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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Introdução O quadro relativo à expedição de certidões na MP 1.085/2021 é prolixo e confuso, e a cada um dos seus dispositivos pode-se endereçar uns quantos pontos críticos. É o que pretendemos fazer nos limites de nossas forças. Decidimos, juntamente com a editoria do MIGALHAS Notariais e Registrais, a cargo do Prof. Dr. Carlos Eduardo Elias de Oliveira, fatiar as reflexões, tornando-as mais claras e acessíveis aos nossos queridos leitores. Vai, aqui, a Parte III dos comentários que tratará, especificamente, da certidão da situação jurídica atualizada do imóvel e lançará de passagem alguns comentários sobre outras modalidades de certidão. Vamos nos deter, com especial atenção, nesta "novidade" revelada pela MP 1.085/2021 na alteração da LRP com a inserção do § 9º do art. 19. Veremos que ela reside no fato de se ter apropriado de uma ideia sem compreendê-la perfeitamente e nem de a ter localizado em seu exato contexto original. Será mais uma ideia fora do lugar, como se procurará demonstrar logo abaixo. Por outro lado, visto de uma certa perspectiva, podemos ter vislumbres acerca do que terá sido uma vetusta tradição já esquecida pela nouvelle vague registral. De modo inconsciente, talvez se tenha repristinado uma antiga praxe formal dos cartórios - a expedição da certidão de propriedade com negativa de ônus e alienações - algo que os mais experientes se lembrarão perfeitamente. Segundo a máxima hegeliana, a história se repete, sempre, pelo menos duas vezes - ao que o nefasto averbaria: a segunda como farsa... Seja como for, não há nada de novo no front. Vamos indicar, desde logo, o quadro que será objeto de nosso estudo:  "Art. 19. [...] § 9º  A certidão da situação jurídica atualizada do imóvel compreende as informações vigentes de sua descrição, número de contribuinte, proprietário, direitos, ônus e restrições judiciais e administrativas, incidentes sobre o imóvel e o respectivo titular, além das demais informações necessárias à comprovação da propriedade e à transmissão e à constituição de outros direitos reais. § 10 As certidões do registro de imóveis, inclusive aquelas de que trata o § 6º, serão emitidas nos seguintes prazos máximos, contados a partir do pagamento dos emolumentos: [...] II - um dia, para a certidão da situação jurídica atualizada do imóvel; e § 11  No âmbito do registro de imóveis, a certidão de inteiro teor da matrícula contém a reprodução de todo seu conteúdo e é suficiente para fins de comprovação de propriedade, direitos, ônus reais e restrições sobre o imóvel, independentemente de certificação específica pelo oficial. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
quarta-feira, 9 de março de 2022

MP 1.085 e o Monstro de Horácio

Dobro-me à tarefa de interpretar e conjugar as disposições contidas na Medida Provisória 1.085/2021, baixada no lusco-fusco do ano findo, cotejando-as com a legislação do sistema registral brasileiro, buscando uma interpretação coerente e aproveitando o que de bom a medida provisória possa nos revelar. Apresento à reflexão dos leitores alguns aspectos que poderiam ter sido objeto de debates e estudos antes que se consumasse a publicação da dita MP. São ideias e reflexões que julgo ainda permanecerem válidas e que podem ser úteis, a fim de contribuir com o transcurso do processo legislativo ou de posterior regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça. Grande parte do texto já havia sido objeto de debates marginais travados no âmbito do IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, entidade que tive a honra de presidir à época em que as discussões se iniciaram e tomavam corpo. Foi, então, produzida e apresentada a Nota Técnica 2/2020, de 6 de agosto de 2020, em que se concluía que as disposições legais e normativas já existentes seriam mais do que suficientes para que os cartórios de registro de imóveis pudessem operar o Registro de Imóveis Eletrônico, de forma totalmente digital1. No entanto, as discussões transcorreram num circuito estrito que envolveu agentes do governo federal, interlocutores do mercado e setores da própria categoria profissional. Ainda assim, como quem aparece de surpresa na festa sem ser convidado, oferecemos críticas bem fundamentadas ao projeto, quando, ainda no ano de 2020, as ideias germinavam e eram agitadas interna corporis entre alguns poucos registradores2. Lamenta-se que não tenha havido uma discussão pública travada diretamente com as lideranças mais qualificadas da corporação registral, nem com a comunidade jurídica. Não se ouviu, tampouco, a Academia, nem se auscultou os registradores que congregam em organismos internacionais como o IBEROREG - Rede Registral Ibero americana e IPRA-Cinder - International Property Registries Association, entidades com as quais o IRIB mantém estreitos laços de cooperação técnica, científica e doutrinária de onde se poderia haurir bons exemplos a inspirar iniciativas de modernização dos registros prediais brasileiros. Uma proposta de reforma legal, de tamanha magnitude, deveria ter sido posta em audiência pública, quando não enviada como projeto de lei ao Congresso Nacional, o que deveria ter sido feito. Ainda agora tomamos conhecimento de que o PL 4.188/2021, que tramitava em regime de urgência, o rito especial foi suprimido pela Mensagem de Cancelamento de Urgência n. 67/2022, do Executivo Federal. Foi retirada a urgência do texto com o fim de ser "inserido na MP (medida provisória) 1.085 e o tema continua sendo prioritário", segundo noticiou o Portal R73. Tenho absoluta certeza de que os técnicos do governo, instados por registradores e imbuídos da melhor boa-fé, estabeleceram uma interlocução que se revelou, afinal, ruinosa. Faltou aos interlocutores a experiência provada na diuturnidade do mister registral vivida nas pequenas, médias e grandes serventias do Brasil, além da minguada representação institucional. Perdeu-se uma rara oportunidade de atualizar o marco legal do Registro Imobiliário e reformar, com zelo e prudência, a conhecida Lei 6.015/1973, contribuindo com o impulso de modernização do sistema, fato reclamado pela sociedade, pelo mercado e pela própria administração. A iniciativa do Ministério da Economia ainda assim é louvável. Ela deveria ter passado pelos canais de representação institucional da categoria, vale dizer, pelo IRIB, entidade que indiscutivelmente representa todos os registradores imobiliários brasileiros e que foi a responsável pelas boas iniciativas que frutificaram ao longo dos últimos 50 anos. O texto revela algumas boas ideias que, a seu tempo, serão destacadas e valorizadas no labor a que me dedico de anotar e comentar esta MP passo a passo. Não desconsidero os imensos riscos de comentar uma norma inçada de reconhecidas dificuldades, potencializadas pela atecnia na redação de seus dispositivos, mas é o que nos cabe agora. Enfim, temos a missão de enfrentar a iniciativa e tentar, da melhor maneira possível, contribuir para o sucesso das reformas, escoimando do texto suas imperfeições - desde sempre percebidas e explicitadas -, destacando outras que são virtuosas e sobre as quais voltaremos oportunamente, na série de textos que se seguirão nos comentários aos artigos e dispositivos da referida Medida Provisória 1.085/2021. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna. __________ 1 Nota Técnica 2/2020, de 6/8/2020. Disponível aqui. Afastando qualquer interpretação no sentido de que o IRIB, sob minha presidência, se omitiu em face dos convites enviados para apreciar e manifestar publicamente nossa opinião, indico o dossiê que se acha aqui. 2 Ainda em 2020 fizemos uma crítica pontual a vários dispositivos que afinal vieram na MP 1.085. Consulte aqui. 3 R7 PLANALTO. Nota de Mariana Londres. Brasília, 2/3/2022, 21H56. Acesso: https://bit.ly/3HJUURw.
Introdução A MP 1.085/2021 é fonte de controvérsias. A redação não primou pelo apuro técnico e o intérprete se vê muitas vezes confrontado com questões que somente a jurisprudência haverá de solver. Até lá, divisam-se algumas turbulências e a tarefa do intérprete (e do operador do registro) é conciliar o que se revela confuso e contraditório e buscar um entendimento razoável para que a Medida Provisória 1.085/2021 possa ser cumprida e frutifique como pretendido. Empreender uma análise de um texto legal tão complexo, nos alvores de sua vigência, já foi objeto de prudente advertência1. Todavia, como escapar desse desafio quando sabemos que a medida entrou em vigor na data de sua publicação e os registradores devem, de imediato, extrair uma diretriz segura para sua aplicação na diuturnidade de seu mister? Um dos pontos delicados da MP 1.085/2021 é o relativo aos prazos - seja para efetivação do registro ou para a expedição de certidões. Já apontei, em texto anterior, a aparente incongruência verificada entre os dispositivos que tratam da protocolização dos títulos e dos efeitos que possam decorrer, a depender da interpretação que se lhes dê2. Além disso, há dezenas de leis e normas que preveem prazos distintos para algumas espécies de títulos - com ênfase para os títulos qualificados como "eletrônicos". Além disso, com as alterações havidas, criou-se um escalonamento de prazos, como estabelecido no artigo 188 da Lei 6.015/1973. Vamos nos achegar às hipóteses indicadas, enfrentando-as de modo realista. Prazos - a falsa questão Já me manifestei inúmeras vezes que o fato do maior ou menor prazo na consecução do registro é, no fundo, uma falsa questão - especialmente quando cotejamos o nosso sistema com os padrões adotados nos melhores sistemas de registro de direitos da Europa. O erro de base sempre foi comparar sistemas dissímeis - registro de direitos X registro de títulos - e tentar extrair daí uma regra comum a ambos3. Já em 2014 lançava um convite à reflexão: o registro no Brasil é demorado? Na época os registros eram consumados em 15 dias corridos em São Paulo, o que equivale à regra geral ora posta em vigor no art. 188 da LRP pela MP 1.085/2021. E respondia: "Proceder ao registro em 20, 10 ou 5 dias não revela uma importância fundamental quando consideramos que a função típica dos nossos registros é prevenir futuros conflitos e litígios - demandas que podem se arrastar por muitos anos. O que pode representar maiores custos? Uns poucos dias de exame minucioso dos títulos apresentados a registro ou vários anos de eventual demanda judicial?" [...] "Numa situação ideal, em que as assimetrias informativas não se verificassem no mercado, o tempo de registração, de fato, seria uma variável onerosa e perfeitamente dispensável. Bastaria a contratação e sua imediata publicidade. Mas não é assim na realidade". Concluiria que, ao se degradar progressivamente o tempo consumido para o registro, tal mudança poderia nos "levar a uma transformação substancial do próprio Registro de Imóveis brasileiro", conduzindo-nos até o ponto de mutação em que o input no Sistema de Registro simplesmente desprezaria a malha da qualificação registral (pessoal e indelegável) e se convolaria instantaneamente num mero algoritmo de automação e arquivamento de papeis e documentos eletrônicos4. Teríamos, então, um registro plug-&-play, nada mais que um mero birô centralizado de dados e informações, como parece ser o objetivo que se desvela na série de leis e de projetos apresentados nos últimos tempos5. Em outras palavras, caminhamos para um mero registro de títulos, abandonando os modelos tradicionais de registro de direitos. A má inspiração decorre de uma leitura perfeitamente equivocada do projeto Doing Business, tantas vezes denunciado por registradores congregados em encontros internacionais. O tema do Doing Business seria amplamente discutido no transcurso do XVIII International Congress of IPRA-CINDER, realizado em Amsterdam, Holanda, em 2012. Aprendemos que rapidez não é sinônimo de eficiência e segurança, especialmente quando está em causa um mister de cariz eminentemente jurídico, preventivo de litígios, dependente de um juízo prévio de qualificação, garantia de estabilidade e segurança jurídicas6. A metodologia e as práticas de mensuração inerentes ao projeto DB, afinal e a bom tempo, foram descontinuadas pelo Banco Mundial, por revelarem distorções intoleráveis que comprometiam o resultado7. A literatura internacional mais abalizada que se debruçou sobre os chamados registros de direitos firmou, há muito, o entendimento de que estes são superiores aos seus congêneres, os registros de títulos, como já indicado supra. Quando não haja um filtro purificador na entrada do sistema, a cargo de um oficial público (gatekeeper), o resultado pode vir a ser um registro durável, transparente, perenizado em redes, mas que pode trazer inoculado, desde a origem, o germe da patologia jurídica, um elemento inquinado de falsidade que é capaz de contaminar toda a cadeia8. A necessidade de uma autoridade delegada pelo próprio Estado, que possa proclamar soberanamente os direitos de propriedade e seus correlatos, tendo por base uma prévia análise jurídica das pretensões inscritivas, é simplesmente indispensável em nossas sociedades crivadas de conflitos e controvérsias. Um registro rápido, instantâneo, livre das peias jurídicas, se afeiçoa a registros feitos em blockchain. ROD THOMAS, a propósito, foi bastante feliz ao indicar as fragilidades de sistemas que-tais. O controle de entrada, o entroncamento pela aplicação do princípio do trato sucessivo (continuidade), exame prévio de legalidade, de disponibilidade, tudo coberto pelo manto da legitimidade, fé-pública etc., impedem a formação da infraestrutura que, na ciência da computação, ficou conhecida como garbage in/garbage out, inoculando o germe da insegurança jurídica nas relações jurídicas proclamadas pelo Registro de Imóveis sem o crivo de controle de entrada e saída: "In the absence of any external control or overriding authority, a blockchain-based system is no more than a recordation of information (which may or may not be correct). In computer speak, 'rubbish in/rubbish out.' It may in concept be similar to (but more basic) than the old deeds system of conveyancing, operating on standard nemo dat principles [nemo dat quod non habet]. This is because the credibility of the transaction is dependent on the credibility of the preceding blocks being reliable in terms of being a correct recordation of all relevant information that affects the land at issue". "It may even be possible to think of the recorded transaction more in the light of an in personam dealing. If unchallenged (if it can be challenged) the dealings may have a proprietary consequence. This however, is ultimately an issue for the underpinning law, and is not an application of code is law"9. Lamentavelmente, faltou uma discussão aprofundada acerca dos maiores ou menores custos transacionais envolvidos em decorrência da mudança do paradigma no âmbito das discussões que antecederam a edição desta Medida Provisória10. Faltou debate, aprofundamento, conhecimento técnico especializado e prudência. Parafraseando LÉVY-STRAUSS, com o modelo estereotipado na MP 1.085/2021, decalcado de pressupostos provadamente equivocados, passamos do estágio inicial de desenvolvimento tecnológico do SREI à sua decadência, pulamos do viço à decrepitude, sem parar na maturidade11.  Hipótese #1 - títulos ordinários (art. 188, caput)  - Prenotação O título pode ser apresentado diretamente no balcão ou por intermédio do ONR - Operador Nacional do SREI com o depósito prévio. Prefira-se esta expressão - depósito prévio - que é tradicional na doutrina e jurisprudência e foi indicado na própria reforma (§ 6º do art. 206-A da LRP). É preciso destacar desde logo - e esse assunto deverá ser aprofundado proximamente - que a apresentação do título na plataforma do ONR não significa automática prenotação. O controle de precedência (número de ordem geral - art. 11 da LRP) não se confunde com a prioridade registral, somente consagrada pelo lançamento no Livro Protocolo da Serventia (artigos 12, 182, 183 e 205, todos da LRP)12. Tenho sustentado que o disposto no art. 11 da LRP será de grande utilidade para controle de postagem em plataformas eletrônicas. Vale a pena visitar as considerações feitas por FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS no comentário às propostas de reforma da LRP13. O conjunto normativo que trata dos efeitos materiais e formais da prenotação e da prioridade registrais não foi modificado. De fato, não é possível trespassar, ainda que pelo conduto de uma lei ordinária, atribuições que são próprias e indelegáveis do registrador imobiliário a entes personalizados, sob pena de afrontar o modelo constitucional de delegação e malferindo o estatuto jurídico do registrador público brasileiro, como previstos na CF/198814. Já despontam, aqui e ali, notícias de conflito de títulos contraditórios postados por meio de plataformas eletrônicas e apresentados no balcão das serventias sem que haja uma regra bem definida de repartição de direitos. - Exame - devolução ou registro Uma vez protocolado e obtido o número de ordem da prenotação, o Oficial deverá examinar o título e consumar o ato de registro no prazo máximo de 10 dias úteis15 - exceto para as hipóteses dos incisos I e II, §1º, do art. 188 da LRP e outras, extravagantes, das quais se falará em breve. Havendo excesso no depósito prévio, o Oficial fará a devolução, com a emissão de certidão com a descrição minudente dos atos praticados e dos valores cobrados a título de custas e emolumentos. - Devolução sem o registro No caso em que o título seja examinado e o Oficial objetar o seu acesso pelas razões de fato e de direito veiculadas em nota devolutiva, o interessado terá o prazo que sobejar do iter registral - no mínimo 10 dias úteis. A regra legal é: até 10 dias úteis para exame, remanescendo 10 para que se dê cumprimento a eventual exigência (art. 205 da LRP). Uma singela fórmula pode ser enunciada assim: PP = 20-Pex, onde PP representa o prazo da parte e Pex prazo do oficial para exame, contados em dias úteis. A maior ou menor rapidez no exame do título (suposto seja a rapidez, neste contexto, um correlato de eficiência e segurança do sistema - o que não é) repercutirá no prazo remanescente da parte. Exemplo: título apresentado no dia 1; contam-se 10 dias úteis a partir do dia 2, devendo o título ser registrado ou examinado até o 10º dia útil, inclusive - pressuposta a regra do art. 9º da LRP e desconsiderando-se, por absurdez, a contagem em "horas úteis" (§1º do art. 9º). No caso de devolução, ocorrida no 5º dia útil, o interessado terá os 10 restantes garantidos pela lei (art. 206-A, caput) somados ao prazo "poupado" pelo registrador. - Sacrifício do direito do interessado e o aumento da burocracia A alteração legal não tornou mais eficiente o funcionamento do sistema, nem mais célere. Basta comparar a regra ora consumada com a anterior. Ao menos no Estado de São Paulo, o exame dos títulos ordinários consumia no máximo 15 dias corridos - à exceção dos contratos eletrônicos (XML), que seriam examinados em apenas 10 dias corridos (não úteis). No caso de reingresso, o prazo seria de apenas 5 dias corridos (item 41, Cap. XX, NSCGJSP). Basta fazer alguns pequenos cálculos para se chegar à conclusão de que os prazos não diminuíram sensivelmente. Além disso - e o mais importante -, o exercício do direito potestativo do interessado, que lhe garante a prioridade, foi sacrificado. A mudança se deu em seu exclusivo prejuízo, sem qualquer favor à eficiência e rapidez do mister registral. Antes o interessado dispunha de 30 dias (descontado o prazo de exame) para diligenciar a satisfação das exigências. Agora, o prazo foi diminuído e sabemos que muitas vezes o cumprimento de uma ou outra exigência legal pode ultrapassar os dez dias previstos na Medida Provisória. O mais curioso é que já contávamos com um dispositivo legal expresso que estabelecia que a prestação de serviços deve dar-se com "presteza", "qualidade satisfatória e de modo eficiente", o que somente se garante com a fiscalização permanente do juízo competente, ex vi dos arts. 4º, inc. II do art. 30 e 38 da Lei 8.935/1994. Este último dispositivo reza que  o "juízo competente zelará para que os serviços notariais e de registro sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços". Em suma, não se busca reafirmar uma boa disposição legal com a edição de outra, redundante, agravando seus termos. A hipertrofia legislativa produz o fenômeno paradoxal de tornar o sistema menos eficiente na exata medida em que se busca modernizá-lo por essa via. Este excesso legiferante era sentido por AFRÂNIO DE CARVALHO, para quem a reforma do regulamento de Registro de Imóveis anterior, "reunindo disposições boas e más, de maior e de menor tomo, reincide em erro censurável, quer sob o aspecto doutrinário quer prático: como Lei é demasiada e como Regulamento é insuficiente16. Sustentávamos, desde o início das discussões, que a maior parte dos problemas que a MP visava enfrentar poderia ser resolvida tão-só pela via regulamentar, via Corregedoria Nacional de Justiça - o que, aliás, já estava ocorrendo de modo célere e adequado17. Ao final e ao cabo, o ajuste no sistema de fato não reclamava reforma legal, apenas e tão-somente eficiência na prestação dos serviços registrais, aliada a efetiva fiscalização e regulação pelo Poder Judiciário. - Valor insuficiente de depósito prévio Ocorrendo depósito prévio antecipado (inc. I do art. 206-A) e ele se revelar insuficiente, o Oficial deverá formular nota devolutiva por aplicação analógica do inc. II do art. 206-A, já que a MP não previu expressamente a hipótese de depósito prévio antecipado insuficiente. O disposto no inc. II do art. 206-A dispõe sobre "depósito posterior do pagamento do valor restante" (i. e., além do valor da prenotação já efetuado). Evidentemente, o inciso II não trata propriamente do depósito antecipado insuficiente do inc. I. Seja como for, é preciso dar calço a situações que podem se tornar corriqueiras e a aplicação do dispositivo ao caso concreto pode ser o remédio para colmatar a lacuna. - Registro ou devolução Registrado o título no decêndio, tollitur quaestio. Havendo exigência, o interessado deverá satisfazê-la no prazo decadencial correspondente. Satisfeitas as exigências, o registro deverá ser consumado no prazo máximo de 5 dias úteis (inc. III, §1º, do art. 188 da LRP). Questão interessante se abre na seguinte hipótese: devolvido o título e o interessado no iter não lograr satisfazer integralmente as exigências postas pelo registrador, quid juris? Sabemos que o prazo de diligência foi suprimido pela reforma. Devolve-se o título novamente e se abre um novo prazo para satisfação das exigências? Ou cancela-se a prenotação e se abre uma nova sazão com um novo número no protocolo e uma nova prenotação (com o pagamento dos valores correspondentes)? Perde o interessado o direito à prioridade e o valor da prenotação? Perdemos uma rara oportunidade de aperfeiçoar uma sentida deficiência da lei. Vamos dar uma passada de olhos e tentar entender o porquê. Omissão do interessado A Lei 6.015/1973 condiciona a cessação dos efeitos da prenotação à "omissão" do interessado em atender as exigências legais. A lei fala em omissão conotando negligência. Entretanto, na maior parte dos casos a "omissão" decorre da impossibilidade de atendimento de exigências no prazo legal. Lembremo-nos que o prazo do interessado foi sacrificado na reforma, o que faz o tema ganhar especial relevância. Uma reforma compreensiva da dinâmica registral nos dias que correm levaria em consideração o fato de que a dilação não leva necessariamente a danos ou prejuízos a terceiros - salvo eventual expectativa de direito do interessado com título contraditório em latência na fila do protocolo, fato aferível muito facilmente. A procrastinação no atendimento das exigências pode, de fato, representar "omissão" do interessado, mas nem sempre é assim18. Não raro, o não atendimento de uma ou outra exigência pode demandar mais tempo do que a lei contemplou e nesses casos, aferíveis objetivamente e documentados no dossiê do registro (processo do registro), poderia ser pensada uma saída mais inteligente e favorecedora dos interesses das partes e dos usuários do sistema. Poderíamos nos ter dedicado a uma reforma que visasse aperfeiçoar todo o processo registral, dando-lhe maior robustez e investindo-se na autonomia do registrador, recuperando as tradições que remontam desde a legislação de 1939. Bastaria relembrar a redação do §1º do art. 215 do Decreto 4.857/1939, que dispunha que o Oficial do Registro deveria qualificar o título no prazo, podendo "exigir que o apresentante ponha o documento em conformidade com a lei, concedendo-lhe, para isso, prazo razoável"19. Lembremo-nos que já é assim nos processos registrais mais complexos - como execução extrajudicial, usucapião, retificação de registro, por exemplo. No contraste entre o direito potestativo do interessado na conservação da prenotação e o interesse de eventual terceiros, favorecidos pelo fenômeno decadencial da prenotação, a doutrina e a jurisprudência dobraram-se no sentido de se obliterar a dilação seja no processo de registro, seja no processo de dúvida20. Enfim, faltou compreensão dos reais problemas atuais do sistema de qualificação, deixando-se escapar uma rara oportunidade de aperfeiçoamento do sistema pela melhoria redacional e equacionamento racional do problema da independência jurídica do registrador e de seu controle na direção de todo o processo registral. Questões marginais    Algumas outras questões exsurgem do rocambolesco texto dos artigos 205 e 206-A. Vamos visitá-los. O primeiro deles é a redação do inc. II do art. 206-A e o seu §1º: Art. 206-A.  Quando o título for apresentado para prenotação, o usuário poderá optar:       (...) II -  pelo recolhimento do valor da prenotação e depósito posterior do pagamento do valor restante, no prazo de cinco dias, contado da data da análise pelo oficial que concluir pela aptidão para registro. § 1º  Durante o prazo de que trata o inciso II do caput se manterão os efeitos da prenotação.       Por qual razão se inseriu o §1º? Se o prazo de prenotação é válido por 20 dias (art. 188); se nos casos ordinários o prazo de qualificação ocorre no interregno do primeiro decêndio (ou menos), sobejando outros 10 dias para atendimento de exigências (inclusive a de complementação de depósito), porque se diz que se manterão os efeitos da prenotação se eles se manteriam de qualquer forma além dos 5 dias? Pressupõem-se que o registrador não cumprirá o prazo legal, abrindo-se, assim, um prazo adicional? Ou a norma visou um prazo suplementar para execução do ato se o pagamento do valor restante se deu no último dia da prenotação? Esse caso não calharia na hipótese do inc. III, §1º, do art. 188? - Intimação do interessado Por outro lado, diz a MP que o prazo de 5 dias será "contado da data da análise pelo oficial que concluir pela aptidão para registro". Ora, a análise e conclusão do registrador é ato administrativo interno e deve se exteriorizar de alguma maneira para que o interessado possa tomar ciência do decidido e cumprir, assim, a exigência no aprazado. Possivelmente, pensou-se em comunicação eletrônica a cargo de plataformas digitais, mas a hipótese não é compreensiva de todos os caos. Faltou um elemento de conexão entre a decisão que impera o registro e a ciência do interessado, o que deve se dar pela via da intimação, por analogado do art. 269 do CPC, seja em que meio for. O art. 270 do CPC opta pelo meio eletrônico, mas não exclusivamente. Prazos adicionais? Vamos enxergar o quadro desse microssistema e tentar extrair um sentido coerente: "Art. 206-A.  Quando o título for apresentado para prenotação, o usuário poderá optar: I - pelo depósito do pagamento antecipado dos emolumentos e das custas; ou II -  pelo recolhimento do valor da prenotação e depósito posterior do pagamento do valor restante, no prazo de cinco dias, contado da data da análise pelo oficial que concluir pela aptidão para registro. § 1º  Durante o prazo de que trata o inciso II do caput se manterão os efeitos da prenotação. § 2º  Efetuado o depósito, os procedimentos registrais serão finalizados com realização dos atos solicitados e a expedição da respectiva certidão. § 3º  Fica autorizada a devolução do título apto para registro, em caso de não efetivação do pagamento no prazo previsto no caput, caso em que o apresentante perderá o valor da prenotação. [...]. § 6º  A reapresentação de título que tenha sido devolvido por falta de pagamento dos emolumentos, nos termos do disposto no § 3º, dependerá do pagamento integral do depósito prévio. § 7º  O prazo previsto no caput não é computado dentro do prazo de registro de que trata o art. 188." (NR) O § 3º do art. 206-A reza que fica "autorizada a devolução do título apto para registro, em caso de não efetivação do pagamento no prazo previsto no caput, caso em que o apresentante perderá o valor da prenotação". Ora, nada há relativo a "prazos" no caput do artigo 206-A... Provavelmente se objetivou o inciso II do dito artigo. Admitamos, então, que no interregno da prenotação, no interior do qual calham os 5 dias para pagamento, o título seja devolvido para complementação de depósito, por exemplo. Ao cabo desse prazo excepcional (5 dias), sem o pagamento, perde-se simplesmente o valor da prenotação? A prenotação deixa de produzir os seus poderosos efeitos ainda no seu transcurso do prazo legal? Será possível efetivar o pagamento mesmo quando esgotados os 5 dias e dentro do decêndio (ou prazo superior)? Por outro lado, reza o § 6º do art. 206-A, verbis: § 6º  A reapresentação de título que tenha sido devolvido por falta de pagamento dos emolumentos, nos termos do disposto no § 3º, dependerá do pagamento integral do depósito prévio. No transcurso do decêndio, no vigor da prenotação, a reapresentação do título acarretará o pagamento integral do "depósito prévio"? Será cabível falar-se em "depósito prévio"? Seria o caso de se considerar o valor da prenotação como efetivamente pago devendo ser depositado o restante? Depois, como interpretar o § 7º, que reza: § 7º  O prazo previsto no caput [sic] não é computado dentro do prazo de registro de que trata o art. 188. Ao prazo do interessado se acrescentarão outros 5 dias? Não se sabe como a matéria será regulamentada pelos órgãos competentes. À época em que esses mesmos problemas se colocaram (definição do prazo de exame X prazo para atendimento de exigências), a Corregedoria Geral de Justiça regulou a matéria de modo elegante e eficiente e suas regras atravessam o tempo21. - A exceção e a regra Lanço aqui algumas questões para aprofundamento dos mais doutos. Os prazos previstos nos artigos aqui comentados se aplicam a todos ou apenas a alguns títulos submetidos a registro? Aparentemente, a própria medida tratou de forma diversa algumas hipóteses - por exemplo, no caso de incorporação e instituição de condomínio (§ 6º do art. 32 da Lei 4.591/1964), ou, ainda, na regularização fundiária (parágrafo único do art. 205 da LRP). A mesma MP 1.085/2021 alterou o art. 19 da Lei 6.766/1979, tratando indiretamente do prazo para a consecução do registro (quinze dias corridos sem impugnação). Todos esses prazos foram modificados pela MP 1.085/2021. Afora estas, ainda há outras hipóteses encontradiças na lei. Sem pretender exaurir o rol, indico apenas alguns exemplos que servirão de base para nossas considerações: a) Contratos do SFI e Cédulas de Crédito Bancário - todos os atos de averbação ou de registro acerca de qualquer dos títulos previstos tanto na Lei 10.931/2004 quanto na Lei 9.514/1997 deverão ser consumados no prazo de 15 dias corridos (art. 52 da Lei 10.931/2004). b) Patrimônio rural em afetação - exigências. Art. 13 da Lei 13.986, de 7/4/2020: "O oficial de registro de imóveis, caso considere a solicitação de constituição de patrimônio rural em afetação de imóvel rural ou a instrução de que trata o art. 12 em desacordo com o disposto nesta Lei, concederá o prazo de 30 (trinta) dias, contado da data da decisão, para que o interessado faça as correções necessárias, sob pena de indeferimento da solicitação". c) CPR - Cédula de Produto Rural. A averbação no registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia da CPR deve ser efetuada no prazo de 3 dias úteis, contado da apresentação do título (§2º do art. 12 da Lei 8.929, de 22/8/1994). d) Cédula rural. O art. 38 do Dec.-Lei 167/1967 estabelecia que a inscrição das cédulas e as averbações posteriores deveriam ser efetuadas no prazo de 3 dias úteis a contar da apresentação do título. Todavia este dispositivo foi revogado pela Lei 13.986, de 2020. Assim, o prazo para o registro de cédula rural deverá ser o prazo geral. e) Cédula de Crédito Industrial. O art. 38 do Dec.-Lei 413/1969 prevê o prazo de inscrição de 3 dias. f) Cédula de Crédito Comercial.              Aplicam-se às CCCs as regras da Cédula de Crédito Industrial (art. 5º da Lei 6.840, de 3/11/1980). g) Cédula de Crédito à Exportação.  Aplicam-se às CCEs as regras da Cédula de Crédito Industrial (arts. 3º e 4º da Lei 6.313, de 16/12/1975). h) Terras Indígenas Demarcadas. Prazo de registro de terras indígenas demarcadas (§ 4º do art. 246 da LRP, verbis: "as providências a que se referem os §§ 2º e 3º deste artigo [246 da LRP] deverão ser efetivadas pelo cartório, no prazo de trinta dias, contado a partir do recebimento da solicitação de registro e averbação". i) Retificação de matrícula, registro e averbação de imóveis rurais. Prazo de 5 dias úteis (art. 8º da Lei 6.739, de 5/12/1979). j) RF e demais instrumentos jurídicos no âmbito do PMCMV. Nos atos registrais relativos ao PMCMV a qualificação e o registro não poderão ultrapassar os 15 dias. No reingresso, o registro se fará no prazo de 10 dias (art. 44-A da Lei 11.977/2009). Como ficamos com esta pluralidade de hipóteses que podem abranger títulos complexos? - Títulos complexos Há uma categoria que, à falta de melhor expressão, qualifico como títulos complexos. Eles são, em regra, os que instauram um processo administrativo na serventia. Exemplos: retificação de registro, usucapião, execução extrajudicial, bem de família, regularização fundiária, Registro Torrens etc.22 Nesses casos, não é possível, à evidência, cumprir a regra dos prazos ordinários estereotipados (10 dias úteis ou corridos). Para esses casos, a duração do processo dependerá de circunstâncias singulares e somente nos atrasos decorrentes de desídia o registrador poderá ser eventualmente autuado e apenado, provando-se a falta cometida e dando-se-lhe a oportunidade de ampla defesa23. - Títulos eletrônicos e o registro analógico O inc. II, § 1º do artigo 188 da LRP agora prevê o registro dos "documentos eletrônicos apresentados por meio do SERP" em 5 dias. Peço licença ao leitor para informá-lo, se ainda não percebeu, que não existe registro eletrônico no país. O que temos é simplesmente uma plataforma de acesso eletrônico às serventias (as chamadas centrais de serviços eletrônicos compartilhados) que têm permitido certa interação eletrônica com as unidades registrais, o que não significa que tenhamos, efetivamente, um "registro eletrônico", tomado o termo em sentido próprio. Há uma parte essencial do SREI que ainda se acha em desenvolvimento no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça. A sucessão de atos normativos, recentemente baixados pelo órgão, retomam a conformação do SREI que se faz no tempo de desenvolvimento que um novo paradigma dos media digitais requer. Para que se compreenda perfeitamente o que aqui afirmamos, basta indicar como se tem procedido ao registro "eletrônico" de títulos postados em plataformas eletrônicas, vazados na novilíngua XML24. Tão logo se recebe o arquivo digital, procede-se à reconversão do código de máquina para um arquivo que seja legível e interpretado por humanos (normalmente um PDF). Somente então, faz-se a inscrição - exatamente como se faria com qualquer título apresentado em meios tradicionais como o papel. Mas o detalhe inquietante é que o tempo gasto para o registro de um título "eletrônico" acaba por ser maior do que o consumido pelo registro tradicional. Ocorre, aqui, um curioso fenômeno que encontra parentesco com o chamado Paradoxo de Jevons25. De fato, o processamento e o tratamento do título "eletrônico" acabam por redundar num maior consumo de energia, de tempo e de recursos materiais e humanos do que o tratamento dos títulos em papel. É sempre lembrada a boutade de ADRIANA UNGER, para quem uma tecnologia inadequada, aplicada aos processos de registro, quando não atrapalha, também não ajuda26. Ao final e ao cabo, a solução antevista pela MP 1.085/2021 será mais uma etapa redundante na esteira processual tradicional, sem representar, verdadeiramente, um aperfeiçoamento sistemático do Registro de Imóveis brasileiro. Trata-se de um simulacro de registro eletrônico, muito distante do robusto e provado sistema inteiramente digital, tal e como especificado pela Corregedoria Nacional e Justiça27. Por essa justíssima razão, tenho interpretado o conjunto normativo representado pela MP, em cotejo com a legislação registral vigente, que somente após o advento do SREI - Sistema de Registro eletrônico de Imóveis, poder-se-á cumprir adequadamente as regras atinentes a prazos - sejam eles relativos a registro ou mesmo em relação à expedição das certidões (assunto sobre o qual me voltarei no próximo artigo). A própria Lei 11.977/2009 previu, no seu art. 45, que os requisitos, etapas e definição de prazos máximos para implementação do SREI deverão ser objeto de regulamentação: Art. 45.  Regulamento disporá sobre as condições e as etapas mínimas, bem como sobre os prazos máximos, a serem cumpridos pelos serviços de registros públicos, com vistas na efetiva implementação do sistema de registro eletrônico de que trata o art. 37. A regulamentação caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, consoante disposições dos incisos I e II, §3º do art. 1º da LRP: § 3º  Os registros serão escriturados, publicizados e conservados em meio eletrônico, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto aos: I - padrões tecnológicos de escrituração, indexação, publicidade, segurança, redundância e conservação; e II - prazos de implantação nos registros públicos de que trata este artigo. Somente após a estruturação do SREI, sucedida de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça, é que se poderá falar propriamente em "Registro Eletrônico", dando-se as condições básicas necessárias para que se cumpram efetivamente as disposições relativas a esse tema sensível. Conclusões Segue deveras confuso todo o articulado representado pela MP 1.085/2021. Certamente se encontrará uma forma realista de dar cumprimento à lei e isso somente se alcançará com um bom substitutivo, a ser apresentado no transcurso dos debates legislativos, ou por meio de regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça. Até lá, os registradores devem encontrar meios de estabelecer rotinas internas que garantam os direitos dos interessados, organizando os processos internos para ganhar eficiência e celeridade, malgrado o fato das disposições contraditórias e defectivas já notadas e expostas na série de artigos a que me dedico. __________ 1 DIP. Ricardo. Medida provisória 1.085/2021: um passo a mais. São Paulo: SERAC, 30/12/2021. Acesso aqui. 2 JACOMINO. Sérgio. A MP 1.085/21 e os prazos no Registro de Imóveis. 23/2/2022. Site Migalhas Notariais e Registrais. 3 Por todos, v. JARDIM. Mónica. Os Sistemas Registrais e a sua Diversidade. Argumentum Journal of Law. v. 21, n. 1, jan.-abr. 2020, pp. 419-436. Sobre o desenvolvimento dos sistemas registrais na Europa: NOGUEROLES PEIRÓ. Nicolás. La Evolución de los Sistemas Registrales en Europa. Revista de Direito Imobiliário n. 61, jul./dez. 2006, pp. 221-250. 4 JACOMINO. Sérgio. Do passado para o futuro: um presente! In Observatório do Registro, 7/11/2014. Acesso aqui. 5 Para os interessados em aprofundar este assunto, recomendo: JACOMINO. Sérgio. Agonia central - ou anomia registral? São Paulo: Observatório do Registro. 23/10/2021, acesso aqui. Voltaria ao tema aqui: Agonia central - ou anomia registral? - bis. Acesso aqui. 6 Fernando P. MÉNDEZ GONZÁLEZ indica um sumário rico e substancioso de artigos críticos acerca da metodologia do Doing Business. Consulte Mercado hipotecario y sistemas registrales. Especial referencia a la ejecución hipotecaria. In 18th IPRA-CINDER International Land Registration Congress. Madrid: CORPME, 2012. p. 226, passim. 7 Vide: ARRUÑADA. Benito. RIP Doing Business. São Paulo: Observatório do Registro. 21/9/2021. Acesso aqui. Do mesmo autor, Pitfalls to Avoid when Measuring Institutions: Is Doing Business Damaging Business? In Journal of Comparative Economics, 2007, 35[4], 729-47. 8 Por ocasião do XXI Congresso do IPRA-CINDER, realizado na Colômbia (Cartagena), entre os dias 2 a 4 de maio de 2018, tive ocasião de fazer breve exposição sobre a venda do Viaduto do Chá, tudo devidamente documentado e registrado em blockchain. O erro será perenizado, inatacável, irretorquível. Uma falsidade à prova de contraste no âmbito on-chain. JACOMINO. Sérgio. SREI - blockchain registral - Colômbia. Acesso aqui.  9 ROD. Thomas. Blockchain's incompatibility for use as a land registry: issues of definition, feasibility and risk. European Property Law Journal, vol. 6, n. 3, 2017, pp. 361-390. 10 Para um estudo sobre custos de transação e Registro de Direitos: MÉNDEZ GONZÁLEZ. Fernando P. A Função Econômica da Publicidade Registral. In Revista de Direito Imobiliário n. 55, jul./dez. 2003, pp. 133-160. 11 A citação, tantas vezes repetida, é esta: "Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poder-se-ia, com mais acerto, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada". LÉVY-STRAUSS. Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 91. 12 Sobre o tema das distinções entre precedência e prioridade e suas raízes históricas, v. JACOMINO. Sérgio. ALVIM, Arruda. CLÁPIS, Alexandre Laizo. CAMBLER. Everaldo Augusto, org. Lei de Registros Públicos comentada. 2ª ed. 2019, p. 1.016, item 6 - precedência e número de ordem geral. 13 São ainda pertinentes as considerações que fazíamos à proposta aziaga de reforma da LRP na série de artigos que foram veiculados para aclarar os debates. Sobre o tema, vide o tópico Precedência e prioridade - Conceitos distintos in SANTOS. Flauzilino Araújo dos. Protocolo para-registral. São Paulo: Observatório do Registro. 1/10/2020. Acesso aqui. 14 Este assunto é sensível. Venho me dedicando à matéria e a criação do SERP há de precipitar esta discussão. Por ora indico: JACOMINO. Sérgio. Para-registração - um fenômeno da modernidade? São Paulo: Observatório do Registro, 1/10/2020. Acesso aqui. 15 Aqui calha uma pequena advertência. Será necessário definir se os prazos de prenotação serão contados em dias úteis ou corridos e se o dies a quo se conta da prenotação ou não. Parto da premissa de que os prazos serão contados em dias úteis para manter coerência com o enunciado no art. 9º da LRP. A propósito das confusões, confira-se: A MP 1.085/21 e os prazos no Registro de Imóveis. Loc. cit nota 2. 16 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 13. 17 A atuação da CN-CNJ para concretizar o SREI, que alcançaria em breve todos os objetivos aparentemente colimados pela MP, se achava (e ainda se encontra) sob a cura da Coordenadoria de Gestão de Serviços Notariais e de Registro, criada pela Portaria CN-CNJ 53/2020, com Câmara de Regulação do Agente Regulador do ONR (Portaria CN-CNJ 55/2020, de 22/10) e Conselho Consultivo do Agente Regulador do Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico (Portaria CN-CNJ 57/2020, de 4/11). 18 V. estudo pioneiro de GOUVÊA. José Roberto Ferreira. Notas sobre a prenotação, in Boletim do IRIB, n. 179, abril de 1992, p. 2. 19 Vale a citação literal do dispositivo. Art. 215. Tomada a nota da apresentação e conferido o número de ordem, em conformidade com o art. 200, o oficial verificará a legalidade e a validade do título, procedendo ao seu registo, se o mesmo estiver em conformidade com a lei. § 1º O oficial fará essa verificação no prazo improrrogável de cinco dias, e poderá exigir que o apresentante ponha o documento em conformidade com a lei, concedendo-lhe, para isso, prazo razoável. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não podendo satisfazê-la, será o título, com a declaração da dúvida, remetido ao juiz competente para decidi-la". 20 Dediquei-me a estudar como se formou o entendimento que hoje predomina na doutrina e jurisprudência nos comentários ao art. 188 da LRP na obra coletiva indicada na nota 3, supra. Consulte o item 3, p. 1.047, O prazo do iter registral. 21 Remeto o leitor ao Processo CG 2.524/1997, de 17/12/1997, DJ 29/12/1997, Des. MÁRCIO MARTINS BONILHA. Acesso aqui. 22 Na verdade, perdemos a compreensão de que todo o iter registral é no fundo um processo. Di-lo-á a própria lei: "Título V - Capítulo III - Do Processo do Registro" (arts. 182 e ss.). A sucessão coordenada de atos para atingimento de um determinado fim deve ser compreendida em suas várias etapas, cada qual com rotinas bem especificadas. O sistema se ressente de uma criteriosa especificação de processos no âmbito do SREI e a MP não poderia ocupar-se disso. Parafraseando AFRÂNIO DE CARVALHO, já citado, a MP é extensa demais como lei, mas exígua como regulamento. 23 Um indício bastante impressivo de que as regras impostas pela Medida Provisória, que entrou em vigência sem a costumeira vacatio legis, é o teor da decisão proferida pela Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul. Apreciando um pedido de providências, o magistrado parecerista, de modo muito realista, concluiu que "ainda que se verifique nas fiscalizações que determinada serventia não está integralmente adequada à MP. 1085, a sugestão é de que não haja encaminhamento automático para medida disciplinar do responsável pelo serviço, desde que seja apurado que estão sendo adotadas as medidas possíveis e de boa-fé para adequação do serviço". De fato, a MP deveria prever um tempo razoável para adaptação das serventias. Processo 3493839 - SEI/TJRS, decisão de 20/1/2022, des. VANDERLEI TERESINHA TREMEIA KUBIAK. Acesso aqui. 24 XML - eXtensible Markup Language. É uma linguagem de marcação para leitura e interpretação de conteúdos estruturados. 25 Também conhecido como rebound effect. O aperfeiçoamento tecnológico, aumentando a eficiência com a qual se usa um recurso (ou se produz um bem econômico) pode representar um aumento da demanda desse recurso ou valor do produto. 26 A frase é citada em JACOMINO. Sérgio. Registro Eletrônico - ontem, hoje e a construção do amanhã. São Paulo: Observatório do Registro, 2020. Acesso aqui. 27 Para os interessados na documentação técnica da especificação do SREI sugerimos uma visita. São estudos empreendidos há mais de uma década. Sua paralização se deu por motivos políticos e a retomada vigorosa acha-se em andamento na atual gestão da CN-CNJ. Sugiro a visita à POC SREI (proof of concept) visite aqui.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A MP 1.085/21 e os prazos no Registro de Imóveis

A redação da MP 1.085/21 é bastante confusa e mesmo defectiva em vários pontos. Por dever de ofício, os registradores devem buscar haurir da reforma um sentido de sistema que o exegeta lamentavelmente não encontra. Entretanto, isso não nos escusa de buscar o melhor sentido que a Medida pode revelar. Afinal, "cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a proteger"1. Nesta primeira nótula de estudos, buscamos compreender o que nos revela a lei na combinação dos artigos 9º, 188, 205 e 206-A da Lei de Registros Públicos, todos alterados pela recente Medida Provisória 1.085/21. Vamos nos achegar a eles com alguma reflexão vestibular. LRP ou CPC? A primeira questão que assalta o exegeta é a contradição que logo se nota entre o art. 9º e seus parágrafos e o art. 188, para ficarmos no âmbito da LRP. O primeiro estabelece que os prazos serão contados em dias e horas úteis para o ciclo de vigência da prenotação (§1º), devendo-se observar ainda "os critérios estabelecidos na legislação processual civil" (§3º). Já o segundo prevê que o prazo para exame e consumação do registro será de dez dias, "contado da data do protocolo", sem precisar se este prazo será contado em dias úteis ou corridos. A prenotação e seus efeitos representam um aspecto nuclear do sistema. Dependendo da interpretação que se dê ao conjunto normativo, os direitos materiais do interessado serão diretamente afetados. Tradicionalmente, a data do protocolo sempre demarcou o dies a quo, significando que o prazo decadencial da prenotação se inauguraria com a protocolização - e não como cravado como regra geral no §1º do art. 9º da LRP, por analogado da legislação processual civil (§3º). A prioridade registral, que nasce da prenotação, é direito material2. O art. 1.246 do Código Civil estabelece uma regra muito clara, não modificada pela MP 1.085/21: "O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo". Além disso, o art. 186 da LRP dispõe que o número de ordem determina a prioridade do título, "e esta a preferência dos direitos reais". O direito de preferência, típico atributo dos direitos reais, se define, efetivamente, com a prioridade que decorre do lançamento no protocolo. O teor art. 188 da LRP é revérbero da lei civil, pois os prazos se contam da data do protocolo, não assimilando, expressamente, as regras de direito processual civil. Como ficamos? Dias e horas úteis O que se terá buscado com a modificação? Pode-se cogitar que a referência se apoiou nos artigos 219 e 224 do CPC. Pelo primeiro, verifica-se que, para a contagem de prazos, devem ser computados somente os dias úteis. Pelo segundo, exclui-se o dia do começo (dies a quo) e inclui-se o dia do vencimento (dies ad quem). Além disso, inovou-se com o estabelecimento de uma referência até então desconhecida na legislação registral (e processual civil, salvo o §3º do art. 107 do CPC) - as horas úteis para contagem de prazo de prenotação (§1º do art. 9º da LRP). A contagem dos prazos estabelecidos em horas se faz minuto a minuto (§4º do art. 132 do CC), desta maneira, adotado o critério da MP, temos 3 alternativas: (a) o termo inicial passaria a correr no 1º minuto do dia útil seguinte à prenotação, com termo final para o minuto inaugural do dies ad quem, o que soa absurdo, ou (b) os prazos se iniciariam no horário da protocolização e se esgotariam no minuto seguinte do mesmo horário do termo final ou (c) a "hora útil" indicaria apenas o tempo que calha no interregno do expediente, sem qualquer repercussão na definição do prazo de cessação dos efeitos da prenotação, sendo, nesse caso, perfeitamente dispensável a sua adoção. A alusão a "horas" na prestação do serviço aparece igualmente como referência ao tempo de expedição de certidões - inc. I, §10º do art. 19 -, além da clássica exceção à regra de prioridade consagrada no art. 192 da LRP. A inovação legislativa parece conotar eficiência e modernidade pela mera adjetivação de "eletrônicos" pespegada aos Registros de Imóveis e com contagem do tempo em "horas"!3  O fato é que seguimos sem uma perfeita compreensão das razões que levaram os autores a se socorrer do conceito de "horas úteis", nem os benefícios que a inovação possa ter trazido ao sistema. A inovação soa muito mais como mero slogan do que conquista efetiva de eficiência. Enfim, parafraseando McLuhan, buscou-se resolver os problemas de hoje, com as ferramentas de ontem, baseado em conceitos da véspera4. Entretanto, para não deixar escapar a oportunidade, o pressuposto da disposição parece ter sido o funcionamento ininterrupto das plataformas eletrônicas. O sistema da CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, por exemplo, funciona "24 horas por dia, em todos os dias da semana" (art. 18 do Provimento CNJ 39 de 25/07/2014). O seu artigo 8º reza: "A partir da data de funcionamento da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB os oficiais de registro de imóveis verificarão, obrigatoriamente, pelo menos na abertura e uma hora antes do encerramento do expediente, se existe comunicação de indisponibilidade de bens para impressão ou importação (XML) para seu arquivo, visando o respectivo procedimento registral" Logo, a ideia de extrapolação do horário de expediente, com o oferecimento de serviços como protocolo eletrônico, por exemplo, poderá ter levado os autores a pensar em mecanismos de acolhimento de títulos em horários além do expediente ordinário. O impacto das novas tecnologias nos processos registrais é matéria que carece de regulamentação. A superação de problemas que podem se revelar com a concorrência de serviços híbridos (balcão X WebService X API's) precisam ser resolvidos com uma regulação uniforme e coerente em todo o território nacional, o que não se deu com as disposições consagradas na reforma. Pense-se, por exemplo, em títulos contraditórios protocolados no e-Protocolo e no balcão do Cartório. Em São Paulo, cravou-se nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral a regra de se verificar na abertura e encerramento do expediente, "bem como a cada intervalo máximo de duas horas", se existe comunicações no SREI (indisponibilidades, penhoras online, títulos eletrônicos etc.), adotando-se prontamente as providências necessárias5. Por outro lado, a expressão - "horas regulamentares de expediente" (inc. II, §2º, art. 9º) - atrai a ideia de que o tempo deva ser fixado por regulamento local, sopesadas as circunstâncias peculiares, como feriados municipais, suspensão do expediente por fatos extraordinários, interrupção de comunicações eletrônicas etc. A hipótese de interrupção por "motivo de força maior declarado" acha-se previsto na própria LRP (art. 208). Os dias e horários de expediente devem fixados pelo "juízo competente", assim definido na organização judiciária dos estados, "atendidas as peculiaridades locais" (art. 4º da Lei 8.935/1994). A locução indica, ainda, certa discricionariedade na fixação do horário de expediente. O cenário se torna complexo quando são contados dias úteis. Uma vez mais, não devemos nos esquecer que as operações de envio de títulos ao registro tendem a migrar para os meios eletrônicos. Advinham-se os problemas de intercorrência de títulos contraditórios postados em plataformas híbridas. A regulação local não dá conta de transações que ocorrem em plataformas eletrônicas compartilhadas. No âmbito dos registros eletrônicos, toda a configuração espaço-temporal, que se acha consagrada na base de várias disposições legais, deve ser inteiramente repensada. Nestes casos, competente será a Corregedoria Nacional de Justiça para fixar os critérios e definir parâmetros para dar regularidade aos processos formais da protocolização. Recidiva de um problema superado A verdade é que a questão aqui discutida não é nova e sua recidiva no cenário das propostas de reforma da LRP causa perplexidade. O tema já havia sido agitado após a entrada em vigor do CPC (2016). Em forma de consulta, dirigida à Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, formulavam-se dúvidas em forma de quesitos: a)    "À míngua de regramento específico, o art. 219 do CPC passou a regular atos relativos a Registros Públicos?". b)    Se positivo, "a norma processual incide sobre todos os prazos previstos na Lei 6015/73 e nas NSCGJ, incluindo prenotações, ou apenas quando se tratar de prazo para a prática de ato em típico procedimento administrativo, como dúvidas e retificações de área?"6. As respostas foram adequadas e as conclusões são ainda hoje válidas e podem ser aproveitadas para iluminar as questões que exsurgirão com esta mudança legislativa. De início, os pareceristas destacam que a regra estampada no art. 15 do CPC é de caráter processual, não incidindo sobre atos de direito material. De fato, o art. 219 do CPC, ao cuidar especificamente do método para contagem de prazos, dispõe que a regra se aplicaria somente aos prazos processuais. Vamos ao dito artigo e a seu parágrafo único: Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais. Os magistrados ainda consignariam que o debate instaurado pela entidade de classe "apenas se justificaria quanto a típicos procedimentos administrativos, mormente à vista da explícita menção à 'ausência de normas que regulem processos (...) administrativos'", como se acha inscrito no art. 15 do mesmo CPC. Concluiriam que os "prazos para a prática de atos de direito material não experimentam influência dos artigos aludidos". A distinção que agora calha, entre prazos decadenciais e preclusivos, a Corregedoria Bandeirante, já à época do parecer citado, indicaria que o tratamento deveria ser homogêneo, mesmo para os processos administrativos típicos do Registro - como retificações, execuções extrajudiciais, usucapião, bem de família, Torrens etc. Fundado neste entendimento, seria editado o Provimento CG 19/2017, e com isso "sepultando maiores controvérsias"7. Eis a modificação consolidada nas NSCGJSP: "Contam-se em dias corridos todos os prazos relativos à prática de atos registrários e notariais, quer de direito material, quer de direito processual, aí incluídas, exemplificativamente, as retificações em geral, a intimação de devedores fiduciantes, o registro de bem de família, a usucapião extrajudicial, as dúvidas e os procedimentos verificatórios"8. Os problemas que poderão advir da mudança do método de contagem de tempo já deveriam ser conhecidos de sobejo. Por exemplo, como conciliar as regras da LRP com o CPC nos casos de postergação - quando o dia do início e do vencimento coincidirem com dias em que o expediente tenha sido encerrado antes ou iniciado depois da hora regulamentar - ou houver indisponibilidade da comunicação eletrônica (§1º do art. 224 do CPC)? Estas intercorrências devem ser sopesadas - especialmente no que respeita à comunicação eletrônica entre as serventias e o ONR - Operador Nacional do Registro de Imóveis, como já assinalado. A propósito, ressaltando "a importância da previsibilidade, trazendo segurança jurídica a reboque, e da uniformidade de condutas", consta de o r. parecer: "É bem de ver que a opção legislativa pela contagem de prazos processuais em dias úteis trouxe dificuldades inéditas aos manejadores do Direito. A existência de feriados estaduais e municipais já basta para desnudar a complexidade do sistema encampado pelo novo CPC. Nem se olvide o problema que a presença de feriados móveis do calendário nacional, como Carnaval e Páscoa, pode propiciar, mormente quando da necessidade de reexame do tema tempos depois de escoado o prazo, como nos recursos, a demandar memória e pesquisa de parte dos profissionais da área jurídica. Ademais, a distinção entre prazos de direito material, a serem contados em dias corridos, e de direito processual, a serem contados em dias úteis, segue sendo palco de intermináveis debates doutrinários e jurisprudenciais, dada a dificuldade de fixar conceitos que nitidamente segreguem uns de outros"9. Por fim, seria o caso de se perquirir: por qual razão a regra do art. 9º terá sido inserida na reforma já que, tradicionalmente, os prazos para as várias especialidades (e modalidades de processos registrais) sempre foram indicados no quadrante respectivo da lei? O art. 188 é o mais impressivo dos exemplos, mas não só, como se pode ver facilmente no texto da Lei de Registros Públicos. Melhor seria, à evidência, que se mantivessem as regras já consagradas há muito tempo e isto por uma única razão: como se verá, a reforma não representou ganho de eficiência, nem preservou, como seria esperável, o direito dos interessados no registro. Ou seja: não ganham nem o mercado, nem o crédito imobiliário, tampouco a administração, nem os interessados, usuários comuns do serviço registral. Seja como for, se divisa um sistema dual, complexo, de contagem de prazos, caso a MP 1.085/2021 não seja alterada e reformada no transcurso do processo legislativo. Conclusões É deveras confuso todo o articulado. Não é possível dar respostas seguras a um debate apenas iniciado, com a apresentação de centenas de emendas no Congresso Nacional, na dependência de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ. O que parece seguro afirmar é que a reforma não honrou as tradições do direito registral brasileiro, malbaratando suas regras estáveis e seguras, provadas pela experiência, nem facilitou a operação e compreensão do sistema pelos usuários e operadores, pouco acrescentando em termos de eficiência, agilidade e segurança jurídica. A propósito do tema de agilidade e rapidez, como supedâneos de eficiência e racionalidade sistêmica, voltarei ao assunto nos comentários sobre o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, outro problema criado no embalo do fenômeno de "solucionismo tecnológico"10 que seduz e encanta e nos desvia do rumo do aperfeiçoamento e modernização das instituições registrais. ____________ 1 MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 156. 2 PONTES DE MIRANDA vincula eficácia material ao protocolo nos termos do antigo art. 534 do CC de 1916, atual art. 1.246, sem mudanças significativas (§ 1.220, p. 231). Segundo o Tratadista, "se foi feita a transcrição, a eficácia é desde a data em que se protocolizou o pedido" (§ 1.245, n. 5, p. 330). Tratado de Direito Privado. Tomo XI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. 3 Sobre ser o Sistema Registral brasileiro "eletrônico" (o que não é, malgrado o fato da MP) cfr. JACOMINO. Sérgio. MP 1.085/2021 - Monstro de Horácio. 2021, no prelo. 4 McLUHAN, Marshall. FIORI, Quentin. The medium is the massage. - an inventory of effects. California: Gingko Press, 2001, p. 9. A era da ansiedade, dizem os autores, é "the result of trying to do today's job with yesterday's tools-with yesterday's concepts". 5 V. item 345 c.c. item 326, Cap. XX, das NSCGJSP. 6 Processo CG 49.880/2017, São Paulo, decisão de 5/4/2017, Dje 17/4/2017, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, Corregedor Geral de Justiça de SP. Acesso aqui. 7 Provimento CG 19 de 5/4/2017, Dje 17/4/2017, Des. MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral de São Paulo. Acesso aqui. 8 A regra se acha em pleno vigor até o presente momento (item 13.1, Cap. XIII das NSCGJSP). 9 Idem, ibidem nota 1. 10 Deliciosa expressão de MOROZOV. Evgeny. To save everything, click here: the folly of technological solutionism. New York: PublicAffairs, 2013.
1. SOBREVOO SOBRE A CLÁUSULA PENAL A Cláusula Penal é um pacto acessório a uma obrigação principal em que o devedor se compromete a uma prestação diversa da assegurada, que deverá ser prestada caso ocorra o inadimplemento culposo dessa obrigação.1 É uma figura largamente utilizada nos contratos, sendo comumente referida como "multa" convencional, e que está regulamentada no Código Civil brasileiro em seus artigos 408 e seguintes. Sendo o seu locus de atuação o direito dos contratos, a sua presença em atos notariais2 será corriqueira, em especial quando se tratar de escritura pública que "que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País".3 A figura atua no reforço da obrigação principal, estabelecendo de forma prévia uma sanção para o devedor, que, caso não cumpra a obrigação, deverá realizar uma prestação diversa, que é a "pena convencional".4 Assim, a vocação principal da cláusula penal é de reforço do vínculo obrigacional existente entre as partes, em uma clara valorização da autonomia privada e do princípio pacta sunt servanda. Ela, portanto, poderá constar de uma escritura pública de compra e venda de imóvel para reforçar a cláusula de pagamento do preço. Também poderá ser inserida em uma escritura pública de testamento, destinada a reforçar certa obrigação estabelecida pelo testador aos herdeiros. Poderá, ainda, encontrar-se estipulada em um pacto antenupcial, para reforçar uma obrigação de alimentos convencionais devidos por um cônjuge ao outro. 2. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA CLÁUSULA PENAL A partir da noção geral de cláusula penal apresentada acima é possível identificar três características muito importantes. A primeira é que a cláusula penal é necessariamente constituída por meio de um negócio jurídico; a segunda é que esse negócio jurídico será sempre acessório a uma obrigação principal; e a terceira é que esse negócio jurídico acessório impreterivelmente estabelecerá uma prestação futura. Considerando a primeira característica, verifica-se, portanto, que a estipulação da cláusula penal depende necessariamente da declaração de vontade das partes, aspecto comum a qualquer negócio jurídico. Deve-se sublinhar que a "declaração de vontade" é um elemento fundamental e único do negócio jurídico, não sendo possível separar a declaração da vontade.5 Da declaração de vontade surge o negócio jurídico, e por isso a cláusula penal só pode ser constituída a partir dela. A declaração negocial que constitui a cláusula penal será normalmente feita no mesmo momento em que a obrigação principal for acordada, mas não existem óbices para que ela seja estipulada em momento posterior, muito pelo contrário. O artigo 409 estabelece expressamente que ela pode ser estipulada "em ato posterior", sendo possível que as partes constituam a obrigação em um primeiro momento para, em um segundo momento, acordarem a respeito cláusula penal. Contudo, por ser um negócio acessório, ela deverá observar a forma do negócio principal. O caráter acessório é uma característica muito importante da cláusula penal, que parece não necessitar de muitas explicações. Porém, merece ser destacada, já que reconhecer a acessoriedade da cláusula penal significa reconhecer também a existência de certa relação de dependência desta em relação à obrigação principal.6 O seu regime de validade está necessariamente atrelado ao da obrigação principal, o que significa dizer que qualquer vício verificado nesta última prejudicará aquela, o que não ocorre na situação contrária.7 Ao lado dessa noção, tem-se ainda a cláusula penal como uma promessa de cumprir uma prestação no futuro.8 Sua eficácia é dependente de um fato incerto e posterior, qual seja, o inadimplemento da obrigação assegurada. Ela estabelece uma sanção pelo incumprimento do contrato, sendo que, caso este ocorra, o devedor deverá realizar a prestação diversa da obrigação assegurada. Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro qualquer limitação qualitativa quanto ao objeto da cláusula penal. Apesar de ser mais comum que as partes estabeleçam uma pena convencional pecuniária, nada impede que as partes estabeleçam uma prestação que não seja em dinheiro9, podendo ser constituída inclusive uma perda de direito.10 Contudo, o Código Civil estabelece expressamente um limite quantitativo que será o do valor da obrigação principal, nos termos do art. 412.11 Além disso, outras disposições normativas podem estabelecer limites específicos, como o art. 1336,1§12 do próprio Código Civil e o art. 9º da Lei de Usura13. 3. DAS MODALIDADES DE CLÁUSULA PENAL Todas as considerações apresentadas, contudo, são apenas de cunho geral, uma vez que a cláusula penal na verdade é uma figura multifacetada. A noção de cláusula penal ora evidenciada é apenas uma noção lata. Filia-se ao que hoje é conhecido como teoria dualista da cláusula penal, que considerada existir duas espécies, cada uma com função e natureza próprias. Essa visão dualista muda sobremaneira a concepção tradicional sobre a cláusula penal, focando na função exercida.14 Se a cláusula penal exercer função indenizatória, sua espécie será a cláusula penal como liquidação antecipada do dano. Se, diferentemente, exercer uma função coercitiva/punitiva, sua espécie será a cláusula penal stricto sensu. Menciona-se tal questão apenas superficialmente uma vez que a discussão, ainda que tenha enorme importância prática, não influencia verdadeiramente o tema ora escrutinado. Além disso, não se ignora a existência de dúvidas sobre a validade da cláusula penal punitiva no direito brasileiro, que vem sendo negada por grandes doutrinadores.15 Fato é que a discussão sobre as modalidades da cláusula penal não fica prejudicada considerando-se essa visão mais moderna sobre as espécies. Como evidenciado acima, tradicionalmente a cláusula penal é separada em duas modalidades (usualmente referidas pela doutrina como espécies) que não se preocupa tanto com a função desempenhada, mas sim com a modalidade de inadimplemento tutelado. Essa tutela pode ser tanto voltada para o inadimplemento absoluto, quando para o inadimplemento parcial (art. 409 do Código Civil). Grosso modo é possível falar que a cláusula penal compensatória tutela o inadimplemento absoluto da obrigação, com o intuito de prefixação antecipada da indenização pela resolução ou cumprimento pelo equivalente, enquanto a moratória serve para compensar os danos verificados quando há o inadimplemento parcial da obrigação, ou seja, a mora. Seja qual fora a modalidade, a pena convencional só é exigível se o inadimplemento foi por fato atribuível ao devedor.16 A referida divisão consta do nosso Código Civil, que estabelece diferentes eficácias para cada uma das modalidades de cláusula penal, seja ela compensatória ou moratória.17 A cláusula penal compensatória funciona substituindo a obrigação principal, sendo a única prestação devida caso haja inadimplemento do contrato, conforme estabelecido no artigo 410 do diploma civil. Já a cláusula penal moratória funciona cumulativamente com o adimplemento ou indenização por inadimplemento, podendo ser exigida em conjunto com o cumprimento forçado ou com a indenização por incumprimento, nos termos do artigo 411 do Código Civil. 4. CUIDADOS NA INSERÇÃO DA CLÁUSULA PENAL NOS ATOS NOTARIAIS Após esses breves apontamentos sobre as principais características da cláusula penal e sobre as suas modalidades, é possível trazer algumas considerações sobre a sua inserção nos atos notariais, e os cuidados que devem ser observados pelos tabeliões de notas quando da sua redação. Considerando que foram apontados três características principais da cláusula penal, é possível também extrair três premissas básicas que precisam ser observadas na sua estipulação. A primeira delas se relaciona diretamente como a noção de cláusula penal como um negócio jurídico. Sendo essa a qualificação da figura, e como ressalvado acima, ela somente poderá ser constituída por meio da declaração de vontade válida das partes. Neste sentido, ela não pode ser imposta por terceiros alheios à relação jurídica. Isto significa dizer que não cabe ao tabelião de notas por conta própria estabelecer, na escritura pública, que o atraso no pagamento de uma parcela da compra e venda de um imóvel será sancionado como uma "multa moratória" de 2% do valor do em atraso, por exemplo. São as partes que devem, livre e conscientemente, exprimir a sua vontade, estabelecendo a cláusula penal no negócio. A segunda premissa decorre da ideia de acessoriedade da cláusula penal. Sendo acessória a cláusula penal guarda uma relação de dependência com uma obrigação principal, atuando como cláusula de reforço e tutela desta. Assim, é fundamental que o tabelião de notas verifique qual é a obrigação que as partes querem tutelar com a cláusula penal. Novamente tomando por base a ideia da escritura pública de compra e venda de bem imóvel, será bastante usual que as partes queiram que a cláusula penal reforce, ou seja, seja acessória à obrigação de pagamento do preço. Mas nada impede que elas queiram estabelecer uma cláusula penal para tutelar o prazo de imissão da posse do imóvel, ou estipular uma cláusula penal para o caso de resolução do contrato. A obrigação assegurada pela cláusula penal, portanto, deverá ser expressamente indicada no ato notarial, cabendo esse cuidado por parte do tabelião de notas. A terceira premissa, que também se liga com a acessoriedade da figura, decorre da noção de prestação futura da pena convencional e do seu fator de eficácia, que é o inadimplemento da obrigação. Como a cláusula penal estabelece uma prestação futura e condicionada à verificação do inadimplemento absoluto ou da mora, ela pode ser estipulada até o momento do vencimento da obrigação. Como ela estabelece uma prestação que só será realizada pelo devedor se ele inadimplir, as partes podem estipulá-la em momento posterior a celebração da obrigação principal.[18] Mas essa estipulação necessariamente deverá ocorrer antes da ocorrência do inadimplemento, uma vez que uma estipulação posterior contraria a natureza e a função da cláusula penal. Além disso, é importante observar que no âmbito dos atos notariais a estipulação posterior da cláusula penal deverá ser realizada na mesma forma do contrato principal, o que significa dizer que ela deverá ser estipulada por escritura pública. Concomitantemente com essas premissas, o tabelião de notas de notas também deve se atentar à modalidade de cláusula penal que as partes desejam estipular. Isto é, qual o tipo de inadimplemento deverá ser tutelado pela cláusula penal a ser inserida no contrato celebrado por escritura pública: inadimplemento absoluto ou mora, ressalvada a possibilidade ainda de reforço específico de certa cláusula. Se as partes quiserem tutelar o inadimplemento absoluto, por exemplo estipulando uma cláusula penal para o caso de resolução por inadimplemento, estar-se-á diante da modalidade compensatória, e a redação da cláusula penal deverá deixar claro que a pena convencional atua substitutivamente. Por outro lado, se as partes quiserem tutela a mora, estabelecendo uma cláusula penal de 2% para o caso de atraso no pagamento, o caso será de cláusula penal moratória, sendo necessário que o teor da estipulação expresse que a pena convencional atuará cumulativamente com a realização da prestação principal. Ainda, existindo a intenção das partes em reforçar uma cláusula específica, como uma cláusula de exclusividade ou de não concorrência, a disposição também deverá evidenciar a possibilidade de cobrança da pena convencional cumulativamente com a prestação principal. Por fim, um último aspecto deverá ser observado pelos tabeliões de notas quando a inserção da cláusula penal no contrato formalizado por meio de um ato notarial que se relaciona com o objeto da prestação alternativa que decorre da cláusula penal. Como apontado acima, não existe qualquer óbice qualitativo quando ao objeto da pena convencional, que poderá ser uma prestação pecuniária, de prestar coisa ou mesmo uma perda de direito. Lado outro, existem certos limites quantitativos que devem ser observados, devendo ser observado o limite do valor da obrigação principal de forma genérica, e em especial na cláusula penal compensatória, e mais especificamente o limite do art. 1.336, §1º do Código Civil nos casos das convenções de condomínio, e da lei de usura para as cláusulas penais moratórias. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2017. v. IX. MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. II. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 418 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006. ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019. TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018.  __________________ 1 Por todos cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. I, p. 93; e MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 25-69. 2 Que são aqueles atos previstos no art. 7º da lei 8.935/94: Aos tabeliães de notas compete com exclusividade: I - lavrar escrituras e procurações, públicas; II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados; III - lavrar atas notariais; IV - reconhecer firmas; V - autenticar cópias. 3 Forma essencial à validade nos termos do artigo 108 do Código Civil: Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. 4 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, v. IX, 2017, p. 475. 5 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 82.   6 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil, v. IX, p. 487. 7 SIMÃO, José Fernando. Comentário ao art. 409. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 232B. 8 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 100. 9 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 54. 10 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 234. 11 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. 12 Art. 1.336. § 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito. 13 Decreto 22.626. Art. 9º. Não é válida a cláusula penal superior a importância de 10% do valor da dívida.   14 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 25 a 54. 15 Como RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006, p. 242-247 e 282; e SIMÃO, José Fernando. Comentário ao art. 408. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 231B-232A. 16 TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, p. 196. 17 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 57-59. 18 O que inclusive se extrai da redação do art. 409 do Código Civil: A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora. (grifo nosso)
Introdução Em 27 de dezembro de 2021, o Presidente da República adotou a Medida Provisória (MP) 1.085, cujo objeto, nos termos de seu art. 1º, são dispor sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) e modernizar e simplificar os procedimentos relativos aos registros públicos. A MP traz várias e importantes mudanças ao direito registral brasileiro. O objetivo deste artigo é ressaltar um ponto muito positivo do novo ato normativo, bem como realizar e explorar, ainda que de forma incipiente, sugestões para que se avance no objetivo de modernização e simplificação das notas e registros públicos1.  Ponto positivo: o uso de assinaturas eletrônicas avançadas e a identificação do usuário A Medida Provisória 2.200-2, que criou o certificado digital emitido pela "Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira" (ICP-Brasil), foi adotada em 24 de agosto de 2001, ou seja, há mais de vinte anos. Legalmente, e até hoje, o certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil é o "padrão-ouro" das assinaturas eletrônicas no Brasil (cf. art. 10, § 1º, da referida MP). Os serviços notariais e registrais visam à segurança jurídica (art. 1º da Lei Federal 8.935/1994 e art. 1º, "caput", da Lei Federal 6.015/1973 - Lei de Registros Públicos ou LRP). A partir da previsão contida na Lei Federal 11.977/2009 (cf. arts. 37 a 41, 45 e 76), os serviços notariais e registrais têm-se valido, para a prática de atos eletrônicos, do certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil2. Ocorre que o certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil é caro e difícil de usar. Não "pegou". Afirma-se que nem é tão seguro. Segundo Lemos: O certificado digital é [...] uma tecnologia velha e inflexível. É vendida como mais segura, mas não é. Apenas 5 milhões de pessoas no Brasil (2,5% da população) têm um certificado digital. A maior parte dos demais 97,5% da população jamais terá dinheiro para comprar um.3 Recentemente, foram adotados vários atos normativos que avançam na questão da validade jurídica de documentos eletrônicos4. Merece destaque a Lei Federal 14.063/2020, cujo art. 4º define e classifica as assinaturas eletrônicas em três tipos: simples, avançada e qualificada. Elas possuem (nessa ordem) um nível de confiabilidade gradativo, sendo que a assinatura eletrônica qualificada é a que usa o certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil. Vale a pena a leitura dos arts. 4º, "caput" e § 1º, e 5º, "caput" e §§ 1º e 2º, da Lei5. A MP cumpre, assim, dois objetivos: a) inicia a regulamentação dos documentos eletrônicos nos serviços registrais, conforme previsto nos arts. 37 (em sua redação original), 38, "caput" (também em sua redação original), e 45 da Lei Federal 11.977/2009, bem como no art. 7º, § 1º, VII, da Lei Federal 14.129/2021; diz-se "inicia", pois a própria MP, em seus arts. 7º e 15 (o último deu nova redação aos arts. 37 e 38 da Lei Federal 11.977/2019), transfere a competência para a regulamentação de seus dispositivos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ); b) atualiza a legislação específica dos registros públicos conforme os recentes atos normativos sobre documentos eletrônicos, expressamente admitindo o uso de assinaturas eletrônicas avançadas - embora, repita-se, a regulamentação tenha sido deixada a cargo do CNJ (art. 17, §§ 1º e 2º, da LRP, com a redação dada pelo art. 11 da MP; art. 38, "caput" e § 2º, da Lei Federal 11.977/2009, com a redação dada pelo art. 15 da MP). Neste contexto, também merece destaque o art. 9º da MP, ao possibilitar que, "para verificação da identidade dos usuários dos registros públicos", os oficiais de registro e também tabeliães possam acessar "as bases de dados de identificação civil, inclusive de identificação biométrica, dos institutos de identificação civil, das bases cadastrais da União, inclusive do Cadastro de Pessoas Físicas da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia e da Justiça Eleitoral". Esse importante dispositivo permitirá, com segurança jurídica, a identificação do usuário do serviço notarial e registral, livrando tanto os usuários como os notários e registradores dos problemas que envolvem o certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil. As bases de dados mencionadas no Artigo poderão ser utilizadas para que os usuários realizem a assinatura eletrônica avançada, conforme definida na Lei 14.063. A identificação pode ser, ainda, essencial para que os extratos eletrônicos, previstos no art. 6º da MP, sejam aptos à prática de atos registrais. Plataforma gov.br  Com a expressa admissão do uso de assinaturas eletrônicas avançadas nos serviços registrais, passa a ser juridicamente possível a utilização das assinaturas eletrônicas disponíveis através da Plataforma gov.br, conforme indicado pelo governo federal6. A Plataforma gov.br, que nasceu com o nome "Plataforma de Cidadania Digital", foi instituída pelo Decreto Federal 8.936/2016. Ela permitia o acesso do cidadão a serviços públicos (inicialmente federais), através de um "usuário" (número de inscrição no CPF) e senha. A novidade recente, grandemente despercebida (pouco ou sequer divulgada), foi a inclusão de uma ferramenta de assinatura eletrônica avançada na Plataforma. Juridicamente, isso ocorreu em consonância com o objetivo 12 da Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, anexa ao Decreto Federal 10.332/2020, e, mais especificamente, através dos arts. 5º e 6º do Decreto Federal 10.543/2020, e da inclusão do inciso IX no "caput" do art. 3º do já citado Decreto 8.936, ocorrida por força do Decreto Federal 10.900/2021. Em consonância com os arts. 4º e 5º do Decreto 10.543, o usuário da Plataforma gov.br terá de um a três níveis de conta7: a) Bronze, após cadastro ou validação de dados via Receita Federal, INSS ou Denatran (o Decreto exige "autodeclaração validada em bases de dados governamentais"), e que equivale a uma assinatura eletrônica simples; b) Prata, após validação facial (via Denatran) ou de dados (via bancos credenciados ou SIGEPE) - (o Decreto exige "validação biométrica, biográfica ou documental"), e que permite a assinatura eletrônica avançada; e c) Ouro, após validação facial (via Justiça Eleitoral) ou de dados (com uso de certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil), e que também permite a assinatura eletrônica avançada. Após a obtenção do nível prata ou ouro, o cidadão pode assinar um documento com assinatura eletrônica avançada da seguinte forma8: a) acessando o site assinador.iti.br (via computador ou celular); b) fazendo o login na conta gov.br com seu número de inscrição no CPF e senha; c) carregando o documento a ser assinado; d) assinando o documento com o código enviado a seu celular (via SMS ou aplicativo gov.br, se instalado). O documento assinado pode, então, ser baixado, e a validade da assinatura avançada pode ser conferida no site verificador.iti.br (exatamente como já era possível no caso de assinatura qualificada). A assinatura eletrônica avançada da Plataforma gov.br é gratuita e simples, uma vez que dispensa cartão ou token, a instalação de qualquer software que não seja o navegador e até mesmo o computador (o procedimento pode ser feito inteiramente pelo celular). Ela resolve, assim, os problemas do certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil. Há um grande potencial para efetiva popularização9 e solução do atual gargalo para a prestação eletrônica dos serviços notariais e registrais. Sugestões de avanço  Inclusão dos tabeliães de notas e protesto A interpretação literal, o conjunto de todos seus dispositivos e a interpretação histórica (entidades consultadas na elaboração da MP10) levam à conclusão de que a MP 1.085, realmente, trata apenas os registros públicos, excluindo os tabeliães de notas e de protesto11. Entretanto, a Constituição Federal, em vários dispositivos, utiliza a expressão "serviços notariais e de registro" (arts. 103-B, § 4º, III, e 236, "caput" e § 2º, bem como art. 32 do ADCT). Assim também o faz a Lei Federal 8.935/1994. Notários e registradores são (ambos) agentes públicos que conferem fé pública a atos e negócios jurídicos privados, garantindo, assim, sua publicidade, autenticidade, segurança e eficácia. O chamado Direito Notarial e Registral é, hoje, um evoluído microssistema jurídico com princípios e regras comuns. Não se compreende, portanto, que a MP tenha por objeto apenas os registros públicos; o objetivo de modernizar e simplificar os procedimentos (art. 1º da MP) deve ser estendido àqueles que são de responsabilidade dos tabeliães de notas e de protesto12. A MP, a ser convertida em lei, deveria criar um verdadeiro "Sistema Eletrônico de Serviços Notariais e Registrais (e-SNR ou e-cartórios)". Um sistema ou plataforma unificada seria não só conveniente ao usuário do serviço, como também traria importantes sinergias às diferentes especialidades de serviços notariais e de registro, reforçando-as mutuamente. Um exemplo disso seria, justamente, a identificação segura do usuário. Um acesso unificado e válido para todos os serviços extrajudiciais eletrônicos, seja através dos pactos previstos no art. 9º da MP, seja, por exemplo, através do certificado digital notarizado (cf. Seção 3.2 abaixo), seria uma revolução para todo o sistema extrajudicial, com inegável proveito a todos os usuários. Outro exemplo seria o intercâmbio de documentos e informações entre um serviço notarial ou registral a outro: além do já conhecido envio de escrituras públicas aos ofícios de registro de imóveis, pode-se pensar no envio de documentos com firmas reconhecidas, ou suas cópias autenticadas, aos tabelionatos de protesto e ofícios de registro, no envio de certidões de protesto aos tabelionatos de notas e ofícios de registro etc. Utilização do certificado digital notarizado para assinatura eletrônica em todos os serviços notariais e registrais O certificado digital notarizado foi criado pelo Provimento CN-CNJ 100/2020. Ele é definido como "identidade digital de uma pessoa física ou jurídica, identificada presencialmente por um notário a quem se atribui fé pública" (art. 2º, II, do Provimento). Tal certificado é fornecido pelo tabelião de notas ao usuário, gratuitamente, por tempo determinado (três anos) e para uso exclusivo na plataforma e-Notariado e demais plataformas autorizadas pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB-CF) - (art. 9º, § 4º). O certificado digital notarizado permite a assinatura eletrônica avançada (cf. arts. 2º, II e III, e 9º, "caput", do Provimento). Considerando a expressa previsão de tal tipo de assinatura nos serviços registrais (Seção 2 acima), bem como nossa sugestão de inclusão dos tabeliães de notas e de protesto na MP (Seção 3.1 acima), ela própria, ou ato normativo regulamentador do CNJ, deveria deixar claro e estimular o uso do certificado digital notarizado para fins de prática de atos eletrônicos em todas as especialidades de serviços notariais e registrais. Admissão da assinatura eletrônica simples A Lei Federal 14.063/2020 prevê três tipos de assinaturas eletrônicas; já a MP exclui o uso de assinaturas eletrônicas simples (Seção 2 acima). Sugere-se que requerimentos simples de atos notariais ou registrais, que não contenham nenhuma declaração jurídica relevante, possam ser feitos com uso de assinatura eletrônica simples13. Em apoio a essa medida, considere-se o seguinte: (a) os atos de registro "stricto sensu", no registro de imóveis, dispensam qualquer requerimento (art. 193 da LRP); (b) qualquer interessado pode solicitar a prática de atos notariais e registrais (cf. arts. 13, "caput", II, 17, "caput", e 217 da LRP); (c) a atenção do notário ou registrador deve estar na legalidade e autenticidade das declarações e documentos apresentados, e não no simples requerimento; (d) admitindo-se "c" como verdadeiro, o requerimento, em si, pode ser considerado como de baixo impacto, autorizando o uso de assinatura eletrônica simples, conforme regra posterior à LRP: art. 5º, § 1º, I, da Lei 14.063. Confirmando "d' acima, o Decreto 10.543, que regulamenta a Lei citada (a princípio, no âmbito da administração pública federal), admite o uso de assinaturas eletrônicas simples para solicitações, requerimentos e envio de documentos (art. 4º, "caput", I, "a", "c" e "e"). A regra pode ser estendida, inclusive, para declarações jurídicas de baixo impacto: imagine-se a declaração de primeiro domicílio conjugal, para fixar a competência do registro do pacto antenupcial nos ofícios de registro de imóveis. Instituição da videoconferência notarial e registral  Afirma-se que a MP possibilitará que os pais promovam o registro do nascimento de seus filhos sem ir ao cartório14. Para tanto, seria interessante prever, já na MP, a possibilidade de videoconferência, que também poderá ser regulamentada pelo CNJ, nos termos de seu art. 7º. Precedente(s): Provimento CN-CNJ 100/2020 (cf. arts. 2º, V, 3º, "caput", I e parágrafo único, 4º, 9º, § 3º, 10, IV, 17, parágrafo único, 23, "caput", IV e § 2º, e 25). A videoconferência já é regulamentada para os tabeliães de notas e deve ser estendida a todos os oficiais de registro e aos tabeliães de protesto. Admissão expressa de documentos (físicos ou eletrônicos), mesmo que não assinados, mas cujo inteiro teor ou autenticidade possam ser confirmados via Internet, em sites oficiais ou idôneos Também seria interessante que a MP, ou ao menos a regulamentação a ser expedida pelo CNJ, expressamente confira validade jurídica a documentos, físicos ou eletrônicos, cujo inteiro teor ou autenticidade possam ser confirmados via Internet, em sites oficiais ou idôneos, mesmo que não contenham nenhum tipo de assinatura. Existem vários exemplos de documentos que se beneficiariam de tal previsão: certidões de débitos fiscais, comprovantes de inscrição no CPF ou CNPJ, documentos de processos judiciais, publicações em diários oficiais, demonstrativos do Cadastro Ambiental Rural (CAR), Certificados de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), anotações de responsabilidade técnica etc. Precedente(s): art. 4º, § 1º, VI, do Provimento CN-CNJ 94/2020; art. 6º, § 1º, IV, do Provimento CN-CNJ 95/2020 c/c art. 2º do Provimento CN-CNJ 97/2020. Admissão de documentos eletrônicos resultantes da digitalização de documentos físicos cujas firmas sejam reconhecidas ou cujas cópias sejam autenticadas por notários e registradores para fins exclusivos de prática de ato próprio do serviço do qual são titulares e que sejam por eles assinados eletronicamente  Todos os notários e registradores são dotados de fé pública (art. 3º da Lei Federal 8.935/1994). A todos eles, portanto, deve ser reconhecida a possibilidade de praticar atos equivalentes a "reconhecimento de firma" ou "autenticação de cópia de documento", desde que exclusivamente para fins internos do serviço do qual sejam titulares. Na verdade, esta sugestão vale para o procedimento tanto físico como eletrônico: no caso de procedimento físico, o notário ou registrador lança, no documento original ou em sua cópia, respectivamente, os termos de "assinatura presencial" ou "conferência com o original", nele apondo seu sinal público; no caso de procedimento eletrônico, o notário ou registrador irá, também e em seguida, digitalizar o documento e assinar o arquivo resultante com sua assinatura eletrônica qualificada (certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil); após, o documento ser-lhe-á formalmente apresentado para a prática do ato notarial ou registral. Exemplos: usuário e responsável técnico apresentam uma declaração de responsabilidade (declaração jurídica relevante) em procedimento de inserção ou alteração de medidas perimetrais de imóvel e assinam-na no balcão do ofício de registro de imóveis competente; o credor assina uma carta de anuência no balcão do tabelionato de protesto competente. Precedente(s): arts. 3º, § 2º, e 4º, "caput", do Provimento CN-CNJ 28/2013; art. 11, § 2º, do Provimento CN-CNJ 63/2017; art. 4º, § 1º, V, do Provimento CN-CNJ 94/2020; art. 6º, § 1º, III, do Provimento CN-CNJ 95/2020 c/c art. 2º do Provimento CN-CNJ 97/2020; arts. 925, parágrafo único, e 928, § 1º, do Código de Normas dos serviços notariais e de registro de Minas Gerais (Provimento Conjunto 93/2020)15. Admissão de documentos já apresentados a notários e registradores em sua forma física original, que contêm selo de fiscalização ou autenticidade verificável via Internet e que são reapresentados de forma eletrônica Trata-se de uma possibilidade a ser estudada, em prol da simplificação do serviço notarial e registral, e também baseada no art. 3º da Lei Federal 8.935/1994, que confere fé pública a todos os notários e registradores. Vamos expô-la em etapas: 1) o documento, físico, foi apresentado a um notário ou registrador - por exemplo, a um tabelião de notas para reconhecimento de firma ou autenticação de cópia, ou a um oficial de registro de títulos e documentos para registro; 2) o ato foi praticado e foi aposto, no documento físico, o selo de fiscalização ou autenticidade previsto em ato normativo estadual; 3) o documento é digitalizado pelo usuário e apresentado de forma eletrônica ao (mesmo ou outro) notário ou registrador para a prática de um segundo ato. Cumpridas essas premissas, o notário ou registrador responsável pela prática do segundo ato poderia confirmar, via Internet (no site do tribunal de justiça ou da entidade responsável pelo selo) a autenticidade do selo já aposto no documento - observe-se que, em alguns Estados, a confirmação da autenticidade inclui dados sobre o ato praticado e a pessoa relacionada ao documento. Haveria, assim, segurança sobre a autenticidade do documento físico digitalizado, permitindo a prática do segundo ato, agora eletrônico. Exemplo: um tabelião de protesto poderia aceitar uma digitalização simples de uma carta de anuência com firma reconhecida do credor e selo de autenticidade, desde que confirmasse referido selo via Internet. Admissão de documentos, mesmo que não sejam de autoria do requerente, se apresentados de forma eletrônica, com sua assinatura eletrônica e sob sua responsabilidade (atribuída genericamente por lei ou ato normativo ou declarada especificamente, também de forma eletrônica e com sua assinatura eletrônica) Embora a sugestão possa parecer "disruptiva", ela já encontra alguma fundamentação legal e, inclusive, precedentes. De acordo com esta sugestão, a ser mais bem estudada, o usuário, após previamente identificado no sistema eletrônico, apresentaria documentos digitalizados de forma simples, tornando-se - seja por disposição expressa de lei ou ato normativo, seja mediante assinatura de termo de responsabilidade eletrônico específico - responsável pela autenticidade dos documentos, que seria, então, presumida. Precedente(s) Dispõe o art. 26 da Lei Federal 14.129/2021 ["Lei do Governo Digital", válida para a União, podendo ser estendida para Estados, Municípios e Distrito Federal "desde que adotem os comandos [da] Lei por meio de atos normativos próprios" (cf. art. 2º, "caput", III)] que "presume-se a autenticidade de documentos apresentados por usuários dos serviços públicos ofertados por meios digitais, desde que o envio seja assinado eletronicamente".[16] No caso de processos judiciais, documentos digitalizados por advogados, procuradores, promotores e defensores públicos e juntados aos autos eletrônicos presumem-se autênticos (art. 425, "caput", VI, do CPC; a norma ressalva "a alegação motivada e fundamentada de adulteração"). Um precedente específico nos serviços notariais e registrais é a apresentação eletrônica de título ou documento de dívida a protesto: a apresentação pode dar-se "mediante simples indicação do apresentante", desde que ele declare sua responsabilidade (cf. art. 2º, § 1º, do Provimento CN-CNJ 87/2019). Por fim, a própria MP prevê dois casos que vão ao encontro do aqui sugerido: a) o apresentante de um extrato eletrônico poderá, a seu critério, solicitar o arquivamento eletrônico da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato, desde que também apresente "declaração, assinada eletronicamente, de que corresponde ao original firmado pelas partes". Ressalvas Exigência de assinatura eletrônica qualificada (com uso de certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil)  A Lei exige o uso de assinatura eletrônica qualificada (certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil) nos "atos de transferência e de registro de bens imóveis" (art. 5º, § 2º, IV, da Lei 14.063). Já o art. 17, § 2º, da LRP, com a redação dada pelo art. 11 da MP, bem como o art. 38, § 2º, da Lei 11.977, com a redação dada pelo art. 15 da MP, dispõem que "ato da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça poderá estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos envolvendo imóveis". Numa interpretação sistemática, em que se leva em consideração o art. 108 do Código Civil, deveria ser exigida assinatura qualificada em todos os documentos, públicos ou particulares, independentemente do valor, que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, se apresentados de forma eletrônica. Nos demais casos, deveria ser possível o uso de assinatura eletrônica avançada. A regra que obriga o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas em determinadas hipóteses deve prevalecer sempre que estiver em conflito com as sugestões acima apresentadas.  Afastamento dos requisitos do Decreto Federal 10.278/2020  Adotando-se uma ou mais das sugestões acima, e diante de uma previsão expressa em lei (fruto de conversão da MP) ou ato normativo (fruto de regulamentação pelo CNJ), específica para os serviços notariais e registrais, poder-se-iam afastar os rígidos requisitos previstos no Decreto Federal 10.278/2020 para a validade de documentos digitalizados [diversos metadados, inclusive "hash (checksum) da imagem"]. Em prol da modernização e simplificação dos procedimentos notariais e registrais, tal afastamento é desejável, seja a digitalização realizada por notário ou registrador, seja pelo usuário. Na digitalização realizada pelo usuário, invoca-se, novamente, o art. 26 da Lei 14.129/2021 (bem como o art. 2º, "caput", II, da Lei Federal 13.874/2019). Na digitalização realizada por notário ou registrador, além de dever prevalecer sua fé pública (art. 3º da Lei Federal 8.935/1994), invocam-se as normas especiais válidas para os tabeliães de protesto (art. 39 da Lei Federal 9.492/1997) e de notas (art. 31 do Provimento CN-CNJ 100/2020). Observe-se que o art. 194 da LRP, com a redação dada pelo art. 11 da MP, atribui validade à digitalização de títulos físicos "nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça". Ou seja, a CN-CNJ pode estabelecer requisitos menos rígidos do que os do Decreto mencionado. Dúvida do notário ou registrador e a necessária segurança jurídica  O serviço notarial e registral visa à publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (art. 1º da Lei Federal 8.935/1994 e art. 1º, "caput", da Lei Federal 6.015/1973). Assim, em qualquer caso, o notário ou registrador poderá realizar diligência para a confirmação de autenticidade do documento que lhe foi apresentado, por qualquer meio cabível. Havendo suspeita razoável sobre sua inautenticidade, deve ser ressalvado ao notário ou registrador o poder-dever de solicitar esclarecimentos ao requerente do ato ou a apresentação do documento de outra forma, sobrestando o procedimento. Não se conformando o usuário com a recusa ou exigência, poderá ser deflagrado o procedimento de suscitação de dúvida. Precedente(s): Arts. 1º, § 1º, e 2º, § 4º, do Provimento CN-CNJ 93/2020; art. 9º do Provimento CN-CNJ 94/2020; art. 8º do Provimento CN-CNJ 95/2020. Considerações finais  É sabido que a Internet, potencializada pelos smartphones, promoveu uma verdadeira revolução em nossa sociedade. Hoje, o que todo consumidor ou usuário de serviço público deseja é ser atendido em sua casa ou trabalho, sem deslocamento ao fornecedor do produto ou serviço desejado. Sem prejuízo de suas importantes funções, é urgente que os serviços notariais e registrais adequem-se à nova realidade. Assim, é louvável o objetivo de modernizar e simplificar os procedimentos registrais, constante na MP 1.085/2021. O presente artigo contém algumas sugestões que podem ser aproveitadas no trâmite de conversão em lei da MP ou em sua regulamentação pelo CNJ. São sugestões iniciais que, naturalmente, merecem discussão e aprofundamento. *Alexandre Scigliano Valerio é doutor em Direito Econômico pela UFMG. Mestrando em Direito, Sociedade e Tecnologias pelas Faculdades Londrina. Especialista em Direito Notarial e Registral e Direito Registral Imobiliário. 1º Tabelião de Protesto de Maringá/PR. __________ 1 O presente artigo baseia-se em outro, elaborado por ocasião de nosso Mestrado em Direito, Sociedade e Tecnologias nas Faculdades Londrina, intitulado "Alternativas ao uso do certificado digital emitido pela ICP-Brasil para acesso inclusivo aos serviços notariais e registrais eletrônicos", concluído em 31 de outubro de 2021 - antes, portanto, da adoção da MP 1.085 - e ainda não publicado. O presente artigo também reforça as proposições que fizemos e que foram integralmente adotadas pela deputada federal Luisa Canziani (PTB-PR), que compõe o Grupo de Trabalho sobre reforma dos cartórios (GTCARTOR), criado pela Câmara dos Deputados por Ato de seu Presidente em 13 de julho de 2021. As proposições estão disponíveis aqui. As conclusões farão parte de nossa dissertação de mestrado sobre a prestação de serviços notariais e registrais de forma eletrônica. 2 Recentemente, o Provimento 100/2020, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CN-CNJ), criou um certificado digital, não emitido pela ICP-Brasil, para uso exclusivo perante os tabeliães de notas. 3 LEMOS, Ronaldo. Lei aprovada é contra o GovTech. Folha de S.Paulo, São Paulo, 28 mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. Os números ainda são atuais. Confira: BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI). ITI em números. Atualizado em 30/01/2022 às 19:00. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 4 Além do Código de Processo Civil de 2015 (cf. art. 411, II), foram adotados: a) a Lei Federal 13.874/2019 (cf. arts. 3º, "caput", X, 10, 12 e 18); b) o Decreto Federal 10.278/2020; c) a Lei Federal 14.063/2020; d) a Lei Federal 14.129/2021 (cf. arts. 5º, parágrafo único, 7º, 11 e 26). Especificamente no que tange aos atos notariais e registrais eletrônicos, é obrigatório citar a Lei Federal 11.977/2009 (cf. arts. 37 a 41, 45 e 76), o Código de Processo Civil de 2015 (cf. art. 193, parágrafo único), a Lei Federal 13.465/2017 (cf. art. 76) e a Lei Federal 13.775/2018 (cf. art. 8º). Além disso, diversos atos normativos da CN-CNJ dispuseram sobre as centrais de serviços eletrônicos de todas as especialidades de serviços notariais e registrais, nomeadamente: Provimentos 18/2012 (notas), 46/2015 (registro civil das pessoas naturais), 48/2016 (registro de títulos e documentos e civil das pessoas jurídicas), 87/2019 (protesto), 89/2019 (registro de imóveis) e 100/2020 (notas). 5 "Art. 4º Para efeitos desta Lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em: I - assinatura eletrônica simples: a) a que permite identificar o seu signatário; b) a que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; II - assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: a) está associada ao signatário de maneira unívoca; b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; III - assinatura eletrônica qualificada: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. § 1º Os 3 (três) tipos de assinatura referidos nos incisos I, II e III do caput deste artigo caracterizam o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, e a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos. [...] Art. 5º No âmbito de suas competências, ato do titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e em interações com o ente público. § 1º O ato de que trata o caput deste artigo observará o seguinte: I - a assinatura eletrônica simples poderá ser admitida nas interações com ente público de menor impacto e que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo; II - a assinatura eletrônica avançada poderá ser admitida, inclusive: a) nas hipóteses de que trata o inciso I deste parágrafo; b) (VETADO); c) no registro de atos perante as juntas comerciais; III - a assinatura eletrônica qualificada será admitida em qualquer interação eletrônica com ente público, independentemente de cadastramento prévio, inclusive nas hipóteses mencionadas nos incisos I e II deste parágrafo. § 2º É obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada: I - nos atos assinados por chefes de Poder, por Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo; II - (VETADO); III - nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), situações em que o uso torna-se facultativo; IV - nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, ressalvado o disposto na alínea "c" do inciso II do § 1º deste artigo; V - (VETADO); VI - nas demais hipóteses previstas em lei. [...]". 6 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria de Política Econômica. Nota informativa: Sistema Eletrônico de Registros Públicos - Serp (Medida Provisória nº 1.085, de 2021). 4 jan. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 7 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Secretaria de Governo Digital. Saiba mais sobre os níveis da conta gov.br. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 8 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Secretaria de Governo Digital. Assinatura Eletrônica do gov.br. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 9 Segundo recente reportagem, a Plataforma gov.br contava com 117 milhões de usuários cadastrados em novembro de 2021 - número mais de vinte vezes maior do que o de usuários de certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil: cf. PANDEMIA acelera oferta de serviços públicos digitais, que já passam dos 3.400; veja exemplos. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 jan. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 10 Digna de nota é a ausência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN Brasil), mesmo a MP tendo alterado as disposições gerais da LRP. 11 Os tabeliães de notas são mencionados apenas nos arts. 3º, "caput", VII, "b", e 9º, enquanto os tabeliães de protesto são mencionados apenas no art. 3º, "caput", X, "c", 1. 12 Nesse sentido, confira-se o art. 6º do Provimento CN-CNJ 95/2020, que dispõe sobre a recepção de títulos nato-digitais e digitalizados e abrange, indistintamente, "todos os oficiais de registro e tabeliães". 13 Defendemos que regra semelhante valha também para os procedimentos físicos: requerimentos simples de atos notariais ou registrais, que não contenham declaração jurídica relevante, devem poder ser feitos por escrito, por qualquer interessado, através da mera indicação de seus dados, não se exigindo reconhecimento de firma ou qualquer outra formalidade; exigir-se-ia, no máximo, a apresentação de documento de identidade com foto. 14 Entrevista concedida em 28 de dezembro de 2021 pelo secretário de política econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, à CNN. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2022. 15 "Art. 925. Admite-se a prática de atos de averbação e cancelamento por meio de cópia autenticada do título por tabelião de notas. Parágrafo único. Caso o título original seja apresentado diretamente ao oficial de registro ou preposto autorizado, este poderá conferi-lo com cópia reprográfica exibida pelo apresentante e declará-la autêntica, utilizando-a para a prática da averbação ou cancelamento. [...] Art. 928. As averbações de mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis, bem como da alteração do nome por casamento ou por separação ou divórcio, serão feitas a requerimento dos interessados, com firma reconhecida, e instruídas com documento comprobatório fornecido pela autoridade competente. § 1º O reconhecimento de firma previsto no caput deste artigo, bem como nos demais requerimentos de averbação, fica dispensado quando o requerimento for firmado pelo interessado na presença do oficial de registro ou de seu preposto. § 2º Exceto os requerimentos previstos no caput deste artigo e quando expressamente previsto na legislação, os demais casos de averbação prescindem de requerimento assinado por interessado e de reconhecimento de firma.". 16 Cf. ainda a Lei Federal 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que adota, como princípio, a "boa-fé do particular perante o poder público" (art. 2º, "caput", II).
1. Área de abrangência da cindibilidade registral: para além do Registro de Imóveis. Dando continuidade às reflexões sobre o princípio da cindibilidade registral iniciadas no artigo anterior, devemos agora analisar o seu âmbito de abrangência. Cumpre, antes, reforçar a noção de cindibilidade registral que já tivemos oportunidade de referir: trata-se de um princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável. Ou, conforme conceito de Ademar Fioranelli1, cindibilidade "significa a separação do que pode e deve ser aproveitado no título apresentado para registro, ou seja, aquilo que é possível de registro e o que não é possível. Em outras palavras: extrai-se do título apenas o que comporta inscrição, embora apresente algum tipo de falha". Eduardo Sócrates Sarmento Filho explica que, por intermédio de tal princípio, a requerimento dos interessados, pode haver o registro de certos atos contidos em um único título, deixando-se o registro de outros para um momento futuro, seja em razão da necessidade de se realizar uma retificação, seja por algum entrave de ordem burocrática2. Um fundamento legal para a cindibilidade pode ser extraído, segundo entendemos, a partir da interpretação teleológica e sistemática do art. 187 da lei 6015/73, o qual prescreve: "Art. 187 - Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo"3. Bem compreendida a noção de cindibilidade, insta nesse passo lembrar que a LRP - Lei de Registros Públicos trata do sistema brasileiro de registros públicos e contempla no seu Título I as disposições gerais, que são aquelas aplicáveis a todas as espécies de atividade registral. É dentro desse trecho breve e geral que constam previsões normativas sobre o expediente, a ordem de serviço, e consta especificamente que "Todos os títulos, apresentados no horário regulamentar e que não forem registrados até a hora do encerramento do serviço, aguardarão o dia seguinte, no qual serão registrados, preferencialmente, aos apresentados nesse dia'' (art. 10). Se em uma disposição geral de uma lei que trata dos ofícios registrais há menção à palavra "título", isso significa que não apenas o Registro de Imóveis, mas todas as demais espécies modalidades de registro constantes do art. 1º, § 1º da lei 6.015 atuam a partir do conceito de título. Logo, algumas dúvidas surgem a partir dessa interpretação - simplista - de que o Registro Público como um todo atua com a categoria "título" citada: (i) qual será a definição tratada na disposição geral?; (ii) se houver alguma delimitação terminológica que encontre compatibilidade com o que tratado sobre o Registro Imobiliário, poderia haver cisão do título noutros expedientes, p. ex., no Registro de Pessoas Jurídicas, ou no Registro de Pessoas Naturais? Em suma, a indagação mais certeira a ser feita é se a cindibilidade se restringe apenas ao seu berço, isto é, a seara registral imobiliária, ou se ela encontra horizontes maiores, aplicando-se noutras atribuições constantes da LRP. Tal diploma, além do que trata nas suas disposições gerais, estatui especificamente um rol de títulos para o Registro de Pessoas Naturais (art. 29), outro para Registro de Pessoas Jurídicas (art. 114), outro para o Registro de Títulos e Documentos (art. 127) e, finalmente, outro para o Registro de Imóveis (art. 167). De uma forma mais ou menos alinhada, os dispositivos legais que tratam do que é registrável para as várias atribuições citadas mencionam a estrutura documental (instrumentos particulares, atos constitutivos, carta de arrematação em hasta pública, sentenças que declaram a ausência). Não seria possível um mesmo título formal poder ser cindido em outro Registro que não o imobiliário? Imagine-se uma contenda levada ao Judiciário na qual uma pessoa pleiteia a dissolução conjugal e consequente partilha de bens, obtendo como resposta da contraparte que esta não se opõe ao divórcio, mas demonstra que, apesar do vínculo conjugal, houve separação há muito tempo e, inclusive, a constituição de uma união estável da qual resultou prole, pugnando-se pela averbação de tal relação familiar no seu assento de nascimento. O demandado obtém êxito no feito quanto à partilha, eis que o regime de bens cessou desde a separação. Na sentença consta a desconstituição da sociedade conjugal e o reconhecimento judicial da união estável, servindo a decisão como mandado para fins de averbação da união estável, mas, por descuido, nada tratando do divórcio em si. O réu leva o documento judicial (com a coisa julgada) ao Registro de Pessoas Naturais e obtém resposta no sentido de que não há como averbar o teor da decisão, pois em um mesmo documento há carga mandamental quanto à união estável, mas não sobre a dissolução do casamento. O caso acima, lendo-se o art. 97 da LRP, envolve um título que tem parte registrável (= união estável) e outra irregistrável por pendência de providência (= divórcio). Em tese, em se admitindo a aplicabilidade do princípio da cindibilidade do título também em sede do Registro Civil de Pessoas Naturais, poder-se-ia admitir que o interessado, réu no processo judicial, teria permissão para se valer da instância registral e requerer a aplicação da cindibilidade, averbando-se no nascimento a entidade familiar atual (união estável). Trata-se de consequência que precisa ser devidamente refletida pela doutrina e pela jurisprudência em matéria registral.  Desnuda-se uma acepção mais ampla do princípio da cindibilidade, que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jurídicos no seio registral, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que diz respeito ao imediato ingresso do que é registrável. Além da abertura legal para a aplicação da parcelaridade ao sistema registral público como um todo, e não apenas ao segmento imobiliário, há o argumento geral de que a sociedade contemporânea é verdadeiramente hipercomplexa, hipercomplexidade esta que pode resultar em anseios direcionados ao extrajudicial registral que tenham elementos insuscetíveis de ingresso no sistema e outros que tenham aptidão de imediato ingresso. É dizer: em algum momento, presente ou futuro, a norma-princípio da cindibilidade poderá ser utilizada no exercício de outra atividade registral que não a imobiliária, pois notamos que há abertura textual legal e anseios e demandas sociais para o manejo do aproveitamento dos elementos registráveis dentro de um título. 2. Síntese conclusiva sobre a cindibilidade do título no Sistema Registral brasileiro atual. A cindibilidade tem como origem o sistema registral imobiliário, que passou por profunda mudança a partir de um marco legal que mudou sensivelmente o seu foco: antes com um tipo de ênfase específica no título e na sua transcrição; depois, com a lei 6.015/73, com a ênfase mais nítida no chamado sistema modo-título e no exercício da inscrição, mantendo-se de forma mais pontual o ato transcritivo. Com o advento da LRP, houve a consagração do princípio da unitariedade matricial, norma esta que estabelece como estado ideal o de que para cada imóvel deve haver apenas uma matrícula, cabendo aos envolvidos na atividade registral imobiliária o exercício de atos jusreais atrelados a bens imóveis de forma concentrada no fólio real. Como a matrícula concentra todos os dados relativos a quem titulariza posições jurídicas reais, totais ou parciais, e relativas ao bem sobre o qual recaem tais posições, isto é, o imóvel, o perfil de Registro Imobiliário enfatizou sua adequação ao sistema de modo e título, que se baseia na ideia de que só é possível constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas reais imobiliárias por meio da apresentação do título, o qual será inscrito na matrícula do bem através de um outro ato, o ato registral lato sensu, vale dizer, a averbação ou o registro stricto sensu. É a partir da ideia de que a matrícula é o centro sobre o qual gravita toda a atividade registral imobiliária e, por outro lado, também da ideia que os títulos levados a registro lato sensu poderiam contemplar uma pluralidade de condutas ou eventos que constituem posições jusreais, que a cindibilidade se destaca: aproveitar-se o que é registrável no título apresentado, enquanto aquilo que não é registrável é devolvido ao interessado. Para identificar o que é registrável ou não, o Oficial - sempre fiel ao caráter prudencial da sua atividade jurídica - exerce a qualificação registral, para identificar em qual das categorias o documento (e seus atos) se amoldam da melhor forma. Tal prudência se refere à atividade que todo operador do Direito realiza, qual seja, a qualificação jurídica (que tem a qualificação registral imobiliária como uma de suas espécies). Toda qualificação jurídica tem um duplo aspecto: (i) de forma apriorística ou nomogenética (= processo de criação da norma jurídica), na identificação dos elementos do mundo dos fatos que irão compor a moldura normativa geral e abstrata; e (ii) de forma posterior ou ex post norma, na aplicação da norma geral e abstrata elaborada aos fatos, e verificação de como essa relação de conformação fáctica ao desiderato jurídico se enquadra, se qualifica juridicamente. Noutra perspectiva, qualificar diz respeito ao fato de que o operador do direito extrai do plano fáctico elementos para desenvolver um enunciado fáctico, o que também é realizado no plano jurídico, do qual se extrai um enunciado jurídico, sendo a norma jurídica o ponto de encontro entre os dois mundos, a correlação entre preceito maior (= enunciado jurídico) e preceito menor (= enunciado fáctico), resultando na criação da norma jurídica concreta e na sua aplicação, para atribuição dos efeitos de direito. A partir do momento que o Oficial de Registro de Imóveis qualifica, ele pode extrair o que é passível de ingresso imediato no fólio real do que não e, por isso, pode aplicar a norma jurídica relativa à produção de efeitos jurídicos reais quanto à primeira espécie. Dentro de uma pluralidade de fatos jurídicos que justificam a constituição, modificação ou extinção de posições jusreais constantes em um mesmo ato de revestimento é que o delegatário imobiliário pode cindir o aspecto formal do título e fazer ingressar no sistema registral o que pode imediatamente ser, justamente, registrado. É com essas bases da unicidade da matrícula e da atividade qualificadora do jurista, que dizem respeito ao Oficial de Registro de Imóveis, que se destaca o princípio da cindibilidade ou parcelaridade. Pela necessidade do labor jurídico envolver definições, não se escapou de conceber o princípio da cindibilidade como a espécie normativa registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável. Apesar da origem imobiliária, a parcelaridade tem como foco a figura do título (tanto em sua acepção formal quanto material), que aparece em diversas disposições atreladas aos demais segmentos registrais públicos, e não apenas o imobiliário - como se nota a partir da leitura do arts. 29, 114, 127 e 167 da lei 6.015/73. Logo, a norma-princípio em comento não se restringiria ao Registro de Imóveis, mas poderia ser reconhecida como um princípio geral do Sistema de Registros Públicos brasileiro. Em razão da amplitude constante nos dispositivos sobre o que é registrável em cada espécie de atividade registral, bem como do argumento geral da hipercomplexidade social é que se definiu o princípio da cindibilidade de forma mais ampla e apta a abraçar o exercício não só do registro imobiliário: trata-se de norma-princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jurídicos no seio registral, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que diz respeito ao imediato ingresso do que é registrável. Importante advertir, contudo, que a cindibilidade não pode encontrar aplicação ampla e irrestrita na seara registral, havendo um requisito absolutamente fundamental que deve estar sempre presente para que se verifique sua aplicação: o requisito da possibilidade de dissociação dos fatos jurídicos constantes do título, pela sua não vinculação. Vale dizer: deve haver ausência de um vínculo de interdependência cabal entre os atos jurídicos constantes do título formal, que impeça a sua cisão sob pena de ela acarretar total ruptura de sentido jurídico4. _____ 1 FIORANELLI, Ademar. A cindibilidade dos títulos. Exemplos práticos. In: AHUALLI, Tânia Maria; BENNACHIO, Marcelo (org.). Direito Notarial e Registral. Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latim, 2016, p. 403. 2 SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates. Direito Registral Imobiliário - Teoria Geral. Curitiba: Juruá, 2017, v. 1, p. 85. 3 Para alguns autores, como Decio Erpen e João Pedro Lamana Paiva, a cindibilidade se refereria fundamentalmente aos imóveis no título (isto é, quando apenas um ou alguns se encontram aptos, mas outros não, precisando de regularização). Exemplo: formal de partilha com um imóvel perfeitamente descrito e caracterizado, e outro não. 4 "Contudo, a aplicação do princípio não pode ser excessivamente abrangente. Vindo a registro uma escritura pública contendo dois negócios jurídicos distintos, porém interligados, como, por exemplo, uma doação com reserva de usufruto, não seria aceitável requerer apenas o registro de um deles" (SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates. Direito Registral Imobiliário - Teoria Geral. Curitiba: Juruá, 2017, v. 1, p. 85).
1. Considerações iniciais Em um país como o Brasil, que é dotado de vasto espaço geográfico e que tem na sua Constituição (art. 170) a adoção do sistema econômico capitalista, as questões imobiliárias apresentam-se em profusão, e sempre com papel de destaque. Apesar do plano social atualmente manifestar um vasto campo caracterizado pela imaterialidade (créditos, ações, marcas, patentes, os sítios eletrônicos), os imóveis ainda ocupam entre nós um espaço central no horizonte de importância jurídica (e que não deixa de se relacionar, também, com sua importância econômica, social e cultural nada desprezível). De uma forma mais ampla é que o ordenamento legal divisou, por meio das leis 6.015/73 (LRP) e 8.935/94, a atividade extrajudicial sustentada no art. 236 da Lei Fundamental brasileira, sob a bipartição fundamental em atividades notariais, de um lado, e registrais, do outro. É dentro dessa segunda área que estão os Oficiais de Registro de Imóveis, de Títulos e Documentos, de Pessoas Naturais e de Pessoas Jurídicas. Como já referido, e é de conhecimento amplo, toda essa atividade registral encontra amparo central na lei 6.015, que cuida do sistema brasileiro de Registros Públicos. O que importa aqui destacar é que essa metadisciplina jurídica, a do Direito Registral, é recheada de normas-princípios, particularmente pela proximidade - quanto ao exercício do munus público - com o regime jurídico público1. E, dentre os vários princípios habitualmente identificados no quadrante do Direito Registral, merece atenção (talvez maior do que vem recebendo) o princípio da cindibilidade ou parcelaridade do título, que é tratado essencialmente no que diz respeito ao Registro de Imóveis2. É precisamente sobre tal princípio do sistema de registros que pretendemos nos debruçar, neste artigo e no próximo que a ele se seguirá. Antes de adentrar o tema propriamente dito, são cabíveis dois registros introdutórios. O primeiro diz respeito à noção de princípio, eis que esta espécie normativa é o ponto de partida dos estudos acerca do que representa a cindibilidade para o sistema registral. Adere-se aqui, para fins estipulativos e operacionais, ao posicionamento de Humberto Ávila3, para quem os princípios são a espécie de norma jurídica que imediatamente estabelece um estado ideal de coisas orientador cuja aplicação demanda do operador do Direito a concretização de condutas cujos efeitos promovem o fim idealizado, contribuindo com outras razões mais específicas para a solução das questões fácticas. É sob essa perspectiva principiológica que se desenvolverão as considerações sobre as normas-princípios a seguir. A segunda nota introdutória refere-se ao panorama dos dois artigos, que terá como ponto inicial específico a relação entre a unitariedade da matrícula imobiliária e a parcelaridade - ambas noções que partem da ideia principiológica citada acima; o segundo ponto especial tratará dos contornos da cindibilidade e o que ficará denominado a partir daqui como aplicação primária (= em qual dos múltiplos Registros brasileiros se aplica); o terceiro e último ponto especial tratará de considerações sobre a aplicação do seccionamento a outras searas registrais, para além do Registro Imobiliário. 1. A origem: unitariedade ou unidade matricial Antes de adentrar o tema deste subitem, é necessário um breve histórico sobre o sistema registral imobiliário brasileiro anterior à lei 6.015. Conforme aponta Guilherme Fanti4, vigorava antes de 1973 uma estrutura baseada na transcrição, o modelo transcritivo, que, na prática, se baseava na constituição de direitos reais imobiliários a partir do título, constando nos amparos físicos em voga todo o teor do que constava no título (por isso transcrição, isto é, a ideia de transcrever todo o título no suporte sob custódia da autoridade pertinente). Atualmente, vigora o modelo inscritivo, que se baseia na extração do título dos dados subjetivos e objetivos essenciais com o consequente transporte para o fólio real5. Com o advento da LRP houve a instituição da matrícula como elemento fundamental para a identificação das posições jusreais e seus titulares em relação a determinado bem imóvel. Trata-se do chamado princípio da unitariedade da matrícula, ou unitariedade matricial, cujo estado ideal determinado é o de que para cada imóvel deve haver apenas uma única matrícula6. Como a matrícula concentra todos os dados subjetivos e objetivos relacionados ao imóvel, o perfil de Registro Imobiliário no Brasil enfatizou sua adequação ao sistema de modo e título (de raízes romanas), que tem como base a ideia de que só é possível constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas reais imobiliárias mediante um ato jurídico registrável (= título) cujo teor é inscrito na matrícula do bem através de um outro ato, o ato registral em sentido lato (= modo)7. Esclarece Luciano de Camargo Penteado8 que esse sistema modo-título significa que os direitos reais sobre imóvel só existem se houver um ato jurídico que sirva de fundamento (= título) para o exercício do registro lato sensu (= modo). É considerando essa relação entre um ato jurídico fundamento e um ato jurídico inscricional que nasce a noção da cindibilidade do título em sentido formal, que tem como base o aproveitamento do revestimento a ser registrado (= o título em sentido formal) quanto aos dados registráveis, isto é, contemplando, dentro de um título com conteúdo irregistrável e registrável, aquilo que é efetivamente passível de ser inscrito9. Insta salientar aqui, portanto, a diferença entre título em sua acepção formal e título na acepção material: o primeiro diz respeito ao ato instrumentalizado, ao instrumento em si (suporte documental), enquanto a segunda definição diz respeito ao conteúdo constante do documento (categoria do pensamento humano, mormente do pensamento jurídico), o que corresponde à causa do registro lato sensu10. Como fundamento principiológico máximo regente da atividade extrajudicial, tanto dos Registradores quanto dos Tabeliães, está a legalidade, que, partindo da base do art. 5º, II da Constituição Federal, acaba por se aproximar aqui do sentido do Direito Administrativo, enunciado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro11 como o estado ideal no qual o Poder Público executor das tarefas constitucionais só pode realizar algo quando estampada tal conduta na lei. Essa noção mais específica reverbera na atividade registral imobiliária, eis que só podem ser inscritos na matrícula12 aqueles atos considerados registráveis, os quais constam do art. 167, I da LRP13. Vê-se que a cindibilidade nasce juntamente (ou, melhor dizendo, em decorrência) da unicidade matricial, eis que a canalização dos dados imobiliários permite ao Oficial Registrador aproveitar o título apresentado pelo interessado naquilo que é registrável. Apesar disso, a ideia que permeia Direito Registral (Imobiliário) e cindibilidade e os conecta com a Teoria Geral do Direito está naquilo que tanto Marcos Bernardes de Mello14 como F. C. Pontes de Miranda15 ensinam: os fatos jurídicos lato sensu são aqueles recortes dos fatos sociais sobre os quais incidem normas jurídicas e que têm, por princípio, um viés teleológico, qual seja, a produção de efeitos jurídicos16. É dizer: a cindibilidade do título formal carrega em si o ensinamento da Teoria Geral do Direito de que o telos das condutas e eventos é, justamente, sob o ponto de vista do que almeja o corpo de normas jurídicas, a produção de efeitos jurídicos, cabendo ao Registro de Imóveis, na figura do seu titular delegatário, aproveitar o ato que lhe é levado para inscrição (ou transcrição) - ao menos sempre que possível. Para além da dúvida entre inscrição e transcrição do título, a lei 6.015 trata de forma inaugural e geral que as atividades registrais se baseiam na chamada escrituração, que "será feita em livros encadernados, que obedecerão aos modelos anexos a esta Lei, sujeitos à correição da autoridade judiciária competente'' (art. 3º, caput). De acordo com José Horácio Cintra Gonçalves Pereira17, escrituração consiste no processo por meio do qual o delegatário do munus registral transporta sistemática e metodicamente para certo suporte (os livros) dados relacionados à função registradora em espécie (registro civil das pessoas naturais e jurídicas, títulos e documentos, imobiliário, marítimo). O processo escritural pode ser melhor compreendido à luz da Teoria Geral do Direito, tendo em mira atuações típicas que competem ao operador do Direito (em geral), que tem como uma das suas espécies os delegatários extrajudiciários. Trata-se, aqui, da divisão que João Alberto Schützer Del Nero18 realiza entre qualificação e aplicação do Direito. Qualificar tem um duplo aspecto, relacionado a momentos distintos19: (i) de forma apriorística ou nomogenética (= processo de criação da norma jurídica geral e abstrata), qualificação consiste na identificação dos elementos do mundo dos fatos que serão inseridos dentro da moldura da norma jurídica; e (ii) de forma posterior ou ex post norma, qualificação consiste na afirmação de que determinado fato concreto corresponde a um determinado módulo jurídico, o que configura uma das etapas na aplicação da norma elaborada aos fatos sobre os quais incide. Para a elaboração da norma, tanto João Alberto Schützer Del Nero20 quanto Humberto Ávila21 mostram que o operador do Direito deve se debruçar sobre o plano fáctico e dele extrair elementos que componham um enunciado fáctico, bem como extrair do sistema jurídico um enunciado jurídico, sendo a verdadeira norma jurídica o ponto de encontro entre os dois mundos, a correlação entre preceito maior (= enunciado jurídico) e preceito menor (= enunciado fáctico), resultando na criação da norma jurídica para o caso concreto e na sua aplicação, para atribuição dos efeitos de Direito22. Como o Registrador é um jurista, e, portanto, tem como pressuposto da sua específica atividade escritural o exercício da qualificação e da aplicação do Direito, a cindibilidade encontra mais um fundamento, eis que no desenvolvimento das premissas fácticas e das premissas jurídicas podem ser identificados diversos elementos registráveis e irregistráveis no título, cabendo ao prudente delegatário cindir (separar, recortar, parcelar) o que é possível de aproveitamento, aqui entendido como o que é possível de imediatamente ser registrado. 2. Cindibilidade: definição e aplicação primária Sedimentadas as bases originárias, conceituais e históricas da cindibilidade, cabe agora a exposição técnica do princípio em seus detalhes. Com sustento nas lições de Guilherme Fanti23, Vitor Frederico Kümpel e Gisele de Menezes Viana24, pode-se afirmar que a cindibilidade é um princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável. De forma mais sintética, o princípio da cindibilidade determina ao Registrador a cisão do título (em sentido formal) levado a registro, de modo a aproveitar ou extrair elementos que podem imediatamente ingressar na matrícula, desconsiderando outros que sejam irregistráveis (ou por antijuridicidade, ou por dependerem de providências adicionais)25. Como asseverado anteriormente, a aplicação da cindibilidade pressupõe que o Oficial de Registro tenha realizado a qualificação jurídica, o desenvolvimento do enunciado fáctico e do enunciado jurídico, para identificar nesses dois planos o que é passível de imediato ingresso registral e o que não é. Ademais, em razão da diferenciação entre título formal e material, não se pode olvidar que o aproveitamento é do documento, o que dá o nome à espécie normativa em comento; todavia, existe intimidade com a acepção substantiva, diante do fato de que no mesmo documento há pluralidade de causas jusreais, as quais podem ou não ter independência entre si, e a primeira hipótese resulta na aplicação da parcelaridade26. Como indica F. C. Pontes de Miranda27, a situação de irregistrabilidade é situação provisória ou permanente de inviabilidade de registro lato sensu (= registro stricto sensu ou averbação) dos atos jurídicos, ou por não constarem legalmente como passíveis de serem inscritos no fólio real (= registráveis, segundo art. 167, I e II, LRP) ou por haver pendência a ser sanada pelo interessado. Ocorre que, como enunciado na norma-princípio da parcelaridade, há revestimentos documentais que ostentam duas ou mais situações jurídicas, o que permite que o Oficial de Registro recorte do teor documental aquilo que pode ser aproveitado e, por conseguinte, transporte para a matrícula. A doutrina28 estabelece alguns critérios para a aplicação da cindibilidade do título em sua acepção formal: (i) a pluralidade de conteúdos (o que implica a pluralidade de posições jurídicas) constantes em um mesmo título formal; (ii) a existência de títulos registráveis e irregistráveis; e (iii) a ausência, dentro do mesmo título formal, de interdependência ou unidade do ato registrável em relação ao ato irregistrável. Esses critérios transcendem a academia e servem como instrumental valioso para o âmbito prático. O juízo da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, SP, em procedimento de dúvida inversa29 suscitado em face do 17º Oficial Registro de Imóveis da capital paulista, enfrentou o tema em caso que envolveu negativa de registro stricto sensu de carta de sentença relacionada a algumas matrículas imobiliárias, entendendo o Registrador pela impossibilidade da aplicação da cindibilidade ao caso por haver obstáculo legal tributário, isto é, relacionado com o recolhimento do ITBI. Por outro lado, a suscitante afirmou que é possível a aplicação da cindibilidade em virtude de outro Oficial de Registro de Imóveis paulistano ter realizado o ato registral sem exigir o ITBI. Sobre esse caso, entendeu o juízo que a carta de sentença, na verdade, cristaliza um título em sentido material, a saber, a permuta de imóveis, especificamente a permuta de frações ideais entre condôminos, eis que a nominada divisão feita em sede judicial de divisão de bens mostrou a aquisição integral de direitos imobiliários por parte de alguns condôminos - sendo a suscitante uma das integrantes de tal grupo -, mediante anuência de todos os envolvidos. Diante desse quadro a magistrada, na sua função administrativa, entendeu inicialmente pela viabilidade da aplicação da parcelaridade, pois havia diversos imóveis envolvidos e, consequentemente, diversas posições jurídicas reais constantes em um mesmo amparo documental, a carta de sentença, concluindo ao final pelo parcial acolhimento da pretensão administrativa deduzida pela suscitante e determinando a aplicação da cindibilidade em relação a certos bens permutados, pois eram atos que, apesar do mesmo suporte formal, eram independentes daqueles sobre os quais a julgadora manteve o óbice tributário. Outro caso foi apreciado pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo (CSMTJSP)30. Tratou-se de apelação contra decisão proferida em procedimento de dúvida inversa contra o 13º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, cujo contexto fático era o de um título formal que continha ato de doação e constituição de usufruto cujo ato registral foi negado pela falta de prova documentária específica do recolhimento tributário, mas cujo pagamento foi declarado em escritura pública. Em paralelo ao trâmite registral houve o falecimento dos beneficiários identificados como usufrutuários. Inicialmente, o acórdão reconheceu a existência de todo um sistema de presunções relativas (de Direito Notarial e de Direito Civil) que permitiam concluir pelo pagamento do tributo. O segundo ponto abordado pelo acórdão foi relativo ao falecimento dos usufrutuários, eis que em um mesmo documento constavam intenções relacionadas a dois direitos reais (a propriedade transmitida e a constituição do usufruto), ingressando o tema da cindibilidade aplicada diante do fato de que poderia ser registrada a doação, que é ato independente do usufruto, cuja instituição e cancelamento foram dispensados. O mesmo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal bandeirante31 analisou outro caso de interesse para a temática ora em exame. O Registro de Imóveis de Penápolis/SP, um Cartório híbrido, negou registro de escritura de doação sobre dois imóveis, sob o pretexto de que os bens estavam sujeitos a efeitos de cláusulas restritivas de incomunicabilidade e impenhorabilidade (acarretando inalienabilidade). O interessado recorreu ao órgão colegiado da Corte paulista, que vislumbrou em juntada posterior de documentos que o doador possuía patrimônio para dispor livremente dos imóveis objeto do negócio contratual de doação. O colegiado entendeu pela possibilidade de registro, acolhendo a pretensão recursal do interessado, pois o Código Civil de 2002 exige que a parte disponível tenha cláusulas restritivas motivadas, o que não teria acontecido no caso. A cindibilidade entra no teor da decisão diante do fato de que em uma mesma escritura constavam dois atos: a doação e o conjunto de cláusulas restritivas, sendo aproveitado o primeiro ato para fins de registro no fólio real, eis que não haveria situação de dependência ou conectividade entre os atos. Como exemplo agora de inaplicabilidade da norma-princípio da cindibilidade, há um terceiro aresto proferido pelo CSMTJSP32: caso no qual o Oficial de Registro de Imóveis de Araras/SP, negou ato registral de transmissão total de direito de propriedade titularizado em condomínio e que tinha parcela dos condôminos sujeitos a cláusulas restritivas. O interessado apelante sustentou que sua parcela condominial não estava sujeita às restrições e, portanto, poderia ser aplicado o princípio da cindibilidade com a consequente transferência parcial (= da parte não restrita) em detrimento dos condôminos cuja posição condominial estava sujeita à indisponibilidade. Apesar da quota-parte sobre bem imóvel em condomínio ser um direito subjetivo real dotado de independência em relação às demais quota-partes, o colegiado bandeirante entendeu pela inviabilidade do registro mediante aplicação da cindibilidade do título formal, pois o negócio jurídico instrumentalizado (de transmissão integral do domínio imobiliário) não podia ser dividido, eis que não houve negociação de fração ideal de cada condômino, e sim da totalidade dominial, mediante exteriorização de vontade única das partes e sem lugar para o fracionamento. É justamente essa unidade indissolúvel resultante da declaração negocial dos envolvidos que inviabilizou a aplicação da cisão do título formal. Referências ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. BERTHE, Marcelo Martins. Comentários ao art. 221. In orgs. ALVIM NETO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto. 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O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/registralhas/278575/o-principio-registral-da-cindibilidade-na-troca-ou-permuta. Acesso em 26 jan. 2021; FANTI, Guilherme. O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. 2006. Disponível em: http://www.colegioregistralrs.org.br:10091/imagens/TRABALHOPRINCIPIODACINDIBILIDADEDOSTITULOSNORI_143938856036.pdf. Acesso em 26 jan. 2021. 3 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, pp. 102 e ss. 4 O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. Cit. 5 CLÁPIS, Alexandre Laizo. Comentários ao art. 168. In orgs. ALVIM NETO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto. Lei de registros públicos comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, pp. 918-921; PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. A eficácia dos atos registrais no processo de transmissão da propriedade imobiliária. Cit., pp. 103-118; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: vol. 4. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 191. 6 FANTI, Guilherme. O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. Cit.; SERRA, Márcio Guerra; SERRA, Monete Hipólito. Registro de imóveis I: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 114; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 1024; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: vol. 4. Cit., pp. 191-192. 7 PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. A eficácia dos atos registrais no processo de transmissão da propriedade imobiliária. Cit., pp. 107 e ss. 8 Direito das Coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pp. 309-310. 9 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Gisele de Menezes. O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Cit.; FANTI, Guilherme. O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. Cit. 10 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Gisele de Menezes. O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Cit.; DIP, Ricardo Henry Marques. Qualificação registral: abrangência e importância. Disponível em: https://www.irib.org.br/boletins/detalhes/602. Acesso em 27 jan. 2021; PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. Cit., p. 310; BERTHE, Marcelo Martins. Comentários ao art. 221. In orgs. ALVIM NETO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto. Lei de registros públicos comentada. Cit., p. 1160. 11 Direito Administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 214. 12 Ou transcrito o título hipotecário. 13 PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. A eficácia dos atos registrais no processo de transmissão da propriedade imobiliária. Cit., pp. 110 e ss.; PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. Cit., pp. 309-310; SERRA, Márcio Guerra; SERRA, Monete Hipólito. Registro de imóveis I: parte geral. Cit., pp. 120 e ss.; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Cit., pp. 1017 e ss. 14 Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 19-45; Teoria do fato jurídico: plano da validade. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 52-53. 15 Tratado de Direito Privado: tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 59 e ss.; Tratado de Direito Privado: tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 59-60. 16 Ainda que a produção de efeitos jurídicos (plano da eficácia) não seja um dado essencial para caracterizar determinado fato como fato jurídico, de acordo com a concepção ponteana, de caráter algo estrutural, e que se baseia no fenômeno da incidência/subsunção para classificar determinado fato como jurídico, desde o chamado plano da existência do mundo jurídico. 17 Comentários ao art. 3º. In orgs. ALVIM NETO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto. Lei de registros públicos comentada. Cit., p. 6. 18 Conversão substancial do negócio jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 12-44. 19 Ibidem, pp. 12-13. 20 Ibidem, pp. 13-24. 21 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Cit., pp.  50-55. 22 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. Cit., pp. 24-37. 23 O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. Cit. 24 O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Cit. 25 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Gisele de Menezes. O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Cit. 26 Idem. 27 Tratado de Direito Privado: tomo XI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 321-322. 28 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Gisele de Menezes. O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta. Cit.; FANTI, Guilherme. O princípio da cindibilidade dos títulos e seus efeitos no registro de imóveis. Cit. 29 Procedimento de dúvida n. 1015419-73.2019.8.26.0100, 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, j. 07/05/2019, DJE: 13/05/2019. 30 TJSP, Apelação Cível n. 1058111-29.2015.8.26.0100, Rel. Ricardo Dip, Conselho Superior de Magistratura, Origem: Foro Central Cível, 1ª Vara de Registros Públicos, j. 21/06/2016, DJE: 29/06/2016. 31 TJSP, Apelação Cível n. 0008818-68.2012.8.26.0438, Rel. José Renato Nalini, Conselho Superior de Magistratura, Origem: Foro de Penápolis, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal, j. 06/11/2013, DJE: 18/11/2013. 32 TJSP, Apelação Cível n. 1001630-96.2019.8.26.0038, Rel. Pinheiro Franco (Corregedor Geral), Conselho Superior de Magistratura, Origem: Foro de Araras, 3ª Vara Cível, j. 01/11/2019, DJE: 07/11/2019.
1. INTRODUÇÃO            O presente trabalho busca fazer um estudo sobre o instituto da usucapião extrajudicial e a teoria dos poderes implícitos. Pretende-se mostrar, através do presente estudo, que o oficial do registro de imóveis ao apreciar a usucapião extrajudicial possui poderes implícitos, conforme os ditames da citada teoria. Neste presente momento traremos apenas noções introdutórias sobre o tema exposto acima, primeiro fazendo uma dissertação de maneira breve, uma vez que o tema será mais abordado em momento posterior. De início, cabe definir o que vem a ser usucapião, que, resumidamente, pode ser definida como forma de adquirir a propriedade de bem imóvel ou móvel pelo transcurso de lapso temporal com posse mansa e pacífica. Iremos discorrer sobre os diversos tipos de usucapião e então trataremos especificamente sobre a usucapião extrajudicial, a qual pode ser definida brevemente como um novo tipo de procedimento para o reconhecimento do direito à usucapião. A usucapião extrajudicial foi introduzida com contornos muito limitados pela lei 12.424/11, que modificou a lei 11.977/09. No entanto, a partir do CPC/15 o reconhecimento extrajudicial da usucapião ganhou ares novos e possibilidades extremamente ampliadas de utilização.1 Serão tratados no presente trabalho os atributos que o oficial registrador de imóveis deve se valer para atingir a usucapião extrajudicial e, por fim, a teoria dos poderes implícitos e sua consequente relação com o ofício que o registrador desempenha na usucapião extrajudicial. A teoria dos poderes implícitos, a qual considera que aquele que pode o mais pode o menos, do brocardo latim Ad maiori, ad minus, foi aplicada na ciência jurídica moderna pela primeira vez no caso McCulloch v. Maryland, julgado na Suprema Corte americana. Será mostrado como referida teoria está sendo aplicada no Brasil e no ordenamento jurídico brasileiro pelos tribunais e até pelo MP, e também será sugerida a sua aplicação pelos Oficiais de Registro de imóveis quando do processo de usucapião extrajudicial. Sobre a Teoria dos Poderes Implícitos e a atuação do oficial de cartório, será citada também a posição da doutrina sobre o assunto, como a do processualista Humberto Dalla Bernardino de Pinho, demonstrando-se a possibilidade de aplicação da referida teoria para legitimar uma maior atuação do Registrador, sem que se fira a sua imparcialidade necessária. Por fim será feita uma conclusão com disposições finais sobre o tema. Confira a íntegra do artigo aqui.  _____ 1 NOBRE, Francisco José Barbosa. Manual da Usucapião extrajudicial. Ananindeua: Itacaiúnas, 2018, p. 22.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

A dispensa de inventário e o pagamento direto

Introdução  Cuidaremos de um assunto importantíssimo para o quotidiano de quem lida com Direito Sucessório: o pagamento direto, assim entendidos os valores pagos diretamente a herdeiros independentemente de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Morta uma pessoa, a regra geral é que a transmissão dos seus bens aos herdeiros deverá ocorrer por meio de um desses "burocráticos" procedimentos judiciais ou extrajudiciais, salvo quando a lei autorizar o pagamento direto. Focaremos aqui as hipóteses de pagamento direto da Lei nº 6.858/1980, que prevê esse pagamento direto para alguns casos de verbas trabalhistas, tributárias e de investimento. O objetivo é explicar essa figura e discutir um ponto relevantíssimo: o cônjuge e os demais herdeiros podem reivindicar a sua meação e o seu quinhão na hipótese de pagamento direto? Em outras palavras, as hipóteses de pagamento direto fundadas na Lei nº 6.858/1980 caracterizam ou não uma sucessão irregular1 e elas devem ou não respeitar a meação do viúvo sobre os créditos do de cujus? Ou elas representam apenas regras de caráter procedimental que não exoneram o beneficiário de, no pertinente feito de inventário, fazer as devidas compensações para a repartição igualitária da herança com os demais herdeiros e para entregar a meação do viúvo? Antecipamos nossa posição: o pagamento direto na forma da lei acima apenas tem caráter apenas procedimental, e não de direito material, pois seu objetivo foi apenas o de desburocratizar o acesso de herdeiros a valores deixados pelo de cujus. Logo, essas hipóteses não afastam o dever de respeitar a meação do cônjuge nem o quinhão de outros herdeiros. Não se trata aí de sucessão irregular ou anômala, portanto. Regra geral  Verbas trabalhistas, tributários e de investimento na forma da lei 6.858/1980 podem ser objeto de pagamento direto, ou seja, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Dizem-no tanto o referido diploma quanto o art. 666 do CPC2. Explica-se. É permitido que, independentemente de inventário ou de arrolamento, os dependentes habilitados perante o INSS ou o órgão público competente (no caso de regime especial de previdência) ou, à sua falta, os sucessores (na forma da lei civil) indicados em alvará recebam, independentemente de procedimento de inventário ou de arrolamento, as verbas trabalhistas, de FGTS ou de PIS-PASEP do falecido. É o art. 1º, caput, da lei 6.858/1980. Trata-se do que, na prática forense, designa-se de "pagamento direto", pois é feito aos "herdeiros" sem necessidade de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Esse pagamento direto é também permitido para valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como para valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar). É o art. 2º, caput, da lei 6.858/1980. Na prática, isso significa que, se alguém morrer deixando, como herdeiro, um filho de idade inferior a 21 anos que estava habilitado como dependente do falecido no INSS3, esse jovem poderá receber os valores supracitados (verbas trabalhistas, previdenciárias, tributárias e de aplicações financeiras) que pertenciam ao seu pai independentemente de prévio processo de inventário ou de arrolamento. Basta-lhe fazer o pedido administrativo. O devedor (empregador, Poder Público e bancos) poderá pagar esses valores diretamente a esse filho sem exigir prévia inventário, arrolamento ou adjudicação. Se o falecido aguardava o desfecho de alguma reclamação trabalhista para receber suas verbas trabalhistas, o filho dependente supracitado poderá requerer ao juízo trabalhista que lhe expeça alvará de levantamento sem necessidade de inventário. Quem pode pedir o pagamento direto? Nas hipóteses dos créditos especiais citados na lei 6.858/1980, podem pedir o pagamento direto: a) os dependentes habilitados perante o órgão de previdência (INSS ou, no caso de regime especial de previdência, o órgão público pertinente); b) os demais sucessores, desde que autorizados por alvará expedido por juiz que os tenha reconhecido como tal com base na legislação civil. Se o dependente não estiver formalmente habilitado, a Justiça Trabalhista flexibiliza a regra e admite que o dependente pleiteie o pagamento direto com base na Lei nº 6.858/1980 mediante comprovação do seu enquadramento entre os dependentes legais na forma da legislação previdenciária ou estatutária. A propósito, assim já decidiram o TST (RR-10959-59.2014.5.15.0046, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 26/06/2020) e o STJ (REsp 1289346/DF, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 20/06/2012). Levantamento de valores tributários e de investimento até 500 OTNs Não havendo outros bens a inventariar, é cabível o pagamento direto aos dependentes habilitados no ente previdenciário das verbas tributários e de investimento mencionadas no art. 2º da lei 6.858/1980 até o limite do valor de 500 OTNs, caso em que o valor sobejante deverá sujeitar-se ao procedimento de inventário e arrolamento. O STJ já decidiu assim em caso de valores de restituição de imposto de renda (REsp 1085140/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 17/06/20114). A tutela da meação do cônjuge A morte de uma pessoa, além de gerar efeitos sucessórios, também representa o fim do casamento (a morte é metaforicamente um "divórcio celestial") e, por isso, à semelhança do divórcio, importa na partilha de bens por conta do regime de bens à luz do Direito de Família. No caso de verbas trabalhistas e tributárias, deve-se levar em conta a data do fato gerador de cada uma delas para se definir quais bens se comunicam em razão do regime de bens. Assim, se, durante o casamento, o empregador deixou de pagar vários salários de um empregado casado sob o regime da comunhão parcial de bens, isso significa que metade desses créditos trabalhistas pertencem à esposa do empregado por conta do regime de bens. O fato de o pagamento dessas verbas trabalhistas ocorrer somente após o fim do casamento é irrelevante: metade delas pertence à esposa do empregado, ou seja, é a meação dela (STJ, REsp 1024169/RS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/04/2010). Diante disso, indaga-se: a lei 6.858/1980 permite que o dependente cadastrado no competente órgão público previdenciário ou estatutário receba integralmente as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento devidas pelo de cujus, ainda que metade delas pertençam, por meação, ao ex-cônjuge do falecido? Entendemos que não, porque a referida lei não pode violar o direito de propriedade alheio. Ela recai apenas sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento que pertenciam efetivamente ao falecido. Se o dependente levantar integralmente o valor, ele deverá, depois, em ação própria a ser movida pelo ex-cônjuge, repassar-lhe a meação. Do ponto de vista operacional, se essas verbas estiverem judicializadas, o juiz deverá ser sensível a isso e, por isso, se o ex-cônjuge reivindicar sua meação mediante comprovação, o magistrado deverá respeitar essa meação e, assim, salvar a meação dos valores que serão objeto de "pagamento direto" ao dependente cadastrado no INSS (ou em pertinente órgão estatutário). O direito dos demais herdeiros não dependentes no INSS ou no competente órgão estatutário  Questão tormentosa é saber a seguinte: a lei 6.858/1980 transfere ou não a titularidade das verbas trabalhistas, tributárias ou de investimento exclusivamente aos dependentes cadastrados no INSS ou no pertinente órgão estatutário, excluindo os demais herdeiros da partilha desses valores? Um exemplo pode ilustrar a pergunta. Suponha que João tenha ganhado uma reclamação trabalhista e esteja para receber 1 milhão de reais a título de verba trabalhista. João tem dois filhos: um menor de 21 anos (o qual está devidamente cadastrado como dependente de João perante o INSS) e outro com idade superior. Indaga-se: se João morrer, o filho menor de 21 anos poderia pedir ao juiz trabalhista que lhe pague, com exclusividade, a quantia de 1 milhão de reais?  Se sim, o seu irmão poderia, em outro feito judicial na Justiça Estadual (quiçá no próprio processo de inventário), exigir que esse irmão mais novo repasse-lhe 500 mil reais ou que, no mínimo, esses 500 mil reais sejam compensados na partilha dos demais bens de João? Há dois entendimentos em confronto. O primeiro é o de que os arts. 1º e 2º da lei 6.858/1980 estabelecem uma ordem de vocação hereditária específica (diversa da prevista no art. 1.829 do CC), em que os filhos dependentes perante o INSS ou o pertinente órgão público excluem os demais filhos. Sob essa ótica, o filho mais novo embolsará o valor de 1 milhão de reais e, ainda por cima, poderá reivindicar metade dos demais bens deixados por seu pai no processo de inventário em que concorrerá com seu irmão mais velho. O segundo é o de que os referidos dispositivos, no particular, são regras de natureza processual e, por isso, apenas objetivam livrar o dependente cadastrado perante o INSS ou o órgão público pertinente da burocracia e da morosidade que a exigência de processo de inventário ou de arrolamento imporia. Preferimos essa segunda interpretação, pois a finalidade do referido dispositivo nos parece ser a de impedir que os dependentes previdenciários ou estatutários do de cujus não tenham de enfrentar burocracias e longos anos para receberem o seu quinhão sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento do de cujus. A finalidade é apenas processual: dispensar a realização de procedimentos de inventário. Não há finalidade de direito material nesse ponto: a Lei nº 6.858/1980 não pretende alterar a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829 do CC. Por isso, entendemos que, se, no exemplo acima, o filho mais novo levantar o valor de 1 milhão de reais perante a Justiça Trabalhista, o seu irmão poderá exigir dele 500 mil reais ou, se houver outros bens do de cujus, exigir que essa quantia seja compensada na partilha desses outros bens. Entendimento contrário nos faria chegar ao absurdo de concluir que a atribuição patrimonial seria diferente por uma questão meramente cronológica. Explica-se. No exemplo acima, se o juiz trabalhista tivesse transferido o valor de 1 milhão de reais para João um dia antes da sua morte, esse dinheiro iria ser partilhado, pro rata, entre os dois filhos no procedimento de inventário. Todavia, se esse pagamento estivesse pendente à data da morte de João, o seu filho mais novo poderia, sozinho, embolsar o valor de 1 milhão de reais e deixar o seu irmão a ver navios, sem um centavo daquele valor. De fato, como lembrava Teixeira de Freitas - citando brocardos latinos clássicos listados por Simão Vaz Barbosa Lusitano - "interpretação se deve fazer, que não resulte absurdo" (interpretatio facienda est, ut ne sequatur absurdum)5. Por fim, é preciso repelir alegações de índole humanitária em sentido contrário, pois, para efeito de manter o sustento do dependente cadastrado no INSS ou no pertinente órgão estatutário, há benefícios previdenciários específicos para tanto, os quais sequer são considerados herança, a exemplo da pensão por morte. Não é esse, ao menos de modo primário, o papel dos créditos especiais listados na lei 6.858/1980. O STJ, tangenciando o caso ora enfocado, acena favoravelmente a essa orientação, ao reconhecer que as verbas trabalhistas discutidas em juízo integram o monte a ser repartido entre todos os herdeiros, afastando interpretação do art. 1º da lei 6.858/1980 que resultasse em conclusão diversa (STJ, AgInt no AREsp 1561551/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 30/06/2020; CC 108.166/PE, 2ª Seção, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 30/04/2010; CC 95.176/RS, 2º Seção, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJe 09/12/2008; REsp 1155832/PB, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 15/08/20146). Reversão dos valores para fundos no caso de falta de herdeiros  No caso de inexistir herdeiros ou dependentes, as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas na Lei nº 6.858/1980 se reverterão em favor de Fundos na forma do § 2º do seu art. 1º e do parágrafo único do seu art. 2º. Tais hipóteses representam normas de direito material aptas a afastarem a regra geral da sucessão legítima, segundo a qual os bens de falecido que não deixou herdeiros se revertem ao Poder Público pelo procedimento da herança jacente e vacante na forma dos arts. 1.819 ao 1.823 do CC. Conclusão  Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art. 1º e o parágrafo único do art. 2º da lei 6.858/1980), o "pagamento direto" das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da lei 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (art. 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil). Nessa esteira, aquele que receber o "pagamento direto", ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros. A exceção corre à conta das hipóteses em que não houver herdeiro ou dependente na forma do § 2º do art. 1º e do parágrafo único do art. 2º da lei 6.858/1980, caso em que os valores se reverterão a fundos em vez de seguir o procedimento de herança jacente e vacante dos arts. 1.819 ao 1.823 do CC. Nessa ordem de ideias, em termos de classificação, pode-se considerar que o § 2º do art. 1º e o parágrafo único do art. 2º da lei 6.858/1980 estabelecem uma sucessão anômala ou irregular apenas para os casos de falta de herdeiros ou de dependentes, afastando a regra das heranças jacente e vacante dos arts. 1.819 e 1.823 do CC. No mais, a referida norma tem efeitos apenas procedimentais e, portanto, não afasta o regime de direito material da sucessão legítima prevista no art. 1.829 do CC. __________ 1 A sucessão irregular ou anômala é entendida como aquela que é regida por normas próprias e que, portanto, não segue os arts. 1.829 e seguinte do CC. A título de exemplo, podemos citar: (1) a transmissão dos direitos autorais para o domínio público no caso de o autor falecido não ter deixado herdeiros (art. 45, I, da Lei nº 9.610/1998); (2) o direito de acrescer em favor dos demais coautores na hipótese de um deles falecer sem deixar herdeiros (art. 42, parágrafo único, da lei 9.610/1998); (3) o art. 18, § 2º, do decreto-lei 3.438/1941 proíbe que sucessão em favor de cônjuge estrangeiro em terreno de marinha; (4) o art. 520 do CC estabelece que o direito de preferência não se transmite aos herdeiros, o que representa um exemplo de sucessão irregular ou anômala, porque prevê regra sucessória diversa da prevista para a sucessão legítima; (5) o art. 1º, § 2º, da Lei nº 6.858/1998 estabelece que, na hipótese de inexistir dependente ou sucessores, as verbas trabalhistas, de FGTS e de PIS-PASEP deverão ser revertidas respectivamente em favor do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP; (6) o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 6.858/1998 fixa que, se não houver dependente ou sucessor, deverão ser revertidas ao Fundo de Previdência e Assistência Social os valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como os valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar). 2 "Art. 666. Independerá de inventário ou de arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980." 3 Para filhos, a presunção absoluta de dependência perante o INSS e, no caso de regime especial de previdência, perante os órgãos públicos federais é para filhos de até 21 anos (art. 16, I, da lei 8.213/1991 e art. 197, parágrafo único, I, da lei 8.112/1990). 4 No caso, o STJ manteve o deferimento do pedido de alvará judicial, conforme este excerto do relatório do voto do relator: "Silvandira Stopa Rodrigues ajuizou pedido de alvará judicial perante a 3ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional de Santana/SP, pleiteando o levantamento de parte da restituição de imposto de renda de seu falecido marido. Noticiou ainda que não há outros bens ou direitos a inventariar, e também que, do casamento, advieram quatro filhos, sendo que três renunciaram as partes que lhes tocariam no imposto retido. Assim, pleiteou a autora o levantamento de 50% devidos a ela, a título de meação, mais 4/5 do remanescente em razão da renúncia." 5 FREITAS, Augusto Teixeira. Regras de Direito. São Paulo: Lejus, 2000, p. 122.   6 Convém, por seu didatismo, a leitura do inteiro teor do voto da Ministra Isabel Gallotti nesse último julgado.
Na semana passada, publicamos a primeira parte do presente artigo. Hoje seguiremos para a segunda e última parte. 3. Alterações em outras leis e sugestões de mudanças  A MP nº 1.085/2021 é muito vasta e complexa. Em razão das limitações próprias da presente coluna, publicamos artigo de mais de 70 páginas esmiuçando-a e sugerindo cerca de 40 ajustes a serem feitos. O título do artigo é "Análise detalhada da Medida Provisória nº 1.085/2021 e sugestões de ajustes: cartório eletrônico e ajustes em negócios imobiliários". Ele foi publicado no site do professor Flávio Tartuce e no site do perfil Direito Civil Brasileiro, mantido pelo professor Rodrigo Toscano. Reportamo-nos àquele artigo para acesso ao inteiro teor do conteúdo. 4. Sugestão adicional: cessão fiduciária de direito creditório  Além das sugestões feitas no artigo supracitado, acrescemos outra. A cessão fiduciária de direito creditório é muito usual na prática. Serve como garantia em inúmeros negócios. Distingue-se da alienação fiduciária em garantia apenas por conta do objeto: nesta última, o objeto é coisa corpórea; na cessão fiduciária, o objeto é coisa incorpórea. Entendemos que a cessão fiduciária de crédito não depende de previsão legal específica. Há, porém, leis específicas que disciplinam, ainda que forma lacônica, algumas espécies de cessões fiduciárias de direito creditório. São exemplos: (1) cessão fiduciária de direitos creditórios relativos a contratos de alienação de imóvel (art. 17 da lei 9.514/97); (2) cessão fiduciária de quota de fundo de investimento em garantia de dívida de locação urbana (art. 88, §§ 6º e 7º, lei 11.196/2005 e art. 37, IV, da lei 8.245/91); (3) cessão fiduciária de direito sobre coisas móveis e de títulos de crédito (art. 66-B, § 3º, lei 4.278/1965); e (4) da cessão fiduciária de direitos creditórios do agronegócio em favor dos adquirentes de títulos de crédito do agronegócio, como o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) (art. 41, lei 11.076/2004). O problema é que paira controvérsias sobre a necessidade ou não de registro da cessão fiduciária de direito creditório no Cartório de Títulos e Documentos. O STJ entendeu pela desnecessidade após grande controvérsia (STJ, REsp 1629470/MS, 2ª Seção, Rel. ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 17/12/2021). Nessa linha, para evitar maiores discussões, convém ajustar o art. 66-B da lei 4.278, de 14 de julho de 1965, para colocar textualmente esse entendimento. Além disso, é forçoso deixar claro três outras questões. A primeira é a de que a cessão fiduciária de direito de crédito pode ser feita em favor de qualquer pessoa, e não apenas de instituição financeira. Atualmente, como a matéria está disciplinada na Lei de Mercado de Capitais (lei 4.278, de 1965), a controvérsia é latente. A segunda questão a esclarecer é que qualquer direito de crédito pode ser objeto de cessão fiduciária. Atualmente o art. 66-B, § 3º, da lei 4.278, de 1965, apenas menciona "direitos sobre coisas móveis" e "títulos de crédito". A terceira questão é que créditos decorrentes de negócios imobiliários não lançados na matrícula de imóvel podem ser cedidos fiduciariamente sem necessidade de registro. É o caso, por exemplo, da cessão fiduciária de créditos provenientes da locação de um imóvel. A locação de imóvel não é registrável no Cartório de Imóveis. O que se registra é apenas a cláusula de vigência da locação ou o direito de preferência, e não a locação em si. Por isso, a cessão fiduciária do direito aos aluguéis não depende de prévio lançamento no fólio real. Ante o exposto, sugerimos esta emenda: Acrescente-se, onde couber, o seguinte artigo à Medida Provisória (MPV) nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, as seguintes alíneas: "Art. 66-B.  ........................................ ............................................................. § 7º A cessão fiduciária de direito de direitos sobre coisas móveis pode ser oferecida a qualquer sujeito de direito, mesmo não integrante do Mercado Financeiro ou de Capitais. § 8º Para efeitos dos §§ 3º e 7º deste artigo, inclui-se, como direitos sobre coisa móveis, o direito em receber dinheiro por força de qualquer ato jurídico, inclusive os envolvendo os créditos relativos a aluguéis de imóveis ou outros negócios jurídicos imobiliários não registrados nem averbados no Cartório de Imóveis." (NR)
Introdução  Em 28 de dezembro de 2021, nasceu a Medida Provisória (MP): a MP 1.085/2021. Ela promove significativas alterações nos serviços notariais e de registro e em questões imobiliárias. Na Coluna Migalhas Notariais e Registrais de hoje, temos a primeira parte deste artigo. A sua continuação dar-se-á na próxima semana. Buscaremos esmiuçar o novo diploma e expor reflexões sobre seu mérito. Panorama da MP A MP objetiva estabelecer regras que aprimoram o sistema de registro eletrônico prestados pelos "cartórios extrajudiciais" e a legislação relativa a negócios imobiliários (art. 1º). Para tanto, cria o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) e promove alterações em diversas leis que tratam de negócios imobiliários, como a Lei de Registros Públicos (lei 6.015, de 1973), a Lei de Incorporação Imobiliária (lei 4.591, de 1964), a Lei de Loteamentos (lei 6.766, de 1979), a Lei de Notários e Registradores (lei 8.935, de 1994), o Código Civil, a Lei do Programa "Minha Casa, Minha Vida" (lei 11.977, de 2009), a Lei do Reurb (lei 13.465, de 2017), a Lei de Incentivos à Indústria da Construção Civil (lei 4.864, de 1965) É constituída de 21 artigos, organizados nos seguintes capítulos sem numeração: a) Objeto (art. 1º); b) Âmbito de aplicação (art. 2º); c) Objetivos do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP (art. 3º); d) Responsabilidade pelo SERP (art. 4º); e) Fundo para a Implementação e Custeio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (art. 5º); f) Extratos eletrônicos por meio do SERP (art. 6º); g) Normas complementares (arts. 7º e 8º); h) Acesso a bases de dados de identificação (art. 9º); i) Alteração da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 (art. 10); j) Alteração da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (art. 11); k) Alteração da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (art. 12); l) Alteração da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994 (art. 13); m) Alteração da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (art. 14); n) Alteração da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009 (art. 15); o) Alteração da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015 (art. 16); p) Alteração da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017 (art. 17); r) Disposições transitórias (arts. 18 e 19); s)Revogações (art. 20); t) Vigência (art. 21).  Do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP Contextualização, regulamentação e operacionalização  O núcleo da MP é a criação do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), o qual decorre do dever de virtualização dos registros públicos existente desde o ano de 2009, por força do art. 37 da Lei do Programa "Minha Casa, Minha Vida" (lei 11.977/2009). Esse dever já vinha sendo cumprido, paulatinamente, na prática pelas diferentes especialidades por meio de centrais mantidas, na prática, pelas respectivas entidades representativas. No âmbito do Registro de Imóveis, o protagonismo é do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis - SREI, o qual foi disciplinado pelo art. 76 da Lei do Reurb (lei 13.465/2017) e pelo Provimento nº 89/2019-CN/CNJ. O SREI é coordenado pelo respectivo Operador Nacional - ONR, conforme art. 76 da Lei do Reurb. Além disso, em cada Estado, as respectivas entidades representativas mantêm centrais locais. No orbe do Registro de Títulos e Documentos (RTD) e do Registro Civil das Pessoas Jurídicas (RCPJ), a tarefa é da Central Nacional de RTD e RCPJ, com forte no Provimento nº 48/2016-CN/CNJ. No caso do RTD, a central também tem fundamento no § 2º do art. 3º da Lei de Duplicata Eletrônica (lei 13.775/2018). A central é mantida pelo Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil - IRTDPJBRASIL. No seio do Registro Civil das Pessoas Naturais, o labor é desempenhado pela Central de Informações do Registro Civil - CRC, conforme Provimento nº 46/2015- CNJ/CNJ. A central é mantida pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil - Arpen/BR. Na esfera dos Tabelionatos de Protesto, a incumbência recaía sobre a Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos Tabeliães de Protesto de Títulos - CENPROT, tudo nos termos do art. 41-A da Lei de Protesto (lei 9.492/1997) e do Provimento nº 87/2019- CN/CNJ. A central é mantida pelo Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil - IEPTB. Entre os Tabelionatos de Notas, o encargo é da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados - CENSEC, com fulcro no Provimento nº 56, de 14 de julho de 2017, da CN/CNJ. A central é mantida pelo Colégio Notarial do Brasil. Outras normas também já arrimavam a virtualização dos serviços notariais e registrais, caso do art. 1º, §§ 3º e 4º, da Lei de Registros Públicos (lei 6.015, de 1973). Com a MP, pelo que se extrai de uma leitura inicial, a ideia é que a SERP coordene as centrais de cada especialidade, de modo a disponibilizar um canal central de prestação de serviços aos usuários (art. 7º, V e VI). A tarefa para regulamentá-lo será do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), especialmente por meio da Corregedoria Nacional de Justiça (CN/CNJ). A CN/CNJ manifesta-se por provimentos da lavra do Corregedor Nacional de Justiça (art. 3º, § 3º, I; e art. 7º). O funcionamento do SERP será promovido pelo operador nacional, que será uma associação ou uma fundação na forma do disciplinado pelo CNJ (art. 3º, § 4º). Objetivos  O SERP objetiva viabilizar e operacionalizar a virtualização dos serviços prestados pelas diversas especialidades extrajudiciais de registros públicos, nomeadamente o Registro de Imóveis, o Registro de Títulos e Documentos, o Registro Civil das Pessoas Jurídicas e o Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 2º e art. 3º, § 1º). A meta é, de um lado, garantir o funcionamento eletrônico dos serviços e, de outro lado, assegurar aos usuários rápido e fácil acesso aos serviços remotamente prestados pelos cartórios. É que se extrai do art. 3º da MPV, que lista os objetivos do SERP. Sob a ótica do funcionamento eletrônico dos serviços, o SERP pretende garantir a interconexão operacional, de dados e de documentos tanto entre as próprias serventias quanto entre elas e o Poder Público (art. 3º, incisos I, II, III, VII, X e XI; art. 3º, § 2º; e art. 3º, § 3º, II). Isso pressuporá o armazenamento eletrônico de documentos (art. 3º, incisos VIII). Exemplificando, por meio do SERP, usuários e agentes públicos conseguiriam obter matrículas de imóveis eletronicamente, pleitear registros remotamente, consultar a existência de ônus em bens, sondar a existência de atos envolvendo pessoas por meio de pesquisas em indicadores pessoais etc. Neste último exemplo, exige-se que a consulta de atos relativos a pessoa envolva necessariamente casos de protestos, de garantias reais, de arrendamento mercantil financeiro, de cessão de crédito e de constrições processuais ou administrativas (art. 3º, X; e art. 4º, I). Outras várias funcionalidades podem decorrer daí. Basta haver determinação da CN/CNJ (art. 3º, XI; e art. 7º, X). Ainda sob essa perspectiva, caberá ao SERP viabiliza divulgação de índices e indicadores estatísticos (art. 3º, IX; art. 4º, II; e art. 7º, VII). Sob o prisma do usuário, o SERP pretende assegurar o direito dos usuários a postular serviços em uma plataforma eletrônica centralizada e a receber documentos, certidões e outros documentos por meio eletrônico (art. 3º, I, IV e VI). A distribuição das demandas entre as serventias brasileiras ocorreria em momento posterior (art. 3º, V). Em poucas palavras, a ideia é que o usuário possa, por exemplo, visualizar matrículas de imóveis em um site mantido pelos cartórios, apresentar escrituras de venda de imóveis nesse site etc. Extratos eletrônicos de títulos para atos de registro ou de averbação  A MP admite que, por meio do SERP, o usuário apresente extratos eletrônicos de títulos para a prática de atos de registro e de averbação, assegurado a ele o direito a receber o "comprovante do registro", ou seja, as informações relativas à certificação do registro em formato eletrônico (art. 6º, caput e § 1º). A CN/CNJ disciplinará a forma e as hipóteses de cabimento (art. 7º, VIII e IX; e art. 8º). Por exemplo, no lugar de prenotar uma escritura pública de compra e venda para registro na matrícula do imóvel, o usuário poderá informar apenas os dados essenciais dessa escritura (ou seja, o extrato) no site disponibilizado pela SERP.  Flexibilização do princípio da especialidade subjetiva e objetiva no âmbito da SERP  No caso de prenotação de títulos por meio de extratos eletrônicos para registro ou averbação, é dispensada a atualização prévia da matrícula, desde que haja correspondência entre o título e a matrícula quanto à descrição do imóvel e dos sujeitos envolvidos. Essa dispensa, porém, não será devida nestas hipóteses: (1) dados essenciais à prática do ato inscritível; (2) criação de novas unidades imobiliárias sem observância do princípio da especialidade (art. 6º, § 2º). Trata-se de flexibilização ao princípio da especialidade objetiva e subjetiva, segundo o qual as informações relativas ao objeto e aos sujeitos devem, no registro público, corresponder à realidade e ao título inscritível. Ao que parece, o motivo da regra de flexibilização é impedir que o oficial oponha-se à prática de atos de registro ou de averbação diante da eventual escassez informacional do extrato eletrônico prenotado no SERP.  Dispensa de apresentação de escritura de pacto antenupcial no registro de imóveis No caso de extratos eletrônicos apresentados para registro ou averbação no Cartório de Registro de Imóveis, é dispensada a exigência da apresentação da escritura de pacto antenupcial, desde que o extrato informe seus dados de localização e o regime de bens adotado (com inclusão de cláusulas especiais) (art. 6º, § 3º). Trata-se de regra essencial para viabilizar o emprego dos extratos eletrônicos dos títulos perante o SERP.  Acesso Extratos eletrônicos de títulos para atos de registro ou de averbação O art. 9º da MPV admite que, mediante convênio, os tabeliães e os registradores acessem as bases de dados de identificação das pessoas mantidas pelas entidades públicas, observada as regras da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018) e da Lei de Identificação Civil Nacional (lei 13.444, de 11 de maio de 2017). Por meio desse acesso, os tabeliães e os registradores poderão, com maior facilidade, conferir a identidade dos usuários dos serviços eletrônicos.  Continuaremos na próxima semana na Coluna Migalhas Notariais e Registrais. Não perca.
"União estável - regime de bens - registro no Livro 3. A estipulação de regime de bens na escritura declaratória de união estável, por analogado dos regimes patrimoniais especiais, deve ser registrada no domicílio do casal convivente no Livro 3 e após averbada na matrícula (art. 244 da LRP)." Na seção de "Oficina Notarial e Registral" do Migalhas Notariais e Registrais, temos exposto casos práticos, dúvidas suscitadas pelos oficiais de registro e as decisões correspondentes. Nem todas as dúvidas são julgadas procedentes. Há casos - como este que apresento à consideração dos ilustres leitores - em que a decisão, julgando improcedente a dúvida, determina o registro. Seja qual seja o desenlace da dúvida, os temas agitados sempre suscitam vivas questões de direito que merecem ser conhecidas e discutidas pela comunidade de estudiosos da matéria. O caso que trago à consideração dos leitores do Migalhas é simples e se acha enunciado na epígrafe desta nótula. Omiti os dados dos envolvidos em respeito à privacidade. Devo lhes adiantar que a impugnação à dúvida suscitada raras vezes terá sido tão respeitosa e tão bem fundamentada. A decisão prestigiou as razões apresentadas na impugnação e em precedente da própria Serventia. Vamos aos fatos e aos fundamentos.  Óbices opostos ao registro Os óbices opostos à pretensão dos interessados cingiram-se à prévia necessidade de se averbar a escritura pública de união estável (itens 9, "a", 11, 9, "b", 1 e 5, 83 e 83.1, capítulo XX, tomo II, das Normas de Serviço das Serventias Extrajudiciais da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo) e promover seu registro no Registro de Imóveis competente, vez que a união regula um regime patrimonial diverso do legal (itens 11, a, 11; 80, d; 85; e 85.1, do capítulo XX, tomo II, das mesmas Normas). Qualificação do convivente - inserção no ato de registro A indicação do nome e qualificação do varão somente foi objeto da ND em virtude da necessidade de especializar subjetivamente as partes e para os fins a que adiante se fará referência. Já decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo - aliás, em precedente deste mesmo Registro Imobiliário - que é necessário informar, ao menos, o estado civil do varão convivente: "Bem por isso, não há como admitir no Registro Imobiliário que tem como finalidade precípua a de promover a publicidade dos direitos reais inscritos, com estrita observação do princípio da especialidade subjetiva para que possam produzir efeitos 'erga omnes', que o titular de direito dessa natureza seja qualificado simplesmente como 'companheiro', ou 'em união estável', sem que se indique seu real estado civil que pode, em tese, ser o de casado. Em sendo casado não poderá o titular do direito real ser, ao mesmo tempo, qualificado como 'companheiro' ou 'em união estável', ressalvado prévio reconhecimento judicial da existência da união estável, porque o Registro de Imóveis não comporta a simultânea inscrição de direitos de propriedade que sejam conflitantes entre si. Desse modo, ou titular do direito é qualificado no Registro de Imóveis como solteiro, viúvo, separado ou divorciado e mantendo união estável, do que não decorrerá eventual direito conflitante entre eventual cônjuge e companheiro, ou é casado e, em consequência, não poderá ser qualificado também como 'em união estável', pois neste caso os direitos do cônjuge e do companheiro poderão ser incompatíveis entre si, exceto se o reconhecimento da união estável decorrer de ação judicial que atinja o imóvel."1 Escritura de união estável - formalização no RCPN e no RI Como dito acima, foi solicitada (e apresentada) a escritura pública de união estável dos conviventes que se insurgiram contra as exigências deste cartório e indicaram, em arrimo de sua irresignação, precedente desta mesma serventia (Processo 1044002-05.2018.8.26.0100) em que a magistrada, Dra. Tânia Mara Ahualli, afastou a exigência erigida pelo Cartório para o registro da aquisição imobiliária2  e o fez baseada no art. 1.723 do CC, entendendo que "a união estável caracteriza-se por uma situação de fato, reconhecida legalmente e capaz de produzir efeitos jurídicos para os envolvidos, independente de celebração formal". Entendeu, igualmente, que foram superadas as exigências que se fundamentaram nos itens (1, "k"), (6.2.1) e (118) do Cap. XVII das NSCGJSP quando postas em confronto com o Provimento CNJ 37/14, de 7/7/214, que crava, logo em seuartigo 1º, ser "facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo".3 Aquela decisão de primeira instância seria confirmada pelo E. Conselho Superior da Magistratura na Ap. Civ. 1044002-05.2018.8.26.0100, em que foi relator o desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Será do mesmo teor o decidido na Ap. Civ. 1101111-45.2016.8.26.0100, que inaugurou um novo paradigma que serviria de base para o desenlace da dúvida suscitada por esta serventia.4 Reconheça-se, desde logo, que os argumentos são ponderosos. A união estável ostenta a característica de informalidade em sua configuração, constituição e consumação ao longo do tempo - "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família", na dicção do art. 1.723 do CC/02. Além disso, os requisitos enumerados no CC/02, para a configuração da união estável, não contemplam a celebração de atos formais específicos (arts. 1.723 a 1.727 do CC/02). Todavia, este caso concreto guarda certa peculiaridade que precisa ser bem sopesada. Pacto patrimonial dos conviventes Os conviventes formalizaram a união estável e estabeleceram o "regime da mais completa e absoluta separação de bens", consoante declaração colhida no ato notarial. E mais: no exercício pleno de autonomia da vontade, eles estabeleceram uma série de estipulações que versaram sobre situações jurídico-patrimoniais, projetando-as no tempo. A informalidade das relações convivenciais ganha, neste caso, um novo contorno. De fato, consoante o art. 1.725 do CC na união estável, "salvo contrato escrito entre os companheiros", aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, "o regime da comunhão parcial de bens". Portanto, pode-se argumentar que, a contrário, a estipulação patrimonial diversa ocasiona que os interessados devam sujeitar-se às regras próprias dos diversos regimes de bens previstos no ordenamento civil, com todos os seus consectários. Ora, se os conviventes buscam excepcionalizar a regra da presunção legal e buscam consagrar um regime patrimonial diverso do legal, essa peculiaridade convoca o regime da publicidade registral na tutela dos interesses não só dos contratantes, mas principalmente de terceiros. Diz a lei 9.278/96: "Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito." É do mesmo jaez o art. 1.725 do CC. "Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens." De fato, o art. 5º do provimento CNJ 37/14 prevê que o registro (facultativo) de união estável, decorrente de escritura pública de seu reconhecimento ou de sua extinção, produzirá efeitos patrimoniais somente entre os companheiros, "não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública". Este aspecto de proteção aos terceiros não passou despercebido a Maria Berenice Dias que sustenta que, para que as estipulações avençadas pelos conviventes "tenha eficácia perante terceiros é indispensável promover ao registro da união no livro 'E' do Cartório do Registro Civil"5. Mais adiante defenderá que a salvaguarda do patrimônio do casal e a proteção de terceiros de boa-fé dar-se-á pelo registro da escritura pública de reconhecimento no... "Livro 'E' do Cartório do Registro Civil"!5. A jurista enfatiza a importância da publicidade registral e a tutela dos interesses de terceiros no jogo dos intercâmbios econômicos e do tráfico jurídico-imobiliário7 e o faz advogando o registro no RCPN. Parece não se ter debruçado sobre um mecanismo racional e adequado representado pelo singelo registro da convenção patrimonial no Ofício Imobiliário competente, como abaixo se vai desenvolver e defender. Informalidade X segurança jurídica Parece lógico que o regime de bens da união estável, decorrente de uma præsumptio iuris, não reclame qualquer ajuste prévio ou forma especial e substancial. As regras, de antemão reconhecidas pelo direito, não necessitam de instrumentos formais de exteriorização e eficácia. Impera, nestas relações pessoais, a regra geral que se pode exaurir do art. 1.725 do CC/02. Estamos no pleno domínio da autonomia da vontade. Com efeito, o próprio CSMSP distingue os atos de personalidade e os atos e negócios jurídicos que "demandam publicidade específica, por meio de sua inscrição em Registro Público, como ocorre com os direitos reais imobiliários".8 Queremos nos deter aqui - exatamente onde entram as questões relacionadas com a publicidade registral de convenções antenupciais e sua eficácia real. Exercitando uma exegese histórica, perguntamo-nos: por qual razão a lei sempre previu o registro de tais convenções e sua sucessiva averbação? Responde-nos a tradição na voz de Pontes Miranda. "Os pactos antenupciais produzem efeitos quanto a terceiros, - quer a favor, quer contra eles". E segue pontificando: "Os terceiros têm interesse em conhecer o regime matrimonial e o que se passou entre os que se casaram [...]. Credores do marido e credores da mulher, se não houve o registo, somente consultam a lei sobre o regime comum. Os poderes de administração, em relação a terceiros, são os do regime comum, se não foi registrado o pacto. A publicidade oriunda do registro é, pois, o que marca o começo da eficácia quanto a terceiros [...]. Uma coisa é o regime, com o seu registo; outra, o bem e o registo de sua escritura, embora aí se fale de regime. Não é pelas certidões de cada bem adquirido que se sabe qual é o regime. O pacto mesmo precisa ser registrado... O regime matrimonial de bens interessa a todos e refere-se a bens móveis e imóveis. Permitir-se que tenha eficácia real e eficácia erga omnes o que apenas se passou entre pessoas que pretendiam casar-se é admitirem-se eficácias que só os registros públicos podem dar."9 Serpa Lopes justifica o registro, revelando o fundamento legal, mas desentranhando da própria norma um fundamento principiológico atinente à atividade medular do sistema registral que é a publicidade jurídica. É justo - diz ele - "que aqueles que vão contratar com o casal conheçam, em seus mínimos pontos, as condições do regime de bens pactuado". E continua: "O regime de bens no casamento, quando objeto de convenção, pode surgir sob as modalidades mais diversas, dada a plena autonomia da vontade dos nubentes, somente encontrando um limite, ou seja, desde que o pacto não afete uma disposição de ordem pública."10 O registro das convenções antenupciais não tem por objeto constituir as próprias convenções, diz, "mas a atuar como meio de publicidade em relação a terceiros"11. As exceções legais e a analogia legis Já vimos, de passagem, que o dispositivo do Código Civil que prevê a exceção ao regime legal (comunhão parcial) convoca, a contrário sensu, o regime específico aplicável às demais modalidades, atraindo, inclusive, a necessidade do registro do pacto patrimonial (parágrafo único do art. 1.640 e art. 1.657, ambos do CC/02 e as várias disposições da LRP que abaixo se arrolarão). Ainda que se negue o entendimento aqui esposado, será ao menos justificável que se busque uma aplicação analógica das regras concernentes às convenções antenupciais, projetando-as às estipulações patrimoniais da união estável, como previsto de modo imperfeito no art. 1.725 do CC - "contrato escrito entre os companheiros". O pacto faz prova entre si, mas deve projetar-se para colher terceiros. Há claramente uma identidade de razão que subjaz em cada uma das modalidades de entidades familiares, suscitando uma abordagem hermenêutica que harmonize os preceitos legais aplicáveis a cada qual com suas especificidades e peculiaridades. A união estável, com suas notas próprias e características, pode sofrer alguma interferência do próprio Estado, especialmente quando em causa estiver a segurança jurídica dos conviventes e de terceiros. Eis aqui o fenômeno apontado por Maria Berenice Dias, quando ressalta o que lhe pareceu um "paradoxo", com o qual "é preciso aprender a conviver": "ao mesmo tempo em que não se quer a intervenção do Estado nas relações mais íntimas, busca-se a sua interferência para lhes dar legitimidade e proteger a parte economicamente mais fraca"12. Por essa razão, a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento (§ 3º do art. 226 da CF/88 e art. 1.725 do CC/021). É justamente nesse ponto, como disse o ministro Luís Roberto Barroso, "que se pode identificar o motivo pelo qual o texto constitucional optou por facilitar a conversão da união estável em casamento. Entra em cena a questão da segurança jurídica". E segue o ministro do STF: "A união estável depende da verificação de uma situação de fato. Não há um documento único que a constitua e que sirva de prova definitiva. Consequentemente, para todos os terceiros que se relacionam com os companheiros, e para a sociedade em geral, há um nível menor de segurança. Imagine-se o caso de um particular que deseja adquirir um imóvel de outro, que esteja registrado apenas no nome do vendedor. Não será possível ao comprador, por exemplo, saber se o vendedor vive em união estável, nem se o imóvel foi adquirido onerosamente durante a vigência da referida união, o que poderá gerar futuros riscos de questionamento da operação por parte de eventual companheira."13 Em vista da finalidade essencial do registro público, dito de segurança jurídica preventiva, deve-se aplicar a regra do art. 1.657 do CC/02. Assim, as convenções estabelecidas "não terão efeito perante terceiros, senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges". Segurança estática e segurança dinâmica do registro público Sustentamos que a formalidade do registro civil e predial não interfere com as notas características de informalidade e liberdade da união estável, mas valoriza esta relação, dando-lhe maior segurança - seja para os conviventes, seja para terceiros que com eles estabelecem relações jurídicas. A informalidade, signo que impera as uniões estáveis, adotada que seja algum grau de formalização, não pode chegar ao ponto de instabilizar a certeza (fé pública) que dimana do sistema de registro, inoculando o germe da insegurança jurídica no comércio jurídico-imobiliário. Precedente do STJ O STJ já firmou o entendimento de que a "invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência da união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente."14 Este Oficial já defendia a inscrição no Registro de Imóveis competente dos contratos de convivência há muitos anos15. Mais recentemente, por ocasião dos arestos do STJ, voltaria ao tema16, sustentando, sempre, a necessidade do apoio da publicidade registral para garantia dos interesses não só dos conviventes, mas de todos os terceiros que com eles celebram contratos relativos a bens imóveis. As leis que tratam das uniões estáveis não exigem, como seria recomendável, a instrumentalização pública dos pactos patrimoniais, contentando-se com mero "contrato escrito entre os companheiros" (art. 1.725 do CC/02 em contraste com o art. 1.653 do CC/02). A liberdade de contratar não se pode dar em prejuízo daqueles que, fiados no que publica o Registro de Imóveis, vêm entabular negócios jurídicos com os titulares de direitos inscritos. De outra maneira, como haveremos de conhecer as vicissitudes que integraram o ato notarial declaratório de união estável - que neste caso estabeleceu, em seu bojo, um regime patrimonial tão diverso? A publicidade que dimana do ato notarial é reconhecidamente insuficiente, difusa, como diria Pontes de Miranda.17 O tema de fundo é, pois, produção de efeitos em relação a terceiros. Ou seja: segurança jurídica - em seu aspecto estático (que protege os interesses dos próprios conviventes) e dinâmica (que atua projetando a eficácia das cláusulas pactuadas erga omnes). Paulo Lôbo pontifica que o contrato celebrado entre os companheiros é equivalente ao pacto antenupcial. Sustenta, corretamente, que não há exigibilidade legal que obrigue o seu registro no ofício imobiliário competente. Serão estipulações válidas e eficazes interpartes. Porém, acrescenta: "para que o regime possa valer perante terceiros, o registro é necessário em virtude da publicidade deste haurida". E segue: "Se o contrato não for registrado - por exemplo, o que estipule o regime de separação total de bens -, os bens adquiridos após a união por um dos companheiros poderão ser penhorados em razão de dívidas do outro, porque serão presumidos comuns. Se o contrato não registrado puder ser oponível a terceiros, poderá servir de instrumento de fraude contra credores."18 Veja-se que o Registro de Imóveis atua na proteção dos interesses dos próprios conviventes e de terceiros, emprestando, a todo o sistema, a necessária segurança jurídica. Não será por outra razão que a LRP previu o registro das convenções antenupciais em várias passagens: "Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I - o registro: 12) das convenções antenupciais; II - a averbação: 1) das convenções antenupciais e do regime de bens diversos do legal, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer dos cônjuges, inclusive os adquiridos posteriormente ao casamento; ... Art. 178 - Registrar-se-ão no Livro nº 3 - Registro Auxiliar:  V - as convenções antenupciais; ... Art. 244 - As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros."  Não basta o registro do contrato no Livro 3, mas ainda é necessário que as estipulações exceptivas do regime patrimonial legal sejam publicizadas na própria matrícula. As Normas de Serviço, no Capítulo XX, vão nesse mesmo sentido: "Item 9. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: a) o registro de: [...] 11. convenções antenupciais e das escrituras públicas que regulem regime de bens dos companheiros na união estável (Livro 3); b) a averbação de: 1. convenções antenupciais, das escrituras públicas que regulem regime de bens na união estável e dos regimes de bens diversos do legal, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer dos cônjuges ou companheiros, inclusive os adquiridos posteriormente ao casamento ou ao contrato ou reconhecimento judicial da união estável; ... item 61.1. Sendo o proprietário casado sob regime de bens diverso do legal, deverá ser mencionado o número do registro do pacto antenupcial no Cartório de Registro de Imóveis competente, ou o dispositivo legal impositivo do regime, bem como na hipótese de existência de escritura pública que regule o regime de bens dos companheiros na união estável. item 78. Serão registrados no Livro nº 3: [...] d) as convenções antenupciais e as escrituras públicas que regulem regime de bens dos companheiros na união estável; ... item 83. As escrituras antenupciais e as escrituras públicas que regulem regime de bens na união estável serão registradas no Registro de Imóveis da comarca em que os cônjuges ou companheiros têm ou tiverem seu último domicílio sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade ou dos que forem sendo adquiridos. 83.1. O registro da convenção antenupcial ou da escritura pública envolvendo regime de bens na união estável mencionará, obrigatoriamente, os nomes e a qualificação dos cônjuges ou companheiros, as disposições ajustadas quanto ao regime de bens e a data em que se realizou o casamento ou da escritura pública, constante de certidão que deverá ser apresentada com a escritura. Se essa certidão não for arquivada em cartório, deverão ainda ser mencionados no registro o cartório em que se realizou o casamento, o número do assento, o livro e a folha em que tiver sido lavrado ou do registro da escritura envolvendo a união estável no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais." Como se vê, a preocupação do legislador - e da própria E. Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo - sempre foi o de dar a conhecer a todos os terceiros, por meio do mecanismo da publicidade registral, a situação jurídica dos bens e dos direitos inscritos. Está em causa, em última análise, a segurança jurídica e a prevenção de conflitos, que é a enteléquia do sistema registral brasileiro. Conclusões A dúvida foi julgada improcedente e o registro afinal se fez sem o prévio registro do pacto patrimonial e averbação correspondente como exigidos pelo Cartório. Os fundamentos da r. decisão, que julgou improcedente a dúvida, foram os mesmos adotados no processo 1044002-05.2018.8.26.0100, cujo entendimento foi aplicado ao caso.19 O tema é deveras interessante e convoca os estudiosos do direito registral imobiliário ao estudo e ao debate. ______ 1 Ap. Civ. 1044002-05.2018.8.26.0100, 16/5/2019, DJ 5/6/2019, rel. des. GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO. Disponível aqui. 2 Processo 1044002-05.2018.8.26.0100, j. 9/8/2018, DJ 14/8/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. Disponível aqui. 3 Provimento CNJ 37/2014, de 7/7/2014, DJ 11/7/2014, Conselheiro GUILHERME CALMON. Acesso aqui. 4 Ap. Civ. 1101111-45.2016.8.26.0100, j. 10/4/2018, 26/7/2018, rel. des. GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO. Disponível aqui. 5 DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2021, p. 603. 6 Op. cit. p. 606. 7 Op. cit. p. 605. 8 Ap. Civ. 1044002-05.2018.8.26.0100 referida na nota 2. 9 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. Tomo VIII, § 887, p. 255. 10 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. 4ª ed. Vol. IV. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961, p. 200. 11 Idem, ibidem. 12 Op. cit. p. 591. 13 RE 878.694, Minas Gerais, j. 10/5/2017, DJ 6/2/2018, rel. ministro ROBERTO BARROSO. Disponível aqui. 14 REsp 1.424.275-MT, j. 21/8/2014, DJ 16/12/2014, rel. min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO. Disponível aqui. No mesmo sentido: RESP 1.592.072-PR, j. 21/11/2017, DJ 18/12/2017, rel. min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Disponível aqui. 15 JACOMINO. Sérgio. União civil de pessoas do mesmo sexo. Boletim Eletrônico do IRIB n. 313, de 11/5/2001. Disponível aqui.  16 JACOMINO. Sérgio. União estável e a publicidade registral. Observatório do Registro, 21/9/2015. Disponível aqui.  17 "Porém a lei não se satisfez com a publicidade, por bem dizer difusa, da escritura pública" [...]; "as convenções antenupciais só têm efeitos, se não forem registadas, entre os cônjuges". PONTES DE MIRANDA, op. cit. nota 10, § 887, p. 255. 18 LÔBO. Paulo. Direito Civil - Famílias. Vol. 5, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 182. 19 A r. decisão proferido no Processo 1044002-05.2018.8.26.0100 pela magistrada da 1ª Vara de Registros Públicos foi mantida pelo Conselho Superior da Magistratura, como já assinalado. Vide íntegra nas notas 1 e 2, supra. 
A partir da Teoria Tridimensional, idealizada por Miguel Reale, o Direito pode ser entendido como fato, valor e norma. Exige-se do Direito uma evolução em consonância com a realidade social. O Direito não pode ser estático, ensimesmado, estagnado. É imprescindível que o Direito seja dinâmico e acompanhe, necessariamente, as mudanças sociais. O mundo globalizado trouxe numerosos avanços à sociedade, nas mais diversas áreas e ciências, e o Direito não poderia ficar aquém desse progresso pois, como ciência social, está intrinsecamente ligado às relações humanas e aos conflitos dela decorrentes. No mesmo grau de avanços, essa universalização trouxe problemas a serem superados e desafios a serem enfrentados. Neste mês, o mercado de criptomoedas ultrapassou os US$ 3 trilhões, aproximadamente R$ 16,5 trilhões, com os principais ativos demonstrando fôlego para multiplicarem-se muito mais.1 Já existem mais de 5 mil moedas gerando valor no Blockchain2 e a tendência é que a multiplicação e os investimentos sigam aumentando exponencialmente. Esta realidade tem sido desafiadora para a ciência jurídica: o inesgotável desenvolvimento tecnológico e a célere evolução de ferramentas que criam negócios e meios de construir riquezas desafiam o legislador e o Poder Judiciário a criarem leis, ou interpretar os avanços à luz das normas existentes. O Direito, conservador que é, sempre está atrasado. Apesar desse cenário, destaca-se uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O Provimento 38/213da Corregedoria-Geral da Justiça se atreveu a regulamentar a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis por tokens, e o seu respectivo registro imobiliário. Um feito extraordinário que merece atenção e replicação, mas, para tanto, é imperioso compreender o que vem a ser tokens, smart contracts e blockchain, e os impactos dessas tecnologias na ciência jurídica, especialmente no campo notarial e registral. Blockchain, smart contracts e tokens Os contratos inteligentes, ou smart contracts, são programas de computador ou protocolos de transações que visam a executar automaticamente, controlar ou documentar legalmente atos ou ações relevantes no escopo de um contrato, tudo no âmbito da blockchain.4 Como programas que são, com consequências jurídicas, os contratos inteligentes necessitam que as regras constantes no seu código respeitem as leis vigentes. A blockchain é uma rede distribuída e, não havendo um ente ou servidor central, não se submete à qualquer soberania estatal. Semelhante ao ocorrido com o advento da internet, alguns usuários podem imaginar, devido às características, que se trata de um espaço sem limites. Essa visão ingênua deve ser afastada, como sugere o serviço de pesquisa do Parlamento Europeu: "A more realistic interpretation of smart contracts would position them within the wider legal system. Just as with paper contracts, additional requirements can be imposed, and clauses may be nullified or reinterpreted on the basis of the intention of the parties and wider law. The law of the land always sits above the 'law' inscribed in the code, even where legal proceedings and enforcement may prove difficult. As such, while most discussions of smart contracts recognise that they will provide efficiency gains in several areas, they are not expected to replace either traditional contract law or traditional contract lawyers."5 Os contratos inteligentes possibilitam a disrupção de certas cadeias produtivas. Como exemplo, mais premente, podem ser citadas as operações financeiras, cujos agentes tradicionais, bancos e financeiras, lidam com as Defis ¸ acrônimo para decentralized finance, que oferecem produtos que vão de empréstimos à investimentos com resultados e performances altas e taxas menores, sem burocracias. Algumas profissões, entre elas a notarial e registral, podem ser extintas com o uso massivo dos contratos inteligentes. Chris Snook, da revista Inc., aposta que a blockchain vai matar estas profissões: "Blockchain's distributor ledger technology is the latest and greatest form of this solution and as such is removing layers of "red tape" and friction. It also removes the need for the businesses that have provided services related to verification and certification of goods, guarantees, and registration/recording of the transaction into a public record. This means that all of the associated jobs (accountants, title representatives, lawyers, and other office administration workers) and businesses that have traditionally serviced these needs are going the way of the horse and buggy."6 Urge ressaltar que o valor legal dos contratos inteligentes depende do reconhecimento social, de sua aceitação pelos órgãos jurisdicionais e, finalmente, pela lei. Afinal, o Direito é lerdo. Contudo, a partir do momento que relações sociais se instauram e, decorrentes delas surgem desdobramentos que precisam ser sanados pela ordem jurídica, o reconhecimento legal e a regulação se impõem. Considerar que as instituições notariais e registrais, que operaram com eficiência, irão de um momento para o outro deixar de serem necessárias, ainda que sob confronto disruptivo, decorre de simplificação. A blockchain tem sido utilizada em plataformas imobiliárias para contratos e registros em países que não contam com serviços eficientemente estruturados, como Honduras, Gana e Geórgia, esta última se desligando do jugo russo e necessitando refundar-se como nação.7 Apesar de suas dimensões continentais, o Brasil possui um serviço notarial e registral eficaz e submetido a controle estatal, havendo intensa fiscalização das atividades sob sua competência. Diante disso, é mais provável que os operadores do serviço façam uso do blockchain para aperfeiçoar as suas operações, obtendo as vantagens do ledger descentralizado, do que, em certo momento, venha a surgir uma plataforma que produzirá os milhões de escrituras e registros feitos anualmente com plena eficácia legal. A criação de direitos ou créditos no meio digital, através da blockchain, tem sido conhecida como tokenização. Token é a representação de ativo digital. Oriunda da língua inglesa, token, numa tradução livre, significaria "cupom digital". Em outras palavras, um voucher, um título, uma cédula. Para a International Organization of Securities Commissions -  IOSCO, a tokenização é "o processo de representar digitalmente um ativo ou propriedade de um ativo"8. Para Max BijkerkLast, a tokenização de ativos imobiliários envolve a vinculação das cédulas (tokens) com o bem imóvel.9 Já Mitchley, traz a definição da tokenização de valores imobiliários: "The concept of tokenization of real estate assets involves creating a virtual token that represents ownership of a particular type of asset. Similar to the recent digital craze with non-fungible tokens (NFTs), but with a physical asset tying the token to its value instead. Tokens can represent real estate related ownership in several ways due to their enhanced flexibility in use. A token becomes a record that has legal meaning and hence an economic value. In addition to representing ownership of an asset, tokens can also represent an equity interest in a legal entity that controls the asset, an interest in a debt secured by the asset, a right to share in the revenue or profits generated by the asset, or any other variation as determined by the issuer of the tokens."10 Sob a perspectiva da legislação pátria, os tokens, ou cédulas, dessa natureza seriam espécies ou as próprias cédulas de crédito imobiliário (CCI) previstas na lei 10.931/04. Neste caso, a sua emissão exigiria instrumento público ou particular e custódia em instituição credenciada pelo Banco Central. Ademais, é possível tokenizar ativos imobiliários no Brasil constituindo um Fundo de investimento imobiliário, previsto na lei 8.668/93. Neste contexto, o fundo deveria ser constituído em obediência à Instrução Normativa 472 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)11, o qual seria por ela autorizado e fiscalizado. As vantagens da tokenização imobiliária são inegáveis: possibilitam o fracionamento do valor patrimonial permitindo ao investidor um baixo valor de entrada, permitem a diversificação dos ativos, pois um token pode estar vinculado a diversos imóveis (residenciais, comerciais, industriais, etc). Outras vantagens são a liquidez imediata (em segundos) e a eficiência de custos decorrente da automação e dispensa de intermediários. É importante que a CVM e o Banco Central regulamentem a tokenização de ativos imobiliários. O mercado imobiliário global é imenso, tem valor estimado em US$ 280 trilhões, talvez o maior existente. A tokenização dará acesso, fluidez, liquidez e amplo acesso a pequenos investidores a este mercado, atualmente restrito aos grandes negociantes.12 Primeiro caso de uso: netspaces A escritura pública que motivou o estudo da CGJ do Rio Grande do Sul a editar o Provimento nº 38/2021 é a permuta de um imóvel13 por um token14 criado através de smart contract na rede principal do Ethereum (main network), a qual foi lavrada em 18 de maio de 2021. As partes envolvidas, como transmitente a 66 Gestão Patrimonial Ltda. e adquirente a empresa Netspaces Propriedades Digitais Ltda., ambas sediadas no mesmo endereço comercial,  atribuíram ao token o valor de R$ 2.776,08 (dois mil setecentos e setenta e seis e oito centavos). Insta salientar que o imóvel foi adquirido pela empresa Netspaces, naquele mês, pela quantia de R$110.000,00 (cento e dez mil reais), tendo sido considerado este valor  para fins fiscais, conforme se depreende da matrícula. Uma imagem do registro deste negócio integrou o Processo SEI/TJRS - 3245601, que deu origem ao provimento:   O modelo de tokenização imobiliária proposto pela empresa Netspaces, permutante no ato originário do processo, é o seguinte: 1) O proprietário acessa o site da empresa e solicita a digitalização do imóvel de sua propriedade; 2) O proprietário e a empresa assinam uma escritura de permuta, pela qual a empresa recebe a propriedade do imóvel que se transformará em propriedade digital; 3) Neste ato, o proprietário paga o ITBI devido ao município e os custos da escritura; 4) A seguir, o proprietário paga também os custos do registro da escritura no cartório de imóveis. Feito o registro, a mencionada empresa adquire a propriedade efetiva do imóvel; 5) Uma vez "digitalizado" o imóvel, a empresa registra a transação e a propriedade digital na blockchain em nome do antigo proprietário, o qual terá apenas a propriedade digital, representada por um token. Como aduz o artigo 9º do Regulamento da Propriedade Digital elaborado pela mencionada empresa, "o nascimento da propriedade digital pressupõe [...] a propriedade plena e irrestrita da entidade netspaces sobre o bem imóvel sujeito ao regime da propriedade digital".15 Nesse sentido, é cristalino que o imóvel tokenizado passa a integrar o acervo patrimonial da pessoa jurídica em tela. Ainda de acordo com o modelo proposto, após a "digitalização da propriedade", o dono do imóvel digital e, por conseguinte, detentor do token que representa essa sua qualidade no ambiente virtual, pode aliená-lo a terceiros, desde que as transações sejam realizadas dentro da plataforma da netspaces, conforme artigos 33 e 34 do regulamento supracitado. Além disso, remanesce ao proprietário digital uma relação possessória sobre a propriedade real, regida pelas disposições do Código Civil. Logo, "o direito de usar o imóvel em propriedade digital poderá ser exercido pelo proprietário digital ou, de acordo com a sua vontade, por terceiros, a título gratuito ou oneroso"16. Não obstante, "a faculdade de fruir do imóvel em propriedade digital pertence ao proprietário digital, o qual poderá transferi-lo em caráter não definitivo a quem queira, a título gratuito ou oneroso". Nestes moldes, os frutos do bem imóvel são devidos ao proprietário digital na proporção que titularidade que detenha sobre ele.  Provimento 38/21 da CGJ do Rio Grande do Sul O provimento gaúcho regula a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis representados digitalmente por tokens. Trata-se da primeira norma a prever criptoativos no âmbito notarial e registral. Em seus quatro artigos, o referido instrumento: ?      Informa que as partes envolvidas reconhecem o conteúdo econômico dos tokens, indicando o seu valor; ?     Ressalta que os tokens ou criptoativos não representam direitos sobre o imóvel permutado; ?     Exige "razoável equivalência econômica" de valor nos criptoativos e no imóvel envolvidos na permuta; ?     Exige que os tokens ou criptoativos não contenham endereço que indiquem que o seu conteúdo se refere aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado; ?     Exige que todos os atos com criptoativos sejam comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, como prevê o Prov. 88/19 do Conselho Nacional de Justiça. A primeira dúvida decorrente do provimento diz respeito ao trato exclusivo do negócio permuta. Notários e registradores poderão intervir em outras operações além desta? É possível uma compra e venda, um usufruto ou uma dação em pagamento? Todos os atos passíveis de negócios ou mais especialmente, de registro, como previsto pela lei 6.015/73, art. 167, inciso I, podem pretender seu abrigo nas escrituras públicas e registros. Impensável que a cada novo ato seria necessária nova consulta à CGJ, novo estudo e novo provimento. O ato emitido chancela ao Direito notarial e registral a possibilidade de recepcionar os negócios lícitos que envolvam criptoativos. O segundo dispositivo, que veda que os criptoativos representem direitos sobre o imóvel permutado, impede que o token criado mantenha relação com o imóvel. Tal vedação é excessiva, na medida em que pode culminar na inviabilização de inúmeros projetos dotados de lisura e, a título de exemplo, suponha-se que determinado negócio entabulado na blockchain, por meio de smart contracts, pretenda ter como garantia um bem imóvel, representando-o na rede através de um token. Não havendo óbice legal e tratando-se de negócio idôneo, à luz da autonomia privada, tal ato deve ser materializado pelos notários e registradores, dando-lhe forma legal. Enfim, é prematuro impedir o livre comércio, a criatividade e o desenvolvimento de novos modelos negociais, pressupondo que o direito imobiliário é sacrossanto. Por outro lado, como destacado anteriormente, é imprescindível que se atenda à legislação pátria se os tokens vão representar uma fração do imóvel (Leis 8.668/93 ou 10.931/2004). O parecerista da CGJ salientou que a propriedade digital não tem caráter de direito real. Neste sentido, a relação estabelecida pelas partes através da tokenização se restringiria apenas ao campo obrigacional. Em nosso direito, a propriedade nasce com o registro no ofício imobiliário (CC, art. 1.245). A outra propriedade, a tokenizada, por sua vez, nasce com o registro em blockchain e não é levada ao ofício imobiliário. A operação, portanto, duplica um bem único: existe um imóvel físico e passa a existir também um imóvel digital. A tokenização prevista neste caso concreto não se vincula ao bem imóvel originário, ou seja, a cédula criada (token) não corresponde ao imóvel ou a uma fração dele. Apesar do intento empresarial "de tornar a propriedade digital reflexo da propriedade"17 real,  a partir do Provimento emanado pela CGJ, instituiu-se uma coexistência dissociada das propriedades digital e real. Esse descompasso suscita várias indagações relativas à possibilidade de constrição do bem imóvel. Poderia a propriedade real ser atingida por débitos do proprietário digital? Relembrando: para todos os fins jurídicos, enquanto digitalizado o imóvel, a propriedade real permanece em nome da empresa. Apesar da decisão da CGJ ter entendido que não há vínculo entre a propriedade digital e a propriedade real, é crucial reconhecer que o proprietário digital possui, no modelo em tela, direitos de usar e fruir do bem imóvel. Nesta senda, poderá por exemplo, perceber mensalmente aluguéis. Partindo dessas premissas, é desarrazoado cogitar que eventual credor de um proprietário digital, conhecedor desta condição, esteja impedido de perseguir o auferimento dos valores obtidos pelo devedor, em virtude da tokenização imobiliária, para saldar o débito existente. Admitir que os frutos da propriedade tokenizada não possam ser objeto de penhora por credores do proprietário digital significa estabelecer sobre o imóvel um manto de proteção à margem da lei, premiando devedores que visem blindar seu patrimônio das dívidas por eles contraídas e frustrando execuções. Com a finalidade de sanar eventual tentativa de ocultação de bens, deve a empresa que objetiva desenvolver essa atividade empresarial criar mecanismo, junto aos órgãos públicos, que forneça consulta dos proprietários digitais, conferindo a transparência e a publicidade que a espécie exige. Talvez este aspecto mereça uma futura regulação legal ou normativa. Hodiernamente empresas que exploram o ramo de intermediação de compra e venda de criptoativos e fornecem o serviço de custódia deles, denominadas exchanges, são rotineiramente instadas pelo Poder Judiciário a informar se eventual indivíduo possui cadastro em sua plataforma e, em caso positivo, de quanto o seu saldo conforme a cotação diária dos ativos que detém na carteira virtual. As exchanges, ainda, têm deveres de informação e reporte perante à Receita Federal e ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, visando à prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e outros ilícitos. De forma análoga, uma vez suscitadas, as empresas que desejam explorar a tokenização imobiliária devem colaborar com o poder público para que as transações realizadas por meio da plataforma disponibilizada no mercado brasileiro não almejem a ocultação patrimonial, a fraude à credores ou à execução, ou a prática de ilícitos. Por isso, a exigência de que os tokens criados não guardem relação com o bem imóvel subjacente talvez não seja a melhor alternativa, pois pode dificultar a vinculação dos direitos e obrigações. Vedou-se que o token tenha como nome o endereço do imóvel, prejulgando o conhecimento que as partes devem ter ao fazer o negócio. Pode ser importante para eventuais modelos negociais, que inevitável e futuramente surgirão no blockchain, que se faça a correlação com o bem imóvel subjacente à tokenização. Assim, a norma pode causar empecilho ao desenvolvimento do mercado e, por consequência, ao desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul. Acerca dos efeitos da tokenização no registro imobiliário, o oficial responsável pelo registro pioneiro, proferiu opinião no sentido de que é necessário ter cautela para evitar a ocultação de patrimônio:18: "Deverá ser pensada uma regulação de modo a que as contratações no ambiente digital não sejam fonte de insegurança jurídica, ou de estímulo à ocultação de patrimônio fruto de atividade irregular. Hoje, o cerco está se fechando. Há poucos ambientes para que as situações ocultas e clandestinas possam prosperar. Sem uma regulação, creio, estar-se-á fomentando tais situações. Deverá ser criada, creio eu, neste momento inicial, uma ferramenta visando a estabelecer uma interconexão entre a realidade digital com o sistema de proteção da propriedade imobiliária formal. Para o ambiente da tecnologia isso é medida simples de se implementar, e isso poderá contribuir para que ambas as realidades conversem, fomentando novos negócios num ambiente seguro, e não o contrário." A terceira exigência da Corregedoria, qual seja, a razoável equivalência econômica do bem imóvel com os ativos permutados, não era exatamente o caso posto em exame. Trocou-se um bem imóvel de avaliado em 110 mil reais por um token, cujo valor atribuído pelas partes era R$2.776,08 (dois mil setecentos e setenta e seis reais e oito centavos). A diferença é de 50 vezes e a CGJ do RS orienta o notário e registrador gaúcho a exigirem, a partir de agora, uma equivalência razoável. Este precedente não poderá se repetir.19 Nesta linha, o provimento do RS  obrigou a informação de todos os negócios ao COAF, pressupondo a má-fé dos operadores de criptoativos ou negócios via blockchain. A disposição é prudencial, mas parece estar em desacordo com a própria norma fundamentadora, o Provimento 88/19 do CNJ. Segundo o artigo 19, a Corregedoria Nacional de Justiça é o órgão competente para indicar as hipóteses de operações suspeitas e de comunicação necessária.20 Parece-nos conveniente uma revisão futura desta obrigatoriedade, mas, seguimos o pensamento do registrador: é indispensável o controle das operações para a profilaxia do mercado imobiliário e para combate à lavagem de dinheiro, corrupção e terrorismo. Um dos méritos do parecer da CGJ gaúcha é admitir que a lei não impede a utilização de criptoativos como meio de pagamento em negócios formalizados por escritura pública e levados ao registro de imóveis, contrariando o Comunicado CG 51/2018, da CGJ de São Paulo, que veda o recebimento de criptoativos em pagamento de emolumentos notariais ou registrais. Neste diapasão, Lamana argumenta que: "Não vemos problema no fato de a permuta ter como contrapartida tokens ou criptoativos. Como já se disse acima, os criptoativos são hoje fatos da vida econômica e, com ou sem lastro "oficial", eles têm valor de mercado. Não há, por óbvio, qualquer empecilho para que alguém compre validamente criptoativos (isto é, "troque" moeda corrente oficial por valores equivalentes em criptomoeda, por exemplo) e, ao contrário, isso ocorre cotidianamente no mundo todo sem representar nenhuma novidade. Deste modo, o criptoativo é um bem de valor transacionável, e pode efetivamente ser incluído em uma permuta por qualquer outro objeto lícito, como um bem imóvel." É relevante salientar que a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, por meio do Ofício Circular SEI 4081/2021, autorizou as Juntas Comerciais a aceitarem criptoativos para a integralização do capital social de empresas. Tal ato foi emitido em 1º de dezembro de 2020 e derivou de uma consulta formulada pela JUCESP ao Ministério da Economia. Blockchain e a atividade notarial e registral A tecnologia blockchain promoveu transformações em diversos segmentos. Intuitivamente, o primeiro setor impactado com as mudanças foi o financeiro, dada a dinâmica que os criptoativos estabeleceram no mercado. Não demorou muito para que esse livro-razão virtual e distribuído fosse adotado como solução em cadeia de suprimentos (supply chain) e logística.22 No decorrer do tempo a tokenização se tornou um fenômeno: "tokenizing everything". De créditos de carbono a clubes do futebol, quase todos os ativos estão sendo alvo de tokenização pelos seus donos, emergindo diariamente novos casos de uso e aplicações. Claramente o setor imobiliário não ficaria alheio à transição. Convictamente, a ciência jurídica deverá abrigar a evolução que se institui, cabendo aos seus operadores compreender as tecnologias, estudando os casos de uso, avaliando as implicações e buscando soluções. Sob este prisma, o Direito deve ter como fim colimado  o estímulo e o crescimento dos profissionais que desbravam e aceitam os desafios impostos no ambiente virtual. É possível que esta evolução envolva também mudanças no Direito notarial e registral. Preliminarmente, será que teremos escrituras e registros inteligentes? Parece-nos provável que sim. As finalidades da atividade notarial e registral são a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos.23 A adoção de ferramentas como códigos prévios que executam comandos tendentes à execução de uma tarefa simplifica a obtenção desses fins. A executividade das escrituras públicas seria amplificada com a adoção da blockchain. Há, porém, o temor de que a máquina e seus programas dispensem notários e registradores de suas atividades, haja vista que, dentre as vantagens da blockchain, estão a automação de processos, a eliminação de intermediários, a redução de custos e o acesso e rastreabilidade.24 Pode ser, sim, o fim da necessidade de notários e registradores. Por outro lado, pode ser também que estes profissionais façam uso da tecnologia e agreguem valor às incipientes cadeias de produção com uso da ferramenta. Enquanto houver necessidade do poder estatal, agregando fé pública a certos negócios, haverá demanda por profissionais que representem o Estado e aportem a fé publicidade exigida pela lei a certos negócios e situações. Aqui, no físico, e lá, no digital. No que tange a tokenização imobiliária algumas balizas devem ser sedimentadas com o propósito de evitar o desenvolvimento de um ambiente propício para ocultação patrimonial e ilícitos, fato que desvirtuaria os anseios e potencialidades que a blockchain proporciona. Noutra ótica, as normas e regulações, em nome da segurança jurídica, devem se afastar de regras tendentes a engessar que projetos se desenvolvam no ambiente nacional, ceifando o poder propulsor da tecnologia. Acolher a blockchain é estar aberto à disrupção. O modelo idealizado pela netspaces é inovador e demarca uma ruptura com todas as concepções tradicionais de propriedade, exigindo profundas reflexões e ponderações pelos estudiosos da área jurídica. Fato é, que a construção de um formato de tokenização imobiliária eficiente, disruptivo, seguro e hígido requer das partes envolvidas, profissionais e órgãos públicos um trabalho conjunto com vias de congregar o real e o virtual. _________________ 1 Forbes.com.br, "Mercado de cripto ultrapassa R$ 16,5 trilhões e Bitcoin e Ether atingem novos recordes", 08.11.2021, acessado em 12.11.2021 às 17h29. 2 Disponível aqui. Acessado em 12.11.2021 às 17h37. 3 Disponível aqui. Acessado em 18.11.2021, às 9h33. 4 Disponível aqui. Acessado em 16.11.2021, às 14h08. 5 Philip Boucher. European Parliamentary Research Service. How blockchain technology could change our lives, pp. 13-14. 6 Blockchain and Artificial Intelligence Are Coming to Kill These 4 Small Business Verticals, aqui. Acessado em 19.11.2021 às 15h08. 7 Georg Eder. Digital Transformation: Blockchain and Land Titles. Trabalho apresentado na OECD Global Anti Corruption and Integrity Forum, 2019, pp. 4-6. 8 Disponível aqui. Acessado em 25.11.2021, às 14h36. 9 "Real estate tokenization is the process of partitioning real estate into many small pieces, called tokens. Whoever owns a token, owns a piece of the underlying asset." in Tokenized real estate: 2021 update, aqui, acessado em 23.11.2021 às 14h28. 10 Robert Mitchley, Tokenization of real estate assets explained, aqui, acessado em 23.11.2021, às 12h13. 11 Disponível aqui. Acessado em 25.11.2021, às 16h30. 12 Robert Mitchley, idem. 13 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 17h02. 14 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 17h05. 15 Disponível aqui, acessado em 24.11.2021, às 15h43. 16 Artigo 25 do Regulamento da Propriedade Digital. Disponível aqui, acessado em 24.11.2021, às 15h43 17 Artigo 24 do Regulamento da Propriedade Digital, aqui. 18 João Pedro Lamana Paiva, Oficial do 1º Registro de Imóveis de Porto Alegre, é autor de várias obras sobre Direito Imobiliário e Registros Públicos. 19 Receia-se que eventual disparidade de valores poderia dissimular uma doação sem o recolhimento imposto devido, acarretando em prejuízos ao erário. 20 Disponível aqui, acessado em 25.11.2021, às 17h42. 21 Disponível aqui, acessado em 24.11.2021, às 08h15. 22 Disponível aqui, acessado em 23.11.2021, às 16h22. 23 Lei 8.935/94, art. 1º. 24 Disponível aqui, acessado em 18.11.2021, às 18h16.
Introdução Recebi de um colega de estudos um alentado texto com propostas de redação para a reforma da Lei de Registros Públicos com o pedido de estudo e opinião jurídica. Em vez de debruçar-me sobre o articulado da proposta, julguei ser oportuno, preliminarmente, traçar uma diretriz crítica a fim de iluminar os intrincados problemas que a iniciativa representa e sugerir um rumo sistemático às discussões. Penso que estas singelas advertências devam merecer prudente reflexão antes do encaminhamento da proposta aos canais competentes do Governo Federal. Notários e registradores - especialização e natureza O princípio essencial que deve nortear a concepção da reforma legal da lei 6.015/1973 (LRP) é o seguinte: cada especialidade representa um núcleo autônomo e singular que deve ser mantido organicamente no corpo da lei. O § 1º do artigo 1º da LRP nos revela um conjunto harmônico, embora diversificado, que dá coerência a todo o sistema. A parte geral da lei, dedicada ao conjunto de especialidades dos registros públicos, representa menos de 10% do total de 299 artigos do diploma. Os demais dispositivos são dedicados a cada especialidade, com delimitação orgânica de atribuições e de funcções de modo muito bem definido e particularizado. Registro Civil das Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas, de Títulos e Documentos e de Imóveis são especialidades que vêm experimentando ao longo dos anos um processo de progressiva singularização em tudo consentânea com as exigências do mercado e do desenvolvimento orgânico das próprias atividades. No âmbito da ordem constitucional anterior à Carta de 1988, os oficiais de registro e os tabeliães compunham uma categoria singular na ordem judiciária - a de serventuários de justiça - reputados como serviços auxiliares da Justiça (§ 5º do art. 144 da Emenda 1 da CF/1969). Logo em seguida, por via da lei Federal 5.621, de 4/11/1070, respeitada a legislação federal, previu-se que a organização judiciária, a cargo dos Estados, compreenderia "a organização, classificação, disciplina e atribuições dos serviços auxiliares da Justiça, inclusive tabelionatos e ofícios de registros públicos" (inc. IV do art. 6º). Os tribunais dos estados organizaram tais serviços, regulando as atividades do chamado foro extrajudicial. No estado de São Paulo, houve uma sucessão de atos normativos oriundos do próprio Tribunal de Justiça e do legislativo1. Porém, a partir da Carta de 1988, os serviços notariais e registrais experimentaram uma mutação substancial em seu estatuto orgânico e passaram a ter regramento próprio (art. 236 da CF/1988 e lei 8.935/1994), conjunto que radicaliza e aprofunda a especialização das atividades arroladas no art. 5º da lei 8.935/1994. A chamada Lei Orgânica dos Notários e Registradores (lei 8.935/1994) remarca, em várias passagens, a especificidade de cada "natureza", apontando para o processo de progressiva singularização de tais atividades em atenção à natureza de cada qual. A orientação se patenteia no disposto no artigo 26 da dita lei que reza não serem "acumuláveis" os serviços enumerados no art. 5º. O seu artigo 49 remata: "Art. 49. Quando da primeira vacância da titularidade de serviço notarial ou de registro, será procedida a desacumulação, nos termos do art. 26". Desacumulação por natureza - eis a regra. Definição da especialidade por sua natureza, o norte da organização da atividade. Todavia, nos deparamos na proposta com ideias que representam uma marcha-a-ré na configuração da infraestrutura institucional das atividades notariais e registrais brasileiras. A criação de um Serviço Eletrônico de Registros Públicos (SERP) funde, numa única plataforma centralizada, atribuições que são próprias e indelegáveis de cada profissional em cada especialidade, gerando uma mixórdia que certamente provocará controvérsias e grandes dificuldades para consumar o que se tem chamado de "governança" do sistema registral. O anteprojeto simplesmente desconsidera o que se desenvolveu ao longo de mais de uma centúria não só no âmbito do CNJ (mais recentemente), mas nos Tribunais de Justiça dos estados e Distrito Federal, descartando normas de serviços, provimentos, avisos, recomendações e resoluções que nos revelam a tessitura e organicidade do sistema. A lei 11.977/2009 - o marco inicial O artigo 1º da proposta incorre num erro lógico2-3. Reza que o objetivo do sistema será a "universalização das atividades dos Registros Públicos". O que prevê o conjunto normativo sobre o qual a proposta se assenta - lei 11.977/2009 - é a universalização do acesso, não a "universalização das atividades". A interconexão das unidades representa a teleologia das reformas que adjuntaram o qualificativo "eletrônico" aos Registros Públicos na lei de 2009. Não é a modalidade do suporte material utilizado para a prática dos atos de registro que há de conformar e moldar a própria atividade. As ferramentas eletrônicas são meios, não são fins. Ou por outra: a prestação de serviços em meios eletrônicos não deve chegar ao ponto de subverter a própria natureza dessas atividades, confundindo-as e malbaratando o acervo que representa, verdadeiramente, uma cultura jurídica que é patrimônio da sociedade brasileira. A inconstitucionalidade latente A confusão pode nos levar a graves questionamentos nos tribunais e no próprio STF. Ao prever que o SERP poderá promover "o registro público dos atos jurídicos [sic]", ou que o dito ente poderá expedir certidões e prestar informações, "inclusive de forma centralizada", ou ainda facultar "a visualização eletrônica dos atos transcritos, registrados ou averbados nas serventias dos Registros Públicos", ou o armazenamento de documentos eletrônicos "para dar suporte aos atos registrais" e toda uma série de outras disposições congêneres, tudo isso aponta, inequivocamente, para uma espécie de subdelegação à SERP de competências e funções que são próprias e indelegáveis de registradores públicos, com a consequente subversão do quadro institucional que define os chamados órgãos dos serviços notariais e de registro (art. 103-B da EC 45/2004). Essa manobra brusca e dissonante afronta a tradição do direito brasileiro e subverte as regras bem assentadas no corpo legal e normativo. Tal iniciativa revela um elemento potencial que pode se chocar com a Constituição Federal que previu a delegação de tais atividades jurídicas (que são próprias do Estado) ao particular, pessoa natural habilitada em concurso público. O Estado não o fez a entidades, sejam elas criadas por lei ou instituídas pelos próprios registradores ou pelo mercado. Calha lembrar aqui a linha que cinge as funções públicas de atividades jurídicas delegadas ao particular (art. 236 da CF/1988) e outras funções que podem ser exercidas por outros agentes pela via do conduto da concessão ou da permissão, nos termos do art. 175 da Carta de 1988. A ementa do aresto prolatado na ADI 2.4154 ilumina o contexto destas considerações. A respeito das atividades notariais e registrais, destaca o ministro: I - Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos. II - A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. III - A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público. IV - Para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público. V - Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações interpartes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito. VI - Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. Não é diverso o entendimento que se pode extrair de outro importante precedente do STF. A transfiguração das funções notariais e registrais, se consumadas as tentativas de concentração de atividades próprias em entes personalizados - como o é, em certa medida, o SERP -, pode-se dar ensanchas ao surgimento de um fenômeno de subdelegação de atividades próprias de notários e registradores, como tenho apontado em várias oportunidades5. Desloca-se sutilmente o eixo que permitiu ao STF definir a responsabilidade dos oficiais e tabeliães pelos atos próprios por eles praticados em caráter pessoal. Ou seja: até aqui, respeitadas as diretrizes constitucionais, os serviços notariais e de registro não se submeteriam à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Vejamos a ementa do acórdão do STF: "Os serviços notariais e de registro, mercê de exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236, CF/88), não se submetem à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. É que esta alternativa interpretativa, além de inobservar a sistemática da aplicabilidade das normas constitucionais, contraria a literalidade do texto da Carta da República, conforme a dicção do art. 37, § 6º, que se refere a 'pessoas jurídicas' prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e tabeliães respondem civilmente enquanto pessoas naturais delegatárias de serviço público, consoante disposto no art. 22 da lei 8.935/94". "A própria constituição determina que "lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário" (art. 236, CRFB/88), não competindo a esta Corte realizar uma interpretação analógica e extensiva, a fim de equiparar o regime jurídico da responsabilidade civil de notários e registradores oficiais ao das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6º, CRFB/88)"[6]. Ou seja, não se pode modificar o espartilho no qual calham as atividades registrais e notariais sem o risco de, subvertendo-o, incorrer em inconstitucionalidade ou em pura subversão de seus alicerces. Addendum Como indicado anteriormente (nota 3) o projeto, tal e como o recebemos originalmente, modificou-se nos labirintos da administração pública. A nova redação, consubstanciada em minuta de medida provisória que esteve na iminência de ser baixada, em boa hora, e de forma prudente, foi adida. Estima-se que o Governo Federal terá recebido inúmeros pedidos de sobrestamento em virtude do fato de que a minuta não terá sido objeto de discussões aprofundadas envolvendo os principais atores - notários e registradores brasileiros. Seja como for, os defeitos ali apontados em grande parte se mantiveram no corpo da nova minuta de medida provisória, razão pela qual mantemos, em linhas gerais, as críticas que à época dirigimos à iniciativa evidentemente precipitada. O fato é que estamos diante de um impulso que se dirige a uma reengenharia de todo o sistema registral pátrio e que revela o potencial de subverter a natureza das atividades registrais em afronta não só à Constituição, mas a leis e normas que regem tais atividades há mais de um século. Vamos reinventar a roda e mergulhar o sistema de segurança jurídica numa aventura insegura e imprevisível? __________ 1 Não é o caso de aprofundarmo-nos na legislação dos estados, bastando indicar brevemente os atos normativos do Estado de São Paulo: dec.-lei Complementar 3, de 27/8/1969 (Código Judiciário de SP); dec.-lei 159, de 28/10/1969; resolução 1/1971, do E. Tribunal de Justiça de SP; lei 2.177, de 23/7/1953; decreto 4.786, de 3/12/1930 (Regimento das Correições); decreto 5.129, de 27/3/1931 etc. Em todos esses diplomas a vinculação dos tabeliães e registradores aos Tribunais de Justiça se dará sob a qualificação de Serventuários de Justiça. 2 Art. 1º O Sistema Eletrônico dos Registro Públicos (SERP), de que trata o art. 37 da lei 11.977, de 7 de julho de 2009, tem como objetivo a universalização das atividades dos Registros Públicos e a adoção de governança corporativa das serventias. 3 Posteriormente, a 16/11/2021, uma nova versão da minuta circulou entre os registradores e o art. 1º já havia sido modificado. Mantenho as considerações por uma questão de registro histórico das várias mudanças experimentadas pelos projetos desenvolvidos no âmbito do governo federal. 4 ADI 2.415. Rel. min. Ayres Britto, j. 10/11/2011, p., DJE de 9/2/2012. Acesso aqui. 5 Brevitatis causa: JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a floração de atividades para-registrais. São Paulo: Observatório do Registro, 2/11/2018. Acesso aqui. 6 RE 842.846 - Santa Catarina, j. 27/2/2019, Rel. Ministro LUIZ FUX. 
As festividades de fim de um ano pandêmico já se aproximavam quando o então New York Times publicou, na voz do jornalista Nicholas Kristof, uma reportagem que viralizou em questão de horas. O título já era, per se, chamativo: "As crianças do PornHub"1 é a manchete que Kristof escolheu para chamar a atenção do mundo para o fato de que existia, por fim, uma cifra oculta de tráfico humano e pornografia infantil que corria, às escondidas, em uma das plataformas de conteúdo adulto mais conhecidas no mundo. Uma estudante de 14 anos, quem dá à Kristof um estudo de caso real, conta ao jornal americano como um de seus vídeos sexuais terminou, por fim, no PornHub - uma plataforma que, de frente à uma avalanche de vídeos sendo descarregados a cada minuto e contando com um time consideravelmente estreito de analistas, não tem condição de dizer, por fim, quantos anos exatamente têm a adolescente da foto. E, claro, nem menos se esta é menor de 18 anos - a qualificar o material então como um de pornografia infantil. Diante do escândalo do PornHub, a hotline inglesa Internet Watch Foundation (IWF) escreveu, em pronunciamento público, que "os dados do PornHub fora de contexto não nos dizem absolutamente nada". De fato. Em uma manifestação publicada, em língua inglesa, em seu portal oficial, a IWF, uma elucidação simples, mas exaustiva sobre o problema da idade da vítima, a afirmar que: "1. Existe um analista para checar, com olhos humanos, todas as denúncias de pornografia infantil que a IWF recebe; 2. A IWF - tal como outras hotlines - é desafiada pela necessidade de estimar com precisão a idade das crianças que vemos nas imagens; diante da hipótese de que um indivíduo retratado nas imagens possa ser um adulto, e a menos que existam provas de que se trata de uma vítima de abuso sexual (como provas policiais), não podemos fazer nada. [grife-se] 3. Que embora as imagens de abuso sexual infantil sejam ilegais em todo mundo, existem diferentes leis que regem esta definição em diferentes países. Em termos simples, não existe uma norma internacional". - Internet Watch Foundation, 20202 Sem adentrar, neste momento, na questão das definições e na qualificação do material (que será, caso submetido à hotline inglesa, analisado conforme a lei inglesa), o fato é que o problema da estimação da idade permanece - e, conforme demonstrado, com consequências graves. A ata notarial somada a expedição da certidão da Central do Registro Civil (CRC) pode certificar a idade e comprovar essa agressão ou crime digital, principalmente pela: a) a (auto) autoria do material b) a idade da vítima abriria, por fim, uma rota que se via até então como impensável: "PornHub, remova este vídeo - pois que quem confirma a idade é um oficial de fé pública."  O notário, em lavrando uma tal ata notarial (conforme se delimita em sequência), não só confere força jurídica ao pedido da vítima (cuja recusa sujeitará a empresa à legislação penal) como, simultaneamente, estoura a bolha de proteção jurídica chamada "dúvida" que os materiais de pornografia infantil - e principalmente os produzidos contra adolescentes, onde o problema da idade é ainda mais claro - viviam até então frente às políticas de remoção. Curiosamente, conforme Kristof e anteriormente um gráfico de 2015 emitido pelo próprio PornHub3 demonstram, os sites de conteúdo adulto têm um interesse baixíssimo em remover este conteúdo "duvidoso". Existe muita gente procurando por eles e, consequentemente, também muito dinheiro envolvido. "Teen" (adolescente) era, em 2015, a segunda palavra mais procurada no PornHub. Em uma edição anterior deste texto4, demonstrou-se o impacto positivo que uma ata notarial lavrada de modo a certificar a idade da vítima - com fé pública e por meio de uma certidão do registro civil - poderia ter para casos como estes. Não obstante, a hipótese delineada nestas duas edições volta-se para um caso ainda mais particular: os arquivos ainda não publicados, autoproduzidos e enviados para um terceiro, cujo destino é desconhecido e finalmente sobre os quais as vítimas podem pedir, conforme demonstrado pela Internet Watch Foundation5, uma tutela preventiva para os canais de denúncia. Afinal, se o canal de denúncias de pornografia conhece o conteúdo antes da plataforma hasheada em questão (como é o caso do PornHub)6, então este arquivo é removível no próprio ato do upload, sendo a conta que descarregou o conteúdo na plataforma imediatamente banida. O desenho ideal está, então, em antecipar-se as plataformas e fazer com que o arquivo de pornografia infantil chegue com anterioridade nos algoritmos de remoção - ao invés de fazer com que os materiais de pornografia infantil sejam encontrados, removidos e hasheados por algum analista (no caso, do PornHub) após serem publicados na plataforma. Parecer 44 da Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo, de 30 de setembro de 2021 Apenas um dia após a publicação da primeira edição deste texto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo profere um Parecer que serve a regular, justamente, a questão da ata notarial em matéria de pornografia infantil (CG 44/2011, de 30 de setembro de 2021) onde regula-se, principalmente, a publicidade mitigada do livro que contenha: a) imagens ou b) descrições de imagens de pornografia infantil (148.6 - "O Tabelião adotará medida de controle de acesso ao livro que contenha ata notarial com a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica, para o que poderá manter livro exclusivo para essa espécie de ato notarial").  Além disso, estipula que "148.7 É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo". Sobre este ponto que pretende arguir justamente, desde o início, por estes autores, que a  conversão em hashes resolverá, por fim, o problema das imagens de pornografia infantil anexadas em traslado ou certidões, substituindo-as por um valor alfanumérico capaz de provar, por fim, a autenticidade da mesma frente, eventualmente, à um canal de denúncia (ainda que internacional) para o qual se solicita o ingresso da imagem às bases de dado detecção e remoção automática de conteúdo. No mais, entende-se que para o fim proposto - cujo principal objetivo permanece sendo a prova da idade da vítima e mitigação da publicidade das imagens  - a mera conferência de que o material constitui pornografia infantil nos termos do Art. 241-E do Código da Criança e do Adolescente (" qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais") cumpre, por fim, já a finalidade da ata notarial e a expedição da certidão do registro civil das pessoas naturais. Por essa razão, vê-se por desnecessária qualquer definição minuciosa - tal como a que ocorre, atualmente, com a Cybertips (comunicações de pornografia infantil originárias nos Estados Unidos - ex. material encontrado no Facebook - e  cujo detalhamento justifica-se, tão só, pois que a consulta às imagens  somente é aberta às polícias nacionais e internacionais via solicitação, o que permite que as polícias comprovem, em primeiro plano, a "tipicidade das descrições" antes de solicitar o acesso eletrônico à estes materiais. Um mero controle de acesso, por fim). No mais, a proposta destes autores é tocar justamente os canais de denúncia - pois que o interesse prioritário é, antes do que um de aplicação da lei penal, um de tutela do menor vulnerável. De forma breve, visa-se a remoção e a detecção preventiva destes materiais através de uma inserção em uma base de dados adequada para tanto. Menciona o referido Parecer 44, que  "148.7  É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo". Percebe-se aqui a falta, justamente, dos canais de denúncia (inclusive, do canal de denúncia brasileiro SaferNet Brasil, parceiro da Linha Internacional dos Canais de Denúncia de Pornografia Infantil (INHOPE - "46 canais de denúncia, 42 países e uma missão"- no Brasil). Ainda que o INHOPE não possua hoje uma base de dados de hash, incluir os materiais conhecidos via ata notarial no escopo das linhas de denúncia é de suma relevância para que estes possam ser abraçados por novas políticas de proteção lançadas, por fim, à nível de INHOPE. Todavia, ainda que o INHOPE não tenha a sua base própria de dados, todos os canais de denúncia hasheam estes materiais, enviando-os para anexo em bases de dados (de terceiros, como o caso da ICAAM7, a base de dados de pornografia infantil da Interpol) de remoção8. No mais, enxerga-se aqui uma potencial colisão de interesses entre a realização de uma representação penal e a simples constatação em ata notarial de um material de pornografia infantil - a qual deve servir, por fim, para um propósito não de persecução penal, mas sim de tutela, a fim mesmo de incentivar essa comunicação. A Internet Watch Foundation, ao instituir um canal para hasheamento de imagens de pornografia infantil auto-produzido, não condiciona e nem mesmo notifica as polícias sobre uma tal comunicação. Importante para o canal de denúncia é proteger a vítima, independentemente da vontade desta de reportar criminalmente o caso, que também poderá ser exercido em momento posterior. Aponta-se, assim, um ponto de discussão referente aos parágrafos do Parecer 44 da Corregedoria que instituem tal comunicação obrigatória - a qual pode, por fim, afugentar a vítima, causando com que ela simplesmente desista de pedir ajuda (especialmente, como nos casos dos materiais autoproduzidos, quando as imagens foram enviadas à um estranho ou quando falta, para o menor, o devido suporte emocional por parte dos responsáveis para estes casos). Especificamente, questiona-se os seguintes itens normativos: "148.4 O Tabelião de Notas encaminhará, ao Ministério Público e à Autoridade Policial que for competente para a apuração do fato, traslado da ata notarial que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, arquivando a prova da comunicação em classificador próprio, ou por meio eletrônico em arquivo que passará a integrar o acervo da serventia. 148.5 A ata notarial a que se refere o subitem 148.2 conterá, obrigatoriamente, a indicação do Boletim de Ocorrência que for apresentado pelo solicitante do ato, quando existir, ou a indicação de que o fato será comunicado pelo tabelião de notas para o Ministério Público e a autoridade policial".  A obrigação de comunicação obrigatória parece derivar, por fim, de uma abordagem voltada à materiais hospedados em sites online - casos em que os canais de denúncia, e não exatamente os Cartórios, deveriam estar nas linhas de frente. Afinal, os canais de denúncia (SaferNet Brasil, por exemplo) reportarão, necessariamente, os conteúdos às polícias. Envie-se, por fim, aos canais de denúncia que eles sim enviarão, no caso de URLs, o caso às polícias e solicitarão à remoção dos conteúdos. Os canais de denúncia precisam, necessariamente, entrar nesta discussão. É imprescindível mencioná-los: são eles, por fim, que coordenam as remoções. E, em um país que não pune a mera hospedagem de pornografia infantil (por falta de responsabilidade penal da pessoa jurídica) por URLs, os canais de denúncia - antes do que as polícias - deveriam ser, tanto para o caso dos URLs como para o caso dos materiais autoproduzidos, os protagonistas. Eis a proposta.  Provimento 100 do Conselho Nacional de Justiça de 26 de maio de 2020  Para o mundo jurídico, a mera menção "valor de hash" - conforme proposta na primeira edição deste texto - parece uma abstração matemática insolvível. No âmbito notarial e registral, este está regulado desde 26 de maio de 2020, em âmbito nacional  - alguns estados já tinham previsão, como por exemplo São Paulo, vide Provimento 22/2013 da CGJ/SP -  quando o Provimento 100 do CNJ menciona, em seu artigo 3º e em matéria de desmaterialização que "§ 3º A autenticação notarial gerará um registro na CENAD, que conterá os dados do notário ou preposto que o tenha assinado, a data e hora da assinatura e um código de verificação (hash), que será arquivado". A própria CGJ/SP no Parecer 239/2013-E9 do Provimento 22/2013 citado acima, sob relatoria do Antônio Carlos Alves Braga Junior e decisão de José Renato Nalini, então Corregedor Geral da Justiça, trouxeram de maneira didática a delimitação do tema "hash": O código hash é um resumo matemático decorrente da aplicação de um algoritmo, de conhecimento público, sobre um documento eletrônico. O resultado dessa operação é um código numérico único, ou que tem uma possibilidade desprezível de ser igual para dois documentos diferentes. É exatamente esse código que permite ao certificado digital funcionar tanto como verificador da autoria quanto da integridade. No processo de assinatura eletrônica, calculado o código hash, ele é anexado ao documento, que depois vem a ser encriptado. Para a verificação, o hash é recalculado e comparado com aquele que acompanha o documento. Se forem iguais, tem-se a certeza de que não houve alteração do conteúdo depois de certificado. Mesmo alterações de texto que nos sejam invisíveis, não o são para o algoritmo que gera o hash. Se um documento eletrônico foi modificado, em um único caractere que seja, o hash não mais será o mesmo. A solução encontrada pelo Colégio Notarial consiste no aproveitamento dessa tecnologia. Quando o notário gera um documento eletrônico e o assina usando a CENAD, o hash, é não só anexado ao documento, mas também arquivado. Em qualquer momento em que se queira fazer a conferência, envia-se o documento à Central (upload). Numa operação, que é automática, o hash é calculado e comparado com aquele que se encontra arquivado. A coincidência leva à confirmação da validade, num processo quase instantâneo. Não há armazenamento do documento propriamente dito, apenas do hash, o que oferece várias conveniências. Por ser uma informação muito leve, isto é, que consiste numa quantidade ínfima de bits, o armazenamento ocupa pouquíssimo espaço de memória, e o tráfego dessa informação é muito rápido. Por ser simples e rápido, esse método deverá difundir-se amplamente, em benefício da confiança nos documentos notariais eletrônicos. Eis o que se quer, também, em matéria de ata notarial em pornografia, tanto infantil como qualquer imagem que exponha a intimidade de uma pessoa: Converter as imagens em um valor alfanumérico cuja autenticidade possa ser checada sempre e quando se tenha também o arquivo na outra ponta. Em termos práticos, isso significa que um canal de denúncia de pornografia infantil estrangeiro ou as polícias, se em posse da imagem (condição lógica da autenticação) poderia, se aceita a proposta aqui feita, acessar eletronicamente a Central do E-notariado, https://www.e-notariado.org.br/notary - que contempla os cartórios brasileiros a fim de checar que, de fato, a imagem que possuem e está sob ata notarial previamente lavrada é, de fato, uma imagem produzida contra um menor de 18 anos, ou até mesmo de um absolutamente capaz que solicitou a constatação do conteúdo. E, em termos matemáticos, é sempre bom lembrar que hashes nada mais são que o princípio da criptografia, funções modulares altamente complexas, cujo princípio está, justamente, em não serem reversíveis. Ao inserir a imagem em um software de checagem (tal como é hoje o modelo dos softwares de detecção e remoção automática de pornografia infantil), se pode autenticar a imagem com uma previamente existente na base de dados. Todavia, através do valor de hash não se pode reverter a imagem, isto é um absurdo técnico. O modelo aqui proposto resolveria, por fim, a questão inscrita no Parecer 44 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. É dizer, que: "148.7 É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo".  No limite, o valor de hash - um velho conhecido da informática forense e, consequentemente, também das polícias especializadas em crimes de pornografia infantil - nada mais é que um valor alfanumérico que pode ser atribuído a todo e qualquer arquivo que se encontre dentro de um dispositivo informático. E, isso se dá, entre outros motivos, pelo fato de que dentro de um dispositivo informático tudo, desde letras, números ou mesmo imagens nada mais são que binários (0 e 1) traduzidos e transplantados para uma interface gráfica. Pois que o hash rastreia o arquivo entorno dos 0 e 1, qualquer modificação no arquivo ou mesmo a sua troca por um outro pode ser identificada pelo número de hash. Uma vez modificado o arquivo, ainda que por uma alteração mínima, o número de hash já não será mais o mesmo. Não sem razão o cálculo do hash do arquivo é, justamente, o método usado para autenticar, a nível de cartório, digitalmente um documento. Pois que os valores de hashes computam, exatamente, a forma em que os dados estão organizados em binários, é possível traduzir essas organizações de diversas maneiras - eis as chamadas cifras de hash. Não é necessário muito esforço para concluir, enfim, que a lógica por detrás dos hashes é a mesma daquela que existe por detrás da criptografia. Trata-se de traduzir uma imagem gráfica em um texto simultaneamente inelegível por humanos e autenticável por máquinas e que possa garantir, por fim, a autenticação de qualquer cópia do mesmo sempre e quando aquele que checa o valor de hash tenha, enfim, um segundo documento para comparar o valor de hash. Assim por exemplo, ao hashear com a cifra SHA256 a palavra "Pornografia Infantil", o resultado é o que se vê: Para fins de validação de documentos, é importante que ambos os documentos (tanto à verificar como o contido na base de dados para confirmação) sejam hasheados com a mesma cifra - fato este que é garantido, no âmbito notarial, pela própria plataforma CENAD. Como se observa, o cálculo do valor de hash pode ser feito através de ferramentas online (não recomendável para arquivos sensíveis) ou através de softwares específicos, tal como o software forense HashSum, um software gratuito e de fácil acesso que permite calcular, através de um click (como também demonstrado na imagem acima) o valor de hash de um arquivo. No mais, a tradução, através de um software, de conteúdos sensíveis tal como os de pornografia infantil para um valor alfanumérico permite, conforme se abordará adiante, trabalhar a ata notarial em matéria de pornografia sobre uma dupla publicidade:  primeira, que recai justamente sobre os valores de hash - e que não precisa, portanto, ser restrita e a segunda publicidade que recai, essa sim, sobre os livros notariais - onde o arquivo deverá então estar materializado. Ademais, trabalhar com os valores de hash ao invés dos arquivos em si permitiria, por exemplo, que se evitasse a materialização destas imagens em processos judiciais ao mesmo tempo em que se evitaria que, por via judicial, fosse exercida uma nova vitimização da criança ou adolescente vítima de pornografia infantil ou ainda de um adulto que sofreu com a exposição de sua intimidade - a qual teme muitas vezes não a representação judicial, mas a própria exposição das imagens a qual se tentava exatamente evitar. Os valores de hash resolvem, portanto, essa contradição e servem, assim, como um incentivo adicional para as denúncias - e principalmente às denúncias que partam da própria vítima. A simples conversão de um arquivo de pornografia infantil em um valor de hash, nos moldes do que é hoje feito em matéria de perícia informática forense, evitaria que as imagens em questão fossem expostas as pessoas, advogados e outros atores do sistema de justiça. No mais, parece ser relevante lembrar que o sistema de checagem da CENAD é nada mais do que um site que pode ser acessado em um browser através de qualquer lugar do mundo. Assim, a simples conversão de imagens de pornografia infantil autoproduzidas em valores hashes permitira, igualmente, que canais de denúncia estrangeiros que recebesse, via solicitação direta, um pedido de ajuda por parte das vítimas pudessem conferir, do outro lado do oceano, que aquele arquivo foi, de fato, oficiado por um notário e um registrador civil das pessoas naturais, à nível nacional quem confirmam, em pronunciamento que gozam de fé pública, a condição de menor de 18 anos da vítima. No mais, a partir do momento em que a imagem em questão se materializaria, ainda assim, em um livro notarial - ainda que de publicidade restrita-  isso permitira não só que a vítima pudesse apagar os tais arquivos de seus dispositivos móveis sem prejuízo à sua posterior tutela, mas, igualmente, que pudessem, anos depois, revisitar o arquivo e pedir, por fim, que este seja incluído nas bases de remoção. Sem a ata notarial, esses hashes ficariam, após a deleção do arquivo pela vítima, perdidos para sempre. Então, se os peritos forenses operam, de fato, com os hashes, qual a razão de se ver, ainda hoje, materiais de pornografia infantil anexados em laudos judiciais? Eis o caso: O perito, diferentemente do tabelião, não possui fé pública - razão pelas quais muitas das vezes se arquivam ainda, no processo, algumas amostras de pornografia infantil a fim de que possam provar, por fim, a materialidade mínima para uma condenação. Em revisando o Parecer 44/2021 da CGJ/SP, o que se propõe é que a publicidade da ata notarial seja analisada em dois aspectos: Em primeiro, à publicidade dos livros, que estariam por fim restritos (estes sim) somente à acessos de legítimo interesse. E, em segundo, a publicidade das certidões e informações emitidas via translado que, sem fazer constar o nome da vítima (por desnecessário), seria capaz de materializar uma imagem de pornografia via um valor de hash (seu exato correspondente matemático). Em assim fazendo, resolve-se o problema das imagens aqui potencialmente contidas se, contudo, restringir a publicidade do instrumento. Afinal, importante relembrar, ainda que os valores de hash sejam irreversíveis, estes são autenticados - sempre e quando se possua a tal imagem para fins de se proceder com a verificação, o que conseguiria, com um golpe de matemática, reservar as autenticações às polícias e canais de denúncia ao mesmo tempo que garante, por fim, a transparência plena da atividade notarial. Conclusão Os valores de hash já estão, no âmbito notarial brasileiro e em esfera nacional, implementados desde 2020 através do Provimento 100 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A materialização de imagens de pornografia infantil em valores de hash é a melhor alternativa em termos de proteção das vítimas, permitindo-as acionar diretamente e em seguida, as bases de dados de pornografia infantil à nível internacional a fim de solicitar que os arquivos em questão sejam também processados pelos mecanismos de identificação e remoção automática de conteúdo. No mais, a materialização de imagens de pornografia infantil em valores de hash previne, em processos judiciais, a revitimização gerada pela exposição destes arquivos. Essa mesma sistemática poderá ser utilizada por adultos que tiverem sua intimidade violada e necessitará de uma constituição de prova apta a solicitar a remoção do conteúdo indevido. A ata notarial em matéria de pornografia infantil deve ser independente da comunicação às autoridades policiais. É imprescindível que os Canais de Denúncia protagonizem esta discussão. São eles - e não as polícias - os agentes institucionalmente responsáveis pelas remoções. A conversão de arquivos de pornografia infantil em hash é, em âmbito internacional, simultaneamente parte das boas práticas em gestão de bases de dados sensíveis e motor propulsor das remoções automáticas feitas à base de inteligência artificial e automação. É imprescindível falar, também aqui, a linguagem técnica dos algoritmos a fim de tornar a tutela "acionável". A possibilidade de autenticação eletrônica dos materiais de pornografia infantil, protegidos pela sua transmutação em um valor de hash irreversível, garante a acessibilidade necessária para uma tutela internacional das vítimas - já que, a princípio, qualquer canal de denúncia, grande corporação ou polícia internacional em posse do material poderia provar, em face de uma requisição de remoção, que a vítima é sim menor de idade. Conforme demonstrado, esta era e é um dos maiores problemas enfrentados hoje pelas vítimas para a remoção de seus próprios conteúdos. A ata notarial constrói aqui, neste modelo, uma solução jurídica plausível.  A conversão de arquivos de pornografia infantil autoproduzidos em valores de hash em uma ata notarial apta a conferir não a descrição minuciosa da imagem, mas simplesmente a tipificação penal garantiria simultaneamente o respeito à moralidade pública exigida da atividade notarial, a publicidade exigida para este exercício e municiaria, por fim, a vítima com um instrumento jurídico que é por fim acionável em prol de sua própria (e aqui também auto) tutela. __________ 1 The Children of Pornhub: Why does Canada allow this company to profit off videos of exploitation and assault? Nicholas Kristof. New York Times. 4 de dezembro de 2020. 2 Andrew Puddephatt, 2020. Pornhub: Data out of context tells us nothing. Internet Watch Foundation. 15 de Dezembro de 2020. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 3 Pornhub's 2015 Year in Review. Pornhub Insights. January 2016. Acesso em: 9 de outubro de 2020. Disponível aqui. 4 Christofoletti, Carolina; Nosch, Thomas G, 2021. Como os cartórios brasileiros -Tabelionato de Notas e Registro Civil - podem resolver, a nível internacional, por meio Ata Notarial e a consulta na Central do Registro Civil o problema enfrentado pelos Canais de Denúncia no combate a pornografia infanti. IBDFAM. 29 de setembro de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 5 IWF and Childline launch tool to help young people remove nude images shared online. INHOPE. 5 de julho de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 6 Child Sexual Abuse Material Policy. PornHub HelpCenter. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 7 What is ICCAM & Why is it important?. INHOPE. 24 de fevereiro de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 8 Where your reports go. INHOPE. 17 de março de 2020. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui. 9 Disponibilização: Quinta-feira, 25 de Julho de 2013 Diário da Justiça Eletrônico - Caderno Administrativo São Paulo, Ano VI - Edição 1462 9. Acesso em 19/10/2021.
"Uma hora. Isto é tudo que leva para remover, após a resposta à sua denúncia, as imagens da vítima". Estampada em letras garrafais na página principal do que se constituiu hoje, internacionalmente, como um dos maiores canais de denúncia de pornografia infantil1 em termos de volume mundial, a Internet Watch Foundation (IWF) lançou, junto com esta campanha de denúncia baseada no impacto de uma notificação deste tipo, uma proposta que ecoou mundo afora: Os ingleses abririam, pela primeira vez, um canal exclusivo de comunicação que permitiria às vítimas de pornografia infantil enviarem diretamente seus materiais aos responsáveis por removê-los da Internet.  A proposta da IWF é a seguinte: Em observando uma tendência crescente na quantidade de materiais de pornografia infantil autoproduzidos (selfies em câmeras de celular, por exemplo) reportado aos analistas ingleses (só em 2020 foram reportados - excluídos, portanto, os materiais ainda não encontrados - cerca de 68.0002 conteúdos de pornografia infantil nessa condição), a hotline inglesa se lançaria em tutela da vítima: Envie-me o material, a IWF o hasheará (atribuirá a este um identificador alfanumérico) e o conteúdo entrará nas listas de detecção automática de grandes plataformas como Facebook, Instagram, Google e outros.  A IWF toca aqui, com uma proposta deste tipo, um ponto nevrálgico do problema: Os materiais autoproduzidos são originários, não raro, em plataformas protegidas por criptografia de ponta a ponta (como, por exemplo, o Whatsapp). Em assim sendo, é bastante difícil - se não quase impossível no estado atual da técnica: veja a discussão entorno dos detectores da Apple - acessar, de maneira rápida, os materiais autoproduzidos: Por serem conteúdos novos (isto é, ainda não vistos pelos canais de denúncia e polícias e, portanto, sem os identificadores alfanuméricos), muitas plataformas simplesmente, ainda quando as coisas estão ainda sem qualquer proteção criptográfica, não o enxergam. One hour - that's all it can take to remove victims' images after responding to your report - Internet Watch Foundation  Os ingleses captaram, de maneira extraordinariamente rápida, a questão: A fim de proteger a vítima em crimes de pornografia infantil - a qual vive em uma constante ansiedade com relação à pergunta de se as imagens estão em algum lugar ou não - é necessário hashear essas imagens o mais rápido possível. E, em assim sendo, é necessário criar um canal de comunicação direto com as vítimas. Não apague os materiais: Traga-o à IWF, que as hotlines vão hashear, antes mesmo destas imagens serem publicadas, este material. E, se em algum lugar estas fotos e vídeos foram postados, os leões digitais vão rugir alto: Dentro das corporações americanas, estes "achados" são encaminhados para posterior apreciação pelas polícias.  Qual é, então, o problema exato do Reino Unido? Que, apesar da estratégia brilhante encontrada pelos seus canais de denúncia, provar a idade da vítima é ainda um novelo que a IWF não conseguiu desenrolar.  Eis a proposta brasileira: Chamar, nesta luta contra a pornografia infantil, também os cartórios de uma maneira geral. Os cartórios de registro são, por fim, os capazes de comprovar, por certidão ou consulta digital, revestida fé pública, a idade da vítima. Na mão dos tabeliães, todavia, a ata notarial tem - se alguma vez conseguir abandonar a perspectiva exclusivamente civilista que foi erguida no entorno desta - a arquitetura ideal para resolver, à nível internacional e através de um instrumento nacional, o desespero vivido pelas vítimas brasileiras em crimes de pornografia infantil.  A ata notarial tem, é verdade, o poder de identificar, através de um valor de hash, uma imagem de pornografia infantil. E, mais ainda, em plataformas encriptadas - se as vítimas puderem, por fim, chegar até os tabeliães. Os tabeliães de notas, familiarizados como ninguém com as descrições, são capazes de descrever em um instrumento de fé pública a característica do material e atribuir a ele um valor alfanumérico - um documento que, de maneira revolucionária, pode ser simplesmente anexado à um canal de denúncia a fim de pedir: Remova-o, se por vez encontrá-lo.  Uma ata notarial em matéria de pornografia infantil (conforme se propõe) não precisa contar um arquivo de pornografia infantil: basta o hash e a descrição do arquivo. Uma ata notarial em tempos de proteção de dados e ciente da necessidade de proteger essa vítima não precisa conter o nome desta, nem sua imagem: basta que os registradores confirmem a idade da vítima por meio da consulta da CRC (Central do Registro Civil).   Por ser pública, a ata notarial feita no Brasil pode ser acessada no Reino Unido: Foi lavrada por um oficial nacional que detém fé pública. Assim, convoca-se os cartórios nesta luta contra a pornografia infantil, e do lado da vítima: Propõe-se, pela primeira vez então, a lavratura de uma ata notarial em matéria de pornografia infantil.  Um oficial público, com um múnus público, exercendo um poder de justiça pública em prol das vítimas de pornografia infantil. Introduz-se assim a proposta brasileira. É por meio de uma ata notarial lavrada conforme o modelo proposto, o Brasil conseguiria - pela primeira vez- alçar uma tutela internacional das vítimas também brasileiras.  Os arquivos de pornografia infantil, vistos, descritos, com seus os valores de hash extraídos e refletidas, posteriormente, em um formato puramente textual por um tabelionato de notas brasileiro em um documento de fé pública seria, por fim, o pedido de ajuda que as vítimas brasileiras levariam, via e-mail, aos canais de denúncia internacional.  A ata notarial tem o poder de chegar, rapidamente, às bases de dados internacionais - cujos analistas ingleses, belgas, canadenses, brasileiros - qualquer nacionalidade que seja! - Terão finalmente uma base jurídica mais estável para incluir, lastreados pela fé pública do tabelião brasileiro, este hash de pornografia infantil brasileira nas bases de dados que sustentam hoje o algoritmo de remoção e detecção automática de conteúdos ilegais das grandes corporações. Uma ata notarial, que tem o poder de tutelar, finalmente, as vítimas de pornografia infantil no Brasil. *Carolina Christofoletti é bacharela em Direito pela USP, Mestranda em Criminalidade Cibernética (Universidad de Nebrija) e Compliance Criminal (UCLM). Legal Fellow na International Justice Mission (IJM) Filipinas.  Chefe da Unidade sobre Materiais de Abuso Sexual Infantil pela Anti-Human Trafficking Intelligence Initiative (ATII), advogada e consultora. **Thomas Nosch Gonçalves é mestre em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em direito notarial e registral pela EPM, ex-advogado e atualmente Registrador Civil e Tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, Município de Pirassununga em São Paulo. __________ 1 Em observância a terminologia sugerida pela ECPAT, a nomenclatura correta é Materiais de Abuso Sexual Infantil. Não obstante, a fim de manter consistente a terminologia legal empregada no país, refere-se ainda à estes materiais como sendo materiais de pornografia infantil - fazendo, porém, a devida ressalva terminológica. 2 The Annual Report 2020. Internet Watch Foundation. Self-generated Child Sexual Abuse. Acessado em: 27 de setembro de 2020. Disponível aqui.
1. Nota Prévia ¾ O actual Código Civil português,  no art. 2028.º, impõe, como regra, a proibição dos pactos sucessórios, ao estatuir: " 1. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta. 2. Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos na lei, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 946."  O caráter bilateral do contrato que titula a sucessão contratual e a consequente dependência do mútuo consentimento dos contraentes, para que ocorra a modificação ou desvinculação ao acordado, tem sido um dos principais motivos da proibição deste tipo de sucessão, uma vez que tem predominado o entendimento segundo o qual o legislador deve:  i) assegurar ao autor da sucessão, até ao fim da sua vida, a liberdade de disposição por morte;  ii) garantir ao sucessível, após a morte do de cuius, a liberdade total na tomada de decisão de aceitar ou repudiar a sucessão. Até à Lei 48/18, de 14 de Agosto, o ordenamento jurídico português apenas  admitia  a celebração válida de pactos sucessórios institutivos, consubstanciadores de doações mortis causa em favor de um dos nubentes ou em favor de terceiro, pelas quais os beneficiários eram, e são, instituídos herdeiros ou nomeados legatários dos disponentes em convenção antenupcial (art. 1700.º, n.º 1, alíneas a) e b)).    De facto, no ordenamento juridico português, desde as Ordenações Afonsinas1, eram vedados os pactos sucessórios renunciativos. Mas, a Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, veio alterar o Código Civil introduzindo no elenco do art. 1700.º do Código Civil uma nova exceção à proibição dos pactos sucessórios - um pacto renunciativo admitido em termos limitados2. Em concreto:a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário, pelos nubentes, em convenção antenupcial3-4. A par desta nova excepção à regra da proibição dos pactos sucessórios, a Lei em apreço também alterou o Código Civil ao fixar um regime especial de redução por inoficiosidade, aplicável às liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante (n.º 2 do art. 2168.º) e ao consagrar, a favor do cônjuge renunciante, um conjunto de direitos sobre a casa de morada de família e respetivo recheio, sem lhe retirar o direito de apanágio. Para a análise e compreensão das alterações introduzidas no Código Civil,   cumpre, previamente, recordar a posição sucessória que legalmente é atribuída ao cônjuge, caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes reconhecida. É o que faremos de seguida. Só depois analisarmos: os pactos sucessórios renunciativos previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º; a solução especial prevista no n.º 2 do art. 2168.º; a proteção sucessória que é legalmente prevista para o cônjuge sobrevivo renunciante e que respeita ao direito de habitação da casa de morada de família e ao direito de uso do respetivo recheio.  2.  A posição sucessória que legalmente é atribuída    ao cônjuge  - caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes é reconhecida pela Lei n.º 48//2018, de 14 de Agosto - foi a fixada, essencialmente, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro ¾ Através do  diploma que procedeu à designada reforma de 77, a posição sucessória    do cônjuge foi muitíssimo fortalecida5. Efectivamente, a partir de     então, o cônjuge tornou-se herdeiro legitimário (art. 2157.º) e passou a integrar as primeiras classes dos herdeiros legítimos, sendo  chamado à sucessão legitimária e legítima do de cuius, a par dos descendentes se os mesmos existirem, ou dos ascendentes, no caso de não existirem descendentes,  ou sozinho, na  falta de descendentes e ascendentes. Podendo tal, destaque-se, influenciar na extensão da quota indisponível (1/2 ou 2/3) e da quota disponível  (1/2 ou 1/3). E, isto, independentemente do regime de bens do casamento, ou seja, o cônjuge sobrevivo tornou-se herdeiro, nos termos acabados de referir, quer o casamento seja celebrado no regime da comunhão geral de bens, no regime da comunhão de adquiridos, no regime da separação - por escolha ou por imposição legal -, num regime em misto ou num regime atípico. Acresce que, em benefício do cônjuge sobrevivo - independentemente do regime de bens do casamento -, o legislador em determinados casos previu o afastamento da regra da divisão por cabeça. Assim, em caso de concurso com mais de três descendentes, ao cônjuge caberá ¼ da legítima global, na sucessão legitimária, e ¼ da quota disponível que haja a partilhar, segundo as regras da sucessão legítima (art. 2139.º, n.º 1, 2.ª parte).  Por seu turno, em caso de concurso com os ascendentes, a divisão é sempre desigual, cabendo ao cônjuge  2/3 e aos ascendentes 1/3  das quotas  - legitimária e legítima  - a partilhar (art. 2142.º, n.º 1). Com a reforma de 77, foram também consagradas, a favor do cônjuge sobrevivo, as atribuições preferenciais previstas no art. 2013.º-A e seguintes. Ou seja, o direito a ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso  do respetivo recheio (para concretizar a parte que lhe cabe como herdeiro legitimário e a meação que lhe caiba no património comum - quando exista). Tendo-se mantido o direito de apanágio, consagrado no art. 2018.º6. Por fim, não obstante a polémica doutrinal, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, o cônjuge não está sujeito à colação e ainda beneficia da igualação7.  2.1.   Crítica à posição sucessória que é legalmente atribuída    ao cônjuge não renunciante ¾ A posição sucessória do cônjuge, nos termos em que foi reforçada pela Reforma de 77, à época, não mereceu o aplauso de toda a doutrina portuguesa e, com o decurso dos anos, passou a merecer duras críticas. De entre elas destacamos as seguintes:  um estatuto sucessório reforçado, pode constituir um entrave à celebração de um (novo) casamento, nomeadamente por quem já tenha descendentes (sobretudo se não forem comuns), na verdade, atribuindo-se ao cônjuge o direito a ser encabeçado no direito  de propriedade sobre os bens do consorte falecido, gera-se a possibilidade de os bens integrados no património hereditário mudarem de linha familiar    (de sangue), em detrimento da proteção da troncalidade8; a protecção concedida ao cônjuge sobrevivo, se esteve em consonância com um quadro social passado, de maior dependência do casamento, revela-se hoje desconforme com a atual realidade emancipatória dos cônjuges e com a centralidade que as relações entre pais e filhos têm vindo a assumir; em tempos em que o casamento vale o que valerem os cônjuges não parece haver razões que justifiquem que o casamento "valha necessariamente uma herança"9. 3. Os pactos renunciativos recíprocos previstos no art. 1700.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil  ¾ Os pactos renunciativos recíprocos são actos que pressupõem a participação dos dois nubentes, que neles intervêm como partes. Em causa estão duas declarações negociais que encontram a sua causa uma na outra e convergem no sentido da formação de um contrato (sucessório)10.   A intervenção de cada um dos  esposados, no âmbito desta estipulação, dá-se como parte negocial que, em simultâneo, renuncia e aceita a renúncia da outra parte. Portanto, estamos longe de um negócio jurídico unilateral, como ocorre na renúncia em geral. O efeito jurídico imediato dos pactos em apreço é o de impedir a designação sucessória como herdeiro legitimário11.  3.1.  Requisitos de validade dos pactos sucessórios renunciativos previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c)  ¾ A lei faz depender a validade da celebração dos pactos sucessórios renunciativos, previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c),  da reunião cumulativa do seguinte conjunto de requisitos: i. A celebração do casamento dos renunciantes sob o regime de separação de bens (art. 1700.º, n.º 3) ¾ O legislador português entendeu que o interesse em excluir a produção de (certos) efeitos sucessórios decorrentes do estatuto do cônjuge só merece tutela quando, no plano     matrimonial, vigore - por escolha ou imposição (nos termos do art.1720.º do CC) - aquele regime de bens    que envolve maior autonomia patrimonial entre os cônjuges12. ii. A reciprocidade da renúncia ¾  Apenas se admite a validade do pacto renunciativo entre nubentes quando a renúncia é recíproca. A exigência da reciprocidade da renúncia resulta expressamente da letra do art. 1700.º, n.º 1, al. c). O requisito da reciprocidade explica-se sobretudo pelo princípio da igualdade entre os cônjuges - proclamado no art. 36.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e pela diretriz imposta pelo art. 1671.º, n.º 1 do Código Civil: "o casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges" - e visa impedir desequilíbrios patrimoniais entre os cônjuges. No entanto, bem sabemos que só um dos fenómenos sucessórios (o do cônjuge que morra em primeiro lugar) será marcado decisivamente pela renúncia, já que quanto ao outro (o do consorte que faleça em segundo lugar), o não chamamento sucessório resultará da prévia dissolução do casamento pela  morte que, consequentemente, extinguirá o estatuto de cônjuge. Por outra via, apesar da reciprocidade da renúncia, a ordem das mortes determinará o real significado do ato sucessório renunciativo efetuado ao  abrigo do art. 1700.º, n.º 1, al. c). Em síntese, em termos práticos, só um dos cônjuges poderá suceder ao outro e, portanto, haverá uma inevitável unilateralidade. Acresce que, dados sociológicos indicam que, num casamento heterossexual, com frequência, a mulher é o cônjuge sobrevivo. Na verdade, nas últimas cinco décadas, as informações demográficas existentes, permitem chegar à conclusão de que existe uma diferença  de cerca de seis anos na esperança de vida entre homens e mulheres, em favor destas. Ora, tal realidade pode,  também em termos práticos, desequilibrar a renúncia recíproca. Por fim, a lei prevê, no art. 1707.º-A, n.º 1, a  possibilidade de a renúncia ser condicionada em termos unilaterais13, à sobrevivência ou não de sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas. O que, obviamente, pode perturbar a concretização da efetiva bilateralidade dos efeitos jurídicos produzidos pelo pacto renunciativo e, consequentemente, colocar em causa o princípio da  igualdade que presidiu à redação do art. 1700.º, n.º 1, al. c). iii. As exigências de forma e de tempo de celebração ¾ Prevêem-se, também, requisitos de forma, de publicidade e de tempo, que resultam da exigência de o pacto renunciativo ter de ser integrado a convenção antenupcial14. A saber: ¾  Quanto à forma, o pacto renunciativo deve constar de    convenção antenupcial celebrada em cartório notarial, por escritura pública, ou nas conservatórias do registo civil, por meio de declaração prestada perante conservador ou oficial de registo em que o aquele delegue essa competên cia (art. 189.º, n.º 1 do Código de Registo Civil). Da inobservância da forma resulta a nulidade da convenção antenupcial e, portanto, do pacto renunciativo nela contido, nos termos do art. 220.º, beneficiando os cônjuges do estatuto sucessório privilegiado. ¾  Quanto à publicidade, para que as estipulações contidas nas convenções matrimoniais produzam efeitos jurídicos em relação a terceiros (art. 1711.º, n.º 1 do Código Civil e art. 1.º, n.º 1, al. e) do Código do Registo Civil), e de entre elas, o pacto renunciativo, hão de ser susceptíveis de por eles serem conhecidas, mediante a publicidade registal. ¾ Quanto ao tempo, a faculdade, conferida pelo art. 1700.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, só pode ser exercida antes da celebração do contrato de casamento dos nubentes renunciantes, devendo ser respeitado o lapso máximo  de um ano de antecedência em relação a esse momento, sob pena de caducidade do ato (art. 1716.º do Código Civil). Consequentemente, os cônjuges que celebraram casamento antes da entrada em vigor desta lei estão desprovidos desta faculdade e aqueles que, podendo recorrer a esta faculdade, não o fizeram, já não poderão  realizar um pacto renunciativo, mesmo que, por exemplo, venha a ocorrer o nascimento ou o reconhecimento de um filho15.  4. As liberalidades a favor do cônjuge renunciante e a redução por inoficiosidade - a solução do novo n.º 2 do art. 2168.º do Código Civil  - A lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, alterou o art. 2168.º do Código Civil, sob a epígrafe "liberalidades inoficiosas", introduzindo-lhe um n.º 2, onde se pode ler: "Não são inoficiosas as liberalidades a favor do cônjuge sobrevivo que tenha renunciado à herança nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º,  até à parte da herança correspondente à legítima do cônjuge caso a renúncia não existisse". Este preceito legal visa atenuar os efeitos jurídicos associados à celebração do pacto renunciativo entre nubentes. Concordamos, portanto, com Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado 84/18 STjSR-CC, de 15 de Novembro de 2018, no qual se pode ler "a razão de ser desta norma consiste em permitir que, por via de liberalidades entre os cônjuges - que, contudo, não são necessariamente recíprocas - possam ser mitigados os efeitos da renúncia antecipada à condição de herdeirolegitimário do outro cônjuge (.)"16. Ou seja, esta norma cria uma espécie de escudo protetor, que blinda as liberalidades feitas a favor do cônjuge renunciante, contra a redutibilidade por  inoficiosidade até à medida correspondente à legítima subjectiva a que teria direito caso a renúncia não tivesse ocorrido. O mesmo é dizer que as liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante, desde que sejam de valor igual ou inferior à legítima subjectiva a que teria direito, se não houvesse renunciado, não podem ser reduzidas por inoficiosidade. Cria-se, assim, uma legítima subjectiva virtual a favor do cônjuge renunciante. Consequentemente, a legítima dos herdeiros legitimários não será preenchida  à custa das liberalidades feitas em benefício do cônjuge sobrevivo renunciante, dentro do perímetro fixado no n.º 2 do art. 2168.º, a saber: o montante da legítima subjectiva do cônjuge caso a renúncia não tivesse ocorrido. Se a liberalidade a favor do cônjuge renunciante ultrapassar o valor da legítima virtual, o excesso será suscetível de   redução, como acontece com as demais liberalidades que excedam a quota disponível, aplicando-se as regras e ordem previstas no art. 2171.º e ss.17 Em consequência da aplicação do art. 2168.º, n.º 2, no limite, ocorrerá a reposição do resultado patrimonial que se  verificaria se não tivesse sido celebrado o pacto sucessório. Ou, por outra via, a aplicação do art. 2168.º, n.º 2 permitirá uma  reversão (total ou parcial) dos efeitos do pacto renunciativo.  Os herdeiros legitimários (os que concorreriam com o cônjuge se ele não tivesse renunciado) receberão sempre pelo menos o que receberiam se não tivesse havido renúncia. 5.       A Proteção Sucessória Legalmente Prevista para o Cônjuge Sobrevivo Renunciante  - Em primeiro lugar, ao consorte sobrevivo é atribuído o direito de habitação do imóvel onde se situava a casa de morada de família e o direito de uso sobre o respetivo recheio (n.os 3 a 6 e 10 do art. 1707.º-A,)18.  Em causa estão dois direitos reais menores intuito personae previstos nos art. 1484.º e ss. do Código Civil19. A duração destes direitos corresponderá, em regra, a cinco anos20. Mas, se o cônjuge sobrevivo tiver completado sessenta e cinco anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação da casa (não o direito de uso) será vitalício21-22. Findo o período,  por que o cônjuge sobrevivo renunciante beneficia do  direito real de habitação, é-lhe reconhecido o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado. O cônjuge sobrevivo poderá, portanto, exercer um direito potestativo à celebração do contrato de arrendamento (n.º 7 do art. 1707.º-A). Direito este que se impõe ao(s) sucessível(is) que venham a adquirir o imóvel     , a menos que este(s) satisfaça(m) os requisitos legalmente exigidos para a denúncia, pelo senhorio, do contrato de arrendamento para habitação23. Os termos do contrato de arrendamento  devem ser estipulados por negociação das partes, à luz das condições gerais do mercado. Mas, na ausência de acordo, o tribunal pode ser chamado a     intervir para definir os termos contratuais, após audição dos interessados (n.º 8 do art. 1707.º-A)24. Acresce que, enquanto o contrato não se encontrar celebrado, o cônjuge pode permanecer no imóvel, com base no direito pessoal de gozo legalmente previsto na parte final do n.º 7 do art. 1707.º-A25.   Na hipótese de o contrato de arrendamento já ter sido celebrado, ao abrigo do disposto na referida disposição legal, antes do imóvel ser alienado a um terceiro, o cônjuge sobrevivo pode opor a sua posição contratual de arrendatário ao adquirente, à luz da regra "emptio non tollit locatum" (art. 1057.º do C.C.). Finalmente, prevê-se, no n.º 9, in fine, do art. 1707.º, em benefício do cônjuge     sobrevivo renunciante, durante todo o período em que o cônjuge o habitar e "a qualquer título", o direito legal de preferência em caso de alienação do imóvel onde se situava a casa de morada de família26. ______________ 1 As Ordenações Afonsinas, sob influência do Direito Romano aboliram os pactos renunciativos, não obstante gozarem da simpatia popular e de se encontrarem ao serviço dos valores da troncalidade. 2 Sobre o projeto de lei n.º 781/xiii - apresentado, por deputados do partido socialista, em 20 de fevereiro de 2018, que esteve na origem da Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, por todos vide: GUILHERME DE OLIVEIRA, Notas sobre o Projeto de Lei n.º 781/XIII - Renúncia recíproca à condição de herdeiro legal, disponível in: http://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/Notas-sobre-o-Projeto-de-Lei-781-XIII-.pdf; MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA e SOFIA HENRIQUES, Pensando sobre os pactos renunciativos pelo cônjuge - contributos para o projeto de lei n.º 781/XIII, Julgar Online, Maio de 2018; RUTE PEDRO, Pactos renunciativos entre os nubentes à luz do art. 1700.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil - análise do regime introduzido pela lei n.º 48/2018, de 14 de agosto, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2018 - I/II, 2019. 3 O art. 1700.º do Código Civil, com a epígrafe "Disposições por morte consideradas lícitas", passou a ter a redacção que, de seguida, se transcreve: "1. A convenção antenupcial pode conter: a) A instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário em favor de qualquer dos esposados, feita pelo outro esposado ou por terceiro nos termos prescritos nos lugares respectivos; b) A instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário em favor de terceiro, feita por qualquer dos esposados; c) A renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge. 2. São também admitidas na convenção antenupcial cláusulas de reversão ou fideicomissárias relativas às liberalidades aí efectuadas, sem prejuízo das limitações a que genericamente estão sujeitas essas cláusulas. 3. A estipulação referida na alínea c) do n.º 1 apenas é admitida caso o regime de bens, convencional ou imperativo, seja o da separação. 4 Sublinhe-se que, o projeto de lei n.º 781/xiii previa a possibilidade de renúncia recíproca, pelos nubentes, em convenção antenupcial, à posição sucessória de herdeiro legal (o que incluía, portanto, tanto a sucessão legítima como a sucessão legitimária) e não apenas à sucessão legitimária. 5 Saliente-se que, no direito português, os unidos de facto não são equiparados aos cônjuges, não sendo, designadamente, herdeiros legitimários ou legítimos. 6 Apesar de, com a reforma de 1977, o cônjuge ter ascendido à categoria de herdeiro legitimário e legítimo das primeiras classes manteve a proteção alimentar à custa dos rendimentos dos bens deixados pelo falecido que já se encontrava prevista na versão original do Código Civil de 1967. O art. 2018.º do Código Civil, com a epígrafe "Apanágio do cônjuge sobrevivo" estatui: "1. Falecendo um dos cônjuges, o viúvo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo falecido.  2. São obrigados, neste caso, à prestação dos alimentos os herdeiros ou legatários a quem tenham sido transmitidos os bens, segundo a proporção do respectivo valor. 3. O apanágio deve ser registado, quando onere coisas imóveis, ou coisas móveis sujeitas a registo." 7 Segundo o art. 2104º. do Código Civil, "Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação." O fundamento da colação é a vontade presumida do de cuius que, por via de regra (de acordo com o padrão do bom pai de família), quer tratar igualmente os descendentes que compartilhem a sua herança, por isso, o regime da colação previsto no Código Civil tem natureza supletiva.   O objectivo da colação é a igualação da partilha, no entanto, no regime supletivo, de acordo com o art. 2108.º n.º 2: "se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso são reduzidas as doações, salvo se houver inoficiosidades." Para haver colação, no regime supletivo, é necessário que o autor da sucessão, em vida, tenha feito doações ou efectuado despesas gratuitas (cfr. arts. 2104.º n.º 2 e 2110.º), a favor de um descendente, que à data fosse seu presuntivo herdeiro legitimário. E, por fim, que à sucessão hereditária concorra o descendente donatário e outro ou outros herdeiros legitimários (sejam ou não descendentes). 8 A preocupação de conservar os bens avoengos na linha familiar da sua procedência foi a que esteve, de forma declarada, subjacente ao projeto de lei n.º 781/xiii. 9 LEITE CAMPOS e MÓNICA MARTINEZ DE CAMPOS, Lições de Direito das Sucessões, p. 160 a 162, Coimbra, Almedina, 2017. 10 Atendendo à sua natureza bilateral, ao pacto sucessório, aplicar-se-ão as regras relativas à  falta e vícios de vontade, mutatis mutandis, previstas nos arts. 240.º a 257.º do Código Civil. Também à interpretação e integração se aplicarão as normas dos arts. 236.º a 239.º do Código Civil. 11 Sublinhe-se, no entanto, que a celebração de um tal pacto já produz alguns efeitos ainda na constância do casamento pois, na medida em que não se dará a designação sucessória correspondente, não se reconhecerá ao cônjuge as faculdades que os presuntivos herdeiros legitimários designados podem exercer, ainda em vida do de cuius,   para proteger a expetativa jurídica por si encabeçada. Designadamente, despidos da veste de "presuntivo herdeiros legitimários", os cônjuges não têm legitimidade para invocar a nulidade do negócio simulado, nos termos do art. 242.º, n.º 2, do Código Civil. Se a renúncia afastasse também a qualidade herdeiros legítimos, outras faculdades reconhecidas a esses sucessíveis,    designadamente a legitimidade para invocar a nulidade ou a anulabilidade de      disposições testamentários ou pactos sucessórios (arts. 286.º, 287.º e art. 2308.º), seriam eliminadas. 12 Temos muitas reticências quanto à opção feita pelo legislador, uma vez que a mesma além de colocar em causa a separação dos efeitos patrimoniais em vida e por morte, consubstancia um tratamento desigualitário, sem que haja fundamento aparente para impedir que os nubentes exerçam esta faculdade qualquer que seja o regime de bens. Recordamos que a renúncia prevista no art. 1571.º do Código Civil de Macau não está conectada à vigência de um específico regime de bens. 13 A possibilidade de aposição de condição na convenção antenupcial está em conformidade com a previ são normativa do art. 1713.º do Código Civil português e relaciona-se com a possibilidade prevista no art. 2229.º, do mesmo diploma legal, de a instituição de herdeiro ou nomeação de legatário se sujeitar a condição suspensiva ou resolutiva. 14 A exigência da inclusão do pacto na convenção antenupcial suscita a questão de se saber se o mesmo se encontra submetido ao princípio da imutabilidade previsto no art. 1714.º  15 No Código Civil de Macau o pacto sucessório deve ser incluído em convenção nupcial, mas esta  pode ser celebrada (e alterada) na constância da relação matrimonial (art. 1578.º). 16 Parece disponível in: rn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2018/pareceres-18-32-2018/downloadFile/attachedFile_3_f0/42_CC_2018-CC84-2018_STJSCC.PDF?nocache=1544179192.0 9. 17 Recordamos que o cônjuge sobrevivo que renuncie à qualidade de herdeiro legitimário, precisamente por isso - porque deixa de ser legitimário - , não está sujeito à colação, independentemente da posição que se assuma em geral quanto à polémica da sujeição ou não sujeição do cônjuge à colação. 18 Os n.os 3 a 6 e 10 do art. 1707.º-A têm a seguinte redação: "3 - Sendo a casa de morada de família propriedade do falecido, o cônjuge sobrevivo pode nela permanecer, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio. 4 - Excecionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar o prazo previsto no número anterior considerando, designadamente, a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa. 5 - Os direitos previstos no n.º 3 caducam se o interessado não habitar a casa por mais de um ano, salvo se a razão dessa ausência lhe não for imputável. 6 - Os direitos previstos no n.º 3 não são conferidos ao cônjuge sobrevivo se este tiver casa própria no concelho da casa de morada da família, ou neste ou nos concelhos limítrofes se esta se situar nos concelhos de Lisboa ou do Porto. (...) 10 - Caso o cônjuge sobrevivo tenha completado 65 anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação previsto no n.º 3 é vitalício." 19 O direito de uso concede ao seu titular o poder de usar e fruir a coisa. Já o direito de habitação consiste apenas no poder de usar uma casa de morada, não no poder de a fruir. O morador usuário não pode trespassar ou onerar o seu direito, como também não pode locá-lo. Saliente-se, por fim, que a concepção de família nesta matéria não corresponde ao conceito de família plasmado no art. 1576.º do Código Civil. Pois, tanto fica aquém de tal conceito - designadamente, não são considerados elementos da família os filhos maiores -, como vai além do mesmo - designadamente, são havidos como elementos da família os serviçais do titular do direito de uso ou do direito de habitação (cfr. art. 1487.º). 20 Sublinhe-se que, no caso da união de facto, os cinco anos constituem o intervalo temporal mínimo de duração dos direitos referidos, já que sempre que a relação de união de facto se tenha prolongado por mais de cinco anos, a duração dos direitos estender-se-á ope legis, coincidindo com a duração que aquela relação, em concreto, tenha alcançado. Tal não acontece no âmbito do regime agora em análise, mas não alcançamos razão que justifique esta diferença. 21 Recordamos que o art. 2103.º-A, diversamente, atribui ao cônjuge sobrevivo   não renunciante o direito a ser encabeçado nos direitos de uso e de habitação, vitalícios, da casa de morada de família. Assim, ao cônjuge não renunciante são atribuídos por lei direitos de aquisição, já ao cônjuge renunciante são atribuídos direitos reais de gozo. 22 Exercendo pela positiva os direitos reais de aquisição, o cônjuge sobrevivo, não renunciante, adquire - para concretizar a parte que lhe cabe como herdeiro legitimário e a meação que lhe caiba no património comum, quando exista - o direito de gozo de uso e/ou habitação que se pode(m) extinguir se findarem as necessidades do seu titular e da sua família. 23 De acordo com o estatuído no n.º 7 do art. 1707.º-A  :  "Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o cônjuge sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respetivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações." 24 No n.º 8 do art. 1707.º- A pode ler-se: "No caso previsto no número anterior, na falta de acordo sobre as condições do contrato, o tribunal pode fixá-las, ouvidos os interessados." 25 Vide nota 23. 26 Em caso de alineação a terceiro com violação do direito previsto no n.º 9 do art. 1707.º, o consorte sobrevivo pode  recorrer à ação de preferência, nos termos do art. 1410.º do C.C., para se sub rogar na posição jurídica do adquirente, com efeito retroativo, como se o ato de alienação tivesse sido celebrado ab initio entre ele e o alienante.
Introdução O objetivo deste opúsculo é oferecer uma base teórica para a construção de taxonomia dos elementos que compõem o conjunto informativo do Sistema Registral brasileiro, estruturando-os em classes e atributos para a configuração e especificação do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Algumas expressões frequentam a praxe cartorária no dia a dia da execução do mister registral - especialmente quando está em causa limitar, restringir ou modular este que é o direito real por antonomásia - a propriedade. O que significam, no âmbito do microssistema registral, expressões como gravames, ônus, limitações, restrições, encargos? Como estruturar o SREI partindo-se de expressões notoriamente plurívocas? Como qualificar os atos praticados no repositório eletrônico a ser criado? Como estabelecer um dicionário semântico que possa servir de base para a estruturação ontológica do sistema? Há vários recortes possíveis para a estruturação do código. Alguns foram visitados pela POC-SREI na série de colóquios qualificados como ontologias registrais1. No âmbito do NEAR-lab (Laboratório do Núcleo de Estudos Avançados do Registro Eletrônico), vimos trabalhando a ideia de constituir uma malha semântica que possa estruturar e qualificar os elementos que integram e são consubstanciais às inscrições prediais. É possível pensar na estrutura de dados que compõem o SREI como uma espécie de "grafo semântico" que interconecta os núcleos significativos do sistema - coisa, pessoas, instrumentos formais, direitos materiais, atos de inscrições etc. Falamos, então, no contexto do SREI, de ontologia objetiva, subjetiva, titular, legal-material (títulos em sentido material) e tabular. Para que se viabilize a "ressemantização" das várias expressões que povoam a inscrições, buscando criar um vocabulário controlado dos atos, suas classes e atributos, é preciso uma rápida visita aos sentidos aninhados nas várias expressões acima aludidas, investigando o que têm de singular, e, ao final, sugerir uma "expressão-curinga" que possa servir de base para acolher as várias espécies sob um gênero bem estabelecido, determinado e controlado. Gravames A ocorrência da expressão gravame se encontra de modo esparso na legislação brasileira. Mais recentemente, todavia, constatamos uma extensão de seu significado, como veremos logo abaixo. Essa extrapolação dos sentidos tradicionais se dá na exata medida em que espocam os simulacros registrais, com seus "gravames" e "entidades registradoras" que ainda não ostentam um nome próprio. Antes, porém, vamos conferir, num breve excurso, a origem da expressão e como ela se foi insinuando e acomodando nos textos legais. Primeiramente, vamos verificar que a expressão provém do latim gravamen, que terá se originado da gwere, raiz protoindo-europeia significando "pesado" (heavy). No sítio Etymology online encontramos a seguinte definição: "Trouble, physical inconvenience" (in Medieval Latin, "a grievance"), literally "a burden", from Latin gravare "to burden, make heavy, weigh down; oppress", from gravis "heavy". [.] Specifically, in law, "part of the accusation which weighs most heavily against the accused". A ideia que a expressão originalmente trazia consigo é a de fardo, problema, inconveniência física, algo que inflige peso. Muitas expressões se formaram a partir deste étimo - por exemplo, agravar, pesar, afligir, gravidade... O gravame era considerado, desde a legislação do Império, como uma infringência - nos casos de usurpação de jurisdição e de poder temporal, violência no exercício da jurisdição etc.2. Será interessante saber que a expressão possivelmente terá sido usada na legislação da primeira república no seu sentido lato de ofensa, afronta, agravo, injúria. Assim a encontramos nas consideranda do Decreto 212, de 22/2/1890. Neste interessante regulamento republicano, baixado por DEODORO DA FONSECA, visava-se desembaraçar a entrada e saída de pessoas no território nacional sem que fosse necessário portar um passaporte - uma "inutilidade vexatória". Dizia o dito decreto que a exigência legal do passaporte, além de estar em manifesta oposição a um regime de completa liberdade individual, é, também um "gravame imposto ao emigrante". O dito decreto seria revogado somente em 1991. De um ponto de vista mais estrito, porém, gravame é todo ônus que recai sobre direitos, restringindo o seu pleno exercício, gozo ou fruição. Diz-se, amiúde, que o gravame é um encargo, um ônus. No âmbito do processo civil, indica atos jurisdicionais constritivos, decorrentes de decisões judiciais (p. ex. § 1º dos artigos 791, inc. IV do 848, inc. V do 889, do § 2º do 901 etc. todos do CPC). Mais recentemente, contudo, o jurista se depara com uma extensão de significados, com o sentido aberto, espécie de "curinga", à falta de nome próprio. A expressão evoca formas atípicas de restrição - como, por exemplo, nos exemplos encontradiços na redação dada aos arts. 26 e 26-A da Lei 12.810/2013 (Lei 13.476/17). Os ditos "gravames", neste contexto, são restrições que incidem sobre ativos financeiros e valores mobiliários (art. 63-A da Lei nº 10.931/2004 e Decreto 7.897/13). Para acolher as novas modalidades de restrições aos direitos, criou-se um registro especial de ônus e gravames de ativos financeiros e valores mobiliários, regulamentado pelo Banco Central do Brasil, concebido especialmente para fins de "publicidade e eficácia" em face de terceiros (art. 26 da Lei 12.810/13). São as chamadas "entidades registradoras" que vicejam a latere do sistema registral3. Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
O instituto da multipropriedade sobre bens imóveis foi introduzido em nosso direito pela lei 13.777, de 2018, sanando antiga lacuna legislativa, já que tal instituto há muito  existia nos países mais avançados do mundo, gerando dinamismo ao setor imobiliário e propiciando a muitos o desfrute de bens que de outro modo não lhes seria possível. No entanto, nosso direito permaneceu carente de legislação criando instituto semelhante sobre bens móveis. Ou seja, os legisladores pátrios criaram tão somente a multipropriedade imobiliária, preferindo deixar para outra oportunidade legislar sobre a modalidade mobiliária. Nesse intuito, em 17/04/2019, o Deputado José Medeiros apresentou o PL 2419/2019, objetivando criar em nosso direito o instituto da multipropriedade mobiliária, o que foi iniciativa das mais louváveis, visto que tal instituto tem potencial para fomentar em muito a economia nacional, criando inclusive uma nova relação das pessoas com determinadas espécies de bens, principalmente os de maior custo de aquisição e manutenção, trocando o ter a propriedade exclusiva, pelo ter acesso à utilidade do bem pela propriedade compartilhada, quando necessário, e com grande economia, o que poderá criar uma miríade de novos negócios, e operar uma desrupção nos padrões de oferta e consumo de algumas espécies de bens, submetidos que sejam a regime de multipropriedade. Então, inspirados pela iniciativa do nobre Deputado José Medeiros, empreendemos estudos e muita meditação sobre o tema, chegando à conclusão de que seria possível oferecer uma complementação à excelente proposição do referido parlamentar. E foi com o objetivo de colaboração que desenvolvemos o que seria uma emenda ao PL 2419/2019, mas, como o período para a apresentação de emendas já se havia esgotado, resolvemos sugerir a apresentação do resultado de nossos estudos e meditações como um novo Projeto de Lei, consistente em disposições legais predeterminadas a criar e configurar, em nosso direito, o instituto jurídico da "multipropriedade mobiliária", inserindo as disposições de sua configuração no Código Civil Brasileiro. E fizemos isso na forma de condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, dotando-o de grande flexibilidade, de molde a lhe propiciar maior utilidade, e a possibilidade de poder ser aplicado a diversas espécies de bens móveis, tornando-se poderoso instrumento para a criação de novos negócios, em padrões inovadores, operando uma desrupção nos padrões de consumo de pessoas físicas e jurídicas, ao lhes possibilitar maior economia e eficiência no emprego de recursos para a obtenção da utilidade de bens que possam ser ofertados em regime de multipropriedade - e são muitos, o que se refletirá em redução de custos e dinamização da economia nacional, inclusive devido à criação de novas modalidades de empreendimentos. Assim, foi com esse intuito que, através do Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil - IRTDPJBrasil, procuramos o nobre Deputado Eli Corrêa Filho, que, demonstrando grande descortino, de pronto vislumbrou a importância e possibilidades da multipropriedade mobiliária, nos termos propostos, e se interessou em materializar nossas ideias apresentando o PL 3.801/2020, em 15/07/2020 (acessível através do link), pelo que lhe louvamos, o que em julho último completou um ano, motivando a redação do presente artigo. É que, desde que apresentado, em 15/07/2020, o PL 3.801/2020 praticamente não tramitou, sendo de se assinalar apenas sua apensação ao PL 2419/2019, e a posterior apensação a estes do PL 2872/2021, que tem por objetivo disciplinar o instituto da multipropriedade veicular, porque, em razão das dificuldades impostas pela pandemia do Covid-19, os trabalhos legislativos se concentraram no que se caracterizava como emergencial, ficando de lado importantes iniciativas legislativas, para momentos mais calmos e adequados à análise de proposições sobre temas que, embora importantes, não ostentavam a marca da emergência. Então, tendo avançado a vacinação em nosso país, vislumbrando-se a completa imunização da população brasileira até o fim do corrente ano, entendemos ser chegada a hora de se voltar a ventilar propostas não emergenciais, mas de grande relevância para a recuperação da economia, como acreditamos ser o caso das que visam à instituição da multipropriedade mobiliária em nosso país, graças à visão dos deputados José Medeiros, Eli Corrêa Filho e Lincoln Portela, que souberam reconhecer a importância e as possibilidades decorrentes da introdução do referido instituto jurídico em nosso direito. Conforme dissemos no início deste texto, a intenção foi aperfeiçoar o Projeto de Lei apresentado, em boa hora, pelo nobre deputado José Medeiros, atendendo ao que é mesmo premente necessidade da sociedade brasileira, inserindo no Código Civil Brasileiro e na Lei dos Registros Públicos os necessários dispositivos para adequá-las a criar o instituto do "Condomínio Especial de Multipropriedade Mobiliária". Multipropriedade essa que poderá incidir sobre diversas espécies de bens móveis (abrangendo, inclusive, a multipropriedade veicular, recentemente proposta, através do PL 2872/2021, pelo nobre Deputado Federal Lincoln Portela), com potencial para operar uma revolução nos usos e costumes da sociedade brasileira, facilitando a aquisição e o desfrute, por muitos, de bens a que não teriam acesso de outro modo. E, uma vez criado, o novel instituto jurídico beneficiará pessoas físicas e jurídicas, gerando um novo e pujante ramo de negócios, dinamizando e tornando mais eficientes muitos empreendimentos e, ao fim e ao cabo, a própria economia nacional, que receberá grande impulso para sua tão necessária dinamização, após o grande abalo causado pela pandemia do coronavírus. Cabe esclarecer, inicialmente, que a multipropriedade incidente sobre bens móveis, ou "multipropriedade mobiliária", nada mais é que um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, em que, a cada fração de tempo de propriedade exclusiva, corresponde o direito de seu titular usar, gozar e fruir, com exclusividade, do bem ou conjunto de bens multiproprietários, por determinado período, a cada ciclo temporal anual ou de outra natureza, a ser definido no memorial de instituição e respectiva convenção de condomínio, estando vinculada, a cada uma das referidas frações de tempo de propriedade exclusiva (unidades autônomas), uma fração ideal na totalidade do patrimônio condominial, que abrangerá os bens acessórios, úteis ou necessários ao desfrute dos bens principais, submetidos ao regime multiproprietário. Assim sendo, estabelecido o condomínio especial em multipropriedade de bens móveis, como a cada fração de tempo corresponderá direito de propriedade exclusivo sobre o bem, as mesmas poderão ser livremente alienadas ou gravadas de ônus reais por seus proprietários. Ou seja, em caso de venda ou dação em garantia, da fração de tempo de propriedade exclusiva em condomínio multiproprietário, não haverá a necessidade da anuência dos demais condôminos ou de a estes ser ofertado direito de preferência, como obrigatoriamente deveria ocorrer, se o que existisse fosse o condomínio comum. O novo PL, portanto, complementa o Projeto de Lei 2419/2019, criando não só o necessário arcabouço do instituto jurídico do condomínio especial de multipropriedade mobiliária, que não existe na atualidade em nossa legislação, mas, também, um imprescindível sistema para documentar e controlar a vida condominial e os direitos de propriedade autônomos sobre o patrimônio condominial. Outro ponto a se ressaltar é que a multipropriedade mobiliária não precisa se restringir ou vincular a certo e determinado bem, ao contrário do que acontece com a multipropriedade sobre bens imóveis, que necessariamente é atrelada a certo e determinado imóvel, cuja natureza, via de regra, é perene. A multipropriedade mobiliária incidirá sobre bem de determinada espécie, mas não se extinguirá pelo perecimento deste, porque poderá perdurar com a aquisição de bem substitutivo, da mesma espécie, se esta for a opção dos condôminos. E afigura-se de grande conveniência e adequação a possibilidade de que a multipropriedade mobiliária possa incidir não apenas sobre um único bem, mas também sobre um conjunto de bens de mesma espécie, quantitativamente configurado para, probabilisticamente, prover de modo mais efetivo a utilidade buscada pelos condôminos. E, segundo o proposto pelo PL 3801/2020, referida possibilidade consistirá em nada mais, nada menos que a reunião de várias multipropriedades sobre bens móveis da mesma espécie, com mesmos multiproprietários, cada qual detendo as mesmas frações de tempo como objeto de direito exclusivo sobre cada um dos bens, e submetidas, tais multipropriedades, a igual regramento (mesmo memorial de instituição e mesma convenção de condomínio), passando a constituir, assim, uma unidade com maior flexibilidade e capacidade para prover a utilidade almejada pelos multiproprietários, porque assim será reduzida a probabilidade de que não esteja disponível o bem quando da necessidade de seu uso por um condômino, denominando-se, tal agrupamento, "multipropriedade mobiliária sobre conjunto de bens" (ver §§ 1º e 2º do art. 1330-B, a ser inserido no CCB, pelo PL 3801/2020), para a qual se descortinam múltiplas possibilidades. Assim, com o fito de possibilitar o exposto, o PL estabelece uma necessária diferença entre o registro do bem móvel, que seguirá sendo feito nos mesmos órgãos em que são feitos na atualidade, e o registro da constituição do condomínio e das respectivas frações ideais sobre o patrimônio condominial, que passarão a existir após a necessária instituição do condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis. Ou seja, não haverá mudança do órgão onde são feitos, na atualidade, o registro de bens móveis, nem haverá duplicidade de registro desses bens, nem oneração maior dos seus proprietários. Apenas haverá a necessária separação da vida e atos relativos ao bem móvel, da vida e atos relativos ao Condomínio Multiproprietário. Os primeiros (os bens móveis) seguirão tendo seus registros feitos como sempre foram, apenas nos mesmos órgãos, ainda quando forem formalmente de propriedade de um condomínio multiproprietário, circunstância em que no respectivo assento de registro figurará o condomínio como o formal titular do direito de propriedade (a formal titularidade do direito de propriedade por condomínios especiais já é expressamente admitida no § 3º do artigo 63 da lei 4591/64 e nos §§ 1º e 2º do artigo 6º-A da lei 11.977/2009, bem como pela doutrina e jurisprudência - Obs: dizemos "formal" a titularidade do direito de propriedade pelo condomínio porque, como será visto mais adiante, em um condomínio especial todos os bens, de fato e de direito, pertencem aos condôminos). Já o condomínio em multipropriedade, sua instituição, os bens que o compõem, principais e acessórios, bem como os dados relativos a seus "multiproprietários", como nome, identidade, cpf, etc, necessariamente precisarão ser registrados na matrícula do condomínio, no cartório de Registro de Títulos e Documentos onde este estiver registrado, em conformidade com o previsto no artigo 1330-G, a ser introduzido no CCB, pelo PL 3801/2020. E, devido à modernidade, isso poderá ser feito eletronicamente a partir de qualquer lugar do país e do mundo, onde se encontrem os interessados, através da Central Nacional dos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos. É importante ressaltar que tal separação se faz necessária, já que o instituto jurídico da multipropriedade mobiliária, conforme ora proposto, incidirá não apenas sobre um único bem, que até poderá ser substituído, se vier a perecer ou se tornar inservível, mas, também e principalmente, sobre um "conjunto orgânico de bens", constituído como unidade hábil a melhor prover determinada utilidade aos condôminos, podendo deter, ainda, bens acessórios, de uso comum a todos os condôminos, necessários ou úteis às atividades condominiais. Então, reitera-se, se um bem for inserido como patrimônio de um condomínio em multipropriedade mobiliária, nada mudará quanto ao seu local de registro, continuando a ser registrado apenas no mesmo órgão de sempre, mas lá passará a estar registrado tendo como seu proprietário formal o "Condomínio Especial de Multipropriedade Mobiliária X". Ou seja, exemplificando, nos entes cadastrais e de registro de veículos automotores terrestres (detrans) seguirá sendo registrada a titularidade sobre sua propriedade, assim como as garantias, restrições e ônus judiciais ou administrativos sobre eles incidentes. Mas será impossível o condomínio multiproprietário se vincular permanentemente a um determinado veículo ou conjunto de veículos de mesma espécie, porque o mesmo poderá subsistir pela substituição, por outros de mesma espécie, do seu único veículo ou conjunto de veículos, quando estes se tornarem obsoletos, inservíveis ou perecerem. E, certamente, na maioria dos casos o condomínio multiproprietário não estará vinculado a um único bem, mas, ao contrário, abarcará vários bens de mesma espécie, submetidos a regime de "multipropriedade sobre conjunto de bens", além daqueles de uso comum dos condôminos, de outra natureza, necessários ou úteis às atividades condominiais, conforme acima já referido. Portanto, não pode haver dúvida quanto ao fato de que nenhum registro específico relativo a bem móvel poderá servir de suporte à instituição de um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis. Logo, a figura do condomínio multiproprietário sobre bens móveis transcende aos bens que sejam submetidos a este regime, não apenas porque estes poderão ser substituídos quando vierem a perecer, como também porque pode abarcar vários desses bens, e até outros, de natureza diversa, necessários ou úteis aos fins condominiais, não submetidos ao regime multiproprietário, que serão de uso comum a todos os condôminos, razão pela qual requer tratamento distinto e autônomo, em relação aos bens que integrem o patrimônio condominial e seus registros. Então, conforme proposto no PL nº 3801/2020, o condomínio em multipropriedade mobiliária, dada sua peculiaridade e necessária flexibilidade, não poderá prescindir de registro e controle próprios, o que deverá ocorrer nas serventias de Registro de Títulos e Documentos, às quais já são afetos os registros de atos e fatos condominiais e da maioria dos bens móveis (v. artigo 1330-G, a ser inserido no CCB, pelo PL 3801/2020). Exemplificando, os entes cadastrais, como a Capitania dos Portos, a Gerência Técnica do Registro Aeronáutico Brasileiro, da ANAC, e os Detrans, seguirão registrando, respectivamente, embarcações, aeronaves e veículos automotores terrestres, bem como as garantias, penhoras e outras restrições sobre tais bens, com apenas a única diferença de que, quando estes bens estiverem submetidos a regime de multipropriedade, em seu registro deverá figurar como proprietário formal o nome e demais dados identificadores do respectivo condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis (multipropriedade mobiliária). E quaisquer referências que sejam feitas a esses registros, nas matrículas dos condomínios multiproprietários, serão realizadas como anotações, ex officio, sem cobrança de emolumentos, portanto, como está previsto no texto do PL 3801/2020. Assim, não haverá dupla oneração dos usuários. Além do que, um condomínio especial em multipropriedade mobiliária envolverá muitas situações, fatos e atos jurídicos específicos, que refogem ao interesse e fim dos entes a que afetos o cadastro e registro das diversas espécies de bens móveis, sendo não só conveniente, mas absolutamente necessário, que o registro dos condomínios em multipropriedade mobiliária seja objeto de assentamento e controle próprios, onde toda a sua dinâmica "vida" social e legal seja documentada, em apartado da "vida" dos bens integrantes do seu patrimônio, que, é bom lembrar, poderão incluir bens principais, submetidos ao regime de multipropriedade, e acessórios, de uso comum dos multiproprietários, de natureza diversa daquela dos bens principais. E todos esses bens poderão mudar, ao longo do tempo, com a baixa de alguns e a inclusão de outros, razão pela qual nenhum registro de um bem móvel, em particular, poderia dar conta da vida do condomínio multiproprietário, que poderá abranger, de início ou posteriormente, vários outros bens. O sistema que está sendo proposto no PL 3801/2020 propiciará o surgimento de uma infinidade de novos negócios, na forma de condomínios multiproprietários sobre uma miríade de bens, visto que um cidadão ou uma empresa, sozinhos, podem não ter condições de comprar determinado bem de elevado custo de aquisição e/ou de manutenção, tais como aeronaves, embarcações, equipamentos hospitalares, máquinas de elevado custo, tratores, servidores para a constituição de data centers, caminhões, automóveis, motorhomes, satélites, equipamentos para construção civil e muito mais, mas, através de um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, poderão acessar a utilidade de tais bens, já que deles poderão dispor, na medida das suas necessidades, com menor imobilização de capital e dividindo custos de manutenção. Conforme se pode perceber, o regime de multipropriedade agregará muitos novos consumidores ao mercado, viabilizando coisas impossíveis na atualidade, porque o condomínio multiproprietário proverá a cada condômino o direito de uso e gozo de que realmente necessite, de determinados bens, sem o desperdício da ociosidade por boa parte do tempo, nem do custo de oportunidade do capital empregado para sua compra individualmente. Além do que, também os custos de manutenção serão diluídos por muitos, reduzindo consideravelmente a relação custo/benefício para obter e manter o desfrute da utilidade daquela espécie de bem, o que operará verdadeira revolução de práticas e hábitos na sociedade, resultando maiores pujança e eficiência da economia do país. Outro ponto a ser ressaltado é que a proposta ora apresentada segue a acertada opção do Código Civil Brasileiro, de não tentar equiparar a figura dos condomínios especiais a nenhuma espécie de pessoa jurídica, haja vista serem figura jurídica ímpar, já que nada mais são que o fato jurídico de um patrimônio compartilhado por coproprietários atuando de modo coletivo, constituindo, para isso, representante para sua atuação unificada. Ou seja, ao lado da personalidade natural e da personalidade jurídica, como sujeitos de direitos e deveres no ordenamento jurídico, alinha-se a pessoa formal do condomínio permanente com unicidade de representação, a qual, embora aparente ostentar algumas das características das pessoas jurídicas, não tem presente a denominada afeccio societatis entre os condôminos, nem patrimônio próprio, não se enquadrando em nenhuma das espécies de pessoas jurídicas previstas no artigo 44 do Código Civil Brasileiro, sendo espécie peculiar de ente formal perene, detentor de direitos e deveres e capacidade processual na ordem jurídica nacional. E essa opção vem de ser reiterada recentemente, quando o legislador inseriu na legislação pátria o instituto da multipropriedade sobre bens imóveis, a seu turno reiterando o tratamento que de longa data tem sido dado aos condomínios especiais de imóveis, desde que surgiram em nosso direito, com pleno sucesso, e sem nenhum prejuízo a seu pleno desenvolvimento e utilidade. É que não se pode confundir o interesse em poder desfrutar de um bem de modo menos oneroso, com o interesse em participar de uma pessoa jurídica, um negócio, ou mesmo de uma associação ou sociedade civil, que são coisas com implicações próprias e bem diversas do que pretendem aqueles que procuram usufruir de bens de forma compartilhada, mais econômica, que se viabiliza pela forma desburocratizada e simples do condomínio especial. O necessário é a introdução, nas leis que regulam os condomínios especiais, da previsão de que podem ser sujeitos de direitos e deveres, ostentam capacidade processual e têm representação unificada, na pessoa do síndico ou administrador do condomínio, conforme previsto no PL 3801/2020. O fato é que não é o desejo de condôminos, em condomínios especiais, tornarem-se sócios dos demais, a quem geralmente sequer conhecem, o que deixa evidente a inexistência da necessária affectio societatis, elemento imprescindível para que se possa cogitar da possibilidade de alguma modalidade de pessoa jurídica. Sem dúvida, o desejo de potenciais condôminos consiste apenas em poder se utilizar de um bem de modo compartilhado, porque de outro modo não conseguiriam. E, é bom que se diga, se for necessário para isso a associação em uma pessoa jurídica, seja de que espécie for, o interesse desaparecerá ou, no mínimo, muito se reduzirá, porque uma miríade de problemas surgirão, que não serão compensados pelo uso do bem. Além do que, outro obstáculo intransponível se encontra no artigo 1.331, do Código Civil Brasileiro, cuja redação, relativamente aos condomínios especiais edilícios, esclarece que neles "pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos". Ou seja, todas as partes do condomínio (sejam as de propriedade exclusiva ou as de propriedade comum) pertencem aos condôminos, inexistindo parte que seja de propriedade do condomínio, distinta da pessoa dos condôminos, o que resulta que se o condomínio fosse considerado pessoa jurídica, estranhamente esta não teria patrimônio nenhum. Por isso que apenas no sentido de entes formais é admissível falar-se em propriedade "do condomínio", com objetivos cadastrais e administrativos. E não é por outro motivo que o Superior Tribunal de Justiça tem decidido, de modo uniforme, pelas turmas que compõem a sua segunda seção, que os condomínios são entes despersonalizados, já que não são proprietários das unidades autônomas (de propriedade exclusiva), tampouco das partes comuns que o compõem, além de não haver entre os condôminos a affectio societatis, tendo em vista a ausência de intenção de estabelecer, entre si, uma relação jurídica, sendo o vínculo entre eles decorrente do direito exercido sobre a coisa, e da necessidade de administrar a propriedade comum. No mesmo sentido, no REsp 1.521.404, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino destacou que a doutrina dominante no STJ entende que os condomínios edilícios não possuem personalidade jurídica, sendo entes despersonalizados, também chamados entes formais, como a massa falida e o espólio. E ao concluir o relator foi enfático: "Estou entre aqueles que reconhecem a INEXISTÊNCIA de personalidade jurídica às pessoas formais, e, assim, os condomínios, FIGURAS CRIADAS PARA FACILITAR A VIDA DOS CONDÔMINOS, DE MODO A  ADMINISTRAR E CONSERVAR O BEM COLETIVO". Por isso que a proposta de lei apresentada não poderia deixar de configurar a multipropriedade mobiliária como a figura jurídica ímpar, insubstituível e descomplicada do "condomínio especial", dotando-o de capacidade processual e da possibilidade de, formalmente, adquirir direitos e deveres, inclusive de propriedade (à semelhança do que já se admite, na doutrina, jurisprudência e legislação pátrias, relativamente aos condomínios especiais sobre bens imóveis, vide § 3º do artigo 63 da lei 4591/64 e §§ 1º e 2º do artigo 6º-A da lei 11.977/2009), sobre bens afetos a seus fins, agindo, na verdade, em nome dos condôminos, os verdadeiros proprietários de todas as frações temporais (unidades autônomas) e demais bens de uso comum em um "condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis". A proposta veiculada no PL 3801/2020 lastreia-se no fato de que o instituto do condomínio especial é figura jurídica ímpar, de possibilidades únicas, por permitir a realização de coisas que de outro modo não seria possível ou desejável, razão pela qual nunca poderá ser substituído a contento por sua transformação em pessoa jurídica, seja de que espécie for. Assim sendo, sua taxonomia e ontologia jurídicas é que devem merecer maior aprofundamento na ciência do direito, e não sua substituição ou enquadramento como espécie de outras figuras jurídicas, que à sua realidade não se ajustam. Conforme já referido, o proposto condomínio especial em multipropriedade sobre bens móveis nada mais é que um fato jurídico inerente ao direito real de propriedade temporal sobre bens móveis, consistente em coproprietários de bens atuando de modo coletivo, constituindo, para isso, representantes para sua atuação unificada, não se enquadrando nos parâmetros de nenhuma espécie de pessoa jurídica, haja vista ser seu objetivo apenas regulamentar o uso, gozo e fruição de bens móveis de modo compartilhado. No entanto, ad argumentandum, ainda que se admitisse a possibilidade e adequação de se reconhecer personalidade jurídica aos condomínios especiais, seria completamente desnecessário impor que seus atos constitutivos também fossem levados a outro  registro nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, porque, em qualquer caso, os atos instituindo, especificando e regulando a submissão dos bens a regime de condomínio especial, bem como as futuras transações envolvendo as unidades autônomas em condomínio especial, fossem eles bens imóveis ou móveis, necessariamente teriam que seguir sendo registrados nos ofícios de registro competentes para o registro de tais coisas, quais sejam, os Ofícios de Registro de Imóveis e os de Registro de Títulos e Documentos, respectivamente. Assim, na hipótese considerada, não haveria razão nenhuma para impor outro registro dos referidos documentos nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, bastando que a lei previsse que o registro já necessário e imprescindível (nos cartórios de registro de imóveis ou de títulos e documentos), para submeter os bens a regime condominial, especificar unidades autônomas e bens comuns, e regular a convivência condominial, também fosse constitutivo da personalidade jurídica condominial. Portanto, é de inevitável conclusão que se não deve confundir a suposta necessidade de reconhecimento de personalidade jurídica aos condomínios especiais, com a necessidade de se impor outro registro de seus documentos constitutivos em ente diverso daquele necessário ao registro dos atos e fatos relativos ao direito de propriedade sobre as unidades condominiais. Neste sentido, Rodrigues, Marcelo Guimarães, em seu trabalho publicado no site jurídico Migalhas, com o título "Personalidade Jurídica do Condomínio Edilício", em que analisou o PL 4.816/09, cujo objetivo era acrescentar dispositivos à Lei dos Registros Públicos e ao Código Civil de 2002, de modo a conferir "aos condomínios edilícios a oportunidade de se constituírem pessoas jurídicas", acessível no link (acessado em 26/09/2021), assim se expressa: E a instituição do condomínio edilício se dá, por meio de registro no serviço de registro de imóveis da respectiva circunscrição territorial, assim como sua convenção, inclusive para operar efeitos perante terceiros. Por isso, me parece desnecessário e, sobretudo equivocado pretender exigir que seus "atos constitutivos" sejam inscritos no registro civil de pessoas jurídicas como se equiparado fosse a sociedade ou associação civil, o que não é.         Em verdade, os registros de sua instituição e convenção no serviço imobiliário já produzem eficácia constitutiva (e não apenas declaratória) no mundo jurídico traduzindo-se em bis in idem a exigência de outro registro, agora no serviço do registro civil de pessoas jurídicas, como se juridicamente possível fosse ter outras destinações ou objetivos que não regulamentar o uso, fruição e destinação compartilhada da propriedade imóvel em planos horizontais.       Além disso, a disciplina jurídica já existente, p. ex., o art. 1.331, §2º do Código Civil de 2002, da mesma forma o art. 2º da lei 4.591, de 1964, não deixa margem para outras condições que em tese podem surgir no âmbito de uma associação ou sociedade civil, por absoluta incompatibilidade. O condomínio edilício é instituído de forma perene e só deixará de existir, pela desapropriação, perda ou destruição de seu objeto ou por deliberação de quem detenha a totalidade de suas frações ideais. Assim, não se cogita de declaração de fins e tempo de duração, condições de extinção, requisitos para admissão, demissão e exclusão de seus membros e outras peculiaridades incompatíveis com um instituto de direito real imobiliário, conforme previsto no referido Projeto. (grifos do autor do presente texto). Ou seja, com grande descortino, o referido autor, doutor Marcelo Rodrigues Guimarães, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, profundo conhecedor do direito Notarial e de Registro, que por muitos anos militou na Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte - MG, ao examinar a hipótese de reconhecimento de personalidade jurídica aos condomínios especiais - objetivo do PL 4.816/09, aponta a desnecessidade e o equívoco de, para este fim, se estabelecer a obrigatoriedade de um outro registro, perante os Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, já que o primeiro (perante os Ofícios de Registro de Imóveis) seguirá sendo necessário e antecedente, porque é imprescindível aportar as normas que especificam e regulamentam o condomínio especial aos ofícios competentes para o registro de surgimento das unidades condominiais. Ou seja, no caso de condomínios especiais, o fato jurídico de sua instituição e da constituição de sua personalidade jurídica ocorreriam tão somente pelo imprescindível registro dos seus documentos constitutivos (memorial de instituição e convenção de condomínio, com regimento interno) no ofício registral competente para o registro da especificação condominial e das futuras unidades condominiais, quais sejam, o Ofício de Registro de Imóveis da circunscrição territorial do imóvel submetido a regime condominial, ou o Ofício de Registro de Títulos e Documentos onde domiciliados os instituidores da multipropriedade mobiliária, nos termos definidos no PL 3801/2020. Queremos também ressaltar que, na esteira do advento da multipropriedade mobiliária, uma outra atividade surgirá, gerando muitos empregos e muito dinamismo para a economia do país, qual seja, a de administração de condomínios especiais de multipropriedade sobre bens móveis - multipropriedade mobiliária, à semelhança do que ocorre com os condomínios edilícios. Certamente muitas administradoras de condomínios edilícios criarão departamentos ou filiais dedicados a esse novo e promissor ramo de negócios, ampliando atividades para um setor extremamente promissor, com um vasto campo para expansão, porque surgirá imensa procura pela multipropriedade de bens móveis. E, aproveitando a oportunidade do presente texto, vimos mesmo conclamar as administradoras de imóveis, individualmente ou através das suas entidades associativas, tais como a ABADI - Associação Brasileira Administradoras de Imóveis ou SECOVI - Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais, a atuar pedindo a aprovação do Projeto de Lei ora sob exame, que configura e institui, no direito brasileiro, a multipropriedade sobre bens móveis, porque certamente isso lhes abrirá oportunidade ímpar para a expansão dos seus negócios. E, pelas mesmas razões, dirigimos semelhante convite às locadoras de veículos automotores e de máquinas diversas, porque a administração de condomínios multiproprietários lhes catapultará a novo patamar de segurança e rentabilidade em seus respectivos ramos de negócios, porque não apenas obterão a renda certa oriunda da sua unidade dedicada à atividade de administração condominial, mas também a decorrente de sua unidade locadora suprir eventual indisponibilidade de bem condominial multiproprietário para o uso de algum condômino, ocasiões em que lhes poderiam atender à necessidade a preços mais módicos de locação, até a ocorrência da disponibilidade de um bem condominial multiproprietário, fidelizando clientes e tornando a multipropriedade quase que uma propriedade plena, criando uma realidade em que todos sairão ganhando, porque agregarão tais atividades àquelas que hoje já exercem. Assim é que, pelo potencial que têm para tornar mais eficiente e dinâmica a economia nacional, vimos sugerir aos nobres parlamentares, em especial aos excelentíssimos presidentes da Câmara e do Senado, que impulsionem os PLs nºs 2419/2019, 3801/2020 e 2872/2021, que tramitam apensados, em direção a uma rápida aprovação, com o fito de que o mais rapidamente possível a nova figura condominial possa começar a produzir seus benéficos efeitos para nosso país, contribuindo para sua recuperação, após o grande abalo causado pela pandemia do coronavírus. *Emílio Guerra, ex-advogado, especialista em Registros Públicos pela PUC-MG e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte/MG.
Servidão legal ou passagem forçada? No STJ encontramos a renovação da jurisprudência brasileira. Muitos acórdãos inovam, outros confirmam a doutrina. Há, contudo, alguns arestos que podem ser objeto de boas discussões. É o caso do REsp 1.268.998-RS, da relatoria do min. Luís Felipe Salomão. Discutia-se a possibilidade de penhora incidir sobre imóvel encravado. O executado havia oposto embargos sustentando que os imóveis de sua propriedade seriam impenhoráveis, pois "o primeiro deles é sua residência e o segundo está encravado no imóvel residencial". O tribunal entendeu perfeitamente possível a penhora com base no fato de que os imóveis têm matrícula própria no Registro de Imóveis competente. Nos termos do inc. I, § 1º, do art. 176 da LRP, com base no "princípio da unitariedade matricial", o imóvel encravado, "por ter matrícula própria, constitui um segundo bem imóvel do executado", sendo, portanto, perfeitamente possível a penhora. Para superação do óbice à inscrição da penhora, o ministro relator acenou para a possibilidade de se instituir uma "servidão legal em caráter precário, isto é, de direito de vizinhança, e não de servidão (predial), da qual distingue-se, em inúmeros pontos, visto que aqueles direitos são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que prescindem de registro". Decidiu-se, ainda, que, previamente à expropriação judicial, caberia ao juízo executivo delimitar judicialmente a passagem. Vamos analisar os vários aspectos que este aresto suscita. "Servidão legal" - um conceito superado Concorda-se com o decidido. Será perfeitamente possível a penhora de imóvel encravado. Todavia, exsurge uma dissonância conceitual acerca dos institutos tratados no v. acórdão. Veremos que a expressão - servidão legal, citada - não foi acolhida e prestigiada no ordenamento civil brasileiro. Já a expressão passagem forçada sim. Pergunta-se: (a) por que razão no v. acórdão se adotou, na própria ementa, a primeira expressão em detrimento da segunda? (b) será possível, ainda no iter executivo, com a penhora decretada e sua inscrição no Registro competente, impor desde logo a passagem forçada? A codificação civil não adotou a expressão servidão legal1, embora o termo tenha transitado pela legislação (inc. II do art. 1.558 do CC/1916 ou no art. 77 do Código de Águas). A chamada servidão legal insinuou-se, de fato, em nosso direito. Lafaiete já a recolhia aludindo à servidão legal de trânsito para favorecer "prédio encravado sem serventia de caminho pelos prédios vizinhos para a via pública"2. Contudo, no desenvolvimento da doutrina, observa Pontes de Miranda, o conceito de servidão legal seria mais e mais estranho ao direito brasileiro. A figura "englobava limitações ao direito de propriedade (direitos limitativos, direitos por fora do direito de propriedade, portanto nunca direitos sobre coisa, ou gravame de domínio) e relações jurídicas diferentes, que ofereciam dificuldade ao jurista que as queria conceituar e classificar. E continua: Desde que se chegou à maturidade da investigação, caracterizando-se, suficientemente, os direitos limitativos, os direitos formativos geradores de servidão e os direitos de servidão propriamente ditos, o conceito de servidão legal passou a ser inadmissível, e não só incorreto"3. (Destaque nosso). Para o tratadista, o direito de passagem "é, elipticamente, poder contido no direito de propriedade; o dever de tolerar é contido na propriedade do dono do prédio que tem de dar a passagem. Não há pensar-se em servidão legal, conceito já superado; há, precisa e exatamente, limitação e extensão das propriedades em proximidade. O vizinho que tem de passar não exerce direito que grave a outra propriedade; exerce o próprio domínio"4. Os direitos da vizinhança simplesmente limitam o conteúdo do direito de propriedade, diferentemente da servidão convencional, por exemplo, que não limita nem diminui o conteúdo do direito de propriedade, só o restringe no tocante ao exercício. São bastante conhecidas as distinções que Pontes de Miranda faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade5. As diferenças entre os institutos são muito bem-postas por Washington Monteiro de Barros. Na servidão predial há a sujeição de um prédio a outro - ditos serviente e dominante. Já na limitação de direito de vizinhança a sujeição é recíproca, "sendo os prédios, ao mesmo tempo, servientes e dominantes". Além disso, como já sustentava Pontes de Miranda, as limitações decorrentes da vizinhança são "imanentes à propriedade" e surgem simultaneamente com o próprio direito6. Portanto, as servidões legais constituem os chamados direitos de vizinhança7. Igualmente esta é a opinião de Caio Mário da Silva Pereira que funda o direito de passagem forçada como expressão do "princípio de solidariedade social"8. Para ele as ditas "servidões legais" são apelidos inadequados9. Enfim, esta distinção, já clássica em nosso Direito, parece estar na base na classificação metodológica adotada pelo nosso Código Civil. Não tem sentido, portanto, falar-se em servidão legal no estágio atual de nossa doutrina. Encravamento - o que seria? Parece haver outra imprecisão no v. acórdão. O ministro que proferiu o voto-vogal aludiu à peculiar situação do imóvel encravado, lançando uma interpretação da expressão bastante original. Segundo ele, "somente o que pode estar encravado em um terreno é uma construção, uma casa, um edifício, ou uma benfeitoria, mas um terreno não pode estar encravado em outro terreno". Não nos parece correta tal interpretação. O imóvel dito encravado é o "insulado", na expressão de Lafaiete10, isto é, o que não conta com acesso a via pública, nascente ou porto, nos termos do art. 1.285 do Código Civil em vigor. Lenine Nequete nos esclarece muito bem este ponto: "Para haver encravamento impõe-se que o prédio, confinando ou não com a via pública, a) não tenha saída para ela, nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria (razoavelmente cômoda) mediante uma excessiva despesa ou trabalhos desmesurados; ou b) a saída de que disponha (direta, indireta, convencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la - ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por igual gastos ou trabalhos desproporcionados"11. O imóvel encravado não conta com serventia de caminho pelos prédios vizinhos para acesso à via pública. Proprietários distintos O v. acórdão prevê que a passagem forçada há de ser declarada no iter do processo executivo - antes mesmo de consumada a expropriação judicial. Vale o recorte do respeitável voto para maior clareza: "Por último, é de todo prudente sublinhar que, tendo em mira que o objetivo da atividade jurisdicional é pacificar conflitos - e não criar outros -, e também para o sucesso da atividade jurisdicional na execução, previamente à expropriação do imóvel encravado, cabe ao Juízo da Execução delimitar judicialmente a passagem, estabelecendo o rumo, sempre levando em conta, para a fixação de trajeto e largura, a menor onerosidade possível ao prédio vizinho e a finalidade do caminho". (Voto, grifo nosso). Notem que a lei pressupõe titularidades diversas (art. 1.285 do CC.). Faculta-se ao dono do prévio encravado "constranger o vizinho a lhe dar passagem". A expressão "vizinho" é o proprietário distinto do prédio próximo a via pública - diz Pontes de Miranda12. A necessidade de existência atual de titularidades distintas parece insuperável. Bastaria que se questionasse: quem será o legitimado ativo na postulação da passagem forçada? O depositário? O exequente? Nem o mero possuidor está legitimado... Salvo melhor juízo, deve-se esperar a consumação da expropriação judicial para que se forme a situação jurídica propiciadora da legitimação ad causam para a postulação da passagem forçada. Passagem forçada - registrabilidade Pergunta-se: a passagem forçada pode ser objeto de registro? A resposta é não. As limitações ao conteúdo do direito de propriedade são irregistráveis. Tal é o caso do direito de vizinhança13. Se a passagem forçada for objeto de inscrição ter-se-á concedido servidão, "que lhe fez as vezes"14. É de Serpa Lopes a melhor doutrina. Segundo ele, baseado na doutrina italiana, em regra as "servidões legais escapam ao registo imobiliário, em geral por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência"15. Diz, ainda, que as restrições legais (servidões legais) não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária16. Aliás, o reconhecimento do direito de passagem, por acordo ou sentença judicial, não prefigura a sua constitutividade.  Restrição ou limitação? O advento da lei 13.097/2015 gerou uma discussão acerca da mal chamada concentração na matrícula. A qualificação não é adequada, pois o sistema brasileiro acolhe limitadamente os fatos inscritíveis, cujo rol de referência continua sendo o art. 167 da lei 6.015/1973. Certamente não se constituirá a matrícula uma espécie de repositório universal de todas as vicissitudes dos direitos reais ou daqueles que reclamam a eficácia real. Voltemos nossa atenção ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a "averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados". Neste passo, pergunta-se: calharia, neste dispositivo, a disposição judicial de instituição de passagem forçada - como no caso aqui aventado? Penso que não. A expressão "restrição", como vimos, aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade. Portanto, a situação de iura vicinitatis não é suscetível de registro. Trata-se de emanação do próprio domínio. Penhora de imóvel encravado A matriculação de imóvel encravado não é inédito. Posto seja possível a matriculação de imóvel nessa situação, a inscrição da penhora não representaria maior problema e nem seria necessário esventrar as minúcias do instituto do direito de vizinhança. O próprio Código Civil prevê que a alienação parcial do prédio, "de modo que uma das partes perca o acesso a via pública" obriga o novo proprietário a tolerar a passagem (§ 2º do art. 1.285). O encravamento do imóvel pode ocorrer em virtude de atos de terceiros, como a desapropriação da parte confinante com a via pública, por exemplo, ou em decorrência de divisão, partilha ou expropriação judicial. Diz o mesmo Lenine Nequete que é "indiferente que se trate de alienação voluntária ou forçada: o comprador em hasta pública tem direito à passagem forçada sobre a outra parte do prédio do proprietário executado"17. A jurisprudência registral do Estado de São Paulo, em mais de uma ocasião, tratou do tema da matriculação de imóvel encravado. Permito-me trazer à apreciação o decidido na Ap. Civ. 8.730-0/0, da qual se destaca o parecer elaborado pelo Dr. Aroldo Mendes Viotti: "Razão assiste ao apelante: a lei não veda o registro da aquisição de imóvel encravado. A tanto não equivale a disposição do artigo 176, § 1º, II, "a" da L.R.P. até porque é da sistemática registrária e inscrição (registro stricto sensu) das servidões em geral (artigo 167, I, 6, da lei 6.015/73). Acresce que o ingresso do título em exame não inova quanto à situação registrária existente, no que respeita à observância do princípio da especialidade. A tábua predial já consagra a existência de prédio encravado, remanescente de área maior, e injurídico seria obstar-se ao "dominus", por tal motivo, o exercício da livre disponibilidade sobre o bem. De resto, acertada a ponderação do apelante no sentido de que o registro do título aquisitivo se afigura como condição mesma para o exercício da faculdade prevista no artigo 559 do C. Civil"18. Do mesmo jaez o decidido na Ap. Civ. 573-6/6, cuja ementa é a seguinte: "Registro de Imóveis - Alienação parcial de imóvel - Parte remanescente, que permanecerá sob a propriedade dos vendedores, ficará supostamente encravada - Hipótese que não impede o registro - Além da eventual servidão de trânsito, o Código Civil ainda assegura o direito à passagem forçada - Inteligência do seu artigo 1.285, § 2º - Recurso provido para que o Procedimento de Dúvida seja julgado improcedente"19. Por fim, cite-se o decidido na Ap. Civ. 1.168-6/5, em que se decidiu pela possibilidade de se registrar área encravada: "[N]ada impede que se adquira, por doação ou outro meio, imóvel encravado. Nem que se registre tal aquisição, desde que ele se ache devidamente especializado"20. Conclusão À guisa de conclusão, podemos afirmar que a decisão enfrentou adequadamente o problema posto à apreciação da corte. Todavia, melhor seria ajustar os termos dos institutos, tendo em vista a tradicional civilística pátria, que bem distingue as hipóteses de servidão, direito de vizinha, restrição e limitação da propriedade privada. __________ 1 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. Vol. III. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 4ª ed. 1961, n. 431, p. 118. 2 PEREIRA. Lafaiete Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, § 125-E, n. 1. Sabemos que a doutrina portuguesa, que tão grande importância representou para nós, desde muito cedo distinguiu as servidões dos direitos intervicinais. A expressão adotada no acórdão - servidão legal - certamente rende tributos à codificação francesa com a repartição das servidões em naturais, legais e convencionais. Para uma visão panorâmica do direito português antigo consulte: SAN TIAGO DANTAS. F. C. de. O Conflito de Vizinhança e sua Composição. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed. 1972, p. 215 et seq. n. 109. 3 PONTES DE MIRANDA. Tratado, Tomo XVIII, § 2.204. 4 Idem. Tratado, Tomo XIII, § 1.542, n. 4. 5 Idem. Tratado, Tomo XI, § 1.163, 1, 2 e § 1.164. 6 MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 128. 7 Idem, ibidem, p. 251. 8 PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 137, n. 323. 9 Idem, ibidem, p. 132 e p. 170, n. 336. 10 Op. Cit. nota 2, p. 293, § 125. Na nota 1 o civilista indica algumas hipóteses em que se pode dar o encravamento. 11 NEQUETE. Lenine. Da Passagem Forçada, Porto Alegre: Livraria Editora Porto Alegre, 3ª edição, 1985, págs. 21 e22. 12 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Predial. V. I, Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, p.190, n. 3. 13 PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 3. Tomo 11, § 1.223, n. 1 e 2. 14 PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 12, p. 192, n. 8. 15 Idem, ibidem nota 1, p. 119. 16 Idem, ibidem, p. 122. 17 Op. cit. nota 11, p. 41. 18 Ap. Civ. 8.730-0/0, São Paulo, j. 15/8/1988, DJ 8/9/1988, rel. des. Milton Evaristo dos Santos. 19 Ap. Civ. 573-6/6, Catanduva, j. 21/11/2006, DJ de 29/1/2007, rel. des. Gilberto Passos de Freitas. 20 Ap. Civ. 1.168-6/5, São Bernardo do Campo, j. 6/10/2009, DJ 3/12/2009, rel. des. Reis Kuntz.
Ementa  AVERBAÇÃO CAUTELAR. DECISÕES E EFEITOS SOBRE TÍTULO REGISTRADO. A averbação cautelar prevista no art. 167, II, 12 da LRP busca prevenir terceiros adquirentes de eventual ação anulatória que contaminaria a aquisição (Art. 167, II, n. 12 da LRP). Introdução Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, criada pelo professor Carlos E. Elias de Oliveira, vamos enfrentar um caso interessante: ocasião e efeitos de averbações cautelares (ou premonitórias) provocados por decisões judiciais sobre atos consumados na matrícula imobiliária. O caso é aqui apresentado em forma esquemática e abstrata, com a supressão da identidade das partes envolvidas. TÍCIO e SEMPRÔNIA, e as entidades A e B, são atores deste cenário. O tema ainda se acha pendente de apreciação judicial em sede administrativa. O pleito foi distribuído à Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo e versou sobre a denegação de prática de ato de cancelamento de averbação consumada sob o pálio da proteção do comércio jurídico e com base no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP. Os interessados pugnam pelo cancelamento da averbação em razão de infringência ao princípio da continuidade. Seja a decisão procedente ou improcedente, o tema em si suscita várias questões interessantes do ponto de vista do Direito Registral Imobiliário, razão pela qual apresento-o aos colegas de estudos. Divulgaremos a seu tempo a íntegra da decisão prolatada no caso concreto. Certamente a sentença, de procedência ou não, enriquecerá, ainda mais, o tema agitado nesta nótula prática. Antes, porém, vamos conhecer o cenário completo do tema posto diante do intérprete. Situação jurídica da matrícula O imóvel acha-se registrado em nome de uma Associação (requerente) que o adquiriu em 2/10/2019, consoante R. 2 feito em matrícula desta serventia.  Em 24 de junho de 2021 recebemos ofício (com teor mandamental) oriundo de determinada Vara Cível da Capital de São Paulo em que se imperava a averbação da existência de ação anulatória em que são partes, dentre outros, TÍCIO, corréu na referida ação. Num primeiro momento, o título foi devolvido em virtude de ferir, aparentemente, o princípio da continuidade, já que não se percebia, claramente, o nexo existente entre o autor da ação (chamemo-la de ASSOCIAÇÃO "A") e a adquirente (ASSOCIAÇÃO "B"). Reapreciação da matéria em sede de qualificação Via de regra admitimos e apreciamos, no curso do processo registral, pedidos de reconsideração de matéria já decidida. Nesse sentido, a parte interessada foi instada, em nota devolutiva, a demonstrar o vínculo existente entre a determinação judicial e os correspondentes atos registrais, o que se evidenciou com o reexame detido da matéria e com base nos esclarecimentos prestados pela apresentante do título, Dra. SEMPRÔNIA, advogada. A questão é a seguinte: TÍCIO figura como corréu na ação anulatória. O título que deu origem ao R. 2/MAT chamou-nos a atenção pelo fato de que o mesmo TÍCIO comparecera ao ato notarial que gerou a escritura pública de compra e venda como representante legal da "A" (alienante) e de "B" (adquirente). Não poderia, portanto, objetar a averbação com base no fato de que "B" seria um terceiro alheio totalmente ao negócio jurídico entabulado e registrado. O mais importante, todavia, é que na ação anulatória discute-se, justamente, a legitimidade dos atos de disposição praticados por TÍCIO, já que, segundo se alega na dita ação, lhe faleceria legitimidade para representar "A", fato confirmado por acórdão do TJSP em sede de agravo. Além disso, na dita ação anulatória que ensejou o mandado de averbação buscava-se a suspensão dos efeitos de todos os atos praticados por TÍCIO desde a data de sua nomeação como administrador provisório da entidade em 2018. A escritura e o registro são do ano de 2019. Limites e alcance da determinação judicial A determinação judicial veio vazada nos seguintes termos: "averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis de propriedade de "A" e da filial [...], para ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens" (g.n.). Mais tarde, o r. Juízo, apreciando pedido das partes, manteve a ordem de averbação nos seguintes termos: "A decisão não contraria o decidido no processo. A simples averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis que ainda são de propriedade de ["A"...] não impossibilita a alienação desses bens. O ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé. Ademais, reputo a medida razoável e prudente, diante da grande litigiosidade que se observa nos autos (...)". O deferimento da averbação se deu liminarmente, concluindo o digno Magistrado que, instaurado o contraditório, com citação de todos os corréus, "a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações". Todas as circunstâncias até aqui relatadas foram devidamente sopesadas e apreciadas por este Registrador no acolhimento do pleito de reconsideração que se acha às fls. e seguintes dos autos. Ação anulatória - efeitos - o fundamento legal da averbação Em primeiro lugar, registre-se que a prática do ato se seguiu após exame e formação da convicção pessoal deste registrador, que agiu nos limites de suas prerrogativas legais e no exercício e gozo da independência jurídica na tomada de decisões em sua ordem (art. 28 da lei 8.935/1994). Como assinala RICARDO DIP, "a função qualificadora do registrador é a típica de um profissional do direito, exercendo-se, em sua ordem, com independência só submetida à observância da lei e aos limites dos documentos e dos registros a que, em cada caso, deva referir-se o juízo qualificador"1. Já a base legal para a prática do averbação encontramo-la no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP que reza que a inscrição premonitória se fará com base em "decisões, recursos e seus efeitos que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados". No caso concreto, mais do que simples interesse da parte que roga a inscrição baseada em decisões e recursos judiciais, temos, neste caso concreto, uma decisão judicial dirigida expressa e diretamente ao Cartório. É preciso interpretar o alcance da medida e o bem jurídico tutelado. É evidente que a r. determinação mirou os títulos e atos registrados na Matrícula X. A decisão ostenta um nítido caráter cautelar. Os efeitos que poderão advir de eventual decisão anulatória dos atos de disposição praticados pelo corréu TÍCIO poderão evidentemente alcançar terceiros adquirentes de boa-fé que venham a figurar como sub-adquirentes na cadeia sucessória. Não se deve esquecer que o registro aquisitivo não é saneador dos elos da corrente filiatória, já que a presunção que decorre do registro é relativa - não absoluta (art. 1.247 do CC). A decisão revela ainda um detalhe importante: ela alude a "terceiros", no plural, colhendo tanto o adquirente ("B"), quanto eventuais sub-adquirentes na linha filiatória. Note-se a dicção do despacho: "ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens". São terceiros a própria "B" e todos os que lhe sucederem na situação jurídica, a que título for. Por essa boa e justa razão, o MM. Juiz delimitou claramente os efeitos que a averbação poderia desencadear: o "ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé", sem retirar o bem do comércio jurídico - o que poderia ferir o poder de disposição do titular, lhe embaraçando os interesses. Seja como for, a transmissão poderia (e poderá a qualquer tempo) ser feita, pois não se gravou o imóvel com indisponibilidade ou bloqueio (de registro ou de matrícula). Trata-se de publicidade de mera notícia - ou como também é chamada - enunciativa2. Aliás, nesse sentido já se admitia desde a década de 80 a averbação de mera notícia da ocorrência de fatos e circunstâncias que pudessem inocular no sistema o germe da insegurança jurídica. Em processo que teve curso na mesma Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo, NARCISO ORLANDI NETO decidiria que a "existência da averbação a que se refere o art. 167, II, 12 da lei 6.015/73 não pode impedir a transmissão do imóvel. Destina-se apenas e tão somente a tornar pública a existência de decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados"3. A doutrina não discrepa. Por todos, AFRÂNIO DE CARVALHO qualificaria tais inscrições como preventivas, destinadas "a prevenir terceiros de ameaças à titularidade constante do registro, decorrentes de atos judiciais ou de atos negociais sob condição suspensiva, a fim de se inteirarem de risco de negócio com os respectivos imóveis"4. E segue: "A inscrição preventiva, com a mesma índole premonitória, figura em outras legislações para, como aqui, informar terceiros da pendência de obrigações ou riscos sobre os imóveis, cuja aquisição não se poderá fazer, a menos que o adquirente queira expor-se à anulação do ato e ter contra si a prova pré-constituída da fraude"5. Cancelamento posterior da notícia Acerca dos efeitos da averbação premonitória, o mesmo AFRÂNIO DE CARVALHO nos dirá que a natureza dessa inscrição é sempre provisória, "não impedindo que, perante o registro, se formalizem negócios que desprezem a advertência nela contida, posto sujeitos a serem mais tarde anulados pelo titular de direito que ela garante"6. Consentâneo com esse entendimento, como indicado no título judicial, instaurado que seja o contraditório, "a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações", como se pronunciou Sua Excelência o Juízo da Vara Cível da Capital de São Paulo. Somente munido de decisão judicial, oriunda do mesmo r. Juízo, se fará o cancelamento da averbação - ou em decorrência de eventual decisão do juízo administrativo, em razão do pleito deduzido nos autos de pedido de providências. Em suma: não há prejuízo algum, não há bloqueios, nem indisponibilidades ou qualquer outro gravame desse mesmo jaez. O que há, efetivamente, é preservação da segurança jurídica, valor primacial do sistema registral e princípio que norteia toda a atividade do Oficial Registrador. __________ 1 DIP. Ricardo. Registros sobre Registros #08 - Princípio da independência jurídica do registrador - Parte segunda. Acesso aqui. 2 Na classificação de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, a publicidade-notícia é "aquela que não exerce qualquer efeito sobre a eficácia do facto registado", isto é, não retira a disponibilidade do direito, nem agrega outros efeitos além de acautelar terceiros. ALMEIDA. Carlos Ferreira de. Publicidade e Teoria dos Registos. Coimbra: Almedina, 1966, p. 333. 3 Processo  1.541/1980, j. 13/3/1981, Dr. Narciso Orlandi Neto. Acesso aqui. Na Corregedoria Geral de Justiça: Processo CG 132.872/2015, São Paulo, decisão de 14/4/2016, DJ 26/4/2016, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. Acesso aqui. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 179. 5 Op. cit p. 8. 6 Op. cit. p. 176.
Pode um cônjuge ou companheiro doar ao outro imóvel gravado com a cláusula de incomunicabilidade? O tema, como muitos outros no ramo do Direito, divide opiniões. Muitos profissionais do direito entendem pela impossibilidade, assim como muitos entendem pela possibilidade dessa doação. Traremos a seguir os argumentos das duas correntes existentes sobre o tema. Apesar de nos posicionarmos a favor de uma das duas correntes, o objetivo é trazer os fundamentos legais de ambos os lados, de maneira a comprovar a existência da divergência sobre o tema e suas consequências, e, principalmente, chamar a atenção dos profissionais do direito, especialmente dos notários, para que percebam a importância de se tomar certos cuidados, no momento em que o doador mencione seu desejo de impor a cláusula de incomunicabilidade. Para que possamos abordar amplamente os efeitos da cláusula de incomunicabilidade, não entraremos em outras questões importantes contidas nas doações, por exemplo, os impedimentos existentes quando se tratar de bem pertencente à legítima herança, e a necessidade de justa causa em determinadas situações (arts. 549 e 1.848, CC), e a obrigatoriedade de se resguardar o mínimo para subsistência do doador, impossibilitando a doação da totalidade de seu patrimônio (art. 548, CC). Em razão disso, adiantamos que tais observações são imprescindíveis, portanto, a leitura a seguir deve ser feita levando-se em consideração já terem sido observadas e solucionadas todas essas questões. Outra breve observação é a de que a cláusula de incomunicabilidade, dentro do contexto de que trataremos, não tem efeito, ao menos diretamente, no direito sucessório; sendo assim, mesmo que o donatário receba, por testamento ou doação, bem gravado com esta cláusula, ao falecer, esse bem será herdado pelo seu cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo no regime da separação obrigatória de bens (artigo 1.641, CC). Sobre esse tema, nos parece que não há mais divergência, visto que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou tal entendimento. Sabemos que, quando se tratar de bem particular, um cônjuge ou companheiro pode perfeitamente doar ao outro, pois o bem é de propriedade exclusiva do doador, o que não iria causar confusão patrimonial alguma. Já se o regime do casal for o da comunhão universal de bens, em regra, um cônjuge (ou companheiro) não poderia doar ao outro, pois o bem doado comunicaria novamente, tornando inútil a doação, salvo nas exceções trazidas no artigo 1.668, do Código Civil Brasileiro. Trataremos de mais alguns detalhes sobre essa situação específica, ao final deste artigo. A divergência surge quando aquele que agora pretenda doar um imóvel ao seu cônjuge (ou companheiro) tenha recebido este bem com a cláusula de incomunicabilidade, pois, nesse caso, há quem entenda que ele não poderia realizar esta doação, uma vez que o objetivo da imposição desta cláusula foi exatamente proibir que o bem doado fizesse parte do patrimônio de seu cônjuge (ou companheiro). Cumpre ressaltar que a imposição de cláusula de incomunicabilidade somente cumpre sua finalidade no caso em que o donatário é casado no regime de comunhão universal de bens. Isso porque, por se tratar de aquisição a título gratuito, não haverá comunicação do bem com o cônjuge do donatário caso estes sejam casados nos demais regimes de bens matrimoniais previstos no Código Civil. Um dos principais argumentos de quem entende não ser possível a doação é o de ferir a vontade dos doadores primitivos (normalmente os pais), frustrando o objetivo principal almejado por eles, de não haver, em hipótese alguma, comunicação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário primitivo (filho). Alegam, ainda, que, ao aceitar a doação com a cláusula de incomunicabilidade, o donatário (filho) se comprometeu a respeitá-la e cumpri-la, na forma em que foi instituída, e, ao fazer a doação ao cônjuge (ou companheiro), estaria, de certa forma, descumprindo o contratado, visivelmente burlando ou rompendo a cláusula imposta e aceita no momento da liberalidade dos doadores primitivos (pais). Alguns adeptos dessa corrente defendem, inclusive, que tal prática, por parte do donatário (filho), estaria ferindo a teoria da vedação do comportamento contraditório e da boa-fé objetiva, que visa um comportamento coerente com o objetivo a ser alcançado. Alegam, também, que aquilo que não pode ser feito diretamente, também não se pode realizar indiretamente, ou, em outras palavras, se é vedado fazer de forma direta, não se pode fazer por vias oblíquas. Citam, ainda, que o doador primitivo (pai) colocou somente a incomunicabilidade, sem incluir também a inalienabilidade, pois o objetivo não era tornar o imóvel inalienável para terceiros. Por fim, boa parte, dos que defendem a impossibilidade dessa doação ao cônjuge (ou companheiro), entende que a comunicação não deixa de ser uma alienação atípica, e também explicam sobre a necessidade de se observar o artigo 112, do Código Civil, que diz: "nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem". Embora, respeitosamente, discordarmos, existem muitos juristas que entendem dessa maneira, ou seja, que essa incomunicabilidade também se estenderia para uma inalienabilidade específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, dentre eles estão: José Hildor Leal, José Flávio Fischer, Vania Carvajal, Maria da Penha Emerli Madeira, Rudinei Baumbach, Felipe Leonardo Rodrigues, Priscila Agapito, Fernando Dias, Márcio Campacci, Pedro Lupporini, Paulo Roberto Gaiger Ferreira, Marcos Antônio Santorsula, Carlos Eduardo Meira Jassi, Evelyn Aída Tonioli Valente, Fábio Nougalli. Nesse sentido, também entende o ilustre civilista Ulysses da Silva. De outro lado, entre os que pensam como nós, que a doação ao cônjuge (ou companheiro), caso exista apenas a cláusula de incomunicabilidade, é perfeitamente possível, estão os juristas: Ademar Fioranelli, Martha El Debs, Carolina Mosmman, Arthur Del Guércio Neto, Gustavo Canheu, Alexandre Kassama, Marco Antônio Camargo, Bruno Cysne, Nilo de Carvalho Nogueira Coelho, Carlos Londe, Pedro Bacelar, Orlando Ceschin e outros. No mesmo sentido, estão os renomados civilistas Orlando Gomes, José Fernando Simão, Maurício Bunazar, Flávio Tartuce, Giselda Hironaka, Cristiano Chaves de Faria, Mario Delgado e Christiano Cassettari. Os motivos pelos quais entendemos possível a doação ao cônjuge (ou companheiro), de bem gravado somente com a cláusula de incomunicabilidade, iremos expor a seguir. No entanto, não desejamos dizer que a razão está com uma corrente ou com a outra, pois, como já dito, ambas possuem bons argumentos. O objetivo, então, é expor os fundamentos das duas, para que o leitor reflita e tire suas conclusões, mas, sobretudo, para comprovar a divergência existente sobre o tema, e sugerir algo que possa contribuir para evitar litígio, não deixando que novas doações cheguem a esse impasse no futuro. O primeiro ponto a ser esclarecido é que cada cláusula tem seu efeito próprio, que o próprio nome já diz, não havendo necessidade, e, a nosso ver, não sendo possível, realizar interpretações mais amplas, uma vez existir em nosso ordenamento jurídico uma cláusula para cada situação específica (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) e, ainda, a possibilidade de usá-las como desejar, seja de modo vitalício ou por tempo determinado, ou, ainda, para pessoas ou situações determinadas. A única cláusula que possui o poder de atrair as outras duas, segundo nosso ordenamento jurídico, é a de inalienabilidade, conforme consta do artigo 1911, do Código Civil Brasileiro. Nota-se, assim, que as demais cláusulas são totalmente independentes, do contrário, também haveria previsão expressa na legislação. A cláusula de inalienabilidade, considerada individualmente, importa em proibição ao beneficiário da liberalidade em dispor ou alienar o bem clausulado. O negócio jurídico de disposição ou de alienação é aquele que implica em alteração da titularidade de uma posição jurídica subjetiva patrimonial ou, em outras palavras, é o negócio que opera transmissão de direitos, reais ou pessoais, de uma pessoa, alienante, a outra, adquirente. São exemplos de negócios jurídicos de disposição: compra e venda, doação, permuta e dação em pagamento, além de outros contratos atípicos que possam ser formalizados pelas partes. Sobre esses negócios incide a cláusula de inalienabilidade. A cláusula que importa em incomunicabilidade, por sua vez, visa impedir que o bem objeto da liberalidade venha a ser adquirido por meio de comunhão pelo cônjuge do beneficiário ou donatário. Comunhão não é negócio jurídico de disposição (nem o pressupõe), pois, embora importe em aquisição de posição jurídica subjetiva patrimonial pelo comunheiro, essa aquisição não implica em alteração ou alienação da posição jurídica subjetiva patrimonial do outro comunheiro, titular inicial do direito subjetivo patrimonial que, nesta condição, permanece. Significa dizer a aquisição de determinado bem por meio da comunhão (resultante de regime de bens matrimonial, por exemplo) não implica em perda de titularidade desse bem pela outra. Embora haja transmissão de direito, não há negócio jurídico dispositivo. Neste sentido, as lições de Luciano de Camargo Penteado: Comunhão implica conjunto unitário de situações jurídicas pertencentes no mesmo polo a sujeitos distintos, mas unidos por uma causa preexistente (casamento, contrato social) [...] ocorre, a bem verdade, uma transmissão do objeto da situação jurídica sem negócio jurídico para formar o todo [...] na comunhão verifica-se uma situação jurídica em que o mesmo direito sobre determinada coisa comporta diferentes sujeitos.1 Sob esse viés, além de forma de aquisição de bens, a comunhão consiste em titularidade, por pessoas diversas, de uma única situação jurídica sobre determinado bem ou bens. Percebe-se, como dissemos, que a comunhão não é e não pressupõe negócio jurídico dispositivo, uma vez que seus efeitos decorrem da própria lei, por meio de normas cogentes, a depender do regime de bens matrimonial escolhido.  Assim, ao se partir do pressuposto que as restrições ao exercício da propriedade devem ser sempre previstas em lei, seja por meio dos direitos reais limitados, em numerus clausus, seja por meio de estipulações de cláusulas restritivas, a interpretação de tais negócios, não obstante o conteúdo do artigo 112, do Código Civil, deve-se dar sempre de forma restrita, por se tratar de situações excepcionais que impedem ou limitam a livre circulação de bens, protegendo interesses sociais e econômicos, além dos interesses particulares do instituidor da cláusula restritiva, de forma que a cláusula de inalienabilidade (considerada individualmente) tem como fim impedir a realização de negócios dispositivos sobre determinado bem, enquanto que a cláusula de incomunicabilidade apenas impede que determinado bem seja transmitido por meio de comunhão. Os argumentos trazidos acima já se mostram contrários a algumas alegações sobre a impossibilidade de doação de bens gravados somente com a incomunicabilidade. O primeiro seria pelo fato de o doador poder usar a cláusula de inalienabilidade de forma específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, se assim ele desejar, fazendo com que o argumento de que o doador não impôs a inalienabilidade, por não querer restringir o direito do donatário de alienar o imóvel a terceiros, não prosperar. O segundo, pelo fato de a lei trazer expressamente qual é a cláusula restritiva que tem o poder de atrair as demais (CC, 1.911), restaria prejudicado o entendimento de que a incomunicabilidade atrairia uma inalienabilidade específica, ou seja, válida somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, pois, se houvesse mais alguma possibilidade de atração entre cláusulas, esta deveria igualmente estar expressa em lei. Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos ser evidente que a cláusula de incomunicabilidade foi criada para evitar a comunicação automática com o cônjuge (ou companheiro), decorrente do regime de bens do donatário, o que, sem dúvida alguma, e até aqui não há divergência, ela sempre resulta no propósito almejado, fazendo com que o bem doado se torne de propriedade exclusiva do donatário, seja qual for o regime de bens do casal. A nosso ver, os efeitos dela param por aí; não se pode querer ampliá-los, se o doador, que é quem detém esse poder, não o fez expressamente. Ele, doador, é o único que pode estender essa restrição, e, para isso, como já vimos, existe em nosso ordenamento jurídico as outras cláusulas específicas, como a de inalienabilidade, caso queira proibir o donatário de alienar, e a de impenhorabilidade, caso queira proibi-lo de penhorar. Acreditamos que esse entendimento, de ampliar os efeitos dessa cláusula de incomunicabilidade por conta própria, criando certo cenário fictício ao supor que o desejo do doador primitivo será frustrado, é muito perigoso, pois estaríamos adentrando na vontade do doador, que tanto poder ser essa, como não. A lógica nem sempre pode ser a que imaginamos, além da existência das exceções, que estão presentes em quase todas as situações de nosso dia a dia. O que é lógico para alguns, pode não ser para outros. Ou, como diriam alguns estudiosos, a lógica, assim como o óbvio, é individual. Também é perfeitamente possível que os doadores só queiram impedir a comunicação ao cônjuge (ou companheiro) no momento de sua doação, deixando o donatário livre para alienar futuramente, seja para quem for, até para o seu cônjuge (ou companheiro), que pode muito bem se mostrar merecedor no futuro. O doador pode simplesmente inserir a cláusula, deixando, dali por diante, a critério e conveniência do donatário, qualquer ato que ele queria realizar em relação ao imóvel doado. E, se fôssemos partir para o campo das imaginações, o que não recomendamos, assim como fazem em relação à vontade dos doadores, ao defenderem que alienação ao cônjuge (ou companheiro) iria ferir a vontade primária do doador, também poderia se imaginar a hipótese de o donatário estar passando por uma fase turbulenta em seu relacionamento, e, a seu pedido, o pai acabou inserindo a cláusula de incomunicabilidade naquele momento da doação, o que, futuramente, com o relacionamento fortalecido, poderia o filho, já como proprietário exclusivo, doar a metade para sua esposa (ou companheira), caso desejasse. Ainda no perigoso campo das imaginações, o donatário poderia divorciar-se, e, depois, se casar ou viver em união estável com outra pessoa, ter filhos com ela, e, eventualmente, desejar doar metade desse imóvel à atual esposa (ou companheira), que nada tem a ver com a primeira, de quem foi protegida a comunicação patrimonial. Nesse caso, seríamos obrigados a fazer novas imaginações, pois, se fosse mesmo possível atrair a tal da "inalienabilidade específica", mesmo tendo sido colocada somente a incomunicabilidade, com o argumento de ferir a vontade dos doadores primitivos, de não comunicar com o cônjuge (ou companheiro), agora teríamos novamente que interferir na vontade dos doadores, supondo se era somente àquele primeiro cônjuge (ou companheiro), ou se também seria para esse novo, que eles nem imaginavam que poderia existir.  Como podemos ver, o simples "imaginar", "supor", "deduzir", é muito complexo, por isso entendemos que esse tipo de interpretação não pode ficar a cargo de terceiros, tampouco do notário que se nega a realizar o ato, ou do registrador que se nega a registrá-lo. É preciso analisar o que foi imposto de forma expressa, e saber separar seus significados, sob pena de cometer grave injustiça, retirando das pessoas, direitos que se encontram garantidos em nosso ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, explica o professor Cristiano Chaves de Faria: Se o pai, apenas, impôs a cláusula de incomunicabilidade ao beneficiário (filho, no exemplo), impediu que ocorresse a COMUNHÃO DO BEM, em face do regime de bens da relação afetiva. Apenas isso! Todavia, não se retirou dele o direito de livre dispor da sua propriedade, que lhe é garantia constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXII) e carrega consigo esse poder (CC, artigo 1.228). Por isso, o titular pode, sim, dispor livremente para quem quer que seja, inclusive para o próprio cônjuge - que não foi beneficiado por conta do regime de bens, mas, sim, pela liberalidade praticada pelo consorte. (Informação verbal)2 Não há dúvidas, tampouco divergências, que a cláusula de inalienabilidade, como o próprio nome diz, foi criada para impedir a alienação do bem, seja por venda e compra ou doação, permuta, dação em pagamento etc. O impedimento, portanto, recai sobre negócios jurídicos dispositivos. Assim, se em nosso ordenamento jurídico existe cláusula específica para proibir a alienação, não há sentido algum utilizar-se de uma outra cláusula, de menor abrangência, para atrair a inalienabilidade, de maior abrangência, por pura suposição ou dedução, quando, além de existir cláusula própria para o caso, não há qualquer previsão nesse sentido em nosso ordenamento jurídico. Sendo assim, acreditamos que, se a real intenção do doador é de, além de não comunicar, impedir a alienação ao cônjuge (ou companheiro), que se amplie expressamente a imposição restritiva no momento da doação, pois, para isso, existem meios legais previstos em nosso ordenamento jurídico, podendo inserir a cláusula existente e adequada para cada desejo do doador. Assim, se essa for realmente a vontade do doador, ele deve impor, além da cláusula de incomunicabilidade, também a de inalienabilidade em relação ao cônjuge (companheiro), seja ao atual, ou, se for o caso, a qualquer cônjuge ou companheiro que o donatário possa, eventualmente, ter ao longo de sua vida. A cláusula de inalienabilidade, como já mencionado, pode perfeitamente ser específica ao caso pretendido, não abrangendo outras situações, ou seja, pode o doador impor que o donatário esteja proibido de doar somente ao seu cônjuge (ou companheiro), estando livre para doar, ou, por qualquer outro meio, alienar o bem, para qualquer outra pessoa, basta que ele diga que esse é o seu desejo, colocando-o de modo expresso na doação. Por outro lado, seria possível ao doador instituir a cláusula de inalienabilidade com exclusão de incomunicabilidade, vez que se trata de direito patrimonial disponível. Neste caso, o bem ou bens excluídos expressamente da cláusula de incomunicabilidade se comunicarão ao patrimônio do outro cônjuge, embora inalienáveis em razão da cláusula de inalienabilidade.3  Isso se torna possível uma vez que cada cláusula restritiva cumpre uma finalidade social específica, de forma que são independentes entre si4, mesmo que, no silêncio do contrato, a imposição de cláusula de inalienabilidade implique automaticamente as de incomunicabilidade e impenhorabilidade. É de suma importância que o doador ou testador, no momento da realização da liberalidade, seja informado dos efeitos e possibilidades de se incluir, de maneira conjunta ou separada, as cláusulas restritivas. Defendemos que a insegurança jurídica não pode pairar sobre o ato, há de se ter a certeza da real intenção do doador, inserindo-a no ato de modo claro, não podendo imaginá-la ou deduzi-la. Os profissionais do direito, principalmente os notários, devem estar atentos ao verdadeiro desejo do doador e questioná-lo sobre todos esses detalhes, explicando todas as possíveis consequências de inserir somente uma cláusula, inclusive os possíveis litígios futuros, caso não fique bem claro e expresso no ato, seu real desejo. Para que se possa inserir no ato exatamente o que o doador deseja, basta utilizar-se dos institutos legais adequados e existentes em nosso ordenamento jurídico. Se não quer que comunique com o cônjuge, coloque apenas a incomunicabilidade; se quer ir além, utilize a inalienabilidade, na medida do seu desejo. Ou também a impenhorabilidade, que apesar de não ser objeto do presente estudo, também deve ser bem explicada, e usada da forma correta, caso seja o desejo do doador. A respeito do tema, houve uma decisão da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, de autoria da brilhante juíza Dra. Tânia Mara Ahualli, da qual destacamos o trecho final: "A alienação, portanto, de imóvel gravado com a cláusula de impenhorabilidade ou com a de incomunicabilidade é livre e não depende do cancelamento de qualquer delas" (g.n). Logo, entendo que a doação do imóvel realizada por M. não afronta a vontade dos instituidores do gravame, uma vez que se quisessem que o imóvel não pudesse ser alienado, instituiriam a cláusula de inalienabilidade, o que não ocorreu. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do (-) Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de K. C. F. M., e determino o registro do título.  (1ª VRP-SP - proc. 1120715-21.2018.8.26.0100) Reforçamos que a cláusula de incomunicabilidade, como o próprio nome diz, tem como objetivo impedir a comunicação do bem doado, com o cônjuge (ou companheiro) do donatário. Nesse caso, a comunicação impedida é a que decorre do regime de bens do donatário, pois, a depender do regime, pode o bem doado, após entrar no patrimônio do donatário, comunicar com seu cônjuge (ou companheiro), como é o caso do regime da comunhão universal de bens. Em nossa opinião, esse é o único efeito que esta cláusula pode surtir, não cabendo, em qualquer situação, uma extensão de seus efeitos. A propósito, o inciso I, do artigo 1.668, do CC, prevê exatamente a situação em que, mesmo casados na comunhão universal de bens, pela existência de uma cláusula de incomunicabilidade, o bem se tornou exclusivo de um dos cônjuges (ou companheiros), podendo, assim, livremente alienar ao outro. Lembrando que o termo alienar abrange tanto a compra e venda, e outras formas onerosas, como também a doação, que é a título gratuito. Mas sobre essa doação acima citada, também temos que tomar certo cuidado, pois, se o regime é o da comunhão universal de bens, mesmo que o cônjuge (ou companheiro) seja proprietário exclusivo do bem, há de se verificar a real intenção dele, ao querer doar para seu cônjuge (ou companheiro). É preciso saber do doador qual é o cenário final que ele deseja em relação à propriedade do bem. Se o cônjuge (ou companheiro) deseja doar a metade do bem, para que este fique pertencendo aos dois, de forma igualitária, será importante que ele também insira a cláusula de incomunicabilidade, uma vez que, se assim não proceder, a parte doada consequentemente irá comunicar com ele, doador, não alcançando seu desejo primário. Em tal circunstância, a falta da imposição da cláusula de incomunicabilidade resultaria na manutenção dos 50% do bem, de propriedade exclusiva do cônjuge (ou companheiro) doador, e os outros 50% do bem, doados por ele ao seu cônjuge (ou companheiro), em virtude da comunicação resultante do regime da comunhão universal de bens, ficaria pertencendo ao casal, em partes iguais, tendo como resultado 75% para o cônjuge (ou companheiro) doador, e 25% para o cônjuge (ou companheiro) donatário. Já se ele inserir a cláusula de incomunicabilidade ao doar a metade do bem para seu cônjuge (ou companheiro), ambos ficariam donos de metade do bem, com exclusividade. Diante disso entendemos que a solução correta no caso de doação de bem particular entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens será sempre viável se houver imposição de cláusula de incomunicabilidade. Entendimento contrário resultaria em situação na qual, sobre o mesmo bem, haveria fração ideal em comunhão e fração ideal exclusiva. Tal posição é defendida pelo nosso inesquecível mestre Zeno Veloso5 (in memoriam), que diz: Se o regime é da comunhão universal, além da necessidade de o bem doado ser de propriedade exclusiva do doador, é preciso que seja imposta a cláusula de incomunicabilidade. Sem essas ressalvas, a doação seria impossível, logicamente impossível, nesse regime, conforme a aguda observação de Pontes de Miranda: "Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal todos os adquiridos se comunicam". No mesmo sentido, é a lição de Agostinho Alvim. Teixeira de Freitas, em nota ao art. 136 da Consolidação das Leis Civis, já observara que no regime da comunhão a doação entre marido e mulher torna-se inútil, e só poder ser celebrada se o regime do casamento for de separação de bens. Lafayette Rodrigues Pereira ensina que se o casamento foi por carta de metade (ou segundo o costume geral do Império, ou pelo regime da comunhão universal), as doações entre marido e mulher são impraticáveis: 'anular-se-iam de si mesmas, visto como tudo que adquirem os casados por carta de metade, ipso facto, faz-se comum entre eles. Importante enfatizar que essa imposição da cláusula de incomunicabilidade sobre o mesmo bem, mas agora por outro doador, não retira o bem do comércio, sendo perfeitamente possível, uma vez que, especificamente nesse caso, o único prejudicado seria o próprio doador. Desse modo, defendemos que, mediante clara divergência doutrinária, fica evidente a importância de se orientar o doador sobre a necessidade de se esclarecer exatamente o seu desejo, colocando ao seu dispor as cláusulas disponíveis a serem usadas, evitando dúvidas e litígios futuros, eliminando, assim, qualquer chance de serem necessárias outras interpretações de seu desejo, que, como vimos, é algo totalmente incerto e perigoso, que pode muito bem causar injustiças. Por fim, o que gostaríamos de chamar a atenção é que, independentemente de qual posição doutrinária esteja correta, não custa prevenir possíveis litígios no futuro. Assim, defendemos que seria muito melhor, no ato da doação primitiva, buscar o verdadeiro desejo do doador, esclarecendo os detalhes, e colocando, daqui para frente, nas doações a serem realizadas, as cláusulas restritivas desejadas de modo claro, sem deixar dúvidas. Afinal, mesmo para aqueles que entendem já estar implícita a inalienabilidade ao cônjuge, quando o bem recebido por doação contiver a incomunicabilidade, não custa colocá-la de modo expresso e específico, caso essa seja mesmo a vontade do doador, evitando possíveis litígios futuros e fortalecendo a segurança jurídica ao ato praticado. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias. *João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP. Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista/SP, onde iniciou suas atividades em 1999. **Rafael Gil Cimino é mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Bacharel em Direito pela USP. 3º Tabelião de Notas e Protesto de São Vicente/SP. __________ 1 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. 2 ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2.012, p. 454, grifos nossos. 2 Informação fornecida aos autores pelo Professor Cristiano Chaves de Faria a propósito do tema, em comunicação mediada pela Professora Martha El Debs, em 17/08/2021. 3 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. As restrições voluntárias na transmissão de bens imóveis - cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Quinta Editorial, 2012, p. 28. 4 FIORANELLI, Ademar. Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Saraiva, 2.009, p. 24. 5 Veloso, Zeno. Direito Civil - Temas, Editora Artes Gráfica Perpétuo Socorro, Belém, 2018, pp. 267 e 268.
quarta-feira, 6 de outubro de 2021

RIP Doing Business

No dia 16 de setembro, o Banco Mundial anunciou o encerramento definitivo do que foi, havia anos, seu projeto mais importante: os indicadores Doing Business, concebidos para "medir objetivamente as regulamentações econômicas e sua aplicação em 190 países" (World Bank, 2021). Seu design errôneo, aliado à corrupção sistemática, e a sobrevivência do modelo ao longo de tantos anos, apesar das críticas que lhe endereçávamos, diz muito sobre o fracasso das organizações internacionais: à época criadas para apoiar o desenvolvimento, hoje servem tão-somente aos interesses de seus atuais burocratas e futuros consultores. Com o Doing Business, o Banco Mundial dilapidou uma excelente oportunidade para avançar na medição das instituições. No entanto, seu cancelamento é uma boa notícia porque, como venho argumentando em uma série de artigos e publicações desde 2007, em muitos países sua influência no desenvolvimento institucional acabou sendo ruinosa (Arruñada, 2007, 2009). Os erros eram visíveis desde o princípio - tanto no plano metodológico quanto no organizativo. Desde o seu lançamento, para evitar a oposição dos Estados Unidos (principal financiador do Banco), os responsáveis pelo projeto, dirigido pelo economista e político búlgaro Simeon Djankov, escolheram uma metodologia parcial, que não valorizava o benefício efetivo decorrente das regulamentações, mas apenas alguns de seus custos explícitos. Nunca se deu a devida atenção ao valor; por exemplo, à maior ou menor segurança jurídica de um ou de outro sistema, ou para a redução de custos contratuais futuros. Além disso, computavam somente procedimentos e trâmites formalmente obrigatórios, mas não os que são obrigatórios de fato, como aqueles associados a monopólios profissionais. Isso acabava por favorecer os países anglo-saxões, já que nos sistemas jurídicos da common law pesam relativamente mais as obrigações de fato do que as de direito. Por exemplo, em Nova York, que era a cidade de referência para os Estados Unidos, cada parte de um típico contrato imobiliário - o comprador, o vendedor ou o banco - paga pelos serviços de um advogado, de modo que ao menos três advogados atuam em cada transação - ou quatro, se estiverem envolvidos dois bancos. Entretanto, esse procedimento e seus enormes custos jamais eram incluídos no índice sobre as instituições relativas à propriedade imobiliária. A equipe do Doing Business alegava que a intervenção dos advogados não era obrigatória, pois os contratantes poderiam optar por se apoiarem juridicamente a si mesmos (do-it-yourself-conveyancing). Como se sabe, esse modelo é incompatível em muitos estados, com a contratação de especialistas que não sejam advogados ou - em todos eles - por determinar a um só advogado imparcial que represente todas as partes envolvidas). Diferentemente, em países como Alemanha ou Espanha, para que se registre uma compra e venda, ou uma hipoteca, é obrigatória a notarização e esse procedimento sempre foi computado pelo Doing Business. Consequentemente, a exclusão dos advogados novaiorquinos distorcia gravemente os resultados, já que os advogados das partes representam um custo que se situa entre nove e doze vezes mais caro do que os notários em países europeus com bons registros imobiliários, como a Alemanha e a Espanha (ao contrário da França ou da Itália, que ainda mantêm registros de documentos). Em virtude da presença, já de partida, de tais falhas metodológicas, é lógico que os melhoramentos do Doing Business, ao largo de toda sua existência, foram escassos, quando não prejudiciais. Para os indicadores iniciais, o método, que muitos de nós víamos como um primeiro passo, foi paralisado e, em alguns casos, foi ainda pior, como sucedeu ao se introduzir indicadores de qualidade em matéria de propriedade (Arruñada, 2017, 770; 2018). O erro organizativo teve consequências ainda mais perniciosas. Para figurar na imprensa e gozar de influência política, convertendo o projeto numa alavanca de reforma e promoção pessoal, foram apresentados dados muito parciais como se fossem representativos da verdadeira eficiência institucional. Além disso, de forma consciente - e em que pese o fato de que sua metodologia fosse preliminar, incompleta e tendenciosa -, optou-se por divulgar os resultados em formato das ligas desportivas, publicando rankings de países, medindo a distância em que se situava cada qual em relação à "fronteira" da regulação supostamente ótima. Essa estratégia servia bem ao interesse dos burocratas responsáveis do Banco, ávidos por protagonismo mediático em um momento em que muitos políticos dos EUA questionavam a própria existência do Banco, já que seus projetos de apoio ao desenvolvimento sempre produziam resultados deficientes. Durante anos, a cada outono, a nós, que havíamos analisado as entranhas da besta, se nos afigurava doloroso observar como a imprensa financeira internacional (desde o Wall Street Journal ao Financial Times e The Economist) e, claro, a imprensa nacional, mordiam a isca dos rankings do Doing Business. Por sinal, até hoje muitos economistas são fisgados, talvez predispostos a crer em qualquer indicador que lhes permita dar um brilho empírico aos seus "abridores de latas teóricos"1. Em cada reavaliação sucessiva do projeto nunca houve falta de grandes economistas, como Andrei Shleifer, que afirmassem o quanto valioso eram seus números para investigações empíricas. As consequências dessa repercussão mediática não tardaram: os esforços de reforma de muitos países se concentraram em melhorar sua pontuação nos rankings, sem atentar às consequências reais ou compreender as limitações da metodologia. A Millennium Challenge Corporation, uma criatura gerada para lidar com parte da ajuda ao desenvolvimento dos EUA, chegou a condicioná-la ao logro de objetivos definidos em termos dos indicadores do Doing Business. Os responsáveis tiveram a audácia de publicar suas Diretrizes de Boas Práticas (Best Practice Guidelines), que, na melhor das hipóteses, chegaram a consagrar seus próprios vieses iniciais (ver Arruñada, 2018, para uma crítica de um deles). Além disso, desenvolveram trabalhos de consultoria, gerando um evidente conflito de interesses, uma vez que aqueles que assessoravam, indicando como e o que reformar, achavam-se muito próximos daqueles que avaliariam as reformas. Não foram apenas os países em desenvolvimento que foram afetados. Em todo o mundo, e de forma proeminente na União Europeia, ingentes recursos foram dedicados à realização de reformas que só mudaram os resultados do Doing Business sem melhorar necessariamente a qualidade das instituições, muitas vezes piorando-as. Entre nós, vale lembrar os imensos esforços governamentais para universalizar o acesso à administração - como se a integração dos processos e trâmites administrativos servisse, por si só, para algo além de ocultar os seus custos do contribuinte. Ou as sucessivas reformas empreendidas para que se pudesse constituir sociedades cada vez mais rapidamente, como se os escritórios de advocacia do setor não tivessem disponíveis "empresas pré-constituídas" para realizar operações urgentes e sem demora; ou como se a constituição de empresas impusesse uma barreira à entrada na atividade empresarial. E tudo isso esquecendo-se dos alvarás e de licenças de abertura de empresas - fato crucial e que permanece ainda sem solução. (A propósito, a situação dos Estados Unidos, e especialmente do Estado de Nova York, no que diz respeito às licenças de abertura de empresas, também havia levado o Doing Business a tratá-las em sua pomposa metodologia de forma tão ambígua que, quando aplicada, puderam computá-las de maneira "politicamente correta".) Não só a metodologia era tendenciosa, como nem mesmo a aplicaram uniformemente, permanecendo sua aplicação à mercê da capacidade de influência de distintos países. Desde o início, sua aplicação foi manipulada para que alguns países saíssem bem retratados. Dentro do próprio Banco, especialistas regionais faziam chacotas sobre os bons números obtidos por países "amigos", como Afeganistão ou Egito, apesar desses países manterem instituições deploráveis. De fato, já em 2008 uma avaliação interna do Banco (IEG 2008) observou inúmeras deficiências na aplicação da metodologia. Essa suspeita foi reiteradamente confirmada em relação a uma cifra tão destacada como a estimação dada pelo Doing Business para o tempo necessário para se abrir uma empresa nos Estados Unidos. O Doing Business apartou-se desde o princípio de sua própria metodologia, reduzindo-a artificialmente de 26 para seis dias (Arruñada, 2009, p. 559). Se o método tivesse sido aplicado corretamente, os Estados Unidos teriam caído no ranking de 2007 das posições 3-5 para 57-60, em companhia de El Salvador, Lituânia e Serra Leoa. Dois anos mais tarde, em 2009, teriam caído entre 94 e 98. Aos funcionários do Banco que questionaram o assunto, foi-lhes dito, já então, que aplicar o método corretamente era, nesse caso, politicamente inviável. Nos informes de avaliação mais recentes abundam indícios de que esse não era um caso isolado. Por isso, não me surpreende ler sobre as grosseiras manipulações descritas no informe que serviu de escusas para dar cabo ao projeto (Wilmer Hale, 2021). No entanto, tudo indica que o projeto Doing Business se encerra não por causa das irregularidades, aliás bem conhecidas desde o início, mas em razão de seu descrédito mediático progressivo. Simplesmente porque a imprensa internacional deixou de crer no projeto, uma conversão que cobrou a bagatela de 17 anos. Não é porque finalmente se preocuparam em compreender suas graves falhas estruturais, mas porque as classificações (rankings) começaram a ser chatas e aborrecidas, e porque, acima de tudo, a manipulação das cifras de alguns países, em que pese ser este um pecadilho quando se fala de 190 países, é um pecado muito mais noticioso. Creio que as consequências do encerramento para as reformas institucionais serão positivas. Sobretudo porque a disponibilidade desses índices quantitativos havia servido como desculpa para não se pensar ou atacar os problemas reais, nem para atender à prioridade de seus componentes. Muitas das instituições que o Doing Business media, como tribunais ou Registros Públicos, prestam serviços que atuam como catalisadores da atividade econômica. Por essa razão, a qualidade jurídica do serviço é, certamente, seu atributo essencial, muito mais relevante do que o tempo consumido ou mesmo os custos explícitos. Ao prestar atenção apenas a este último elemento, o Doing Business estimulava reformas cosméticas que muitas vezes só conseguiram aumentar e acelerar a produção de serviços inúteis. (A atenção desproporcional que prestamos na Espanha aos tempos dos tribunais quanto à má qualidade e imprevisibilidade das sentenças é um bom exemplo disso). Trata-se de uma versão do velho problema que surgiu no mundo da gestão (management) na década de 1960, após a proliferação dos primeiros computadores: a disponibilidade de dados quantitativos levou grandes empresas a praticar uma "gestão baseada em números" da qual levariam décadas para se livrar. O governante, como o gerente dos anos 1960, baseia suas decisões nas informações disponíveis e quando há muita informação quantitativa - fácil de processar - e pouca informação qualitativa - muitas vezes difícil até mesmo de entender - ficam tentados a decidir sobre as bases quantitativas. Sem medições, torna-se difícil decidir bem, mas, com medições é tentador basear-se nelas, o que garante decisões errôneas. Ainda mais se, ao fazê-lo, o administrador recebe os aplausos de jornalistas e de cientistas sem tempo ou impulso para deter-se a entender a complexidade daquilo com que lidam. Esperemos que a descontinuação do Doing Business tenha similares efeitos terapêuticos no âmbito institucional e que gere uma reflexão crítica em todos os participantes, não só no Banco Mundial, mas também na imprensa financeira e nos fóruns liberalóides que o apoiaram apenas por compartilhar uma visão igualmente simplista do Estado. Também entre os investigadores que hoje choram copiosamente por dados agregados e que durante quase duas décadas os tomaram demasiadamente a sério. Muitos tendiam a acreditar que, processados em um shaker econométrico, os dados resultantes lhes proporcionavam resultados científicos sólidos. Esqueceram aquele velho princípio da programação de computadores segundo o qual, se o lixo entra em um processo, o que dele sai também o é geralmente (GIGO, Garbage in, Garbage out) - ou, na melhor das hipóteses, uma massa informe cuja natureza não conhecemos. Lamenta-se, a esse respeito, o fato de que descontinuaram o Doing Business quando sua influência já se havia declinado tanto que o dano que causava era cada vez menor e, quiçá, poderia um dia compensar-se com o exíguo valor de seus dados desagregados que poderiam proporcionar alguma utilidade para comparar a organização institucional de distintos países. Enfim, cuidado com o otimismo: lembremo-nos de que uma das reações ao fracasso do "quantitivismo gerencial" foi uma moda passageira e daninha (managing by wandering around). A partir da gestão baseada em números incompletos e tendenciosos, alguns se fiaram em fofocas. Esta anedota serve para ilustrar a grande lição deste caso: as receitas fáceis geralmente encontram compradores, em boa medida porque ocultam a complexidade dos problemas.  Referências Arruñada, Benito (2007), "Pitfalls to Avoid when Measuring the Institutional Environment: Is 'Doing Business' Damaging Business?", Journal of Comparative Economics, 35(4), 729-47. Arruñada, Benito (2009), "How Doing Business Jeopardizes Institutional Reform", European Business Organization Law Review, 10(4), 555-74. Arruñada, Benito (2017), "Property as Sequential Exchange: The Forgotten Limits of Private Contract", Journal of Institutional Economics, 13(4), 753-83. Arruñada, Benito (2018), "Evolving Practice in Land Demarcation", Land Use Policy. 77(September), 661-75. IEG (Independent Evaluation Group; The World Bank). 2008. Doing Business: Independent Evaluation (Taking the Measure of the World Bank/ IFC Doing Business Indicators). Washington, DC: World Bank, June 15. Wilmer Hale (2021), "Investigation of Data Irregularities in Doing Business 2018 and Doing Business 2020 - Investigation Findings and Report to the Board of Executive Directors", September, 15. World Bank (2021), World Bank Group to Discontinue Doing Business Report, September 16. Links adicionais Arruñada (varios años), Otras publicaciones relacionadas. Arruñada (2007-2021), Discusión sobre Doing Business, con comentarios a lo largo de su evolución (en inglés). *Benito Arruñada é catedrático de Organização de Empresas na Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Espanha.    **Esta tradução, revista e aprovada pelo autor, é dirigida especialmente aos registradores brasileiros que buscam modernizar os processos de registro e o aperfeiçoamento das instituições jurídicas e econômicas (Sérgio Jacomino). __________  1 NT: É uma anedota contada entre economistas. "Suponhamos que haja um abridor de latas", diz o chiste sobre o economista que se viu isolado em uma ilha deserta e que, para comer, tinha somente alimentos enlatados.
Fica inaugurada hoje a "Oficina Notarial e Registral", uma seção da coluna Migalhas Notariais e Registrais destinada à publicação de peças práticas do quotidiano das serventias. Ela ladeará a seção "Doutrina Notarial e Registral", que, até agora, hegemonizou a coluna. Portanto, o leitor terá acesso tanto a peças práticas quanto a artigos doutrinários. Hoje, reproduzimos a manifestação do registrador Sérgio Jacomino (São Paulo) no procedimento administrativo nº 1057614-05.2021.8.26.0100 (Acesso aqui) que tratou de questão interessantíssima: o cabimento ou não de averbação de restrições construtivas nas matrículas de imóveis. As manifestações e peças práticas aqui publicadas serão acompanhadas de decisões de procedência ou não e servem para o fomento dos estudos e debates acerca de questões que chegam às serventias notariais e registrais. Carlos E. Elias de Oliveira *******  Questão preliminar - não se trata de dúvida Embora a requerente postule que "seja suscitada dúvida à autoridade competente, nos termos do artigo 198 da lei 6.015/73", o fato é que o ato, caso consumado, se aperfeiçoará como mera averbação e, consoante a firme orientação jurisprudencial de São Paulo, não cabe a suscitação de dúvidas com base no dispositivo legal supracitado1. O direcionamento do pedido deveria ser feito à Eg. 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Todavia, uma vez protocolado o pedido diretamente nesta Serventia, aproveitando o princípio da liberdade das formas em processos administrativos (art. 188 do CPC) e prestigiando a celeridade e economia processuais, peço vênia a Vossa Excelência para já veicular as razões pelas quais as averbações pleiteadas pela Companhia não foram por nós deferidas.  Minuta de ato registral A COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO - METRÔ formulou requerimento para que se proceda à averbação de "restrição construtiva" nas matrículas que indicou "por estarem próximas às instalações operacionais do METRÔ e pela possibilidade de alienação" dos ditos imóveis. Sugeriu a seguinte redação para a prática do ato averbatório: "Face à proximidade deste imóvel com as estruturas do Metrô, qualquer projeto previsto para a área não deverá interferir fisicamente e nem induzir esforços ou alívios adicionais àqueles computados no dimensionamento definitivo dessas estruturas. Dessa forma, os projetos com parecer técnico de consultor especializado, assegurando que o empreendimento proposto não causará danos à integridade das estruturas existentes, deverão ser submetidos previamente à Companhia do Metropolitano de São Paulo - METRÔ". Em face do pedido - e da "minuta" algo heterodoxa -, devolvemos o título preliminarmente, rogando, ao interessado, que fundamentasse o seu pedido, justificando a prática do ato. A única fundamentação foi de que outras serventias já teriam praticado tal ato, o que julgamos um fundamento jurídico de todo insuficiente. A hipótese trazida pelo METRÔ suscita os temas de restrição ou limitação à propriedade - ou mais limitadamente da hipótese de mera obrigação com eficácia real. Antes de deferir o pedido e proceder à averbação, era necessário perquirir qual seria a natureza jurídica do seu objeto, o que foi feito com a nota devolutiva indicada na petição. Quid juris? Restrição, limitação ou mera obrigação? Afinal, qual o fundamento legal a dar base à pretendida averbação? A doutrina há muito distingue as figuras enunciadas supra. São bastante conhecidas as lições de PONTES DE MIRANDA no deslinde que faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição refere-se a atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam o seu exercício. O "domínio não é ilimitável", dirá o tratadista. "A lei mesma estabelece limitações. Nem é irrestringível. A lei contém regras dispositivas de restrição e os negócios jurídicos podem restringi-lo. As mais características das restrições são as restrições reais, ditas servidões", remata1-A. Segundo o mesmo autor, as limitações ao conteúdo do direito de propriedade, lato sensu, ocorrem: a) no interesse de vizinhos (direitos de vizinhança, a que correspondem deveres de vizinhança), b) no interesse público, geral ou administrativo (especial), ou de algum serviço não- estatal, que tenha interesse para o Estado . Ao passo que as restrições de domínio atraem as regras e princípios de direito privado, na consideração de que os negócios jurídicos possam diminuir ou mitigar o exercício dos direitos dominiais - como por exemplo no caso de servidão, usufruto, uso etc. - em face das limitações prepondera um elemento de conformação do próprio direito. Essas limitações encontram sua fonte na lei (fundamentalmente) ou em decisões jurisdicionais. Em regra, tais vicissitudes não dependem da publicidade registral, já que se projetam e vinculam todos - privados ou não. O escopo da lei 6.015/1973, Lei de Registros Públicos, é a garantia de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos previstos pela legislação civil (art. 1º). O Registro de Imóveis é a contraparte formal na tutela de interesses privados. Já as limitações ao conteúdo do direito de propriedade atinem com o interesse público e são em regra irregistráveis (ou, como no caso se pretende: averbáveis), por decorrerem da própria lei. SERPA LOPES, dirá que as servidões legais escapam ao registro imobiliário "por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência". Submetem-se a um regime legal especial, diz, "v. g., proibição de não ultrapassar determinada altura nas proximidades da zona de defesa militar". As restrições legais (como as servidões ditas "legais") não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária . O mesmo raciocínio se adota aqui: as limitações legais não se acham subordinadas à inscrição. A lei 13.097/2015 e a concentração na matrícula Embora não agitado pela interessada, poderíamos voltar nossos olhos ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a "averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados". A restrições convencionais nada mais são do que negócios jurídicos celebrados entre particulares no pleno exercício da autonomia da vontade. Conformam-se à lei, estritamente falando, como nos casos em que se restringe o exercício dos direitos dominiais. Já as ditas "restrições" (rectius: limitações) administrativas são as que se originam da lei ou de uma sentença judicial. São variados os exemplos de limitações administrativas: obrigação de não edificar acima do gabarito previsto, não proceder ao desmatamento de uma área ambiental sensível, observância, pelo particular, de áreas non ædificandi, e tantas outras hipóteses encontráveis de sobejo, por exemplo, nos planos diretores das grandes cidades. No caso concreto, pretende o METRÔ vincular terceiros que poderão vir a adquirir imóveis que hoje estão na titularidade da Companhia. Porém, não é dado ao proprietário impor, a si próprio, limitações ao exercício dos poderes que são inerentes ao estatuto jurídico da propriedade. Não se pode gravar e limitar o próprio direito real e modificar a estrutura prototípica da propriedade. É evidente que o sucessor, caso queira construir, reformar ou demolir, empreender reformas estruturais, deverá aprovar o projeto na municipalidade, que certamente procederá às inspeções do projeto e levará em consideração as circunstâncias peculiares das áreas em questão e em conformidade com as leis urbanísticas. De outra banda, sempre será possível ao METRÔ, na defesa de seus interesses, manejar as ações de nunciação de obra nova (art. 1.299 do CC). Obrigações propter rem A hipótese também poderia convocar as figuras de obrigações propter rem, em que se dá uma prestação específica que vai involucrada num direito real. Porém, não se pode alterar (em regra) a substância dos direitos reais (tipicidade), muito menos de modo unilateral, gravando-os. Revérberas dos direitos reais, as obrigações ditas propter rem devem estar previstas em lei. Em suma: a lei veda a autolimitação da propriedade e as ditas "limitações administrativas" devem buscar seu fundamento na lei ou na jurisdição. Averbações - numerus apertus A ilustre representante do METRÔ acena com a possibilidade de se consumar a averbação tendo em conta o fato de que o rol do inciso II do art. 167 da lei 6.015/1973 seria meramente exemplificativo, indicando, como precedente, o REsp 1.161.300/SC, julgado pela Segunda Turma do STJ. Vamos por partes. Concorda-se em termos com a afirmação da representante da COMPANHIA. O rol dos atos averbatórios é, de fato, um numerus apertus, conclusão a que se chega conjugando-se o dispositivo do art. 246 com o inc. II do art. 167 da LRP. O objeto de averbações são as circunstâncias que de algum modo alterem o registro, restringem-se a situações constitutivas, modificativas ou extintivas de direitos anteriormente inscritos. Em princípio, a averbação serve, como dizia SERPA LOPES, "para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real"2. E concluiria mais adiante: "Convém salientar, no entretanto, que esta enumeração não se deve tomar como uma formalidade restrita aos mesmos, mas, mui ao contrário, de vez que se trata de um ato acessório, tendente a publicar as mutações de índole secundária, em relação ao imóvel ou à pessoa do titular de direito sobre o mesmo, lícito é interpretá-lo de um modo mais amplo, admitindo-se a averbação mesmo para outros atos ou fatos análogos, ou ainda que simplesmente interessem a uma publicidade mais completa, acerca da situação do imóvel em todos os seus sentidos"3. Muito embora as averbações não se achem estereotipadas num rol ocluso - ou como se diz: em um numerus clausus -, isto não quer significar que qualquer circunstância possa legitimar o acesso ao sistema registral, sob pena de transformar o Registro de Imóveis numa mixórdia informativa. O próprio AFRÂNIO DE CARVALHO, a seu tempo, diria que o "registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real"4. A regra que deve imperar é a de que "não é inscritível nenhum direito que mediante a inscrição não se torne mais eficaz do que sem ela"5. Em suma: a "averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende".6 E aqui chegamos ao ponto em que o problema pode ser diretamente enfrentado. As averbações têm a natureza e o condão de constituir, modificar ou extinguir direitos já inscritos - excetuadas aquelas averbações que, por desvio sistemático do legislador, perderam o caráter de acessoriedade e ingressam na tábula com o signo de principalidade, constituindo direitos. São exemplos as cauções locatícias, as penhoras e outras da mesma natureza. O pleito da CIA DO METROPOLITANO não decorre de atos e negócios jurídicos que se formam sob a égide do direito privado e que são corolários do princípio da autonomia da vontade. Tampouco se refere a circunstâncias de fato averbáveis - como as mutações físicas do bem, mudança de numeração predial, construção e demolição de acessões etc. O pleito parece calhar no âmbito das limitações ao próprio direito, ferindo os elementos que constituem o plexo do estatuto jurídico da propriedade (art. 1.228 do CC). Não estamos a tratar, aqui, de mera modificação dos atos e fatos inscritos (art. 246 da LRP) - as tais "sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro" -, mas a modificar o próprio estatuto jurídico da propriedade privada. As circunstâncias a que alude a representante são evidentemente relevantes, merecem acolhida, é certo, mas o fundamento legal não se acha bem ajustado, nem os instrumentos jurídicos, de que poderia eventualmente se servir, foram bem especificados, salvo melhor juízo. Em interessante precedente da Eg. CGJSP, discutia-se a averbação premonitória do ajuizamento da ação de constituição da servidão administrativa "para fins de publicidade a uma questão de alta relevância (passagem de dutos de gás natural)". A "alta relevância da matéria", em momento algum contestada, não foi razão suficiente para, de per si, deferir a averbação. O instrumento jurídico para produzir os efeitos de publicidade jurídico-real seria o registro da servidão, não a simples notícia do ajuizamento da ação:  "Em outros termos, neste caso concreto a mutação jurídico-real do direito de propriedade consiste na constituição de servidão administrativa que para efeito de publicidade deve ser lançada na matrícula mediante ato de registro em sentido estrito, não se prestando a averbação do ajuizamento da ação de servidão, já julgada, para contornar exigência feita para o registro"7.  Afinal, trata-se de uma servidão de direito privado? Estamos diante de uma servidão administrativa? Há lei urbanística que limite ou autorize gravar o bem do METRÔ? Se positivo, quais são? Nos atos expropriatórios dos imóveis para construção da estação há qualquer pista que pudesse servir de base para a averbação? Estas são questões que somente o requerente poderá responder com a utilização do instrumento jurídico adequado para atendimento dos seus interesses. Os meios jurídicos para se atingir os relevantes objetivos aqui apresentados não foram tentados e esta não é a via, sempre salvante melhor juízo.  STJ - o precedente citado Para não deixar de responder à representante - que indicou um importante precedente do STJ - permita-me Vossa Excelência traçar alguns comentários. Trata-se do REsp. 1.161.300-SC , relatado pelo ministro HERMAN BENJAMIN8, cujo tema enfrentado naquele r. aresto não guarda inteira relação com o pleito aqui deduzido - e isso pelas seguintes razões. a) A averbação foi determinada em ação judicial, na esteira de acórdão prolatado anteriormente e que deferira liminar pleiteada pelo Ministério Público. A averbação foi promovida com suporte no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP que prevê a inscrição premonitória de "decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados", o que não é o caso. b) Nesta hipótese, o pleito poderia ser acolhido com base no inc. III do art. 13 da LRP que prevê o acesso de pedidos do Ministério Público, sempre ressalvado: "quando a lei autorizar". c) Por fim, tratava-se de Ação Civil Pública, proposta com o fito de obstar a construção de um grande empreendimento imobiliário em APP (Área de Preservação Permanente), o que alçava de relevância a tutela dos direitos do consumidor e convocava o princípio da informação, o que igualmente não é o caso.  Conclusões Entendo inviável a averbação tal e como postulada pela COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO. Reconheço tratar-se de tema muito relevante e que está a demandar uma ação efetiva da COMPANHIA para tutelar e proteger os cidadãos em face dos riscos que uma construção fora dos padrões estruturais poderia representar. Entendo, todavia, que a via eleita não é a juridicamente adequada para o caso concreto. Certamente Vossa Excelência poderá apreciar o pleito do METRÔ (do qual sou usuário muito satisfeito e um entusiasta desse modal de transporte) e decidir o que de Direito. Apresento a Vossa Excelência os protestos de elevada estima e distinta consideração. São Paulo, 28 de maio de 2021. SÉRGIO JACOMINO, Oficial. __________ 1 Brevitatis causa: Ap. Civ. 2036956-49.2021.8.26.0000, Cruzeiro, dec. de 3/5/2021, Dje 3/5/2021, des. Ricardo Mair Anafe. Acesso aqui. 1-A MIRANDA. Pontes. Tratado. Tomo XI. São Paulo: Borsoi. § 1.163. Limitações e restrições. 2 SERPA LOPES. Miguel Maria. Tratado. Vol. IV. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A. 1961, p. 196. 3 Op. cit. p. 199. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 283. 5 Op. loc. cit. 6 Op. cit. 7 Processo 1000368-41.2017.8.26.0472, Porto Ferreira, dec. de 8/3/2019, Dje 19/3/2019, decisão do desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Acesso aqui. 8 REsp 1.161.300-SC, j. 22/2/2011, Dje 11/5/2011, rel. min. Herman Benjamin. Acesso aqui.
O texto cuida da "debilidade traiçoeira" das garantias reais no Brasil: os credores reais só costumam descobrir a impotência dessas garantias diante de créditos trabalhistas e fiscais quando já é tarde demais. A fragilidade das garantias reais é uma ameaça significativa ao desenvolvimento econômico e social do país (capítulo 1 e 2). Os direitos reais de garantia (anticrese, penhor e hipoteca) e os direitos obrigacionais em garantia com eficácia real (caução de móveis e imóveis, por exemplo) cedem diante das penhoras procedentes de credores trabalhistas ou fiscais. Isso vale ainda que tenha sido instaurado um concurso universal de credores por conta de falência ou de insolvência civil. Vale também para um concurso especial de credores, que nasce com a pluralidade de penhoras ou com a formulação de pedidos de terceiros em ações movidas contra o devedor.  O dinheiro obtido com a excussão do bem satisfará, em primeiro lugar, esses credores privilegiados, de modo que, se sobrar algo, o credor real será saciado (capítulos 3 e 4). A alienação fiduciária em garantia não possui essa fragilidade, apesar de haver precedentes minoritários de cortes trabalhistas regionais em sentido contrário (capítulo 4.4.). A legislação precisa mudar. Enquanto isso, o mais recomendável é valer-se da alienação fiduciária em garantia no lugar dos vulneráveis direitos reais de garantia (capítulo 5). Introdução Grande parte dos empresários ignora a fragilidade da hipoteca ou de outras garantias reais (caução, penhor, por exemplo) no ordenamento jurídico brasileiro e, por isso, celebram contratos de elevada expressão econômica fiando-se nessas hesitantes garantias reais. A amargura vem posteriormente, quando esses empresários descobrem que sua garantia real é irrelevante diante de credores trabalhistas e fiscais, os quais - conforme a experiência demonstra - costumam representar a fatia mais expressiva das dívidas de uma empresa. Temos o que chamamos aqui de uma "debilidade traiçoeira" das garantias reais no Brasil. Neste texto, com o máximo de objetividade possível, focaremos apenas uma das debilidades dessas garantias: a sua impotência quase que absoluta diante de credores trabalhistas e fiscais. Não abordaremos outras vulnerabilidades, como as relacionadas à sua execução (que é morosa e cheia de percalços1) ou à sua flexibilização com base em princípios sociais2. O assunto é extremamente sensível ao desenvolvimento econômico e social do País. O sistema de garantias é um dos pilares do mercado e da economia, de modo que fragilidades aí repercutem negativamente por meio, por exemplo, do aumento de preços (para absorver a insegurança das garantias) e da inibição a novos negócios (empresários deixam de arriscar novos investimentos pela falta de confiança nas garantias). Os índices sociais acabam sendo atingidos indiretamente com o aumento do desemprego, com a inflação, com a inviabilidade de o Governo custear programas sociais em razão da queda na arrecadação tributária, com o não lançamento de novos produtos e serviços no mercado etc. Exemplos práticos para ilustrar o problema Antes de passar a uma exposição teórica do problema, descortinaremos o problema deste artigo por meio de  exemplos práticos. Afinal de conta, o direito nasce dos fatos, diziam os romanos (ex facto oritur jus). Para começar um negócio, uma empresa decide obter um empréstimo perante o banco para pagamento em 100 prestações mensais. Em garantia, a empresa hipoteca um lote seu. É feito o registro da hipoteca no Cartório de Imóveis. Com o dinheiro, a empresa inicia as atividades, gera empregos, recolhe tributos etc. Três anos depois, os negócios entram em turbulência, e a empresa se endivida perante os seus empregados, o Fisco, os seus fornecedores e os consumidores. Cada um desses credores ajuíza ações de execução e só encontram, como bem penhorável, o imóvel hipotecado. Não há dúvidas de que os credores podem penhorar esse imóvel com a consequente intimação do credor hipotecário. A dúvida, porém, é a seguinte: alienado o bem em hasta pública, o dinheiro obtido será utilizado para pagar prioritariamente o credor hipotecário (o banco, no caso) ou esses demais credores? A resposta parece ser óbvia: o credor hipotecário receberia em primeiro lugar por conta de sua garantia estar registrada no Cartório de Imóveis, de modo que, se sobrar algo, os demais credores poderão ser satisfeitos. Entretanto, essa obviedade só se aplica para os credores em geral, sem incluir, porém, os credores trabalhistas e fiscais. Estes últimos, por força de uma interpretação sistemática fruto de textos legais não muito claros, recebem primeiro do que o próprio credor hipotecário, independentemente de seus créditos terem surgido posteriormente ao registro da hipoteca. Metaforicamente, é como se todos os imóveis no Brasil - mesmo aqueles cuja matrícula no Cartório de Imóveis aparenta estar limpa - já estivessem hipotecados a credores fiscais e trabalhistas futuros. Haveria uma "hipoteca" invisível em todos os imóveis brasileiros em prol desses credores privilegiados, mas - para lembrar da fábula da Roupa Nova do Rei - só os "inteligentes" podem vê-la. É essa situação excepcional que será enfocada no presente artigo. No exemplo acima, citamos um banco como credor hipotecário (contrato bancário). Na prática, porém, é extremamente comum haver contratos empresariais e contratos civis comuns envolvendo hipoteca ou outras garantias reais, como no caso de: (1) uma empresa que requer uma hipoteca em garantia do pagamento de um produto de alto valor; (2) um particular que se vale da hipoteca como garantia de um negócio feito com outrem. Conceitos gerais: princípio da patrimonialidade, regra prior in tempore, potio in iure, penhora e a importância das garantias Para tratar do assunto objeto deste artigo, é fundamental recordar alguns conceitos gerais. Segundo o princípio da patrimonialidade, o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, salvo exceção legal (art. 789, CPC). Isso significa que, se não houver lei específica em contrário, todos os bens dele são garantia do pagamento de todas as suas dívidas, de maneira que os credores podem penhorar qualquer deles. Exemplo de exceção ao princípio da patrimonialidade são os bens impenhoráveis (art. 833, CPC). Durante grande parte da história, o corpo, e não o patrimônio, foi a garantia das dívidas, de modo que, em caso de inadimplemento, os credores podiam tomar o devedor como escravo ou, até mesmo, esquartejar-lhe o corpo como execução da dívida, como lembra Maria Helena Diniz3. Ademais, como regra, vigora o princípio do prior in tempore, potio in iure (primeiro no tempo, mais forte no direito): quem primeiro penhorar um bem4 ou quem primeiro obtiver uma garantia real sobre esse bem tem prioridade na sua excussão. Em regra, portanto, não se aplica, pois, a princípio da par conditio creditorum, que estabelece o rateio pro rata dos bens entre os credores de mesmo patamar hierárquico, independentemente da ordem de chegada de cada um deles. Um exemplo de exceção legal que atrai o princípio da par conditio creditorum é o concurso universal de credores da insolvência civil e da falência. Como forma de excepcionar os princípios da patrimonialidade e do prior in tempore, os credores podem valer-se das garantias reais, as quais, por lei, asseguram uma preferência ao credor titular da garantia sobre os bens. Sem essas garantias reais, inúmeros negócios jamais se aperfeiçoariam diante da falta de segurança na recuperação do crédito. Aí está a importância das garantias para o desenvolvimento econômico do país. Se o sistema de garantias creditórias for frágil, moroso e inseguro, a economia tende a sucatear diante do desestímulo ao empreendedorismo e ao financiamento, o que gerará repercussões sociais indesejáveis. Nem tudo, porém, são flores. O sistema de garantia real no Brasil acima citado é lânguido, do que nos dá exemplo a impotência da hipoteca diante de alguns credores especiais, conforme exporemos no próximo capítulo. Vulnerabilidade das garantias reais diante de créditos trabalhistas e tributários: o "drible" da alienação fiduciária em garantia regra geral das garantias reais diante dos concursos universal e especial de credores O regime das garantias reais possui sérias vulnerabilidades ao se levar em conta o entendimento jurisprudencial que se consolidou ao longo dos anos. A leitura do texto do Código Civil e da Lei de Falência isoladamente, sem levar em conta as regras do direito processual, do direito tributário e do direito trabalhista, pode levar a uma falsa sensação de segurança. De fato, à luz do texto do Código Civil, ao se instituir um direito real sobre um bem (hipoteca, penhor e anticrese), o credor passa a ter preferência na excussão da coisa onerada em relação a outros credores por força do princípio do prior in tempore, potio in iure. Em havendo declaração de insolvência civil - que inaugura um concurso de credores (vários credores querem a satisfação dos seus créditos em um único procedimento) -, os arts. 955 e seguintes do Código Civil indicam uma ordem de créditos com preferência em ser satisfeito, de modo a afastar a regra do prior in tempore potio in iure. E, nessa ordem preferencial, o crédito com garantia real é considerado o primeiro lugar, conforme art. 961 do CC. Semelhantemente, em havendo decretação de falência - que abre um concurso de credores -, também se afasta a regra do potio in tempore, potio in iure para priorizar o pagamento dos credores que ocupam classes privilegiadas dentro do quadro geral de credores indicado pela Lei de Falências, como os credores trabalhistas (art. 83 da lei 11.101/2005)5. Esse cenário daria a entender que só com a inauguração do concurso universal de credores por conta da falência ou da insolvência civil é que haveria relevância na categorização hierárquica dos créditos de acordo com seu grau de preferência. Ledo engano! A interpretação conjunta do Código Civil com outros diplomas conduziu a jurisprudência a um rumo diferente para considerar relevante essa hierarquização dos créditos nos casos de concurso particulares (ou específicos) de credores, ou seja, nos casos em que sequer há falência ou da insolvência civil, como no caso de confluência de penhoras sobre um mesmo bem. A propósito, fique claro que há dois concursos de credores: (1) o concurso universal, que reúne todos os credores e todos os bens do devedor e que se dá com a falência, a insolvência civil ou outro procedimento legal similar; e (2) o concurso especial, particular ou específico, que envolve apenas alguns credores que penhoraram o mesmo bem. Os concursos universal e especial de credores do ponto de vista processual: pluralidade de penhoras e outros casos Em ambos os concursos de credores (o universal ou o especial), para definir como ficará a repartição dos bens do devedor entre os credores, há de se separarem os créditos de acordo com o seu grau de preferência à luz da legislação pertinente. Para tanto, (1) no concurso universal, leva-se em conta primariamente a pertinente lei especial, a exemplo da ordem do quadro-geral de credores do art. 83 da Lei de Falência para o concurso universal decorrente de falência, admitida a aplicação subsidiária das demais normas que tratam de preferências creditórias. (2) Já no concurso especial ou particular, aplicam-se as normas gerais que tratam de preferência creditória, como o art. 186 do CTN e os arts. 961 e seguintes do CC, de modo que a repartição do dinheiro obtido com a excussão do bem objeto das várias penhoras será feita em respeito às classes preferenciais de crédito (arts. 797, 908 e 909 do CPC). Processualmente, o concurso especial ou particular de credores deverá ocorrer preferencialmente perante o juízo que realizou a primeira penhora, o qual, em autos apensos ao principal, instaurará incidente para viabilizar o contraditório entre os vários credores que realizaram penhora no rosto dos autos, tudo com o objetivo de que, ao final, o juiz decida a ordem de preferência creditória entre os concorrentes, tudo na forma dos arts. 908 e 909 do CPC. Ainda processualmente, o concurso especial ou particular de credores não depende necessariamente de uma pluralidade de penhoras. É cabível que, em uma execução promovida por terceiros, o credor preferencial requeira a reserva do produto da da penhora para si diante da natureza preferencial de seu crédito, mas, para levantar esse valor, será essencial que esse credor ajuíze uma ação de execução para viabilizar o exercício do contraditório pelo devedor. Foi nesse sentido que o STJ admitiu que, no bojo de uma execução ajuizada pelo Banco do Brasil S/A contra uma cooperativa, um sindicato de trabalhadores requeresse, enquanto terceiro interessado, para a satisfação dos seus créditos trabalhistas contra a cooperativa, a reserva do dinheiro obtido com a arrematação de um bem penhorado da cooperativa, sob a alegação de que os créditos trabalhistas são preferenciais em relação ao crédito executado pelo Banco do Brasil. O STJ, porém, condicionou o levantamento desse valor reservado para o sindicado ao ajuizamento de uma ação de execução por este, tudo com o objetivo de permitir que a cooperativa exercite o contraditório, o qual seria prejudicado se se admitisse que o sindicato simplesmente habilitasse o seu crédito em um processo de execução alheio6. Não se ignora, porém, haver precedentes do STJ em sentido contrário, exigindo a existência de pluralidade de penhoras para o concurso especial de credores7. A situação dos créditos trabalhistas e fiscais diante das garantias reais Tomando em consideração as normas em geral que tratam de preferências creditórias, os créditos trabalhistas e tributários possuem preferência legal em relação aos créditos com garantia real por força do art. 186 do CTN8. Por esse dispositivo do CTN, no ranking creditórios, o crédito trabalhista ocupa o primeiro lugar, o crédito tributário fica em segundo e os demais créditos, inclusive o real, ocupam os demais lugares. Em relação a esses demais créditos, o crédito real tem preferência e, portanto, ficaria em terceiro lugar por força do art. 961 do CC. As demais colocações ficariam com os créditos pessoais (os não reais) segundo a ordem de suas respectivas preferências legais nos moldes dos arts. 961 e seguintes do CC. Nesse sentido, a jurisprudência9 entende que essa preferência legal deve ser levada em conta sempre que houver uma confluência de credores na execução de um mesmo bem, ainda que não tenha havido uma decretação de falência ou de insolvência civil.  Por essa razão, um bem onerado com uma garantia real pode ser penhorado por credores trabalhistas e tributários, que, após a excussão do bem, serão satisfeitos prioritariamente em relação ao credor real. O fundamento disso é o parágrafo único do art. 1.422 do Código Civil, que afasta o direito de prelação dos direitos reais de garantia diante de "dívidas que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros créditos"10. Em reforço a esse entendimento, o art. 30 da Lei de Execução Fiscal - LEF (lei  6.830/1980) -  e o art. 184 do CTN aduzem que o Fisco pode penhorar todos os bens do devedor, "inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e as rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis". Esse dispositivo da LEF se estenderia aos processos trabalhistas em função do art. 889 da CLT, que admite a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista. Em poucas palavras, os créditos trabalhistas e tributários são supercréditos com superprivilégios. Isso significa que, quando, por exemplo, o banco empresta um dinheiro ao mutuário e obtém uma hipoteca como garantia real, essa garantia real é impotente diante de dívidas tributárias ou trabalhistas que o mutuário já tenha ou que este venha a adquirir posteriormente. Credores trabalhistas ou tributários podem penhorar esse imóvel hipotecado para se saciar antes mesmo do banco titular da hipoteca. Nesses casos, considerando que a experiência demonstra que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir valores elevadíssimos, é provável que nada sobre ao credor hipotecário: os trabalhadores e o Fisco devorarão tudo. É absolutamente irrelevante se o credor hipotecário tiver penhorado o imóvel em primeiro lugar. É que, embora a penhora dê um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC), se sobrevierem outras penhoras sobre o mesmo bem, deverá ser observada, em primeiro lugar, a ordem preferencial dos créditos (regra do par conditio creditorum), de maneira que, somente em relação aos créditos de mesmo patamar hierárquico, é que se levará em conta a anterioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iuris). É o que se extrai dos arts. 797, parágrafo único, 908 e 909 do CPC. A única hipótese em que o credor hipotecário estará a salvo é quando já tiver obtido a satisfação efetiva de sua dívida, ou seja, quando os credores tributários ou trabalhistas tiverem "chegado tarde demais". É que, se o credor hipotecário já tiver levantado o dinheiro obtido com a excussão do imóvel hipotecado, seu crédito já terá sido extinto de modo válido, de maneira que, em regra, não haverá nenhum espaço para os credores tributários ou trabalhistas pleitearem a invalidade ou a ineficácia desse pagamento. Enquanto, porém, o credor hipotecário não tiver levantado o dinheiro, podem os credores hipotecários ou trabalhistas pleitearem a penhora do imóvel hipotecado ou do dinheiro obtido com a expropriação forçada deste, caso em que terão prioridade na satisfação dos seus créditos em relação ao credor hipotecário. Todas essas considerações ventiladas em relação à hipoteca se estendem aos demais direitos reais de garantia (penhor e anticrese) e aos direitos obrigacionais em garantia com eficácia em real (caução de móveis ou imóveis11, por exemplo), pois o fundamento legal é o mesmo. A jurisprudência, porém, costuma lidar mais com casos de hipoteca por esta ser a mais recorrente nos processos judiciais. Como se vê, hipoteca, penhor e anticreses são garantias reais extremamente vulneráveis diante de dívidas trabalhistas e tributárias mesmo antes da decretação de falência ou de insolvência civil. Considerando que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir cifras elevadíssimas, tem-se que, na prática, bancos e outros credores que queiram obter uma hipoteca como garantia precisam estar cientes da debilidade jurídica dessa garantia real, fato que terminará por impedir a realização de vários negócios ou por aumentar os preços como forma de incorporação dos riscos de inadimplência. Cabe, ainda, um alerta. A supracitada fragilidade da hipoteca diante de créditos trabalhistas subsiste mesmo para o caso de se tratar de uma garantia vinculada a uma Cédula de Crédito Rural, Industrial ou Comercial, pois o art. 69 do Decreto-Lei nº 167/1967, o art. 57 do decreto-lei 413/1969 e o art. 5º da lei 6.840/1980, que proíbem a penhora do imóvel onerado por uma hipoteca cedular, não prevalece sobre a preferência legal dos créditos trabalhistas. Esse é o entendimento consolidado do STJ12 e também do TST, que, após divergências13, pacificou e editou a OJ nº 226/SBDI-1 (Orientação Jurisprudencial nº 226 da SBDI-1)14: "CRÉDITO TRABALHISTA. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL OU INDUSTRIAL. GARANTIDA POR PENHOR OU HIPOTECA. PENHORA. Diferentemente da cédula de crédito industrial garantida por alienação fiduciária, na cédula rural pignoratícia ou hipotecária, o bem permanece sob o domínio do devedor (executado), não constituindo óbice à penhora na esfera trabalhista." Por fim, sublinhe-se que, por força do art. 832 do CPC, os créditos trabalhistas e fiscais só não poderão gerar penhora sobre bens absolutamente impenhoráveis, como os bens de família protegidos pela lei 8.009/90. A alienação fiduciária em garantia como possível alternativa à impotência dos direitos reais de garantia Nesse cenário de anemia do sistema de garantia reais, a alienação fiduciária em garantia - que é um direito real em garantia (e não de garantia) - desponta como um talentoso "drible" dado pelo legislador sobre a pretensa onipotência dos créditos tributários e trabalhistas. É que, por ela, o credor passa a ser proprietário - ainda que resolúvel - do bem dado em garantia, ao passo que o devedor só terá um direito real de aquisição. Daí se segue que, caso esse devedor fiduciante venha a adquirir dívidas trabalhistas ou tributárias, só sobrará aos trabalhadores ou ao Fisco buscar a penhora desse direito real de aquisição, mas nunca do próprio direito real de propriedade, pois este não pertence mais ao devedor: Fisco e trabalhadores não podem penhorar bens de terceiros. Esse entendimento pela robustez da propriedade fiduciária é pacífico no STJ15, mas, no âmbito da Justiça Trabalhista, embora seja predominante, não há pacificidade diante da existência de julgados divergentes entre os vários Tribunais Regionais e diante do fato de o TST atualmente estar se recusando a se pronunciar sobre o mérito por questões processuais16. Por evidência, não estamos tratando aí dos casos em que o ato de instituição da alienação fiduciária em garantia nasceu com um vício de validade ou de eficácia, como na hipótese de fraude contra credores ou fraude à execução, pois, nessas hipóteses, esse vício genético poderá ser invocado para derrubar a garantia fiduciária17. Conclusão Em suma, se alguém pretende ter uma garantia real não vulnerável, a recomendação é que ele se valha da alienação fiduciária em garantia (que é um direito real em garantia), e não das tradicionais e combalidas figuras dos direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese). Ao nosso sentir, a legislação merecia ser alterada para afastar essa fragilidade dos direitos reais de garantia, especialmente porque essa debilidade - logo quando se torna conhecida dos agentes de mercado - acaba por inibir a celebração de novos negócios, por aumentar os preços dos bens etc., tudo em prejuízo não apenas da economia, mas também da sociedade. Para a tutela dos trabalhadores e do Fisco, outras soluções protetivas poderiam ser cogitadas, como flexibilizar hipóteses de impenhorabilidade. O que soa nocivo é, a pretexto de proteção do Fisco ou de alguns trabalhadores, paradoxalmente salgar o terreno em que vicejam empregos e arrecadação tributária, inutilizando um dos pilares dos negócios jurídicos e do mercado brasileiro: as garantias reais. __________ 1 Além de o processo judicial demorar demasiadamente - só a tentativa citação toma quase 4 anos de processo -, a própria expropriação da coisa é dificultosa diante da costumeira existência de impugnações pleiteando a invalidade de hastas públicas. Isso sem falar nos custos com despesas de processos e de honorários advocatícios. O grau de enforcement no Brasil é baixo. A propósito de soluções contratuais para tentar contornar essas debilidades, remetemos o leitor a este outro texto nosso, no qual indicamos cláusulas de bloqueio liminar e de citação ficta como paliativos: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soluções contratuais para a ineficiência de cobrança judicial de dívida. Disponível aqui. Texto elaborado em 1º de agosto de 2019. 2 Por exemplo, a hipoteca não tem força alguma diante dos compradores de imóveis "na planta", se a dívida garantida tiver decorrido do financiamento do empreendimento, tudo conforme a Súmula nº 308/STJ ("A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel"). Há discussão em saber se esse entendimento sumular pode ser estendido para outras situações em favor de consumidores ou para outras hipóteses que envolvem clamor social. 3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 4: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 505. 4 A penhora concede um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC). Entretanto, havendo concorrência de penhora sobre o mesmo bem, será observada, em um primeiro momento, ordem decorrente dos títulos legais de preferência (regra do par conditio creditorum), de maneira que créditos preferenciais serão satisfeitos em primeiro lugar. Em um segundo momento, entre os créditos de mesma preferência legal, será observada a prioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iure), tudo consoante arts. 797, parágrafo único, e 908 do CPC. 5 Na falência, os créditos reais não gozam de prioridade absoluta, embora ocupem posição privilegiado no quadro geral de credores. Créditos trabalhistas, por exemplo, são prioritários (art. 83 da lei 11.101/2005 e art. 449, § 1º, da CLT). 6 STJ, REsp 976522/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 25/02/2010. No mesmo sentido, este julgado: STJ, REsp 1580750/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/6/2018. 7 STJ, AgInt no REsp 1436772/PR, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 18/09/2018. 8 Nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp 1338746/SP, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 19/11/2019. 9 STJ, AgInt no REsp 1328688/PR, 4ª Turma, Rel. Ministro Lázaro Guimarães - Desemb. Convocado, DJe 27/09/2018. 10 Embora o art. 30 da Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/1980) dê a entender que a dívida fiscal não se anteporia aos créditos com privilégios especiais sobre os bens e malgrado o art. 889 da CLT admita a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista, a jurisprudência continua inclinando-se em favor do fato de que o art. 186 do CTN daria uma supremacia aos créditos trabalhistas e tributários em relação a qualquer outro crédito no caso de concorrência de penhoras sobre um mesmo bem. 11 Exemplo: art. 38 da lei 8.245/91. 12 STJ, AgRg no Ag 1391061/PR, 1ª Turma, Relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe 10/06/2011; REsp 1117706/MS, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell, DJe 28/09/2010. 13 Este julgado, por exemplo, entendia contrariamente à orientação atual: TST, RR-723870-57.2001.5.23.5555, 3ª Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, DEJT 20/04/2006. 14 No mesmo sentido: TST, RR-720408-19.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 16/09/2005; TST, AIRR-818200-62.2002.5.06.0906, 2ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Carlos Gomes Godoi, DEJT 17/06/2005; TST, RR-622214-22.2000.5.04.5555, 3ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Ronan Neves Koury, DEJT 29/04/2005. 15 STJ, AgInt no REsp 1505398/BA, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 13/06/2018; STJ, REsp 1646249/RO, 2ª Turma, DJe 24/05/2018; STJ, REsp 910.207/MG, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJ 25/10/2007. 16 O TST já chegou a decidir diferente (TST, AIRR-692851-57.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relatora Juiza Convocada Maria de Lourdes D'Arrochella Lima Sallaberry, DEJT 11/10/2002; TST, AIRR-692849-87.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 29/06/2001). Atualmente, embora o TST, por meio da OJ nº 226/SBDI-1, sinalize a favor da robustez da alienação fiduciária (de modo que trabalhadores e Fisco só poderiam penhorar o direito real de aquisição que pertence ao devedor, e não a propriedade fiduciária), os precedentes mais recentes recusam-se a analisar o assunto diretamente ao argumento de se tratar de matéria infraconstitucional, que não pode ser examinada em sede de recurso de revista decorrente de execução (TST, AIRR-36-96.2013.5.09.0006, 8ª Turma, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, DEJT 01/09/2017; TST, (AIRR-11236-81.2014.5.15.0141, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25/08/2017; TST, AIRR-24600-45.1998.5.02.0044, 1ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 29/04/2016). No âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, a jurisprudência oscila. De um lado, há julgados pela robustez da alienação fiduciária em garantia, vedando a penhora da propriedade fiduciária (TRT1, AGVPET 1634007720035010053/RJ, 3ª Turma, Rel. Des. Leonardo Dias Borges, DJ 26/02/2013; TRT4, AP 0021905-39.2016.5.04.0010, Seção Especializada em Execução, Data de julgamento 11/10/2019; TRT20, AP 000120607.2016.5.200002, Rel. Des. Josenildo dos Santos Carvalho, DJ 20/06/2017; TRT13, AP 008860055.2014.5.130022, 2ª Turma, DJ 11/11/2014). De outro, há julgados de TRT admitindo a penhora da própria propriedade fiduciária (TRT6, AP 00002076820125060201, 4ª Turma, Data do julgamento 30/03/2016; TRT12, AP 03428-1998-027-12-00-0, 1ª C., Relª Des. Viviane Colucci, DJe 05/06/2013; TRT3, AP 568807.02027.1997.012.03.00.2, 3ª Turma, Rel. Des. Bolivar Viegas Peixoto, DJMG 24/11/2007). Aliás, na linha da vulnerabilidade da alienação fiduciária em garantia diante de créditos trabalhistas, houve um julgado do TRT da 17ª Região, em relação a cujo mérito o TST se recusou a se pronunciar em sede de recurso de revista por entender que se tratava de matéria infraconstitucional no bojo de execução trabalhista (TST, AIRR-89800-96.2012.5.17.0009, 1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 14/02/2014). Por fim, há julgados que chegam a uma solução intermediária: admitem a penhora e a alienação judiciária do bem alienado fiduciariamente, mas asseguram ao credor fiduciário o direito de receber prioritariamente o dinheiro para satisfação do seu crédito, deixando o trabalhador com o restante (TRT17, AP 0151000620135170141, Rel. Des. Carlos Henrique Bezerra Leite, DJ 03/07/2014). 17 Nesse sentido, o TST reconhece, em relação ao credor trabalhista, a ineficácia de alienação fiduciária em garantia instituída após o ajuizamento da reclamação trabalhista, visto que aí há fraude à execução (TST, AIRR-10061-30.2018.5.03.0017, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 09/08/2019).
1. Introdução  A consignação extrajudicial em pagamento é apta ou não ao cancelamento do protesto? Este breve artigo trata dessa pequena questão. Antes, porém, trataremos dos aspectos gerais sobre o cancelamento do protesto. 2. Regra geral para o cancelamento  Após a realização do protesto, este só poderá ser afastado por meio de um ato designado de cancelamento, o qual será objeto de averbação (art. 26, LP). O maior interessado é o devedor; por isso, o STJ entende que, salvo inequívoco pacto em contrário, é ônus do devedor pedir o cancelamento do protesto mesmo após ter feito o pagamento da dívida diretamente ao credor (STJ, REsp 1339436/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2014; REsp 1.015.152/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 30/10/2012). O cancelamento do protesto deve ser solicitado diretamente ao tabelião por qualquer interessado, que geralmente é o próprio devedor (art. 26, LP). Para obter o cancelamento, o requerente precisa comprovar a extinção ou a inexigibilidade da obrigação, seja por conta do pagamento, seja em razão de alguma autorização do credor por outro motivo (como uma renegociação da dívida), seja pela prescrição. A rigor, isso só pode ser feito por um dos seguintes documentos indicados no art. 26, caput e § 1º, da LP e no art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ1:  a) o título protestado ou carta de anuência do credor com firma reconhecida; b) uma decisão judicial favorável; e c) algum outro documento que comprove a extinção da obrigação. Antecipe-se que, com base no § 3º do art. 26 da LP, é comum ser afirmado que o cancelamento só pode ocorrer pelas duas primeiras hipóteses, mas não nos parece adequada essa interpretação, conforme exporemos mais abaixo.  3. Cancelamento por autorização do credor: o pagamento  O protesto tem de ser cancelado quando há o pagamento da dívida. Esse pagamento tem de ser feito pelo devedor diretamente perante o credor. Os cartórios de protestos não possuem autorização para receber diretamente o pagamento da dívida depois de lavrado o protesto (arts. 19 e 26, LP). Essa é a regra geral, que pode ser ressalvada se houver algum convênio específico em sentido contrário ou alguma norma local em sentido diverso2. Se o credor se recusar a receber o pagamento, cabe ao devedor buscar uma decisão judicial de cancelamento do protesto, depositando o valor em juízo ou, se for o caso, demonstrando outro motivo que torne o protesto indevido. Nesse caso, o cancelamento do protesto ocorrerá em razão de uma decisão judicial. No caso de o pagamento ter sido feito ao credor extrajudicialmente, o devedor precisa comprovar esse fato perante o tabelião para pleitear o cancelamento. A rigor, a prova desse fato dá-se por uma das seguintes vias:  a) pela apresentação do título protestado b) pela carta de anuência do credor, com firma reconhecida ou por meio de plataforma eletrônica ou c) por outro documento comprobatório da extinção da obrigação.  Em primeiro lugar, é viável o cancelamento do protesto se o requerente apresentar o documento protestado, pois, se ele o portar, é porque ele pagou a dívida. O caput do art. 26 da LP autoriza expressamente isso3. O art. 324 do CC4 corrobora ao estabelecer a presunção de pagamento com a entrega do título ao devedor. É que, em tese, ao ser lavrado o protesto, o tabelião carimba o documento e entrega ao apresentante. Se o devedor, posteriormente, aparece no cartório com esse documento, a presunção será a de que ele pagou a dívida. O tabelião deverá guardar uma cópia desse documento. Não é isso, porém, que costuma acontecer na prática. Os documentos protestados costumam ficar arquivados no próprio cartório, de modo que os devedores só conseguem o cancelamento do protesto se apresentarem a carta de anuência do credor ou uma ordem judicial. Essa é a praxe quotidiana em grande parte dos cartórios brasileiros, ao menos em relação aos títulos que ainda são apresentados em meio físico para protesto. Em segundo lugar, deve-se admitir o cancelamento do registro do protesto por autorização escrita do credor (com firma reconhecida) mesmo fora das hipóteses de pagamento. Essa autorização é conhecida como "declaração de anuência" ou "carta de anuência". O fundamento é a adequada interpretação do § 1º do art. 26 da LP, além do princípio da disponibilidade: o credor pode cobrar a dívida e pode também autorizar o cancelamento do protesto. A "declaração de anuência" do credor também pode ser apresentada em meio eletrônico devidamente homologado pela Corregedoria-Geral de Justiça local (art. 5º, Provimento nº 87/2019-CN/CNJ). Geralmente esse canal eletrônico é utilizado também para outros atos praticados pelos credores perante o tabelionato, como a apresentação do título ou a sua retirada (arts. 2º, § 1º, e 4º, Provimento nº 87/2019-CN/CNJ). A rigor, todos os indivíduos poderiam valer-se desse canal eletrônico, mas, na prática, apenas empresas e entes conveniados aos cartórios costumam terem acesso. Por exemplo, em Brasília, a concessionária de serviço de água (a Caesb) costumava protestar títulos após um ano de inadimplemento pelo usuário. Quando o usuário pagava a dívida perante a Caesb, ela enviava eletronicamente uma autorização ao Cartório de Notas para cancelamento do protesto. Feito isso, o usuário poderá requerer ao cartório o cancelamento do protesto, pagando os emolumentos e as despesas devidas. Em terceiro lugar, há autorização genérica no art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ5 para que o cancelamento ocorra por qualquer documento que comprova a extinção da obrigação. Na prática, porém, é difícil a sua operacionalização desse dispositivo.  4. Cancelamento por decisão judicial (distinção em relação à sustação dos efeitos do protesto)  Há casos em que o devedor não consegue obter o título protestado ou a carta de anuência. Tal pode dar-se por inúmeros motivos. Ex.: credor desapareceu, credor se recusa a receber o pagamento ou a reconhecer que a dívida se tornou indevida ou inexigível por conta da prescrição, da compensação etc. Nessas hipóteses, o caminho é ele obter uma ordem judicial de cancelamento do protesto, demonstrando que este se tornou indevido. Decisão judicial é idônea ao cancelamento do protesto. É necessário o trânsito em julgado para o cancelamento do protesto. Di-lo o art. 26, §§ 3º e 4º, LP. Há de apresentar-se ao tabelião uma certidão do juízo com menção ao trânsito em julgado. Essa exigência está em sintonia com a estabilidade exigida pelos registros públicos em geral. A própria LRP faz exigência similar para condicionar o cancelamento de atos de registros por decisões judiciais não definitivas (vide art. 259 da LRP). Isso, porém, não significa que os efeitos do protesto não possam ser sustados antes do trânsito em julgado. O juiz poderá deferir decisões liminares (tutelas de urgência) para determinar a suspensão dos efeitos do protesto. Trata-se de uma sustação dos efeitos do protesto. Nesse caso, o tabelião averbará essa suspensão no registro do protesto. No caso de revogação posterior da ordem judicial precária, o tabelião averbará o fato, restaurando os efeitos do protesto. A LP não é textual sobre essa situação, mas isso está implícito na legislação. Portanto, do ponto de vista terminológico, cancelamento do protesto por decisão judicial distingue-se de sustação dos efeitos do protesto: aquele depende do trânsito em julgado; esta, não.  5. Reforço na distinção de nomenclatura: sustação e cancelamento do protesto  Para evitar confusões terminológicas, convém reforçar. A sustação do protesto consiste em ordem judicial que proíbe o registro do protesto. Pode consistir em uma: a) sustação liminar do protesto (fruto de tutela de urgência concedida liminarmente pelo juiz na ação de sustação do protesto) ou b) sustação definitiva do protesto (fruto da sentença favorável na ação de sustação de protesto).  A sustação do protesto dá-se antes de o protesto ser realizado. Seu objetivo é sustar a realização do protesto. É disso que trata o art. 17 da LP. Se, porém, o protesto já foi registrado, não falar em sustação do protesto, e sim de sustação dos efeitos do protesto (se a decisão judicial for liminar) ou em cancelamento do protesto (se a decisão judicial for definitiva). A LP não trata textualmente dessa hipótese, mas esta decorre da natureza do poder jurisdicional. Essa distinção terminológica não deve ser um obstáculo prático em nome do princípio da instrumentalidade das formas. Há normas de serviço nesse sentido, como a de São Paulo6. Caso o protesto já tenha sido registrado, o mandado judicial de sustação liminar do protesto deve ser recebido como um mandado de sustação dos efeitos do protesto. O tabelião comunique o juízo desse fato para sua ciência acerca da situação fática atual. Caso o mandado seja de sustação definitiva do protesto, o caso é de recebê-lo como um mandado de cancelamento do protesto. Não há necessidade de comunicação do juízo: o que importa é a eliminação do protesto.  6. Cancelamento por fatos diversos do pagamento  Fatos diversos do pagamento podem ensejar o cancelamento do protesto. São vários exemplos: a prescrição, a renegociação da dívida, o reconhecimento de um erro pelo credor, a confusão etc. Se o credor consentir com o cancelamento, não há necessidade de decisão judicial. Basta ele assinar uma carta de anuência na forma do § 1º do art. 26 da LP. De fato, não necessariamente essa declaração de anuência derivará do pagamento da dívida. O credor, por outros motivos, pode autorizar o cancelamento do protesto, como na hipótese de uma renegociação da dívida ou na situação de reconhecer um erro na cobrança. A declaração de anuência pode ser imotivada: não há necessidade de explicitar a razão de sua emissão. Essa é a prática adotada em várias serventias brasileiras. Se, porém, não houver autorização do credor, a via adequada para o cancelamento do protesto é uma decisão judicial.  7. A situação da consignação extrajudicial em pagamento  Delineados os conceitos básicos, podemos enfrentar a questão central deste artigo: a consignação extrajudicial enseja ou não o cancelamento do protesto? A consignação em pagamento é uma forma de pagamento indireto consistente no depósito da quantia devida na forma lei. Esse depósito costuma ser feito na via judicial, por meio de ação de consignação em pagamento. Nessa hipótese, o cancelamento do protesto será feito mediante uma decisão judicial. Entretanto, o art. 539 do CPC admite uma via extrajudicial para a consignação em pagamento envolvendo dívida pecuniária. Nessa hipótese, o devedor deposita a quantia devida em um estabelecimento bancário. Este, então, providenciará a intimação do credor para, se quiser, manifestar sua recusa em 10 dias. Silente o credor, considera-se quitada a dívida. Indaga-se: nessa hipótese de consignação extrajudicial do pagamento, como poderá ser feito o cancelamento do protesto? O art. 26 da LP não trata dessa situação. Literalmente, esse preceito só admite o cancelamento do protesto por ordem judicial ou pelo pagamento (este comprovado pela apresentação do título protestado ou pela declaração de anuência do credor). O preceito, porém, merece uma interpretação extensiva. Entendemos que, no caso de consignação extrajudicial em pagamento, a declaração do banco atestando a ausência de recusa do credor após o prazo de 10 dias da notificação é suficiente para o cancelamento do protesto. Essa declaração deve ser tida por equiparada um mandado judicial, tudo por força do art. 539, § 2º, do CPC. O art. 6º do Provimento nº 87/2019-CN/CNJ7 confirma essa interpretação, pois ele autoriza o cancelamento do protesto por "documentos que comprovem a extinção da obrigação".   Há normas locais nesse sentido, a exemplo de SP8. __________ 1 Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação. 2 Antes do protesto, lembre-se de que o pagamento pode ser feito diretamente no Tabelionato e que o apresentante pode pedir a retirada do título, ou seja, promover a desistência do protesto (arts. 16 e 19, lei 9.492/1997). 3 "Art. 26. O cancelamento do registro do protesto será solicitado diretamente no Tabelionato de Protesto de Títulos, por qualquer interessado, mediante apresentação do documento protestado, cuja cópia ficará arquivada. § 1º Na impossibilidade de apresentação do original do título ou documento de dívida protestado, será exigida a declaração de anuência, com identificação e firma reconhecida, daquele que figurou no registro de protesto como credor, originário ou por endosso translativo. § 2º Na hipótese de protesto em que tenha figurado apresentante por endosso-mandato, será suficiente a declaração de anuência passada pelo credor endossante. § 3º O cancelamento do registro do protesto, se fundado em outro motivo que não no pagamento do título ou documento de dívida, será efetivado por determinação judicial, pagos os emolumentos devidos ao Tabelião. § 4º Quando a extinção da obrigação decorrer de processo judicial, o cancelamento do registro do protesto poderá ser solicitado com a apresentação da certidão expedida pelo Juízo processante, com menção do trânsito em julgado, que substituirá o título ou o documento de dívida protestado. § 5º O cancelamento do registro do protesto será feito pelo Tabelião titular, por seus Substitutos ou por Escrevente autorizado. § 6º Quando o protesto lavrado for registrado sob forma de microfilme ou gravação eletrônica, o termo do cancelamento será lançado em documento apartado, que será arquivado juntamente com os documentos que instruíram o pedido, e anotado no índice respectivo." 4 "Art. 324. A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento. Parágrafo único. Ficará sem efeito a quitação assim operada se o credor provar, em sessenta dias, a falta do pagamento." 5 "Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação." 6 O item 62 das NSCGJ-SP dispõe: 62. O cumprimento dos mandados de sustação definitiva do protesto, ou de seus efeitos, e de cancelamento do protesto fica condicionado ao prévio pagamento das custas e dos emolumentos. 62.1. O cumprimento independerá do prévio pagamento das custas e dos emolumentos quando do mandado constar ordem expressa nesse sentido ou que a parte interessada é beneficiária da assistência judiciária gratuita. 62.2. Ausente menção expressa à isenção em favor da parte interessada ou à gratuidade da justiça, o mandado judicial será devolvido sem cumprimento, caso não recolhidos os emolumentos e as custas, com observação da regra do art. 1.206-A do Tomo I das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, se o processo tramitar em ambiente eletrônico. 7 Art 6º O cancelamento do protesto pode ser requerido diretamente ao tabelião mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação. 8 Item 95 das NSCGJ-SP: 95. O cancelamento do protesto também pode ser requerido, diretamente ao Tabelião, mediante apresentação, pelo interessado, dos documentos que comprovem a extinção da obrigação em dinheiro por consignação da quantia com efeito de pagamento, nos termos da legislação processual civil.
Esta é a segunda parte do artigo, em continuação ao que foi publicado na semana passada na Coluna Migalhas Notariais e Registrais.  Experiência em outros países  Para uma visita no sistema notarial e de registro em outros países, focaremos em duas especialidades: a do notariado e a do registro de imóveis. Inevitavelmente, diante das restrições de tempo, não é viável uma análise aprofundada de cada sistema notarial e de registro, investida que preencheria confortavelmente longas pesquisas acadêmicas. De qualquer forma, buscaremos focar aqui o que é de mais relevante para servir de experiência comparada para refletirmos sobre o modelo brasileiro. Notariado no mundo  O jurista Hércules Alexandre da Costa Benício dá notável visão do notariado em vários países do mundo1 e, por isso, nos apoiaremos neles neste capítulo. Copiamos dele ainda esta advertência sobre as limitações deste estudo comparativo, in verbis: Desde logo, mostra-se oportuna a reflexão empreendida por Luis CARRAL Y DE TERESA (1970, p. 87), no sentido de que é impossível proceder-se a uma classificação que esgote todos os sistemas de notariado, pois este, que é produto do costume, segue, em cada lugar, especiais tradições e peculiares características. De um modo geral, os notários se incumbem de formalizar juridicamente as partes e, nesse aspecto, acaba prestando serviços de assessoria jurídica a elas. Pode-se falar em três categorias de notariados: a) Notariado de profissionais delegados da fé pública (Alemanha, Espanha, França, Itália, Portugal, Japão e países latinos); b) Notariado de profissionais livres (Inglaterra e Estados Unidos); c) Notariado de profissionais funcionários administrativos (sistema da antiga União Soviética, Cuba e Venezuela). Na Alemanha, em cada Estado-membro (os Bundesländer), pode haver um regime diverso para o notariado diante da autonomia legislativa deles. Coexistem, assim, três regimes principais na Alemanha a depender do Estado-membro: a) Notariado livre: particulares que preencham os requisitos legais podem ser autorizados a exercer a atividade notarial de forma livre sem qualquer exclusividade. Não há número máximo de notários por região. E, geralmente, o notário exerce a função notarial em concomitância com a advocacia, enquanto sua licença de advogado perdurar. Trata-se de regime presente nos Estados-membros de Macklenburg-Vorpommern, Sanchsen-Anhalt, Bremen e Thüringen). b) Notariado restrito: o Estado-membro cria serventias em número restrito para ser exercida por tabeliães sem estar inserido na estrutura hierárquica da Administração Pública. Esse regime é adotado nos Estados-membros de Länder de Byern e Hessen). c) Notariado judicial: os notários são integrantes de magistratura, recebem remuneração do Estado, gozam das prerrogativas de juízes e desempenham funções públicas como "lavratura de testamentos, execuções de sentenças e registro de propriedade"2. Na Espanha, na França e na Itália, o notário é funcionário público com competência para dar fé aos atos jurídicos. Ressalva-se que o regime jurídico dos notários franceses oscila entre a condição de profissional liberal e de funcionário público. Especificamente na Itália, o notário "pode converter-se em auxiliar da justiça nos processos civis, em vendas de bens de baixo valor, nas interdições de incapazes (art. 733 do Código de Processo Civil italiano), em inventários judiciais (art. 679), nas partilhas dos bens (arts. 786, 790 e 791) etc."3 Em Portugal, por meio do Decreto de 23 de dezembro de 1899, o notário lusitano foi incluído na categoria de magistrado de jurisdição voluntária com garantias como inamovibilidade e independência funcional, de modo que dele passou a ser exigida capacidade jurídica adequada mediante bacharelado em Direito ou em curso especial de notário. No ano seguinte, por força do Decreto de 14 de setembro de 1900, o notário deixou de ser catalogado como magistrado de jurisdição voluntária para ser considerado funcionário público. Em 2003, Portugal privatizou o regime notarial por meio do DL 26/2004, de 4 de fevereiro4, que se apoiou no Estatuto do Notariado Português (Lei 49/2003, de 22 de agosto). No Japão, o notário é agente público nomeado pelo Ministério da Justiça, mas não recebe remuneração do Estado. Ele se remunera por meio dos emolumentos dos interessados. Para ser nomeado, o cidadão precisa atender a estes requisitos: a) estar habilitado para ser juiz, fiscal ou advogado militante, o que exige prévia aprovação no exame da National Bar (que é uma das mais difíceis provas jurídicas no Japão); b) ter amplo conhecimento jurídico e experiência profissional pelo Comitê Notarial; e c) ter nacionalidade japonesa, ter mais de 20 anos de idade, cursar programa de treinamento de duração não inferior a seis meses e ser aprovado em exame de idoneidade moral. No sistema anglo-saxão - que não se aplica em Londres (onde os notários - scriveners notaries - seguem o modelo do notariado latino) -, o notário não desempenha atividade de formalização jurídica da vontade das partes. Limita-se a atividades de pouca complexidade intelectual, atendo-se a reconhecer firmas, apor o respectivo selo, identificar as partes subscritoras do documento e registrar documentos. O notário, nesse caso, aí não é um agente público nem exercer atividade jurídica. Isso decorre do contexto histórico do direito anglo-saxão, que prestigia a prova oral e não prevê a distinção entre instrumentos particulares e instrumentos públicos para os negócios jurídicos. Algumas leis inglesas (statutes laws) exigem, para determinados atos, como os relativos a direito sobre imóveis (real property), a aposição de um selo para certificado a manifestação de vontade das partes (act under seal). Não há número máximo de notários nem demarcação territorial para os notários ingleses, os quais se enquadram no modelo do notariado livre. No Uruguai, adota-se um modelo de notariado livre. Qualquer pessoa que preencha os requisitos legais, como ter título universitário específico, pode pedir sua inscrição perante a Suprema Corte de Justiça a fim de desempenhar a atividade de notário. O notário aí é um profissional liberal. No Chile, os notários são titulares de um ofício público (notarías) mediante nomeação do Presidente da República e lhes cabe formalizar juridicamente a vontade das partes5. Conforme os arts. 399 e seguintes do "Código Orgánico de Tribunales" do Chile6, os notários são considerados auxiliares da administração da justiça e precisam ter título de advogado para desempenhar a função. A quantidade de notários é limitada, e há restrição territorial para o desempenho de suas funções. O notário chileno, além de lavrar escrituras públicas, também atua em inventários solenes, realiza protestos de títulos, promove notificações etc. (art. 401 do "Código Orgánico de Tribunales"). Registro de Imóveis no mundo  Na Inglaterra e nos EUA (na maior parte dos Estados norte-americanos), não há um sistema de registro de imóveis como o brasileiro, que é obrigatório. O direito de propriedade lá é transferido apenas por meio de contratos. Como esse sistema gera riscos de conflitos entre diferentes pessoas que podem ter títulos para o mesmo imóvel, é comum que as pessoas paguem valores expressivos a título de prêmio para que uma seguradora as indenize caso alguma outra pessoa apresente um título melhor, além de serem realizados gastos com escritórios de advocacia e com empresas especializadas em fazer pesquisas sobre riscos. Especificamente nos EUA, levando em conta a realidade da maior parte dos Estados-membros, para comprar um imóvel, o interessado paga uma Companhia de Títulos (Company Title) para ela fazer uma pesquisa sobre os riscos jurídicos do título de propriedade do vendedor, ou seja, para pesquisar se o título está limpo (clear title). No jargão norte-americano, pesquisa-se se há alguma "cloud" (nuvem). Essa companhia faz pesquisas em prefeituras, em bancos etc. Em alguns locais, essas taxas chegam a 1.000 dólares, além de outras despesas adicionais. Além disso, o interessado faz também um seguro de evicção (Title Insurance) para o caso de perda do imóvel por algum problema jurídico não identificado pela Companhia de Títulos. Após essas pesquisas, as partes assinam presencialmente um formulário (chamado de HUD-1) perante um responsável da Companhia de Títulos, que, posteriormente, entrega-o ao U.S. Departament of Housing and Urban Development, órgão do governo que apenas faz cadastro7. Na Inglaterra, porém, há uma tendência de migração do sistema de venda de imóveis para um sistema de registro público, que é tratado por normas específicas, como a Land Registration Act 2002, a Land Registration Rules 2003 e a Limitation Act 1980. Na prática, o registro é operacionalizado perante a HM Land Registry, que funciona como uma espécie de cartórios de imóveis na Inglaterra. O registro é facultativo, mas, conforme conversa que tivemos com um professor britânico, a maior parte dos imóveis na Inglaterra estão registrados no HM Land Registry, especialmente em razão do fato de que isso permite uma maior segurança para conhecer as eventuais restrições existentes sobre o imóvel. O sistema francês é baseado apenas na celebração de um contrato de compra e venda, que é lavrado por um notário. Esse contrato é suficiente para a transferência do direito de propriedade8. Em Portugal, o sistema se aproxima do brasileiro. Os notários são oficiais públicos, mas que gerem a atividade de modo privado. Os cartórios de imóveis lá são chamados de Conservatórias, mas atualmente são estatizados9. Em resumo, em Portugal, notariado sujeita-se a regime privatizado, mas registro de imóveis, a regime estatizado. No Chile10, o sistema também é próximo ao brasileiro. O registrador de imóveis é o Conservador de Bienes Raíces, e os tabeliães de notas são os notarios.  Os serviços notariais e de registros, também batizados como serventias extrajudiciais, ofícios  Barreiras para a existência de um sistema unificado de dados no brasil e experiência estrangeira  As dificuldades para a unificação de dados de todas as serventias extrajudiciais são encontradas na dimensão continental do país - cujo território é povoado por várias serventias sem condições tecnológicas adequadas - e no fato de que apenas recentemente as serventias estão sendo ocupadas por pessoas concursadas (que, segundo a experiência, demonstram maior primor técnico e operacional). Esses obstáculos, todavia, vêm sendo superados. Em relação ao registro de imóveis, já há comando legal para a unificação dos dados e para a formação de um registro de imóveis eletrônico; trata-se dos arts. 37 e 39 da lei 11.977, de 7 de julho de 2009. Também foi criado o SINTER (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais) pelo decreto 8.764, de 10 de maio de 2016, com fundamento no art. 41 da lei 11.977, de 2009, com o objetivo de permitir que a administração pública consiga ter informações concentradas dos imóveis brasileiros. Em favor disso, a recente lei 13.465, de 11 de julho de 2017, determinou a criação de um Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), cuja implantação está a depender de atos da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (art. 76, § 4º, lei 13.465, de 2017). Igualmente, a Lei da Liberdade Econômica acrescentou o § 3º ao art. 1º da Lei de Registros Públicos (lei 6.015, de 1973) para autorizar a virtualização integral dos registros públicos. No tocante ao registro civil de pessoas naturais, essa unificação de dados está sendo realizada especialmente por meio da Central de Informações do Registro Civil (CRC), que foi implantada por força do Provimento nº 46, de 16 de junho de 2015, do Conselho Nacional de Justiça. Em relação ao Registro de Títulos e Documentos (RTD) e ao Registro de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (RCPJ), o Provimento nº 48, de 16 de março de 2016, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu diretrizes gerais para o sistema de registro eletrônico nessas serventias, o que é um convincente passo rumo à unificação de dados. Pelo provimento, as serventias teriam 360 dias para implementar esse sistema eletrônico. E o sistema eletrônico deverá ser integrado em cada Estado, e não nacional. Sabe-se, porém, que há alguns Estados em que a unificação ainda está pendente. De qualquer forma, a descentralização das informações não tem gerado tanto prejuízo pelo fato de essa serventia se dedicar ao registro de documentos para efeito de conservação e para constituir direitos reais sobre móveis. Quanto ao RCPJ, a falta de unificação nacional de dados é, de certa maneira, suprida pelo cadastro nacional da Receita Federal para a outorga do número de Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Sabe-se que, mesmo antes daquele supracitado provimento do CNJ, há Estados que estavam a tentar unificar os dados, como sucedeu em Minas Gerais, em que o Instituto de Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas de Minas Gerais (IRTDPMinas) mantém uma central de informações disponível na internet11. Por fim, como experiências estrangeiras, na Espanha, dentre os serviços prestados pelos registradores de imóveis e bens móveis (Registros de la Propiedad, Mercantiles y Bienes Muebles), disponibilizam-se serviços on-line para qualquer cidadão neste site, com possibilidade de consultas cartográficas. A propósito disso, convém consultar a "Ley 2/2011, de 4 de marzo", que trata desse tema especialmente no "artículo 46"12. Em Portugal, igualmente a prestação dos serviços de registro de imóveis ocorre também de modo unificado por meio de um portal na internet, especificamente neste sítio eletrônico. A esse propósito convém consultar a lei portuguesa "decreto-lei 116/2008, de 4 de julho"13. Na Argentina, há notícias de tentativas de esforços na unificação dos dados de registros de imóveis. Por ora, apenas duas províncias entre as vinte e quatro existentes adotaram um sistema de cadastro único e geral14. A situação argentina assemelha-se à brasileira por estar a meio caminho de unificar efetivamente os dados.  Barreiras para a existência de um sistema unificado de dados no brasil e experiência estrangeira  Conforme observado na visita ao sistema notarial e de registro de outros países, é inegável que o notário e o registrador ocupam status profissional elevado, ao patamar próximo das carreiras jurídicas mais prestigiadas, como a da magistratura. Em alguns países, eles chegam a ser magistrados, como na Alemanha. Em Portugal, eles já foram, no passado, assim considerados. Daí se extrai uma premissa: a posição de notário e de registrador precisa ser ocupada por profissionais com altíssima qualificação técnico-jurídica, com aptidão de dar roupagem jurídica às manifestações de vontade. Outra observação importante é a que, em países em que a atividade notarial e de registro não é oferecida pelo Estado, como em vários Estados-membros dos EUA, não há uma segurança jurídica adequada nos títulos de propriedade, o que leva os particulares a gastarem valores elevadíssimos com seguros, advogados e taxas cobradas por Companhias de Títulos. Em um primeiro olhar, esse sistema parece injustificável, mas José Luis Lacruz Berdejo - um dos mais respeitados civilistas espanhóis - deixa implícito que isso decorre certamente do lobby das seguradoras, que perderiam um rentável mercado caso fosse implementado um sistema de registro público. A própria Inglaterra tem migrado, na prática, para utilizar copiosamente o sistema de registro público, apesar de este ser facultativo. Daí extraímos outra premissa: a existência de um sistema de registro público parece ser essencial para a economia e a segurança jurídica. Em relação ao modelo das atividades notariais e de registro, cada país possui suas peculiaridades. No Brasil, a experiência não foi muito boa com o modelo estatizado, que, conforme já apontado, sofreu com ineficiências (elevados custos, excessiva demora, baixa qualidade dos serviços, corrupções etc.). Nesse contexto, o modelo privatizado adotado pelo Brasil soa adequado, ainda que muito criticado por alguns. Há, porém, questões a serem enfrentadas e aqui erguemos sugestões: a) Problema da dificuldade de prover cartórios deficitários: há cartórios que não geram renda suficiente para atrair profissionais com a elevada capacidade técnica que os serviços extrajudiciais exigem. Parece-nos que o melhor modo de enfrentar isso é, após a frustração de provimento dessas serventias mediante dois concursos públicos (sendo o segundo voltado apenas a serventias que não foram providas no primeiro), deveria ser determinada a anexação dessa serventia a alguma serventia muito rentável do Estado, de modo que o titular de um cartório muito rentável terá o dever de, cumulativamente, manter os serviços da serventia deficitária que não foi provida. Pensamos que reflexões nessa trilha poderão gerar bons frutos. A ideia aqui é apenas inicial. b) Papel das serventias extrajudiciais na desjudicialização: os notários e os registradores são profissionais do Direito, não apenas aqui, mas em todos os lugares do mundo que admitem essa figura. E estão entre os profissionais do direito mais capacitados tecnicamente. No Brasil, há inúmeros oficiais extrajudiciais que já foram juízes, promotores e que são professores universitários. Soma-se a isso o fato de as serventias extrajudiciais serem órgãos auxiliares do Poder Judiciário. Por esse motivo, entendemos que deve ser estimulada a desjudicialização de inúmeros temas que atualmente atolam o Poder Judiciário e que poderiam ser resolvidas na via extrajudicial. É inegável que a quantidade de juízes não é suficiente para dar vazão a todas as demandas. No Brasil, contamos com apenas cerca de 18.000 juízes, ao passo que a quantidade de processos ultrapassa a casa dos cem milhões. É absolutamente inviável ao Poder Judiciário dar conta de tal demanda. É preciso enfrentar essa dura realidade e, para tanto, poderia ser utilizado um órgão auxiliar bem capacitado para dar vazão a demandas próprias do Judiciário, especialmente aquelas que não envolvem litígios. Nesse sentido, temos que procedimentos consensuais de inventário envolvendo testamento ou incapaz bem como procedimentos consensuais de divórcio com guarda de menores deveriam ser praticados nos cartórios, desde que haja a anuência do Ministério Público. Até mesmo o procedimento de execução judicial poderia ocorrer em cartórios, deixando para o Judiciário a resolução de impugnações. Outra ideia fundamental é autorizar os cartórios a atuarem como árbitros, cobrando emolumentos módicos, similares aos das custas judiciais, pois isso teria o condão de popularizar a arbitragem para que esta alcance questões quotidianas (como batida de carro, cobrança de aluguéis etc.). A arbitragem atualmente tem sido bem elitizada em razão dos elevados honorários cobrados pelos árbitros e pelas Câmaras Arbitrais. c) Falta de virtualização do acervo: os cartórios até hoje não conseguiram virtualizar seus serviços nem os oferecer pela internet. É compreensível que a dimensão continental no País e a heterogeneidade socioeconômica das diferentes regiões dificultem esse processo, mas o mercado do século XXI não pode coexistir com serviços meramente presenciais. Do ponto de vista legislativo, há algumas soluções viáveis, como a de obrigar os cartórios a fornecerem serviços a distância para os usuários, fato que poderá estimular os cartórios a virtualizarem seus acervos. d) Necessidade de serviços serem oferecidos virtualmente: vivemos em uma época em que, por simples aplicativo de celular, conseguimos fazer operações financeiras de milhões de reais, adquirindo, por exemplo, ações na Bolsa de Valores. É, pois, inadmissível que, nessa Era da Tecnologia, ainda haja serviços públicos que exijam a presença física do consumidor a uma repartição qualquer, perdendo, às vezes, o dia inteiro. Por isso, convém estabelecer que os serviços notariais e de registro sejam disponibilizados virtualmente, com exceção daqueles que, por sua natureza, dependam efetivamente da presença do consumidor. Assim, por exemplo, para cancelar um protesto, o cidadão precisa comparecer pessoalmente ao Cartório de Protesto para pagar os emolumentos, mesmo na hipótese de o credor já ter entregue ao Cartório a autorização de cancelamento do protesto. Outro exemplo é a de que os Cartórios de Notas deveriam disponibilizar um aplicativo por meio do qual as partes poderiam "assinar" escrituras públicas: como dito, há tecnologia para isso, do que dá prova o fato de as corretoras de valores mobiliários e as instituições financeiras permitirem que consumidores façam operações financeiras milionárias "assinando pelo aplicativo". Aliás, até mesmo por aplicativos de conversa, como WhatsApp, poder-se-ia admitir a prática de atos notariais e de registro, utilizando os telefones cadastrados pelo usuário, em especial quando se tratar de atos de menor valor. A própria intimação em processos judiciais já se quer sejam eletrônicas, conforme o Projeto de Lei do Senado nº 176, de 2018, que foi aprovado pelo Senado em fevereiro de 2020 e que está pendente de envio à Câmara dos Deputados. e) RÁPIDA APROVAÇÃO DE OUTROS PROJETOS DE LEI: convém que seja dada rápida aprovação a outros projetos de lei que desburocratizam a vida do cidadão, seja aprimorando as atividades dos cartórios, seja afastando burocracias por meio dos cartórios: e.1) Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 176, de 2015: a proposição acaba com a necessidade de o cidadão ter de ir pessoalmente ao Detran para fazer a comunicação de venda. Bastará ao transferente ir ao Cartório de Notas e, aí mesmo, fazer o reconhecimento de firma por autenticidade no DUT e deixar com a serventia uma cópia autenticada. Caberá à própria serventia comunicar a venda ao pertinente Detran. Não haveria mais necessidade de o transferente gastar tempo (geralmente a ida ao Detran custa um turno inteiro do cidadão), dinheiro (com deslocamento) e paciência para fazer uma comunicação da venda do veículo. A matéria está para análise da CCJ do Senado Federal15 e é similar ao PL 4.879, de 2019 (em trâmite na Câmara dos Deputados) e ao PL 7.163, de 2017 (em trâmite na Câmara dos Deputados); e.2) Projeto de Lei do Senado 15, de 2018 (ou PL 10.939, de 2018, na Câmara dos Deputados): libera horário de funcionamento do cartório para além do mínimo regulamentar e permite atendimento delivery dos tabeliães de notas. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado16; e.3.) Projeto de Lei do Senado 17, de 2018 (ou PL 10.903, de 2018, na Câmara dos Deputados): atribui aos serviços notariais e de registro o dever de intermediar pedidos dos usuários relativos a atos de outras serventias. A ideia é que o cidadão consiga pedir serviços de cartórios de outros Estados por meio de uma unidade local. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado17; e.4.) Projeto de Lei do Senado 18, de 2018 (ou PL 10.902, de 2018, na Câmara dos Deputados): exige uma homogeneização mínima das regras dos Cartórios do Brasil para evitar divergências de procedimentos entre os Estados. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado18; e.5.) Projeto de Lei do Senado 19, de 2018 (ou PL 10.940, de 2018, na Câmara dos Deputados): deixa claros os títulos que podem ser protestados, o que facilitará a vida do cidadão para a cobrança de dívidas e reduzirá a quantidade de processos judiciais. A matéria está na Câmara dos Deputados após ser aprovada pelo Senado19; e.6.) Projeto de Lei 5.139, de 2019 (Câmara dos Deputados): estabelece a possibilidade de o cidadão obter dados de registro de imóveis a partir de pedidos a uma central nacional de registro de imóveis. A proposição merece aprovação com algumas adaptações, de modo a deixar mais claro que o que importa é que haja um canal nacional para o cidadão solicitar atos dos cartórios de imóveis. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados20; e.7) Projeto de Lei 4.993, de 2019 (Câmara dos Deputados): estabelece que o notário tem de prenotar eletronicamente a escritura no Cartório de Registro de Imóveis. Isso é excelente, pois evita que o usuário tenha de fazer um deslocamento desnecessário entre o cartório de notas e o cartório de imóveis. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados21; e.8.) Projeto de Lei 1.623, de 2019 (Câmara dos Deputados): veda o condicionamento da eficácia dos atos praticados pelos serviços notariais e de registro a prévias conferências de sua autenticidade (abono). A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados22; e.9) Projeto de Lei 9498, de 2018 (Câmara dos Deputados): desjudicializa o procedimento de alteração do regime de bens. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados23; e.10) Projeto de Lei 9.504, de 2018 (Câmara dos Deputados): afasta o condicionamento de atos jurídicos notariais e de registro a previas certidões. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados24; e.11) Projeto de Lei 9.500, de 2018 (Câmara dos Deputados): desburocratiza o procedimento do casamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados25; e.12) Projeto de Lei 9.502, de 2018 (Câmara dos Deputados): deixa claro que não é dever do tabelião analisar prescrição ou decadência por se tratar de análise inviável em razão de fatores extradocumentais que suspendem e interrompem a prescrição e em virtude das divergências quanto aos prazos prescricionais. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados26; e.13) Projeto de Lei 9.499, de 2018 (Câmara dos Deputados): simplifica a habilitação do casamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados27; e.14) Projeto de Lei 9.501, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza tabeliães a emitirem cartas de sentença. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados28; e.15) Projeto de Lei 9.496, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza inventário extrajudicial mesmo com herdeiro incapaz ou testamento. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados29; e.16) Projeto de Lei 9.495, de 2018 (Câmara dos Deputados): autoriza divórcio extrajudicial unilateral mesmo quando houver filho menor. A matéria está em trâmite na Câmara dos Deputados30. __________ 1 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 57-80. 2 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. ob. cit., 2005, p. 59. 3 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. ob. cit., 2005, pp. 61-62. 4 Norma de Portugal, frise-se. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Essa sistemática da venda de imóveis foi obtida com conversas com norte-americanos e com pesquisas na internet, especialmente por não existir atos oficiais que detalham o que é feito na prática. 8 Interessante explicação dos costumes de compra e venda de imóveis na França pode ser visto aqui. 9 A propósito, em junho deste ano, houve greve dos funcionários as Conservatórias. 10 Reportamo-nos a este interessante texto. 11 Para consulta, ver este sítio eletrônico. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 14 A propósito, consultar aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Disponível aqui. 20 Disponível aqui. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui. 23 Disponível aqui. 24 Disponível aqui. 25 Disponível aqui. 26 Disponível aqui. 27 Disponível aqui. 28 Disponível aqui. 29 Disponível aqui. 30 Disponível aqui.
Introdução  Na Coluna Migalhas Notariais e Registrais de hoje, temos a primeira parte deste artigo. A sua continuação dar-se-á na próxima semana. O objetivo do artigo é que tanto um jejuno em matéria de Direito Notarial e Registral quanto um veterano alcance uma visão panorâmica dos serviços notariais e registrais e, por fim, conheça algumas (só algumas) propostas de aprimoramentos. Tratamos de conceitos básicos (como as especialidades) e práticos (como a dinâmica quotidiana) para desaguar na apresentação de algumas reflexões de aprimoramentos. Cuidamos de questões polêmicos, como a estatização, o regime de emolumentos e a unificação da base de dados. Apontamos também como os serviços notariais e registrais postam-se em outros países, especialmente o notariado e o Registro de Imóveis. Tipos de Cartórios Existentes Os serviços notariais e de registros, também batizados como serventias extrajudiciais, ofícios extrajudiciais, cartórios extrajudiciais ou simplesmente "cartórios", estão disciplinados no art. 236 da Constituição Federal e na lei 8.935, de 18 de novembro de 1994 - Lei de Notários e Registradores (LNR). Além dessas normas gerais, há outras mais específicas para determinadas especialidades desses serviços extrajudiciais, como por exemplo: (1) a lei 9.492, de 10 de setembro de 1997 - Lei de Protestos -, a qual se aplica aos Tabelionatos de Protestos; (2) a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 - Lei de Registros Públicos (LRP) -, que recai sobre as especialidades incumbidas de atividades de registros públicos; (3) a lei 7.333, de 18 de dezembro de 1985, que se dirige aos Tabelionatos de Notas com recomendações formais para a lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis. Conforme o art. 5º da LNR e o art. 1º, § 1º, da LRP, os serviços notariais e de registro podem ser divididos nestas 8 (oito) especialidades:  a) Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN): é responsável por promover registro de atos essenciais ao estado civil das pessoas naturais (pessoas físicas), como nascimento, casamento, óbito, ausência, interdição etc. (arts. 29 e seguintes da LRP); b) Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ): incumbe-se de registrar atos relativos à existência de pessoas jurídicas não empresárias (Junta Comercial registra sociedades empresárias) e não advocatícias (OAB registra sociedades de advogados), além de também registrar meios de comunicação a fim de atribuir uma matrícula a veículos que lidam com radiodifusão, agência de notícias e jornais, impressão de materiais de comunicação (arts. 114 e seguintes da LRP); c) Registro de Títulos e Documentos (RTD): cuida de registrar documentos para efeito de conservação e para a constituição de direitos com oponibilidade perante terceiros, como o contrato de penhor e de parceria agrícola ou pecuária, além de promover notificações extrajudiciais a propósito de qualquer documento registrado (arts. 127 e seguintes da LRP); d) Registro de Imóveis (RI): promove os registros de imóveis e de todos os direitos relativos a eles, como os direitos reais de garantia (hipoteca, por exemplo); e) Tabelionato de Protestos: operacionaliza os protestos de títulos de dívidas para prova de inadimplemento, para comprovação da mora e como forma de cobrança extrajudicial de dívidas; f) Tabelionato de Notas: além de reconhecer firmas e autenticar cópias, lavra escrituras públicas para formalizar juridicamente atos jurídicos e para coletar declarações de interessados; g) Tabelionatos e Registros de Contratos Marítimos: cuida de atos notariais e de registros concernentes aos contratos marítimos; h) Registro de Distribuição: nos locais em que houver necessidade, promove a distribuição de títulos entre as serventias para a realização de registros. Estrutura sob a ótica do direito administrativo  Do ponto de vista administrativo, como a atividade extrajudicial envolve o exercício do poder administrativo de polícia, ela é um serviço público sob a ótica do Direito Administrativo. Por opção constitucional, esse serviço público é exercido mediante uma delegação sui generis outorgada pelo Poder Público a particulares mediante concurso de provas e títulos. Enfatize-se: o titular da delegação - o oficial extrajudicial - é uma pessoa natural aprovada em um concurso público, e não uma pessoa jurídica. Ainda sob a ótica de Direito Administrativo, as serventias extrajudiciais são consideradas "órgãos auxiliares" do Poder Judiciário, razão por que: a) a criação de novos cartórios deve ser feita por lei de iniciativa do respectivo Tribunal de Justiça (art. 96, I, "b", e II, "b", da CF); b) o Tribunal de Justiça local exerce, de forma periódica ou de modo extraordinário, correições para averiguar se o oficial está prestando o serviço de forma adequada, além de deter a competência para infligir punições contra ele no caso de infrações disciplinares e para editar atos infralegais regulamentando a atividade extrajudicial (art. 96, I, "b", da CF; e art. 37 da LNR); c) o CNJ possui competências normativas e disciplinares sobre as atividades extrajudiciais em sobreposição à competência dos Tribunais locais (art. 103-A, § 4º, III, e § 7º, da CF).  São os juízes, desembargadores e membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que fiscalizam e regulamentam as atividades notariais e de registro em cada Estado.  Regime de funcionamento e de remuneração  O funcionamento dos serviços notariais e de registro ocorre de modo particular e se formaliza por meio de outorga, pelo Poder Público, desse serviço a quem for aprovado em concurso público de provas e títulos, tudo conforme o art. 236 da Constituição Federal. Esses particulares - que podem ser chamados genericamente de oficiais extrajudiciais ou, a depender do tipo de especialidade, de tabeliães1 ou de registradores - ficam expostos a uma fiscalização periódica e contínua do Tribunal de Justiça de cada Estado, porque suas atividades são consideradas auxiliares ao Poder Judiciário. Os tabeliães e os registradores exercem a atividade por seu próprio risco. Eles devem custear as próprias despesas, como as com materiais de expediente, com imóveis (locação, IPTU/TLP, etc.), com a contratação de pessoal (o que ocorre segundo as regras trabalhistas em geral), com contratação de serviços acessórios (licenças de uso de softwares, especialistas em informática, contadores, arquivistas, advogados  etc.) e com eventuais indenizações devidas a terceiros que possam ter sido prejudicados por falhas na prestação do serviço. Ademais, cabe ao oficial pagar todas as despesas com o Imposto de Renda de Pessoa Física, que geralmente alcança a faixa de 27,5% da renda. Some-se a isso a obrigação do oficial de pagar ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), mais conhecido como ISS (Imposto Sobre Serviços), que é de competência municipal e que pode recair sobre emolumentos dos cartórios extrajudiciais à luz da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF)2. Em Anápolis, por exemplo, a alíquota do ISSQN é de 5% do valor dos emolumentos (Código Tributário do Município de Anápolis, Lei de Anápolis nº 432, de 20 de dezembro de 1973). Eles estão também sujeitos a rigoroso regime administrativo-disciplinar sob a incumbência do Tribunal de Justiça do respectivo Estado e ficam expostos à perda da delegação por erros perpetrados por seus prepostos. Quanto aos riscos, o oficial exerce suas atividades com a ajuda de prepostos e lida com negócios jurídicos de elevada expressão econômica. Erros por culpa sua ou de seus propostos acarretam a responsabilidade civil e pessoal do oficial para indenizar os danos causados, além de sujeitar o oficial a punições disciplinares que poderão chegar à perda da delegação. Recorde-se que o tabelião ou registrador responde com o patrimônio pessoal pelos danos que ele próprio ou qualquer dos seus prepostos possam ter cometido durante o exercício da atividade extrajudicial. Na prática, considerada a grande quantidade de atos que são praticados e diante dos elevados riscos envolvidos (é comum, por exemplo, haver criminosos apresentando documentos falsos), não é raro haver oficiais que já tiveram de pagar indenizações expressivas, que chegaram a ultrapassar a casa de um milhão de reais. Temos ciência, por exemplo, de oficiais que, por conta de escrituras de venda de imóvel lavradas após o preposto ter sido enganado por um documento de identidade falso, estão prestes a ter de pagar indenização de mais de um milhão de reais. Temos, ainda, ciência de caso de oficial que teve de pagar mais de um milhão de reais em razão de fraudes praticadas por preposto na gestão do caixa do cartório. Informações como essas não costumam ser formalizadas em processos judiciais, razão por que a trazemos aqui com base na experiência. Os riscos da atividade notarial e de registro são altos. E isso se dá em todos os países em que se desempenha a atividade notarial e de registro, o que justifica esta advertência feita pelo notário argentino Francisco Ratto a um novato:  "Elegestes uma profissão muito nobre, mas cuidado que isto de estar dando fé continuamente, em um mundo onde há tanta má-fé, é como dormir com um pé em tua casa e outro no cárcere."3  Como remuneração, o oficial é titular de parcela dos emolumentos que são pagos pelos serviços notariais e de registro. Diz-se "parcela", porque, a depender da legislação local, somente parcela dos emolumentos pertence ao oficial, vista que a outra porção tem de ser repassada a fundos e órgãos e entes públicos. Por exemplo, em Goiás, 40% dos emolumentos devem ser repassado a fundos e entes públicos4. Em São Paulo, similar percentual também é objeto de repasses para fundos e entes públicos5. Portanto, nesses Estados, somente cerca de 60% dos emolumentos pertencem, efetivamente, ao oficial, que deverá utilizar essa verba para arcar com todos os custos e riscos de sua atividade. Essa destinação de parte dos emolumentos só pode ser feita em favor de fundos ou órgãos e entes públicos com vínculo com a atividade notarial e de registro, pois essa destinação consiste em uma taxa proveniente do exercício do poder de polícia sobre as atividades notariais e de registro. Nesse sentido, conforme jurisprudência do STF, baseada nos arts. 5º, caput, 145, II, e 98, § 2º, da CF, é constitucional que esse destaque ocorra em favor do Poder Judiciário, do Ministério Público ou da Defensoria, mas jamais seria admissível que esse repasse ocorresse em favor de entidades privadas - ainda que se trata de conselhos profissionais - pelo fato de esta não exercer poder de polícia algum sobre os serviços notariais e de registro6. Na prática, o lucro líquido percebido pelos oficiais extrajudiciais está entre 20% e 25% do valor total percebido com emolumentos7, sem levar em conta o que o oficial ainda terá de pagar a título de Imposto de Renda (que geralmente representa 27,5% da renda) e sem considerar as eventuais indenizações que o oficial tem de pagar no caso de danos causados a terceiros por culpa sua ou de seus prepostos. O CNJ8, por exemplo, divulga o faturamento semestral dos cartórios brasileiros, sem, porém, explicitar as despesas totais. Em uma aproximação, pode-se estimar o lucro líquido em cerca de 20% desse faturamento. Seja como for, conforme os dados do CNJ, cerca de dois terços das serventias brasileiras têm faturamento inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), o que significa que os seus titulares percebem lucro líquido de cerca de R$ 2.000,00 por mês. É fácil imaginar que essas serventias deficitárias dificilmente conseguem ser providas. Basta recordar que o salário líquido de profissionais do topo das carreiras jurídicas ultrapassa os R$ 20.000,00 (vinte mil reais). E, nesse ponto, vale lembrar que o nível do concurso para seleção dos cartorários possui nível similar a outros concursos de carreiras jurídicas finais, como os certames para juiz de direito, juiz federal, juiz trabalhista, promotor de justiça, procurador da República, delegado de polícia, defensor público e advogados públicos etc. Como, entre as diversas serventias, há diferença de volume de serviços (uma serventia de capital costuma praticar mais atos do que uma do interior), cada Estado costuma estabelecer formas de garantia de viabilidade financeira de todas as serventias. O modo mais comum é a criação de fundos abastecidos com retenções de parcela dos emolumentos com o objetivo de garantir uma receita mínima para cada serventia e de reembolsar os atos que, por força de lei, devam ser praticados gratuitamente. Por fim, destaque-se que os emolumentos possuem a natureza jurídica de taxas (espécie de tributo) e, por isso, só podem ser previstas em lei em sentido formal, editada pelo Parlamento estadual, e sujeitam-se a todas as regras próprias do Direito Tributário (como o princípio da anterioridade)9, de modo que nem mesmo por lei é possível delegar ao Poder Judiciário local a competência para arbitrar os valores dos emolumentos. Nesse sentido, confira-se este julgado do STF:  AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR: EMOLUMENTOS RELATIVOS AOS ATOS PRATICADOS PELOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. PROVIMENTO Nº 09/97 DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO. 1. Somente mediante lei podem ser fixados emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. 2. Ofende o princípio da reserva legal e invade a competência suplementar conferida à Assembléia Legislativa, o Provimento do Poder Judiciário Estadual que dispõe sobre fixação e cobrança de emolumentos relativos a serviços cartorários. 3. Medida liminar deferida.(STF, ADI 1709 MC, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1997, DJ 20-02-1998 PP-00013 EMENT VOL-01899-01 PP-00069)  Em suma, "a contratação dos oficiais extrajudiciais" ocorre por meio de concurso público de provas e títulos promovida pelos Tribunais de Justiça de cada Estado e a remuneração deles varia de acordo com cada Estado, visto que as leis estaduais se diversificam quanto ao percentual a ser subtraído dos emolumentos devidos aos oficiais extrajudiciais em proveito de outros órgãos públicos.  Existência de instituições similares no exterior  De um modo geral, os serviços notariais e de registro estão presentes em grande parte dos países do mundo. Não se trata de uma criação brasileira. A propósito disso, citamos estas obras: (1) sobre o notariado alemão, francês, italiano, português, japonês, chinês, anglo-saxão e de outros países, reportamo-nos à obra "Responsabilidade por Atos Notariais de Registro", do jurista Hércules Alexandre da Costa Benício; (2) sobre os sistemas de registro de imóveis francês, alemão, italiano, português e anglo-saxão, aludimos às obras: (2.1.) "Tratado dos Registros Públicos", de doutrinador Miguel Maria de Serpa Lopes; e (2.2.) "Registro de Imóveis I, Parte Geral", dos juristas Márcio Guerra Serra e Monete Hipólito Serra.  Nível de complexidade da atividade extrajudicial e de capacidade técnica dos oficiais  A atividade notarial e de registro exige elevadíssima sofisticação profissional e intelectual do oficial. Enquanto alguns atos aparentam simplicidade - como a do reconhecimento de firma ou a da autenticação de cópias -, há inúmeros outros atos de notável complexidade técnica. Por exemplo, no Cartório de Notas, para lavrar uma escritura pública de compra e venda bipartida com doação de numerário e com cláusula restritiva da propriedade, o tabelião de notas depende de domínio aprofundado de Direito Civil para saber se a vontade das partes realmente está sendo atendida, e de Direito Tributário para saber quais os fatos geradores de tributos envolvidos nesse arranjo contratual. No Cartório de Imóveis, para praticar atos de registro ou de averbação, o oficial depende de aprofundado conhecimento de Direito Ambiental, de Direito Civil, de Direito Tributário etc. Há inúmeras questões extremamente complexas do ponto de vista jurídico que somente profissionais com elevadíssima capacidade técnica conseguiriam enfrentar adequadamente. Os exemplos são inúmeros, como os casos que envolvem securitização de recebíveis imobiliários, os de tributações em permutas de frações ideais etc. No Registro Civil de Pessoas Naturais, vários atos existenciais demandam domínio jurídico pleno, como os relativos a parentalidade socioafetiva. Em poucas palavras, é fundamental que os oficiais extrajudiciais integrem o rol dos mais capacitados juristas, pois sua atividade "não se resume a bater carimbos". Eles são "profissionais do Direito", como destaca o art. 3º da lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, e precisam ser dotados de alta capacidade técnica para bem desempenhar as suas funções. Não é à toa que, no Brasil, entre os oficiais extrajudiciais, há inúmeros doutrinadores, professores e doutores em Direito, como Leonardo Brandelli, Sérgio Jacomino, Frederico Viegas, o saudoso Zeno Veloso etc. Igualmente, vários oficiais extrajudiciais já ocuparam cargos públicos do topo das carreiras jurídicas, como os de magistrados, promotores, membros da Advocacia Pública etc. A exigência de concurso público de provas e títulos é fundamental nesse contexto, pois, diante da notória dificuldade desses certames, garante-se que, no mínimo, o oficial extrajudicial tenha demonstrado aptidão técnico-intelectual no Direito acima da média. Cabe um alerta. Os prejuízos para o mercado e para o quotidiano dos indivíduos pela falta de capacidade técnico-intelectual do oficial seriam catastróficos. Os exemplos de problemas são inúmeros. Várias operações financeiras milionárias (como as de emissões de Certificados de Recebíveis Imobiliários na Bolsa de Valores) e inúmeros atos do quotidiano dos indivíduos (como o inventário e partilha extrajudiciais) estão lastreadas em atos praticados pelos oficiais extrajudiciais e implicam ingente complexidade jurídica. É evidente que nem todos os cartórios lidam rotineiramente com questões jurídicas de alta complexidade. Isso depende do próprio vigor comercial de cada cidade. Dificilmente um cartório de imóveis numa pacata cidade interiorana com dez mil habitantes irá lidar com um registro envolvendo securitização de recebíveis imobiliários, embora possa lidar com questões complexas envolvendo imóveis rurais. Portanto, a atividade extrajudicial envolve elevadíssima complexidade técnico-jurídica, de maneira que é essencial que os oficiais extrajudiciais tenham capacitação profissional e intelectual própria das carreiras jurídicas finais, como a de magistratura, Ministério Público, procuradorias etc.  Inviabilidade do modelo estatizado no brasil  O modelo estatizado dos serviços notariais e de registro não foi bem-sucedido no Brasil. Além das várias reclamações pela baixa qualidade dos serviços e das morosidades e entraves burocráticos próprios da Administração Pública, o sistema estatizado testemunhava até mesmo práticas de "propinas" para "conseguir" acelerar a prática de atos legais10. Além dos transtornos para a população, a própria conservação dos livros nas serventias estatizadas era precária. Na Bahia, por exemplo, que só recentemente privatizou os cartórios extrajudiciais, há relatos (extraoficiais) de vários novos oficiais acerca da precariedade dos livros e até mesmo do extravio de vários deles. Ouviram-se também relatos de novos oficiais que encontraram vários atos praticados com manifestos erros jurídicos, como a existência de matrículas de escada de uma casa (o que é um erro grosseiro por ofender o princípio da unitariedade matricial). A propósito da falta de qualidade dos serviços no modelo estatizado de serventias extrajudiciais, Naurican Ludovico Lacerda dá certeira explicação:  Na serventia estatal não existe o delegado responsável, isto é, aquele que sofre as consequências por prejuízos da administração. Em algumas áreas o Estado é essencial, como na Justiça e na segurança pública. No entanto, há outras atividades em que o regime privado se mostra mais atuante e eficiente no que diz respeito ao seu controle. No modelo oficializado o tabelião responsável não responde por eventuais danos que o cartório possa causar aos usuários dos serviços. A remuneração do tabelião oficializado não será alterada se ele prestar bom ou mau serviço. Em tese ele pode ser responsabilizado em caso de culpa, mas provar sua culpa pessoal é muito difícil, uma vez que sua função é mais voltada para a coordenação. E se algum outro funcionário agiu com culpa ou dolo, o tabelião que responde pelo cartório não poderá ser responsabilizado. Já na serventia privada, se qualquer funcionário cometer um erro, o tabelião ou oficial é responsabilizado pessoalmente.11   O modelo estatizado no Brasil também foi marcado por causar prejuízos orçamentários ao Poder Público, conforme relatou Naurican Ludovico Lacerda:  (...) Em todos os lugares do Brasil onde a prestação do serviço notarial e de registro se deu diretamente pelo Estado o que se comprovou foi exatamente o contrário, isto é, que o prejuízo é milionário. No caso da Bahia, ainda segundo a página 33 desse parecer, o montante arrecadado com emolumentos foi de R$ 88 milhões. Somente com pessoal, as despesas ficaram na casa dos R$ 115 milhões, ou seja, um prejuízo de R$ 27 milhões - fora gastos com instalação, equipamentos, aluguel etc. Cerca de 20% desses R$ 115 milhões devem ser gastos com outras despesas, somando um prejuízo anual em torno dos R$ 50 milhões. A despeito desse prejuízo, o serviço prestado no estado da Bahia é tão caótico que em Vitória da Conquista uma certidão de nascimento leva quatro meses para ser feita. Portanto, o argumento de que os serviços poderiam ser mais eficientes se fossem realizados pelo Estado é completamente falso.12  Atualmente, em cumprimento ao art. 236 da Constituição Federal, não há mais nenhum Estado brasileiro com o regime estatizado para os serviços notariais e de registros. Bahia e Acre foram os últimos Estados brasileiros que mantinham o regime estatizado, mas já se adequaram ao regime privatizado previsto na Constituição. O modelo privatizado, no entanto, tem demonstrado bons frutos, apesar de haver aspectos a serem objetos de reflexão. Em pesquisa da Datafolha, os correios e os cartórios estão entre as instituições com maior grau de confiança e credibilidade na população, além de cerca de 79% dos cidadãos alegarem ter percebido melhora na qualidade dos serviços cartorários nos últimos anos13. Algumas unidades da Federação, como São Paulo e Distrito Federal, por exemplo, já conseguiram alcançar estágio avançado de virtualização para oferecer serviços on-line aos usuários. Há, porém, muito a avançar dentro do modelo privatizado.  Inconstitucionalidade de repasses de valor dos emolumentos para a união  Seria possível, por norma federal, determinar que parcela dos emolumentos percebidos pelos serviços notariais e de registro sejam revertidos em favor da União? Entendemos que não, sob pena de inconstitucionalidade formal. É que a competência legislativa para dispor sobre o valor dos emolumentos é estadual e é de iniciativa exclusiva do Tribunal de Justiça local, de modo que lei federal somente pode estabelecer regras gerais nessa matéria. Os emolumentos cobrados pelos cartórios extrajudiciais seguem o mesmo regime das custas cobradas pelo Judiciário local. Trata-se de uma decorrência dos arts. 96, II, "b", e 236, § 2º, da Constituição Federal. Permitir que lei federal subtraia parcela dos emolumentos devidos aos oficiais extrajudiciais seria permitir que a lei federal ocasionasse aumento do valor dos emolumentos ou desequilibrasse a saúde financeira das serventias, pois é o legislador estadual que, atendendo às particularidades financeiras da sua região, emite o juízo acerca do valor justo e viável para os emolumentos. Continuaremos na próxima semana na Coluna Migalhas Notariais e Registrais. Não perca. __________ 1 Os tabeliães de notas também podem ser chamados de notários. 2 Nesse sentido, este julgado do STF: ADI 3089, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 13/02/2008, DJe-142 DIVULG 31-07-2008 PUBLIC 01-08-2008. 3 Apud BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 9. 4 10% para o Fundo de Reaparelhamento e Modernização do Poder Judiciário (FUNDESP/PJ); 8% para o Fundo Estadual de Segurança Pública (FUNESP); 3% para o Estado; 4% para o Fundo Especial dos Sistemas de Execução de Medidas Penais e Socioeducativas; 3% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional do Ministério Público do Estado de Goiás (FUNEMP/GO); 2,5% para o Fundo de Compensação dos Atos Gratuitos Praticados pelos Notários e Registradores e de Complementação da Receita Mínima das Serventias Deficitárias (FUNCOMP); 2% para o Fundo Especial de Pagamento dos Advogados Dativos e do Sistema de Acesso à Justiça; 2% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Procuradoria-Geral do Estado; 1,5% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Defensoria Pública do Estado (FUNDPEG); 1,5% para o Fundo de Modernização da Administração Fazendária do Estado de Goiás (FUNDAF/GO); 2,5% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás - FEMAL-GO (art. 15 da Lei do Estado de Goiás nº 19.191, de 29 de dezembro de 2015 - disponível aqui). 5 Lei do Estado de São Paulo 11.331, de 26 de dezembro de 2002: Artigo 19 - Os emolumentos correspondem aos custos dos serviços notariais e de registro na seguinte conformidade: I - relativamente aos atos de Notas, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas e de Protesto de Títulos e Outros Documentos de Dívidas: a) 62,5% (sessenta e dois inteiros e meio por cento) são receitas dos notários e registradores; b) 17,763160% (dezessete inteiros, setecentos e sessenta e três mil, cento e sessenta centésimos de milésimos percentuais) são receita do Estado, em decorrência do processamento da arrecadação e respectiva fiscalização; c) 13,157894% (treze inteiros, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado; d) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias; e) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; II - relativamente aos atos privativos do Registro Civil das Pessoas Naturais: a) 83,3333% (oitenta e três inteiros, três mil e trezentos e trinta e três centésimos de milésimos percentuais) são receitas dos oficiais registradores; b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado." 6 Nesse sentido, reportamo-nos ao voto do ministro relator neste julgado do STF: ADI 3111, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 30/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 07-08-2017 PUBLIC 08-08-2017. Cita-se, ainda este julgado do STF: ADI 3028, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-01 PP-00173 LEXSTF v. 32, n. 380, 2010, p. 42-75. 7 Tal informação não está oficializada em local algum por dizerem respeito ao sigilo fiscal da pessoa dos oficiais. Entretanto, com base na experiência colhida no contato com a atividade, é que expusemos o percentual acima. 8 Disponível aqui. 9 Nesse sentido, veja este julgado do STF: ADI 3694, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2006, DJ 06-11-2006. 10 Como exemplos, reportamo-nos a estes casos: (1) no cartório de Vitória da Conquista, houve prisão do oficial - que estava à frente do cartório desde a época em que os cartórios baianos eram estatizados - por cobrar "propinas" como taxas de agilização; (2) situação similar ocorreu em cartório de Salvador. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui.
Introdução  Nesta nótula, pretendemos apresentar ao leitor a classificação dos sistemas registrais sob a ótica de uma das maiores autoridades de Direito Registral no mundo, a professora da Universidade Coimbra Dra. Mónica Jardim. A ideia é propiciar, em uma menor escala cartográfica, uma visão da sua vastíssima e aprofundada tese de doutoramento, publicada sob o título "Efeitos Substantivos do Registro Predial - Terceiros para Efeitos de Registro" pela Editora Almedina. Aos interessados em maiores detalhamentos, recomendamos-lhes enriquecer-se com a agradável leitura das mais de 800 páginas dessa monumental tese doutoral. Registros públicos e segurança jurídica no mundo Importância e sistemas registrais na visão tradicional  Na obra, Mónica Jardim situa a origem dos sistemas registrais na necessidade de reduzir a insegurança jurídica (estática e dinâmica) causada pela falta de publicidade dos direitos reais em sociedades mais populosas e com grande fluxo de negócios imobiliários. Sem o registro público - de natureza constitutiva ou declarativa -, conferir ou consolidar a oponibilidade erga omnes aos direitos reais apenas em razão de um negócio jurídico solene (eventualmente com a traditio) seria expor os adquirentes de bens a riscos e a custos expressivos. Afinal de contas, sem o registro público, torna-se praticamente inviável averiguar a higidez do direito de propriedade do transferente. Nos sistemas registrais com eficácia constitutiva, qualquer mutação do direito real depende de registro, embora se admitam exceções de casos em que o registro terá natureza meramente declaratória (a exemplo das hipóteses de sucessões causa mortis, de usucapião e de desapropriação). Nos sistemas com registro de eficácia declarativa, o registro apenas consolida a oponibilidade erga omnes já preexistente, embora se reconheçam alguns casos em que o registro terá apenas uma eficácia enunciativa (ex.: sucessão causa mortis, usucapião e desapropriação). Tudo decorre destes três sistemas de registros, nominados de acordo com a terminologia romana: (1) o sistema de título; (2) o sistema de título e modo; e (3) o sistema do modo. Sistema de título  No sistema de título, a mutação jurídico-real satisfaz-se com o título (= o ato jurídico subjacente, como o contrato, a sentença ou a lei), sem necessidade do modo ( = sem necessidade de qualquer procedimento posterior, como a traditio ou o registro).  O registro aí tem eficácia declarativa, pois apenas consolida a preexistente oponibilidade erga omnes. Seguem esse sistema Portugal, França, Bélgica, grande parte da Itália e Luxemburgo. Sistema de título e modo  No sistema de título e modo, a mutação jurídico-real depende não apenas do título, mas também do modo. Pode haver dois tipos de modos: o simples ou o complexo. Diz-se "modo simples" aquele que envolve um procedimento (registro ou traditio) que não se abstrai do título, de modo que, na hipótese de invalidade ou ineficácia deste, o procedimento não será, em regra, apto a sustentar a nova situação jurídico-real. Quando se trata de móvel, a regra é que o modo simples seja a traditio. Quando se cuida de imóvel, há países em que o modo corresponde ao registro (Brasil e certas zonas da Itália), caso em que o registro terá eficácia constitutiva, ou à traditio (como na Espanha), hipótese em que a eficácia do registro é declarativa. Já o "modo complexo" envolve a prática de dois procedimentos. O modo não se resume a uma traditio ou a um registro, mas há também um negócio real previamente. Como há dois procedimentos, diz-se que o modo é complexo. Em suma, nesse sistema, há, como título, o negócio fundamental, que tem natureza obrigacional, como o contrato de doação ou de compra e venda, ao passo que, como modo, há dois procedimentos: (1) o negócio de disposição, também chamado de negócio real, que consiste em autorizar a mutação jurídico-real; e (2) a tradição ou a inscrição registral, conforme se trate de bem sujeito a registro ou não. Nesse ponto, há dois modelos de sistema título e modo complexo: o austríaco e o suíço. A diferença principal entre eles está no negócio de disposição: este é um contrato na Áustria e é um ato unilateral do transferente na Suíça. Em ambos os modelos, porém, permanece em vigor o princípio da causalidade, em razão do qual a invalidade ou a ineficácia do negócio fundamental pode derrubar a mutação jurídico-real. Não há, pois, abstração. Sistema de modo  Por fim, há o sistema de modo (ou melhor, o sistema do modo complexo, para o qual a mutação jurídico-real satisfaz-se com o modo, independentemente do título). A Alemanha adotou esse modelo, mas o modo é complexo, pois não se resume a um registro ou uma entabulação/extabulação, mas também depende previamente de um negócio de disposição. Esse negócio de disposição é abstrato, ou seja, independe do título, o que demonstra que o título não é parte integrante da mutação jurídico-real. Em suma, na Alemanha, o negócio obrigacional só se presta a vincular as partes, obrigando-as a celebrar um negócio real. Celebrar o negócio real é cumprir o negócio obrigacional, razão por que se pode dizer que aquele é um negócio de cumprimento ou de execução. Todavia, esse dever só tem oponibilidade inter partes.  Para nascer um situação jurídico-real, é necessário praticar um negócio de disposição (o "acordo real" ou o "negócio real") e, posteriormente, realizar a tradição (para móveis) ou a inscrição registral (para imóveis), procedimentos esses cuja validade e eficácia independem do negócio obrigacional. O registro, pois, tem eficácia constitutiva. Portanto, o sistema de modo complexo é abstrato e constitutivo.  Classificação dos sistemas registrais na visão de Mónica Jardim  O brilho da jurista lusitana acena para uma nova forma de enxergar os sistemas registrais, focando a força do registro na tutela de terceiros. Sob esse prisma, Mónica identifica dois tipos de sistemas registrais. O primeiro é o sistema de tutela mínima ou de tutela fraca, nos quais estão os sistemas da família do modelo francês, os quais são denominados, "habitualmente, como sistemas de inoponibilidade, de transcrição, ou sistemas de Registro de documentos". Nele, o registro destina-se apenas a garantir a "força negativa ou preclusiva da publicidade", assim entendida a proteção em favor de quem registrou sua aquisição diante de terceiros. Foca-se a proteção de quem tem o registro, e não de terceiros adquirentes, que não podem confiar inteiramente na inscrição. A tutela desse terceiro é fraca. Assim, nesses casos, o terceiro adquirente não está protegido dos riscos de evicção decorrentes de fragibilidade dos registros anteriores. O segundo sistema registral na classificação de Mónica Jardim é o sistema de tutela forte, nos quais se incluem os modelos alemão, suíço, austríaco e espanhol. Nele, o registro protege não apenas o titular tabular, mas também o terceiro adquirente. O terceiro adquirente não precisa de outras investigações além da consulta ao registro para proteger-se. Não há risco de evicção contra o terceiro adquirente, observados os requisitos do respectivo ordenamento (como a boa-fé do terceiro adquirente). Eventual irregularidade do negócio jurídico anterior só redundará no desfazimento do registro se não prejudicar terceiros adquirentes de boa-fé. Nesse sistema, é princípio lógico que o acesso de um título ao registro depende de um controle prévio (qualificação registral) a ser feito por um profissional especializado (o conservador ou o registrador), pois é preciso garantir a credibilidade do registro. Para tal classificação, é irrelevante se o registro tem efeito constitutivo ou declarativo, pois o que importa é o grau da tutela do terceiro. Mónica Jardim defende implantar um sistema registral de tutela forte. Para tanto, lembra que é para essa diretriz que acenam alguns documentos internacionais, como a Diretriz sobre a Administração do Território, da Comissão para a Europa das Nações Unidas (Land Administration Guidelines, II, The legal framework. C. Deeds registration and title registration), que recomenda um registro que reflita fielmente a realidade (princípio do espelho ou the mirror principle), que torne desnecessário averiguações extrarregistrais (princípio da cortina ou the curtain principle) e que garanta a exatidão do publicado (princípio da garantia ou the insurance principle).  Conclusão e modelo brasileiro  A classificação da professora Mónica Jardim permite enxergar, com mais pragmatismo, os sistemas registrais e, por consequência, o nível de insegurança jurídica dos negócios imobiliários de cada País. No nosso caso, ainda temos muito a avançar para alcançarmos um sistema de tutela forte, o qual, ao nosso sentir, mais adequado para a economia, a sociedade e o mercado. Apesar de alguns esforços do legislador - como o empreendido por meio dos arts. 54 e seguintes da lei 13.097/2015 e novo Código de Processo Civil -, o nosso sistema ainda é muito vulnerável a evicções. Não nos compete aprofundar aqui, mas - para não dizer que não falamos das flores - ilustramos que registros ainda podem ruir diante de invalidades (como por fraude contra credores) e até mesmo por ineficácias (como por fraude à execução diante da prova de má-fé no caso concreto). Soma-se a isso que, na prática forense, é comum juízes negarem a averbação-notícia preconizada pela lei 13.097/2015 por uma interpretação que - s.m.j. - frustra os objetivos desse diploma1. Inúmeros outros focos de fragilidades existem a enfraquecer o modelo registral brasileiro, mas esse debate ficará para outro momento. O que nos importa aqui é sublinhar que o vanguardismo da classificação da jurista lusitana traz a lume riquíssimos debates sobre o grau de segurança jurídica dos modelos registrais em cada país. __________ 1 Veja este julgado a título exemplificativo: Ação de cobrança. Tutela cautelar. Averbação na matrícula de imóvel do réu. Ausência dos requisitos legais. Lei 13.097/15. A averbação da existência de demanda que não tem natureza real ou pessoal reipersecutória depende de ordem judicial - art. 56, da Lei 13.097/15 - e se traduz em medida cautelar que deve atender aos requisitos do fumus boni juris e periculum in mora, ausentes no caso. (TJDFT, Acórdão 1322138, 07516369420208070000, 4ª Turma Cível, Rel. Des. Fernando Habibe, DJe 23/3/2021)