § 2º, da LES). Esclarece que, se a sociedade vier a adotar o tipo societário de cooperativa, ela será regida por lei específica, o que é uma clara alusão à lei do cooperativismo - Lei 5.764/71 (art. 4º, § 4º, da LES). Portanto, independentemente do tipo de pessoa jurídica, quem se enquadre nos requisitos do art. 4º da LES é beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária, ou seja, pode ser carimbado como um Empreendimento de Economia Social. E quais são os requisitos do art. 4º da LES1? De um modo geral, os requisitos podem ser resumidos em duas características: (1) A autogestão da pessoa jurídica pelos seus integrantes; e (2) a prática de comércio justo e solidário. Da primeira característica decorrem o voto por cabeça (e não por capital social) para cada membro, a distribuição dos lucros entre os membros proporcionalmente à participação individual e coletiva e o trabalho direto dos membros na consecução do objeto social. Da segunda característica extrai-se a realização de atividades comerciais a preços justos, com respeito ao meio ambiente e com distribuição equânime entre todos os trabalhadores. A propósito, o conceito de comércio justo e solidário é esmiuçado no art. 5º, parágrafo único, da LES, que deve ser lido em conjunto com o art. 2°2. Portanto, empreendimentos de economia solidária são os beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária, o que abrange qualquer tipo de sociedade e até mesmo grupos informais que se encaixem nos requisitos do art. 4º da LES. Logo, "empreendimento de economia solidária" é uma qualidade de Direito Administrativo outorgada a determinadas pessoas jurídicas ou grupos informais que, por se enquadrarem nos requisitos legais, têm acesso a benefícios de uma política pública específica. Tara-se de situação similar a outras qualidades de Direito Administrativo deferidas a outras pessoas jurídicas, a exemplo das Oscip3, das OS4 e da OSC5. 4. Atecnia do legislador na criação de uma nova PJ: Consequências práticas na JUCOM ou no RCPJ Como já se viu, a LES disciplinou a Política Nacional da Economia Social, indicou os empreendimentos de economia social como os beneficiários dela e assentou que qualquer tipo de pessoa jurídica e até mesmo grupos informais podem vir a ser etiquetados como tais (art. 4º, caput e §§ 1º e 4º, da LES6). Todavia, em um ato de atecnia do ponto de vista da dogmática do Direito Civil, a LES - que é uma lei pensada e até escrita com as mãos de administrativistas e economistas, e não de civilistas - acrescentou mais um inciso ao caput do art. 44 do CC, o qual lista as pessoas jurídicas de Direito Civil. Com isso, sob uma ótica puramente textual, o art. 44 do CC passou a prever mais um tipo de pessoa jurídica de Direito Privado (ao lado da sociedade, da associação, da fundação, da organização religiosa e do partido político): O EES. Além disso, o § 2º do art. 44 do CC foi alterado para estabelecer que as regras de associações - que já eram aplicáveis subsidiariamente às sociedades - passassem a recair subsidiariamente sobre essa suposta nova espécie de pessoa jurídica. Diante disso, indaga-se: O EES é mesmo uma nova pessoa jurídica? Ou é apenas uma qualidade de Direito Administrativo atribuível a outros tipos de pessoas jurídicas que preenchem os requisitos do art. 4º da LES? Entendemos que não se trata de nova pessoa jurídica. A doutrina precisa relevar que o legislador, por vezes, com objetivos simbólicos e até propagandísticos, incorre em certas atecnias técnicas. Isso já aconteceu, por exemplo, quando uma lei cunhada pelas mãos de administrativistas acrescentou, no rol de direitos reais, "os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão" (art. 1.225, XIV, CC). De fato, conforme defendemos em outro artigo7, esse suposto novo direito real é, na verdade, o direito real de propriedade adquirido pelo ente desapropriante. Entendemos que o legislador reprisou esse tipo de atecnia ao alterar o art. 44 do CC, prevendo supostamente uma nova espécie de pessoa jurídica. A bem da verdade, temos que a doutrina tem de interpretar que, na verdade, o EES é apenas uma etiqueta dada a outras pessoas jurídicas (geralmente, sociedades cooperativas) que se enquadram nos requisitos do art. 4º da LES. Daí se segue que os órgãos registrais devem recusar o registro de estatutos sociais que se limitem a invocar a qualificação de EES, sem, porém, indicar a natureza jurídica de um dos tipos de pessoas jurídicas existentes (sociedade ou, de modo bem excepcional, associação). Os órgãos registrais serão a JUCOM no caso de sociedades empresárias ou de sociedades cooperativas ou o RCPJ no caso de associação ou outras sociedades simples. 5. Atecnia do legislador quanto à finalidade do EES O art. 4º, § 2º da LES afirma que "os empreendimentos econômicos solidários formalizados juridicamente serão classificados como pessoas jurídicas de fins econômicos sem finalidade lucrativa". Trata-se de mais uma utilização não muito técnica de conceitos jurídicos, sem, porém, haver prejuízo prático diante da correção interpretativa a ser feita pela doutrina. O EES, como já se disse, pode ser qualquer tipo de pessoa jurídica. Mas, em regra, será uma sociedade, pois a atuação-padrão do EES é praticar um "comércio justo e solidário" com os trabalhos de seus membros e, posteriormente, distribuir o lucro em proveito deles. Ele, pois, obtém lucro, e a razão de ser da adesão dos sócios é receber a distribuição desses lucro.. Sob essa ótica, o EES é, em regra, uma sociedade, assim entendida uma união de pessoas com fins econômicos. Quando, porém, o § 2º do art. 4º da LES afirma que o EES não tem finalidade lucrativa, deve-se entender que os lucros obtidos por ele se destinam a serem distribuídos entre os seus membros, a custarem sua estrutura ou, até mesmo, a servirem de auxílio a outros EES similares que estejam em situação de vulnerabilidade. Além disso, deve-se entender que o seu objetivo não é o de gerar lucros a qualquer custo. Seu intento é, sobretudo, viabilizar que uma comunidade de trabalhadores consiga obter lucros de modo ético e solidário, com a ajuda cooperadora do EES. E essa colaboração é extensível, inclusive, a outros EES, pois o art. 4º, V, da LES prevê que sobras de lucros podem ser utilizadas até para ajudar outros empreendimentos equivalentes que estejam em situação precária8. Todavia, ao que parece, o legislador tomou a expressão "finalidade lucrativa" como se fosse uma expressão pejorativa, própria de capitalismo selvagem, o que evidentemente não é a acepção técnica do termo na civilística. Apesar das atecnias apontadas, a doutrina precisa entender que leis não são expressões acadêmicas diletantes, nem desfiles da dogmática jurídica. Leis são, sobretudo, manifestações pragmáticas do legislador com o objetivo de resolver problemas práticas. E, nesse sentido, é papel da doutrina em, por vezes, corrigir os rumos eventualmente atécnicos trilhados pelo texto legal com o objetivo de fazer a lei alcançar seu fim. É o que buscamos neste artigo fazer, levantando reflexões para que a comunidade jurídica reflita sobre esse supostamente novo tipo de pessoa jurídica. 1 Art. 4º São empreendimentos de economia solidária e beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os que apresentem as seguintes características:I - Sejam organizações autogestionárias cujos membros exerçam coletivamente a gestão das atividades econômicas e a decisão sobre a partilha dos seus resultados, por meio da administração transparente e democrática, da soberania assemblear e da singularidade de voto dos associados;II - Tenham seus membros diretamente envolvidos na consecução de seu objetivo social;III - Pratiquem o comércio de bens ou prestação de serviços de forma justa e solidária;IV - Distribuam os resultados financeiros da atividade econômica de acordo com a deliberação de seus membros, considerada a proporcionalidade das operações e atividades econômicas realizadas individual e coletivamente;V - Destinem o resultado operacional líquido, quando houver, à consecução de suas finalidades, bem como ao auxílio a outros empreendimentos equivalentes que estejam em situação precária de constituição ou consolidação, e ao desenvolvimento comunitário ou à qualificação profissional e social de seus integrantes.§ 1º O enquadramento do empreendimento como beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária independe de sua forma societária.§ 2º Os empreendimentos econômicos solidários formalizados juridicamente serão classificados como pessoas jurídicas de fins econômicos sem finalidade lucrativa.§ 3º Não serão beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os empreendimentos que tenham como atividade econômica a intermediação de mão de obra subordinada.§ 4º Os empreendimentos econômicos solidários que adotarem o tipo societário de cooperativa serão constituídos e terão seu funcionamento disciplinado na forma da legislação específica. 2 Art. 5º São diretrizes orientadoras dos empreendimentos beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária:(....)VII - Prática de preços justos, de acordo com os princípios do comércio justo e solidário;(...)Parágrafo único. Entende-se por comércio justo e solidário a prática comercial diferenciada pautada nos valores de justiça social e solidariedade realizada pelos empreendimentos de economia solidária, e por preço justo a definição de valor do produto ou serviço construída a partir do diálogo, da transparência e da efetiva participação de todos os agentes envolvidos em sua composição, que resulte em distribuição equânime do ganho na cadeia produtiva. 3 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público - lei 9.790/99. 4 Organização Social - lei 9.637/98. 5 Organização da Sociedade Civil - lei 13.019/14. 6 Art. 4º São empreendimentos de economia solidária e beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os que apresentem as seguintes características:I - Sejam organizações autogestionárias cujos membros exerçam coletivamente a gestão das atividades econômicas e a decisão sobre a partilha dos seus resultados, por meio da administração transparente e democrática, da soberania assemblear e da singularidade de voto dos associados;II - Tenham seus membros diretamente envolvidos na consecução de seu objetivo social;III - Pratiquem o comércio de bens ou prestação de serviços de forma justa e solidária;IV - Distribuam os resultados financeiros da atividade econômica de acordo com a deliberação de seus membros, considerada a proporcionalidade das operações e atividades econômicas realizadas individual e coletivamente;V - Destinem o resultado operacional líquido, quando houver, à consecução de suas finalidades, bem como ao auxílio a outros empreendimentos equivalentes que estejam em situação precária de constituição ou consolidação, e ao desenvolvimento comunitário ou à qualificação profissional e social de seus integrantes.§ 1º O enquadramento do empreendimento como beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária independe de sua forma societária.§ 2º Os empreendimentos econômicos solidários formalizados juridicamente serão classificados como pessoas jurídicas de fins econômicos sem finalidade lucrativa.§ 3º Não serão beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os empreendimentos que tenham como atividade econômica a intermediação de mão de obra subordinada.§ 4º Os empreendimentos econômicos solidários que adotarem o tipo societário de cooperativa serão constituídos e terão seu funcionamento disciplinado na forma da legislação específica. 7 Disponível aqui. 8 Art. 4º, § V, da LES: Destinem o resultado operacional líquido, quando houver, à consecução de suas finalidades, bem como ao auxílio a outros empreendimentos equivalentes que estejam em situação precária de constituição ou consolidação, e ao desenvolvimento comunitário ou à qualificação profissional e social de seus integrantes.