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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A solução é a desjudicialização

Experimentamos, hodiernamente, uma explosão do conhecimento humano e a transformação do nosso estilo de vida. Há bem pouco tempo as pessoas precisavam escrever cartas para se comunicar, assim como ir às bibliotecas municipais para fazerem as suas pesquisas e se contentar com um transporte precário, caro e moroso. Em todos esses casos, o tempo que se esperava era absurdo. Eram necessários vários dias para se fazer uma viagem interestadual, e, às vezes, vários meses para se receber uma simples mensagem/correspondência. A realidade era outra, definitivamente! Acontece que com o crescimento populacional, desenvolvimento humano, surgimento da internet e de novas tecnologias, bem como com a expansão/revolução do comércio e de suas fronteiras, as coisas tiveram que mudar. Nunca houve, na história da humanidade, tamanho acesso à informação como o experimentado por nossa geração e tanto acesso a novas culturas, experiências e a outros lugares do globo como nos dias de hoje. Podemos chegar ao outro lado do planeta em questão de horas e interagir, em tempo real, com qualquer pessoa do mundo, com um simples toque na tela de nossos smartphones. O conhecimento que, nos últimos tempos, já dobrava de maneira exponencial, hoje dobra em poucos meses. Estamos, de fato, vivendo a era da informação e da democratização do conhecimento. É assustador saber que todos possuem praticamente todo o acervo do conhecimento humano nas palmas de suas mãos! Já parou para pensar sobre isso? E, com todo esse desenvolvimento, o estilo de vida das pessoas, rápida e inacreditavelmente, também foi transformado, resultado do grande avanço da tecnologia e do dinamismo das relações sociais. É, também, impressionante a velocidade com que tudo acontece atualmente! Todos correm de um lado para o outro com os seus muitos afazeres e com as suas vidas agitadas e atarefadas. Jornadas de trabalho intensas, trânsito caótico, cursos de línguas, aperfeiçoamentos, graduação e pós-graduação; essa é a rotina da geração fast-food. É! A vida do homem contemporâneo realmente mudou! Nesse novo cenário, o tempo passou a ser o fator principal e a moeda mais cara. O investimento adequado desse recurso tão precioso pode nos render grandes riquezas e uma enorme satisfação e bem-estar, enquanto que a sua falta ou má gestão pode trazer ao homem grandes prejuízos. Dessa forma, as coisas tendem a fluir, cada vez mais, com grande dinâmica e velocidade, principalmente no mundo dos negócios, em que, como diz aquele velho jargão, "tempo é dinheiro". No mundo jurídico, as mudanças também foram inevitáveis. Com toda essa dinâmica social, o Direito também teve que passar por inúmeras transformações - e assim deverá continuar - a fim de atender às novas demandas e anseios da sociedade, que, dentre outras coisas, clama por mais celeridade na realização de atos e procedimentos. Tanto é verdade que, no meio jurídico, deparamo-nos, todos os dias, com novas situações e casos inusitados, assim como com o surgimento de novos institutos jurídicos, a transformação daqueles já existentes, grande dinâmica/inovação jurisprudencial e a edição de uma infinidade de normas jurídicas, notadamente em tempos de pandemia do novo Coronavírus. Nesse novo contexto, este é o desafio: dar soluções jurídicas céleres, dignas e adequadas, e ao mesmo tempo, seguras e eficazes, às demandas e anseios do homem moderno. Mas como fazer isso com o Judiciário abarrotado de ações judiciais, resultado de uma cultura de tudo judicializar? Como superar esse desafio se, em razão desse demasiado volume de demandas, muitas ações judiciais costumam superar, e muito, o tempo de duração razoável do processo, demorando anos e anos para serem julgadas? A solução é a desjudicialização! Esse é, a nosso ver, o caminho que deve ser estimulado em nosso país e a ser trilhado pelo Ordenamento Jurídico pátrio. Com a devida vênia, é inconcebível, em pleno século XXI e diante de tamanha dinâmica e desenvolvimento, uma demanda demorar diversos anos para ser julgada; isso fere, a nosso ver, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e, em conseqüência, do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, III, da Constituição Federal. Defendemos, sempre, a fiel e efetiva observância à duração razoável do processo, no âmbito judicial e administrativo, como direito fundamental que é, insculpido no artigo 5º, LXXVIII da Constituição da República. Por isso, não podemos fechar os olhos à sociedade que clama por uma resposta mais célere aos seus interesses e anseios. Convém ressaltar, entretanto, que não somos partidários da ideia de imprimir celeridade a todo custo, como defendem alguns. De maneira alguma! Não é disso que estamos falando! Celeridade em detrimento da segurança jurídica nunca será uma boa escolha. As coisas têm que ser equilibradas! Nesse sentido, inaugurando uma nova era no Direito Pátrio, foi editada a leiº 11.441/2007, que possibilitou aos Tabelionatos de Notas de todo o país a realização de atos que, até então, eram realizados apenas pela via judicial. Possibilitou-se, por meio e a partir da citada lei, a realização de escrituras de inventário e partilha, em referidas serventias extrajudiciais, nos casos em que as partes sejam capazes, concordes e inexista testamento. Hoje, inclusive, há a possibilidade de realização/lavratura de tais escrituras mesmo havendo disposição de última vontade deixada pelo autor da herança, desde que haja o registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento, nos termos do Enunciado 51 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF. De igual forma, facultou-se às partes a realização da separação e do divórcio, consensuais, pela via administrativa/extrajudicial, nos casos em que inexistam filhos comuns menores, incapazes ou nascituros. Vale frisar que, acertadamente, exigiu a lei, a presença/participação indispensável de advogado em tais procedimentos, assistindo e orientando juridicamente as partes. Dessa forma, demandas que costumavam demorar inúmeros anos no Judiciário passaram a ser resolvidas em pouquíssimo tempo nas serventias extrajudiciais, de maneira segura e eficaz. Milhões passaram a ser economizados pelo Poder Público, com a diminuição na movimentação da máquina pública, e pelas partes, pois os emolumentos notariais costumam ser bem mais baratos se comparados às custas judiciais. O resultado dessa feliz experiência foi tão bom que outros procedimentos foram confiados pelo legislador aos notários e registradores brasileiros, tais como a dissolução consensual de união estável (art. 733 do CPC/2015) e o reconhecimento da usucapião administrativa/extrajudicial (art. 216-A da lei 6.015/73), poderoso instrumento de regularização fundiária, estando, ainda, referidos profissionais do Direito, autorizados pelo CNJ - Conselho Nacional de Justiça, a realizar procedimentos de conciliação e de mediação, com fulcro no Provimento 67/2018. De igual forma, passaram a ser feitos diretamente nas serventias extrajudiciais, independentemente de autorização ou homologação judicial, os reconhecimentos espontâneos de filhos, registros tardios de nascimento, registro de união estável, no Livro "E", reconhecimento voluntário e averbação da paternidade ou da maternidade socioafetiva, traslados de certidões de registro civil de pessoas naturais emitidas no exterior, dentre outros atos. Já se discute, inclusive, a possibilidade de realização de outros atos de forma extrajudicial, como a realização da execução civil de títulos executivos judiciais e extrajudiciais pelos tabelionatos de protesto de todo o país. Outra feliz inovação legislativa foi a inerente à possibilidade de protesto das certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas, autorizado pelo artigo 1º, parágrafo único, da lei 9.492/97, incluído pela lei 12.767/2012.   Tal medida reduziu consideravelmente o número de execuções fiscais existentes no Judiciário e tem possibilitado, de forma célere e segura, a recuperação de bilhões aos cofres públicos, valores esses que, agora, podem e devem ser revertidos em favor da população (saúde, educação, segurança, etc) que padece em meio à ineficiência estatal. Assim, os serviços notariais e registrais, que têm por finalidade garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, nos termos do art. 1º da lei 8.935/94, e que, há muito, são de suma importância à ordem jurídica, social e econômica da nação, prevenindo litígios, trazendo paz social e possibilitando a circulação de riquezas em nosso país, passaram a ser, também, uma poderosa alternativa de acesso à justiça. Confiar aos notários e registradores a realização de procedimentos administrativos, envolvendo pessoas capazes e concordes, bem como procedimentos de menor complexidade, com a participação indispensável de advogado, é, a nosso ver, alternativa necessária e inteligente, na medida em que promove paz social com efetividade, e atende, pela celeridade, segurança e eficácia jurídica de tais atos, à dignidade da pessoa humana. É, também, medida que se impõe, por ajudar o Poder Judiciário no desempenho de sua nobre e tão importante missão de prestar jurisdição com efetividade a quem dela necessita, deixando-lhe o julgamento de ações mais complexas e que, de fato, necessitam da tutela jurisdicional. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, em Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário, com atuação, ainda, nas áreas de Direito Imobiliário e Contratual, Direito do Agronegócio e Direito Empresarial. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis-MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país e em Revista Jurídica. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados, O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais e O Registro Civil na Atualidade - A Importância dos Ofícios da Cidadania na Construção da Sociedade Atual, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.
quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Um passo adiante

 A lei Federal 11.441/2007 alterou dispositivos do Código de Processo Civil então vigente e possibilitou a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa, mais especificamente, por meio de escrituras públicas feitas nos cartórios de notas. Desde então, inúmeros processos judiciais simplesmente deixaram de ser necessários e, havendo consenso entre os interessados, muitos casos assim foram rapidamente resolvidos nos tabelionatos. Os ganhos foram enormes para a justiça e para a sociedade. Exige-se que, além do consenso, não haja entre os interessados menores ou incapazes. Assim é, porque as pessoas mais vulneráveis são merecedoras de maior proteção, com fiscalização redobrada, mesmo que estejam representadas por seus pais ou curadores. Todavia, os juízes sabem que, se a partilha é feita de forma ideal, não há sequer risco potencial de prejuízo a qualquer menor ou incapaz. Estabelecido percentual ou fração ideal sobre todo o patrimônio herdado, despicienda a perícia para avaliação dos bens. Se a transmissão da herança se dá imediata e automaticamente com o óbito da pessoa, pelo chamado direito de saisine (CC art. 1.784), não há porque recorrer ao Judiciário, quando a partilha se fizer de forma ideal ou igualitária, havendo ou não menores interessados. A situação é claríssima. Imagine-se inventário com três herdeiros, com divisão do patrimônio igualmente entre eles, na proporção de 1/3 (um terço) para cada um. Ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal (CC art. 1.829).  Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Exatamente por não haver prejuízo aos incapazes na partilha ideal, um sensível magistrado da comarca de Leme, proferiu recentemente uma decisão paradigmática: concedeu alvará para que uma escritura de partilha fosse feita em tabelionato de notas, mesmo com um dos herdeiros menor de idade, exatamente porque a partilha se faria de forma ideal (processo 1002882-02.2021.8.26.0318). Essa decisão criativa e inovadora merece aplauso, pois ajudou a desafogar o Judiciário sem deixar desprotegido o menor. Com isso, o inventário será feito no cartório escolhido pelos interessados (Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga - SP). Trata-se de uma decisão a servir de inspiração para outros profissionais do direito, quais advogados, tabeliães, registradores, promotores de justiça e magistrados, além dos próprios legisladores do Congresso Nacional. De fato, o excelente serviço prestado pelos capacitados tabeliães do Brasil desde sempre, mas principalmente nos últimos catorze anos de vigência da Lei 11.441/2007, somados à falta de prejuízo da partilha ideal, recomendam seja alterada a legislação, para tornar dispensável o processo judicial quanto a partilhas nessas condições, ainda que haja algum interessado menor ou incapaz. Para sustento deste ponto de vista, invoca-se a expertise dos signatários - dois desembargadores, um deles ex-Corregedor Geral da Justiça e ex-Presidente do TJSP, outro ora registrador imobiliário e ex-advogado, registrador civil das pessoas naturais e tabelião de notas O inventário feito nos cartórios de notas, além de atenderem à normatividade, são muito rápidos e todos sabem que a lentidão é uma das principais máculas do sistema Judicial. Aguarda-se que o tirocínio dos parlamentares acolha a sugestão de lege ferenda e amplie o rol de atribuições dos notários, para que o interesse de menores e incapazes não impeça o inventário em cartório extrajudicial, desde que a partilha seja ideal e igualitária Por excesso de cautelas, a exemplo do que ocorre em outras situações, poder-se-ia abrir oportunidade para vista ao ministério público ou ao juiz, o que implicaria em preservação de alguma burocracia, pois os antigos cartórios, hoje delegações extrajudiciais, já são permanentemente fiscalizados pela justiça. A desjudicialização das situações consensuais permite que a justiça se atenha à sua missão: compor litígios. O juiz é um profissional treinado para o enfrentamento do conflito. Já os delegatários do foro extrajudicial são insuperáveis na rápida e eficiente solução das situações consensuais. Enquanto a mudança legislativa não se faz, nada impede que os advogados e os tabeliães procurem obter junto aos juízes, como se fez no caso mencionado, autorização para que, em casos de partilha ideal com presença de menores ou incapazes se possa fazer a partilha ideal, ante a ausência de qualquer prejuízo para a pessoa que mais precisa ser protegida. O pioneirismo dessa decisão judicial paulista merece adesão por sua lucidez, que deve ser replicada em todo o Brasil.  *José Luiz Germano é especialista em direito notarial e registral pela EPM, desembargador aposentado (TJ/SP), atualmente é oficial de Registro de Imóveis do 2º Ofício de Cianorte - Paraná. **José Renato Nalini é doutor e mestre em Direito pela USP, desembargador aposentado, Ex-corregedor-Geral da Justiça, ex-presidente (TJ/SP) e reitor da Uniregistral. ***Thomas Nosch Gonçalves é mestrando em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em Direito Notarial e registral pela EPM, ex-advogado e atualmente registrador Civil e tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, município de Pirassununga em São Paulo.
Introdução A Constituição Federal de 1988 positivou no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da dignidade humana, instrumentalizado pela solidariedade, como garantidor dos direitos fundamentais. Tal valoração impõe à sociedade brasileira o dever de promover a inclusão de todos os brasileiros em um contexto que permita a efetiva fruição destes direitos. Este contexto é materializado por um atributo jurídico que se chama cidadania, estabelecido como um dos fundamentos da República pela Constituição de 1988. No entanto, a compreensão do conceito de cidadania ainda é precária. Apesar da incorporação constitucional do atributo, ele ainda não foi efetivado junto à população brasileira. A incompreensão reverbera a exclusão de muitos brasileiros do direito a uma cidadania plena, legítima e que os integre na sociedade. Uma das causas desta exclusão é a inequidade do acesso às formas jurídicas de reconhecimento por parte do Estado. Neste sentido, como uma das formas de proporcionar a cidadania, reveste-se de importância a atividade do Registro Civil. De fato, os serviços notariais e de registros possuem atribuições específicas e essenciais no sentido de proporcionar segurança jurídica, eficácia e efetividade a vários aspectos da vida das pessoas, imprimindo certeza e garantia às relações jurídicas públicas e privadas, permitindo registros oficiais de sua existência e de de todos os atos com que se insere na sociedade.  O registro civil da pessoas naturais tem como foco o registro e proteção das pessoas, conferindo publicidade de fatos e negócios jurídicos inerentes à pessoa física, desde o seu nascimento até sua morte, tendo em vista que tais fatos e atos repercutem não apenas na esfera do indivíduo, mas também interessam a toda a sociedade. No presente artigo, abordar-se-á, de modo sumário, o histórico do Registro Civil no Brasil, bem como o conceito e valor jurídico da cidadania, e finalmente, o contexto atual do Registro Civil como Ofícios da Cidadania, servindo como importante instrumento de acesso à cidadania, que por sua vez garante a todos os brasileiros a fruição dos direitos fundamentais tutelados pelo Estado.  Breve panorama histórico do registro civil Os serviços notariais e registrais são instituições pré-jurídicas, pois existem antes mesmo do próprio Estado. Desta forma, pode-se inferir que o serviço notarial e registral é da própria natureza da pessoa humana. Os registros públicos, especialmente o Registro Civil, constitui-se da história de vida das pessoas, das famílías, daí a relação dessa especialidade registral com a dignidade da pessoa humana, não sendo exagero afirmar que a sociedade poderia viver sem Foros, mas não sem um Registro Civil. O primeiro esboço de registro laico no Brasil data de 1851, quando foi editado o decreto 586, que ao regulamentar o § 3º do artigo 17 da lei 586, de 6 de setembro de 1850, determinou que escrivães civis passassem a registrar os nascimentos e óbitos, a contar de 1º de Janeiro de 1852. Em imediata sequência, o primeiro regulamento de registro civil surgiu pelo decreto 798, de 18 de janeiro de 1852, cujas disposições são semelhantes às da atual Lei de Registros Públicos, tratando, inclusive, dos nascimentos e óbitos de escravos (PANCIONI, 2017). No entanto, embora promulgado, a vigência do decreto foi adiada, e o mesmo permaneceu sem data para entrar em vigor. A influência da Igreja Católica sobre o sistema registral prevaleceu até o fim do regime monárquico, mas seu poder foi sendo solapado pela ascensão dos movimentos positivistas e republicanos que culminaram com o fim do regime.  Já no período final do Império (7 de março de 1888), foi editado o decreto 9.886, segundo o qual a partir de 1º de janeiro de 1889 o regulamento de 1852 passaria finalmente a vigorar, cabendo exclusivamente ao registro civil o registro de nascimentos, óbitos e casamentos. Também cabe lembrar que, além do atendimento direto ao cidadão, os Registros Civis proporcionam a diversos órgãos públicos um sem número de informações relevantes para produção estatística, gerenciamento de dados e otimização de vários sistemas de órgãos públicos como IBGE, Seade, INSS, Justiça Eleitoral, Ministério da Justiça, Ministério da Defesa, Secretaria Estadual da Fazenda e Institutos de Identificação (ARPEN, 2020). Os Cartórios de Registro Civil são, portanto, como um braço do Estado junto à população, muitas vezes servindo como porta de entrada para o acesso a direitos fundamentais, através da concessão de documentos que o habilitem ao exercício da cidadania (RICCI; SILVA, 2019). Nos últimos anos, estas serventias tem buscado a integração com as inovações tecnológicas, com o objetivo de proporcionar maior agilidade e confiabilidade, como a criação Portais de Serviços Eletrônicos Compartilhados, que permitem a localização eletrônica de registros e a expedição de segundas vias de certidões digitais por cartórios, possibilitando a interligação estadual e nacional (ARPEN, 2020). Por fim, cabe lembrar que com a promulgação da lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, definiu-se que Registros Civis das Pessoas Naturais podem exercer a função de "Ofícios da Cidadania".  O bem jurídico fundamental da cidadania  Na Constituição de 1988, o conceito de cidadania passa a ser reconhecido como fundamento da República, desde o seu artigo 1º. De fato, o entusiasmo gerado pela proclamação da carta, impulsionado pelo longo período de abstinência de uma plena participação política e pela percepção de que a redemocratização traria um horizonte de realizações sociais ao país levou inclusive à popularização do termo "Constituição Cidadã" conferido à norma. Para Fagnani (2017), a partir da Constituição de 1988, de fato se iniciou um ciclo de construção de cidadania social, mediado por novas políticas de proteção social, mas na visão do autor a falta de vontade política, bem como reformas restritivas da legislação,  podem ter paralisado o processo. Além disso, o cenário instalado no primeiro semestre de 2020, com a eclosão da pandemia de CoVid-19 no mundo e, de modo particularmente, no Brasil, desvelou falhas gritantes na promoção de cidadania; tais como a inequidade de acesso aos serviços de saúde e de medidas de proteção social. Particularmente marcantes foram as dificuldades de acesso aos benefícios financeiros emergenciais por ausência de documentação ou fidedignidade de registro público (DOCA, 2020). Do mesmo modo, estrangeiros  que habitam o território nacional viram-se em situação de extrema vulnerabilidade por eventuais ausências ou incorreções de CPF e de Registro Nacional de Estrangeiro. Vive-se, portanto, um dilema: por um lado, o ordenamento jurídico pátrio legitima e impõe a constante busca da cidadania plena; por outro a realidade política e econômica extremamente convoluta das últimas décadas dificulta sobremaneira que se atinja este objetivo. Mas, como se demonstrará no tópico posterior, existem alternativas viáveis ao alcance de todos. Demonstrada a relevância da cidadania plena para o indivíduo, enquanto destinatário da proteção a seus direitos fundamentais, cabe ressaltar que a cidadania outorgada, legitimada, controlada e conferida pelo Estado se expressa materialmente por meio de uma série de documentos, cujo registro e posse são fundamentais para o exercício deste atributo, e serão o objeto do tópico seguinte. O registro civil como ofício da cidadania  Na sociedade contemporânea, observa-se um reconhecimento crescente do papel de serventias extrajudiciais no propósito de evitar litígios ou facilitar a sua solução, através da utilização de mecanismos privados e informais de solução de demandas (desjudicialização). Em sua teoria das ondas de acesso à justiça, os juristas Cappelletti e Garth caracterizaram o processo como "terceira onda". No paradigma da "terceira onda", inserem-se com perfeição as atividades prestadas pelos Cartórios do Brasil, pelo conjunto de serviços extrajudiciais que estes são capazes de oferecer com grande eficiência e em defesa da cidadania. Tomem-se os registros civis, por exemplo: uma pessoa sem registro de nascimento não existe para o mundo jurídico, e por consequência sofre restrição para o livre exercício de sua cidadania. Do mesmo modo, a simples ausência de um registro de casamento ou de óbito de um familiar dificulta a efetivação de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos. De fato, a distribuição dos registros de pessoas naturais é uma das mais capilarizadas do Brasil: a nação possui, em 2020, 5.770 municípios,1 e  13.210 cartórios2, dos quais 7.674 são serventias de Registro Civil3. Ainda que esta distribuição não seja uniforme nem tampouco equânime, é possível afirmar que, em um país de dimensões continentais como o Brasil, os serviços cartoriais são uma das instituições mais acessíveis à população. O primeiro registro a que a pessoa natural é submetida é o registro de nascimento, que é considerado o documento básico ou matriz, do qual se originam todos os demais. Todavia, um registro civil de nascimento ou de casamento, embora indispensável para prover o mínimo de cidadania, não é o único documento necessário para o exercício pleno deste atributo. A mera benesse das certidões de atos da vida civil não tem o condão de tornar o indivíduo um cidadão pleno. Por esta razão, em 26 de setembro de 2017, foi promulgada a lei 13.484/2017, a qual ampliou a competência e serviços que possam ser prestados pelos Cartórios de Registro Civil, alterando a lei 6.015/73. A referida Lei tornou os serviços de Registro Civil das Pessoas Naturais, portanto, Ofícios da Cidadania. Esta nomenclatura não é demagógica, nem tampouco apenas formal. Como demonstrado no tópico anterior, a cidadania plena e universal que a Constituição de 1988 busca estender a todos os brasileiros depende da instrumentalização de institutos básicos de reconhecimento social, como os registros aludidos. Ao tornar-se Ofício de Cidadania, o Cartório de Registro Civil passa a poder emitir documentos que antes eram feitos apenas em órgãos públicos, como Registro Geral (RG), Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira Nacional de Habilitação (CNH), Carteira de Trabalho, entre outros que venham a ser conveniados (GENTIL, 2020). A atuação do Registro Civil como Ofícios da Cidadania se faz notar inclusive na solução das demandas surgidas em função da pandemia de CoVid-19: as irregularidades no Cadastro de Pessoa Física que dificultavam o acesso aos benefícios de caráter emergencial (prejuízo ao gozo da cidadania) passaram a poder ser resolvidas diretamente nos cartórios a partir de julho de 2020, primeiramente no Estado de São Paulo e posteriormente com previsão de expansão para as demais unidades da federação (BRASIL, 2020). A criação dos Ofícios da Cidadania transformou a percepção da população do sistema notarial e registral. O indivíduo que percebia os "cartórios" como instituições burocráticas e ultrapassadas, hoje os percebe como uma solução simples e extrajudicial para resolução de óbices que anteriormente lhes pareciam insolúveis.  Conclusão  A estrada trilhada, no viés contemporâneo de cidadania, é aquela que se dedica a olhar para os excluídos, àqueles para os quais nem sempre os preceitos constitucionais se materializam, àqueles que nem sempre logram acesso ao Judiciário para a tutela de seus direitos fundamentais. E ao trilhá-la, não há como negar que encontra destaque a atuação dos Ofícios de Registro Civil. De fato, os Oficiais de Registro Civil vem ocupando um relevante papel, dado que o acesso a direitos fundamentais foi negligenciado por séculos, herança do modelo colonialista sobre o qual se assentou o Império e, posteriormente, a República. Muitos direitos assegurados, em tese, pelos princípios e valores positivados na Constituição, necessitam ser concretizados - na maior parte das vezes, através do Judiciário, mas com relevante destaque para a possibilidade oferecida pelas serventias de Registro Civil.  Referências ARPEN BRASIL. Arpen-Brasil: 20 anos trabalhando pela dignidade do Registro Civil brasileiro. Disponível aqui, acesso em 16 de julho de 2020. DOCA, Geralda. Receita alerta para dificuldades no acesso ao aplicativo da Caixa para requerer o auxílio emergencial. O Globo Economia (online). Disponível aqui, acesso em 08.07.2020. FAGNANI, Eduardo. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Campinas, Instituto de Economia UNICAMP, 2017. Disponível aqui, acesso em 08.07.2020. GENTIL, Alberto. Registros Públicos. São Paulo, Editora Método, 2020. PANCIONI, André Luiz. Gratuidade do Reistro de Nascimento aos Pobres: direito fundamental e forma de inclusão social. Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Bauru, 2017. RICCI, Erwin Rodrigues; SILVA, Juvêncio Borges. Ofícios da Cidadania nos Cartórios de Registro Civil como Forma de Concreção dos Direitos Fundamentais à Cidadania e Nacionalidade. Anais do Congresso Brasileiro de Processo Coletivo e Cidadania, n. 7, Out/2019, p.136-152. *Cassia Proença Dahlke é oficial de Registro Civil no Estado de São Paulo, mestre em Direito. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Embora hoje saibamos que identificação e identidade são conceitos distintos, por muito tempo foram tidos como sinônimos. Houve época, aliás, em que a identidade cedeu à identificação. Isso, todavia, foi se alterando, principalmente em relação ao nome civil, signo de primeira importância tanto à identidade quanto à identificação da pessoa, que evoluiu no sentido de se compreender o nome como direito da personalidade, o que entre nós atualmente está expressamente catalogado como tal no artigo 16, do Código Civil de 2002. Sobre a diferença entre a individualização (identidade) e identificação, Leonardo Brandelli recorda que: A identificação difere da individualização. Esta pressupõe uma conotação estática de distinção dos seres humanos, ao passo que aquela contempla o aspecto dinâmico da individualização, uma vez que pressupõe um processo investigatório para reconhecer-se se determinada pessoa é a que se busca. A individualização serve para distinguir; a identificação, para comprovar. (BRANDELLI, 2012, p. 78) Outros autores lembram ainda que a identificação tem a ver com uma perspectiva cultural e narrativa, que nos é imposta num contexto relacional dialógico (MENEZES, 2014), ao passo que a identidade é a forma como nos vemos no mundo e como ele, em troca, nos vê: "[...] a identidade vai além da mera nomeação, encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas das quais a pessoa toma parte. Identidade, portanto, parte do pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como é reconhecido pela sociedade" (FACHIN, 2014, p. 37). Em suma, por identificação tem-se um processo de investigação social para indicação de quem é quem sob uma ótica social externa, ao passo que a identidade é conformada, na lição de Jacques Lacan, por laços identitários que pressupõem o afeto na definição de significados (STARNINO, 2016). Destarte, tanto a identificação quanto a identidade se valem, dentre outros, de aspectos externos de cada indivíduo, dentre eles, claro, os biológicos. Todavia, o imperativo da valorização da dignidade humana impôs uma inadiável reflexão entre a preponderância da identidade sobre a identificação, e mais, até que ponto é legítimo restringir a identificação do ser humano única e exclusivamente a partir do recurso aos sinais biológicos externos. Historicamente a determinação de uma identidade sexual (e o vocábulo "determinação" denota o viés identificatório sobre o identitário) esteve ligada à perspectiva biológica, ou seja, distribuída de acordo com as distinções corporais entre homens e mulheres, mormente àquelas associadas às diferentes capacidades reprodutivas (PISCITELLI, 2009, p. 119). Qualquer desobediência a esse padrão binário era visto como uma transgressão à própria natureza (ARAÚJO; CAMPOS, 2019, p. 104), tanto que os nascidos com desenvolvimento parcial das genitálias, a não estremar binariamente o sexo entre masculino e feminino, eram submetidos a intervenções cirúrgicas, ou até mutilações, para, superada a situação de indefinição dos órgãos íntimos, aí sim se chegar à inequívoca designação do sexo, complementada por trabalhos terapêuticos de harmonização da identidade do gênero às genitais (PISCITELLI, 2009, p. 126). Esse pressuposto binário e heteronormativo que colocava o sexo biológico como uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir, e que exigia linearidade sem desvios entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais (BUTLER, 2003, p. 189), era tão evidente que a identidade de gênero, quando diversa da biológica, chegou a ser patologizada e considerada como transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID). A consequência mais penosa dessa abordagem foi justamente permitir que durante muito tempo se buscasse um "tratamento" e "cura" a essa "patologia". A distopia, porém, estava no pressuposto, no diagnóstico. O avanço da psicanálise, da sociologia e da medicina, evidenciou que os conceitos de sexo e gênero não eram imbricados de modo incontornável nem automaticamente autoimplicantes, mas que podiam existir autonomamente. O equívoco inicial ficou patente quando, na CID-11, retiraram-se os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais (MEINDRAD; DUARTE, 2018, p. 6), legitimando a identidade de gênero como fruto da autodeterminação humana, no exercício de sua dignidade e, por isso, merecedora de proteção jurídica como modo de concreção da cidadania. Nesse contexto, totalmente descabida a exigência de qualquer cirurgia de transgenitalização ou submissão a tratamentos hormonais ao reconhecimento do gênero declarado pela pessoa trans, o que representaria, para além de uma afronta a sua integridade física e violação de sua dignidade, uma reinstauração do perverso binarismo sob infundada justificativa de "sanar" a inadequação entre sexo e gênero (CARRARA, 2010, p. 138). O direito à autoafirmação do gênero deve se imbricar com tantos outros direitos já longamente considerados fundamentais, dentre eles o direito ao próprio corpo (SCHREIBER, 2013, p. 32) e ao nome, como pilares fundantes tanto de uma identificação como de uma identidade. Daí ser assaz violenta a negação ou turbação do exercício do direito de autoafirmação do gênero, independentemente de qualquer outra circunstância, pois impede o pleno desenvolvimento da personalidade da pessoa, por lhe negar seu direito de ser o que é e de se construir em suas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas, diminuindo-lhe as potencialidades. Negar a possibilidade da afirmação do gênero emancipado do sexo biológico compromete o ideal de cidadania em todas as suas dimensões, civil, política e social (WALBY, 2004, p. 170), pois gera tratamento não paritário por um critério não eticamente sustentável.  Tanto assim que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), chamado a decidir a ADPF 132/RJ e a ADIN 4.277, arvorou, em histórica decisão que reconheceu a validade jurídica da união estável homoafetiva como entidade familiar, que nem o sexo nem a orientação sexual das pessoas, salvo disposição constitucional em contrário, prestam-se como fator de desigualação jurídica. Em que pese tal decisão lapidar a edição do Decreto Federal nº 8.727/2016, ao impor à administração pública a obrigação de tratar a pessoa trans por seu nome social, definido como aquele com o qual ela se identifica e é socialmente reconhecida (arts. 10 e 20), as pessoas transgênero (definidas no art. 1º da resolução 2.265/2019, do Conselho Federal de Medicina, como aquelas que apresentam uma não paridade entre a identidade de gênero e o sexo do nascimento, incluindo-se transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero), continuaram a ter sua dignidade negada, no tocante ao ato jurídico fundante e inaugurador da cidadania: o registro de nascimento. É a partir do registro de nascimento que se fixa a nacionalidade e se extraem todos os demais documentos pessoais indispensáveis à vida juridicamente digna na comunhão nacional e transnacional, haja vista a dificuldade de deslocamentos transfronteiriços sem um passaporte. Continuava o registro de nascimento, onde obrigatoriamente deve o Oficial que o lavrar fazer constar o sexo da criança registrada (art. 54, lei 6.015/1973), intangível a qualquer mudança. Conquanto a utilização do nome social assegurasse a dignidade de tratamento das pessoas trans no relacionamento com a administração pública, não conseguia garantir a mesma eficácia em todas as outras dimensões da vida privada, na qual continuavam a se sujeitar a situações vexatórias ao terem de apresentar, no interesse e necessidade de identificação, documentos em completa dissonância com suas performances de gênero (BENTO, 2014, p. 175), ou seja, dissociadas de suas identidades. Era uma equivocada prevalência da identificação sobre a identidade que feria a identidade e ao mesmo tempo não identificava. Como o prenome "João", num documento de identidade, poderia identificar alguém que já se apresentava e vivia socialmente como "Maria"? Insistir nesse paradigma era querer o pior de dois mundos e de grande desserviço tanto à identidade quanto à identificação. Assim, muitos transgêneros buscaram a via judicial para retificar seus registros civis de nascimento, a fim de adequar seu registro à sua identidade de gênero e, posteriormente, alterar seus demais documentos. Essa busca individual, contudo, era desgastante tanto pela morosidade do Judiciário quanto pela incerteza do deferimento do pedido, haja vista os inúmeros julgados que, permeados por concepções tradicionalistas, os negavam.1  Era preciso, portanto, uma tutela institucional, estrutural e definitiva à população trans, conforme, aliás, indicava o Parecer Consultivo OC-24/17, da Corte Interamericana de Direitos Humanos,2 ao afirmar que os Estados têm o dever de reconhecer e oferecer proteção legal à identidade de gênero autopercebida das pessoas, garantindo a retificação da anotação do gênero e nome dos seus registros civis (CIDH, 2017, p. 81). O progresso veio mais uma vez do STF que, em 2018, no julgamento do RE 670.422/RS, com repercussão geral, e da ADI 4.275/DF, decidiu que os transgêneros poderiam alterar seu sexo e prenome nos documentos públicos independente de realização de cirurgia de transgenitalização, além de reconhecer a possibilidade de retificação do seu registro civil diretamente no cartório, sem necessidade de ação judicial, independentemente de prova de cirurgia de redesignação sexual. Logo após a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento CNJ nº 73/2018, que dispõe sobre a averbação3, diretamente nas serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento da pessoa transgênero. Essa alteração administrativa é hoje realizada com base na autonomia do requerente, maior de 18 anos que, munido de alguns documentos necessários (art. 4º, §6º, Provimento CNJ nº 73/2018), deve declarar, perante o registrador civil, sua vontade de proceder à alteração da identidade mediante averbação do prenome, do gênero ou de ambos (art. 4º, caput, Provimento CNJ nº 73/2018). Essa alteração abrange a inclusão ou exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência (art. 1º, § 1º, Provimento CNJ nº 73/2018). Todavia, não é possível a alteração de nomes de família (sobrenomes), bem como a alteração pleiteada não pode ensejar identidade de nome com outro membro da família (art. 2º, § 2º, Provimento CNJ nº 73/2018). Ressalte-se que esse procedimento é sigiloso, de modo que não haverá na certidão nenhuma menção à alteração, cuja informação constará apenas do livro preservado no cartório. Após a averbação, o oficial deverá comunicar a alteração a todos os órgãos expedidores de documentos e ao foro em que estiver tramitando alguma ação do requerente, o que, todavia, não retira o dever do requerente em alterar todos os seus documentos pessoais (art. 8º, caput e §1º, Provimento CNJ nº 73/2018), obrigatoriedade que embora pareça óbvia revela a lógica que há até bem pouco se resistiu: a de haver uma necessária relação de anterioridade entre identidade e identificação. Identifica-se, ou seja, comprova-se aquilo que já é, não o contrário. Primeiro deve haver uma identidade para depois identificá-la.    Se o requerente for casado, a alteração do prenome e gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge, e, se o requerente tiver filhos, a alteração no registro de nascimento destes dependerá da anuência deles quando maiores de 16 anos, e da anuência de todos seus genitores. Havendo qualquer discordância de uma das partes, o consentimento deverá ser suprido judicialmente (art. 8º, §§2º, 3º e 4º, Provimento CNJ nº 73/2018). Vale ainda lembrar que esse procedimento de alteração pode ser realizado em qualquer cartório de registro civil do país, e não apenas no cartório onde consta o registro de nascimento do requerente. O relatório Cartório em Números revela que desde 2018 já foram realizadas administrativamente nos cartórios de Registro Civil, 3.921 mudanças de nome e gênero (ANOREG, 2020, p. 25). Esses números, que certamente hoje (julho de 2021) já são maiores, provam o acerto do Estado brasileiro no reconhecimento da autonomia do gênero em relação ao sexo biológico, que permite não só a livre construção identitária da pessoa, como uma identificação que, para além de mais humanizada, pois concebida da pessoa para a sociedade, e não desta para aquela, ainda é mais certeira porque identifica aquilo que realmente é, reconhecendo a necessária relação de anterioridade entre a identidade e a identificação, reforçando assim simultaneamente a segurança jurídica, ao contrário de infirmá-la, e um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o da dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º, da Constituição Federal de 1988).  Referências ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG).  Cartório em números. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 73/2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-24/17. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2021. ARAÚJO, Geórgia Oliveira; CAMPOS, Juliana Cristine Diniz. Corpo, gênero e registro: o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da alteração do registro civil das pessoas trans e o papel da Corte Constitucional no reconhecimento de direitos de minorias. In: Nas entrelinhas da jurisdição constitucional: estudos críticos sobre o constitucionalismo à brasileira. DINIZ, Juliana (org.). 1ª ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019.  BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. In: Contemporânea. v. 4. nº 1. 2014. BRANDELLI, Leonardo. O nome civil da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 2012. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. In: Revista Bagoas. n. 5. Natal: UFRN, 2010. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. In: Revista Brasileira de Direito Civil. Vol. 1. Rio de Janeiro, 2014. MEINDRAD, Gabriella; Duarte, Fábio Rijo. Organização Mundial De Saúde (OMS): uma análise sobre a transexualidade na CID-10 e CID-11. In: Entrementes: Anais da 15ª Semana Acadêmica da Fadisma. 2018. MENEZES, Vitor. Identidade e processos de identificação: um apanhado teórico. In: Revista Intratextos. vol. 6. n. 1. 2014. PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. STARNINO, Alexandre. Sobre identidade e identificação em psicanálise: um estudo a partir do Seminário IX de Jacques Lacan. In: Doispontos. vol. 13. n. 3. 2016. WALBY, Sylvia. Cidadania e transformações de gênero. In: Políticas públicas e igualdade de gênero. GODINHO, Tatau (org.). São Paulo: Coordenadoria Espacial da Mulher, 2004. *Caio Pacca Ferraz de Camargo é mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário e Direito Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Bacharel em Relações Internacionais pela UniFMU. Registrador Civil e Tabelião de Notas no Estado de São Paulo. Ex-assistente jurídico em gabinete de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Coautor em obras jurídicas e co-organizador do livro "Temas atuais sobre a teoria geral dos contratos", Curitiba: CRV, 2014.   **Taysa Pacca Ferraz de Camargo é mestranda em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário e Direito Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Bacharel em Direito. Coautora em obras jurídicas.  __________ 1 A respeito das decisões judiciais de cunho moralizador e de concepções tradicionalistas, pode-se citar como exemplo: TJRJ, Apelação 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista, DJe 18/03/1997; TJPR, Apelação 0030019-8, Rel. Des. Osíris Fontoura, DJe 08/11/1994; TJBA, Apelação 0368322-64.2012.8.05.0001, Rel. Des. José Olegário Monção Caldas, DJe 15/10/2013; TJRS, Apelação 70056132376, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, DJe 13/11/2013, dentre outras. 2 A Corte IDH pode ser consultada pelos Estados membros sobre a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e outros tratados de direitos humanos (art. 64.1 da CADH). 3 Em linhas gerais, apenas para esclarecer os conceitos de averbação e de retificação: Averbar é o ato de lançar, no registro existente, informação sobre fato que o modifique, retifique ou cancele. Retificar é corrigir um erro existente no registro. Portanto, retificação é uma espécie de averbação, no sentido amplo do termo.
No dia a dia, constatamos que a grande maioria das pessoas que se casam no regime da separação total de bens, desconhece que, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro será seu herdeiro, concorrendo com os descendentes (filhos, netos, bisnetos), ou ascendentes (pais, avós, bisavós), a depender do caso, podendo, inclusive, na falta de ambos (descendentes ou ascendentes), receber a totalidade da herança (artigo 1829, do Código Civil Brasileiro). Isso ocorre porque na sucessão, de acordo com nosso ordenamento jurídico (art.1845, do CC), o cônjuge é herdeiro necessário (aquele que tem o direito à legítima e não pode ser excluído da herança, exceto no caso de deserdação ou de indignidade). As exceções trazidas no artigo 1829, do CC, que afastam o cônjuge da herança em alguns regimes de bens, quando em concorrência com os descendentes, não engloba a separação total de bens. Tais exceções são somente para o regime da comunhão universal de bens, para o regime da comunhão parcial, em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, e para o regime da separação obrigatória de bens, aquela imposta pela lei, onde não é possível escolher outro regime (artigo 1641, do CC). A regra geral seguida pelo legislador na redação deste artigo foi conferir o direito à herança somente na parcela do patrimônio em que o cônjuge não tem meação. Assim, não abrangido por tais exceções, o regime da separação total de bens, eleito pelo casal em pacto antenupcial, gera direito à herança para o cônjuge sobrevivo, tanto em concorrência com descendentes, quanto em concorrência com ascendentes, e, também, quando o cônjuge herda com exclusividade, no caso da falta de descendentes e ascendentes. E, toda essa regra também se aplica, atualmente, aos companheiros, ou seja, para a União Estável, pois, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucional o artigo 1.790, do CC, equiparou-se a sucessão do companheiro à do cônjuge. O problema desta regra, de o cônjuge ser considerado herdeiro no regime da separação total de bens, como sempre, está na prática. A grande maioria das pessoas que se casam neste regime tem como objetivo não misturar seus patrimônios, desejando ficar cada um com o que é seu, tanto na vida, quanto na morte. No entanto, a situação se complica quando nos deparamos com as chamadas famílias-mosaico: pessoas que já foram casadas, tiveram filhos, e, por qualquer motivo, seja por ficarem viúvos, ou se divorciarem, acabam se relacionando com outra pessoa, que, muitas vezes, está na mesma situação, isto é, também já foi casada e, igualmente, tem filhos. Estas pessoas, via de regra, não querem misturar seus patrimônios, querem, sim, permanecer cada um com seus bens e rendimentos, e não querem que, em caso de morte, parte de seu patrimônio, que ficaria para os filhos, seja destinado ao seu novo cônjuge ou companheiro. Nesta situação, ao tomarem conhecimento da condição de herdeiro de seu futuro cônjuge ou companheiro, as pessoas ficam indignadas, eis que se sentem impossibilitadas de decidir, de forma ampla, sobre como serão as regras patrimoniais do seu relacionamento, principalmente por não terem o direito de estabelecer, de comum acordo, que, além da não comunicação patrimonial, também não querem, por ocasião de sua morte, que seu patrimônio seja dividido com seu novo cônjuge, prejudicando assim a herança de seus filhos. Na lida diária do Cartório, inúmeras são as queixas, pois a grande maioria das pessoas não consegue aceitar e nem entender essa limitação imposta pelo nosso ordenamento jurídico. A coisa complica ainda mais quando as partes só descobrem o direito à herança do cônjuge ou companheiro após terem se casado, ou, pior ainda, só depois que um dos cônjuges morre. Muitas pessoas não têm assessoramento jurídico de um advogado, simplesmente escolhem o regime da separação total, e, ao se dirigirem a um Oficial de Registro Civil, são informados que, para esse regime, é necessário fazer um pacto antenupcial em Tabelionato de Notas. E assim o fazem, sem imaginar que, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro será herdeiro. Cabe ao Tabelião, em casos como estes, assessorar juridicamente as partes, caso perceba a falta de informação a respeito, explicando todas as implicações do regime de bens no momento da lavratura do pacto antenupcial. Com o tempo, diante dessas indignações e como forma de preservar a autonomia das partes, surgiu uma sugestão de se permitir aos cônjuges, no momento da escritura de pacto antenupcial, renunciarem ao direito à herança um do outro quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes. Em outras palavras, os cônjuges abdicariam ao direito de serem considerados herdeiros necessários um do outro quando em concorrência com descendentes e ascendentes. Permaneceria, contudo, o direito à herança quando o cônjuge herdasse com exclusividade, ou seja, quando não houvesse descendentes, nem ascendentes do falecido. Rolf Madaleno e Mario Luiz Delgado, renomados juristas brasileiros, são as vozes que defendem esta possibilidade. Rolf Madaleno, destacando que "merece profunda ponderação a constatação de que a autonomia privada, ao respeitar o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, confere amplo poder discricionário nas relações patrimoniais dos cônjuges e conviventes"1, afirma que: [...] os pactos patrimoniais devem atender, em respeito ao princípio da liberdade contratual, a todas as questões futuras, conquanto lícitas, recíprocas e suficientemente esclarecidas, acerca dos aspectos econômicos do casamento ou da união estável, permitindo que seus efeitos se produzam durante o matrimônio ou com sua dissolução pelo divórcio ou pela morte, conquanto as cláusulas imponham absoluta igualdade de direitos e obrigações entre os cônjuges e conviventes no tocante ao seu regime econômico familiar e sucessório.2 Segundo Madaleno, a proibição de pactuar herança de pessoa viva, prevista no artigo 426, do Código Civil, é fundamentada por dois argumentos: "i) resultaria odioso e imoral especular sobre a morte de alguém para obter vantagem patrimonial, podendo suscitar o desejo da morte pela cobiça de haver os bens; ii) o pacto sucessório restringe a liberdade de testar"3. Ora, de acordo com Madaleno, estes dois argumentos não se aplicam à renúncia contratual da herança conjugal, pois não há nada de odioso e imoral em admiti-la, haja vista que a renúncia hereditária por antecipação não abarca qualquer gesto de cobiça e expectativa pela morte do titular dos bens. Por que o cônjuge desejaria a morte de seu consorte se a prévia abdicação não traz nenhum benefício ao herdeiro renunciante? Além disso, para o doutrinador, a renúncia não restringe a liberdade de testar, pelo contrário, a amplia, ao permitir afastar um herdeiro irregular de um planejamento sucessório. Na mesma linha, Mario Delgado defende que a renúncia à concorrência sucessória em pacto antenupcial não esbarra na vedação do artigo 426, do Código Civil. Isto porque, segundo o jurista, herança e sucessão são, conceitualmente, institutos distintos. Para o autor, enquanto a herança se refere ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte, sucessão constitui o direito por força do qual a herança é devolvida a alguém. Assim, defende Delgado que a vedação do ordenamento jurídico brasileiro à contratação de herança de pessoa viva alcança a herança propriamente dita, o acervo de bens, mas não o direito sucessório em si.4 Com efeito, conforme Delgado, "não há nada que impeça, em regra, a renúncia dos direitos concedidos em lei, salvo se contrariar a ordem pública ou se for em prejuízo de terceiro, o que não ocorre na específica hipótese do direito à concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro, que não se confunde com a hipótese de ser chamado sozinho à sucessão, como herdeiro único e universal."5 Assim, defende o autor, validamente renunciável é o direito concorrencial na hipótese em que o cônjuge é chamado a suceder em conjunto com descendentes ou ascendentes, porque não viola o princípio da intangibilidade da legítima. Neste sentido, Rolf Madaleno afirma que herdeiro necessário tem natureza distinta de herdeiro concorrente e que o cônjuge e o convivente não são herdeiros necessários quando concorrem com descendentes ou ascendentes, mas herdeiros eventuais, irregulares. Segundo o autor, "a legítima atende na ordem de chamada do Código Civil, primeiro aos descendentes, em segundo plano aos ascendentes e na terceira convocação ao cônjuge ou convivente, e só quando os herdeiros vocacionados se apresentam nesta ordem de chamamento é que podem ser considerados legitimários, não em posição concorrente, pois nesta se apresentam cônjuge e convivente como beneficiários de um direito familiar que tem o intuito protetivo, que lhes reserva um direito certo e determinado"6. E este direito familiar protetivo trata-se, conforme o jurista, de um benefício vidual, do qual cônjuge e sobrevivente podem abdicar. Apesar da corrente doutrinária capitaneada por Rolf Madaleno e Mario Delgado, que defende a possibilidade de renúncia ao direito concorrencial em pacto antenupcial, estar crescendo, a grande maioria da doutrina, a exemplo de importantes juristas como Zeno Veloso (in memorian), Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Euclides de Oliveira, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Flávio Tartuce e muitos outros, entende não ser possível essa renúncia, pois ela implicaria pacto sucessório, legalmente proibido pela dicção do artigo 426, do Código Civil. Essa doutrina mais conservadora, em resumo, defende que a renúncia à herança antecipada por cônjuge ou companheiro, especialmente por meio de um contrato, ainda não é possível no atual sistema, pois o artigo 1.655, do Código Civil, estabelece que será nula de pleno direito a previsão inserida no pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta em lei, entendida a violação de normas cogentes ou de ordem pública. E, segundo esta corrente, não se pode negar, nesse contexto, que, ao vedar os pactos sucessórios, o artigo 426 da própria codificação privada encerra norma de ordem pública. Por isto, para os defensores deste entendimento, a renúncia prévia à herança pelo cônjuge ou companheiro somente será possível se houver a efetiva alteração do sistema legal brasileiro, a exemplo do que ocorreu em Portugal7. No país lusitano, os grandes civilistas sugeriram uma mudança legislativa muito inteligente. A proposta de alteração que, de fato, se tornou lei, criou a possibilidade de os cônjuges renunciarem não a herança propriamente dita, mas sim a qualidade de herdeiro necessário do seu cônjuge, o que acaba surtindo o efeito esperado, que é o de o cônjuge não concorrer com os descendentes ou ascendentes na herança do seu consorte. Desde setembro de 2018, está em vigor a Lei nº 48/2018. Com a nova redação dada ao art. 1.700, item 1, da codificação portuguesa, a "convenção antenupcial pode conter: c) renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge". Respeitadas ambas correntes doutrinárias aqui expostas, destacamos que este singelo artigo não tem, de maneira alguma, o intuito de defender uma ou outra posição. O que pretendemos aqui é trazer uma sugestão que possa amenizar um problema que ocorre na prática diária dos cartórios no momento da elaboração da escritura de pacto antenupcial: o desejo frustrado das partes quando são informadas da impossibilidade de afastar o cônjuge da sucessão mesmo no regime da separação total de bens, e até, em alguns casos, das pressões feitas aos notários, por parte dos nubentes, em relação ao direito que possuem de estabelecer as regras patrimoniais que desejarem e a ofensa à sua autonomia da vontade. O objetivo é não deixar sem resposta o anseio de inúmeros casais que buscam a separação de seu patrimônio na vida e na morte, até que tenhamos uma modificação legislativa nesse sentido. A ideia, já utilizada por alguns notários, é de se permitir, na lavratura do pacto antenupcial, que as partes exteriorizem essa vontade de não participarem da sucessão um do outro, deixando claro, no entanto, que eles têm conhecimento de que esse desejo não tem respaldo legal no momento, pelo menos não de acordo com a doutrina majoritária. Isso se mostra razoável, pois, no futuro, pode a legislação ser modificada, assim como foi em Portugal, ou, ainda, pode a maioria da jurisprudência e da doutrina passarem a entender possível tal abdicação a essa concorrência sucessória por parte dos cônjuges. Desse modo, a melhor oportunidade de deixarem isso expresso seria justamente no pacto antenupcial, pois, ao falarmos em possível direito que nascerá com a morte, estamos falando de algo que acontecerá em um futuro incerto, onde muitas coisas, inclusive a legislação, podem estar completamente diferentes. Assim, gostaríamos de sugerir um texto, a ser utilizado na escritura pública de pacto antenupcial, aos que assim desejarem, e que logicamente poderá ser modificado pelos notários que optem por seguir esse entendimento, da forma que entenderem mais conveniente. Este texto exterioriza a ideia que estamos a defender no momento, que, como poderão perceber, servirá para termos um meio termo em relação à essa questão, até que se tenha uma mudança no ordenamento jurídico. Compartilhamos em seguida, o texto que, humildemente, por nós é sugerido, nem que seja como uma simples ideia para que cada notário formule o seu próprio. Depois de devidamente esclarecidos por mim, Tabelião, de que, atualmente, a maior parte da doutrina e da jurisprudência entendem pela não possibilidade de renúncia à herança em pacto antenupcial, pois, para esta corrente majoritária, tal renúncia encontra vedação no artigo 426, do Código Civil Brasileiro, segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva, DECLARAM, neste ato, que:  I) estão cientes do atual entendimento majoritário, com o qual se defende a impossibilidade de renúncia a direitos sucessórios em pacto antenupcial, mas que com ele não concordam, por entenderem que não há vedação no ordenamento jurídico brasileiro à renúncia ao exercício futuro do direito concorrencial;  II) desejam deixar registrado que, se à época do falecimento de qualquer um deles, a legislação  ou a jurisprudência permitir, optam por, de fato, não participarem de futura sucessão um do outro, quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes, restando afastada, assim, a regra de concorrência dos incisos I e II, do artigo 1.829, do Código Civil, uma vez que ambos têm seus patrimônios totalmente separados, não desejando, nem por sucessão, caso exista concorrência, receberem patrimônio um do outro.  III) desejam permanecer na sucessão um do outro quando não houver descendentes, nem ascendentes, e o cônjuge sobrevivente for o único herdeiro, chamado a suceder como herdeiro universal e necessário;  IV) uma vez que, regulando a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela, conforme artigo 1787, do Código Civil, e, sabendo que a posição doutrinária, assim como a jurisprudencial, e, até mesmo a legislação, podem perfeitamente ser modificadas com o tempo, entendem terem o direito de deixar registradas suas vontades e rogarem para que, na ocasião do falecimento de qualquer um deles, estas sejam atendidas, de acordo com os entendimentos vigentes ao tempo da ocorrência do fato. Sabemos que o pacto antenupcial é feito por escritura pública, lavrada por Tabelião de Notas. Em razão disto, pensamos que esses profissionais do direito devem estar alinhados sobre como lavrar o ato, o que é possível e o que não é. E, como nos mostram muitos outros exemplos ao longo do tempo, pode sim o notário ser o criador de novas possibilidades, desde que não sejam contrárias ao ordenamento jurídico, atendendo o desejo das partes, que a ele é manifestado no dia a dia da prática notarial. O notário é o profissional de direito escolhido pela legislação para lavrar o pacto antenupcial, de forma que é ele quem escuta as manifestações de vontades dos nubentes. E, é este contato próximo com o casal que permite que o tabelião tenha condições suficientes de mensurar quais são as maiores necessidades e desejos das pessoas ao lavrarem esse tipo de ato. Desse modo, o notário tem um papel importantíssimo nesse tema, e deve procurar contribuir nos estudos, e nas possíveis alternativas, para que a questão seja resolvida da melhor forma possível para a sociedade. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.  *Carolina Edith Mosmann dos Santos é advogada e pesquisadora jurídica. Ex-escrevente do 1º Tabelionato de Notas e Protesto de Novo Hamburgo/RS. Pós-graduanda em Direito Notarial e Registral pela UFMA. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Damásio de Direito. Graduada em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos - Unisinos. Aderente Individual da União Internacional do Notariado - UNIL. Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.   *João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2021). Especializando em Direito Notarial e Registral pela USP. Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP. Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999. __________ 1 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 38. 2 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 38. 3 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 36. 4 DELGADO, Mario Luiz. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? In: Revista IBDFAM: família e Sucessões. V. 31 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2019, p. 18. 5 DELGADO, Mario Luiz. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? In: Revista IBDFAM: família e Sucessões. V. 31 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2019, p. 18/19. 6 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. In: Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. V. 27 (mai./jun.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 30/31. 7 TARTUCE, Flávio. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Planejamento Sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Disponível aqui. Acesso em 02.07.2021.
Atualmente têm sido observadas algumas confusões quanto à competência para o registro de títulos e documentos representativos de direitos sobre bens móveis, mais especificamente, sobre o que estaria inserido na competência dos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos - principalmente no que se refere à constituição de garantias, em contraposição às atribuições das empresas integrantes do Sistema Financeiro Nacional, sob a tutela do Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, que regulam procedimentos e práticas para um bom funcionamento do Sistema Financeiro Nacional - SFN (os quais, para os fins do presente artigo denominaremos de Órgãos normativos do SFN), o que deve ocorrer em padrões republicanos, constitucionais, e com segurança e eficiência. Então, preliminarmente, desejamos deixar estabelecido que todo ato de registro público relativo a bens e direitos de natureza móvel, inclusive ativos financeiros, deveria ser realizado nos Ofícios de Registros Públicos de Títulos e Documentos, com exceção dos relativos a transações de compra e venda, com ou sem garantia, de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, que, na atualidade, devem ser registrados nos respectivos entes cadastrais, quais sejam, Detrans, Capitania dos Portos e Ministério da Aeronáutica, respectivamente. Mas, havendo uma situação de fato, embora eivada de inconstitucionalidade, criada pelas normas de regência do SFN, também desejamos deixar desde logo patente, conforme será demonstrado pela análise a ser apresentada, que, à exceção das operações com veículos automotores acima referidas, até mesmo considerando válidas as leis de regência do Sistema Financeiro Nacional, é de conclusão inevitável que deverão ser registradas nos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos todas as operações relativas à constituição de garantias incidentes sobre bens e direitos de natureza móvel, exceto aquelas relativas a ativos financeiros que atendam, simultaneamente, às seguintes condições: i) tenham sido realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional; ii) entre agentes financeiros; iii) com ativos financeiros previamente depositados - por agentes financeiros - nas empresas depositárias centrais do Sistema Financeiro Nacional. Então, estando presentes as referidas condições, apenas em tais casos, segundo as leis de regência do SFN, bastarão as anotações de cadastro e controle nas empresas constituídas para este fim em seu âmbito. Iniciando nossa análise, verificamos que a regulação do Sistema Financeiro Nacional tem seu cânone de regência estabelecido no artigo nº 192, da Constituição Federal, que tem a seguinte redação: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (grifos do autor do presente texto). No entanto, tal regra padrão de regência não tem sido acatada, porque o Sistema Financeiro Nacional tem sido regulado por leis ordinárias, o que, é forçoso dizer, o macula de inconstitucionalidade formal. Mas, também é forçoso dizer, além da inconstitucionalidade formal, acima referida, também há a macular o SFN uma inconstitucionalidade material, consistente no que parece ser tentativa de adoção de sistemática de delegação de serviços de registros públicos à revelia da regra de regência da delegação desses serviços pelo estado brasileiro, contida no artigo 236 da Constituição Federal, nos seguintes termos: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Conforme se verifica, o estado brasileiro pode decidir não delegar os serviços de registros públicos a agentes privados, mas, se decidir fazê-lo, deve implementar sua decisão em conformidade com a regra constitucional. Adite-se que não estão entre as atribuições do Conselho Monetário Nacional, tampouco do Banco Central do Brasil, estabelecidas nas Leis nºs 4.595/64 e 4728/65, legislar sobre registros públicos ou direito civil - o que compete ao Congresso Nacional, nos limites constitucionais, muito menos à revelia da disposição constitucional acima colacionada. Na lei nº 4728/65, no inciso VIII de seu artigo 10, que tem sido usado como suporte para a atividade "legislativa" sobre registros públicos e direito civil que tem sido realizada pelo Conselho Monetário Nacional, há apenas a seguinte previsão: Art. 10. Compete ao Conselho Monetário Nacional fixar as normas gerais a serem observadas no exercício das atividades de subscrição para revenda, distribuição, ou intermediação na colocação, no mercado, de títulos ou valores mobiliários, e relativos a: I - capital mínimo das sociedades que tenham por objeto a subscrição para revenda e a distribuição de títulos no mercado; II - condições de registro das sociedades ou firmas individuais que tenham por objeto atividades de intermediação na distribuição de títulos no mercado; III - condições de idoneidade, capacidade financeira e habilitação técnica a que deverão satisfazer os administradores ou responsáveis pelas sociedades ou firmas individuais referidas nos incisos anteriores; IV - procedimento administrativo de autorização para funcionar das sociedades referidas no inciso I e do registro das sociedades e firmas individuais referidas no inciso II; V - espécies de operações das sociedades referidas nos incisos anteriores; normas, métodos e práticas a serem observados nessas operações; VI - comissões, ágios, descontos ou quaisquer outros custos cobrados pelas sociedades de empresas referidas nos incisos anteriores; VII - normas destinadas a evitar manipulações de preço e operações fraudulentas; VIII - registro das operações a serem mantidas pelas sociedades e empresas referidas nos incisos anteriores, e dados estatísticos a serem apurados e fornecidos ao Banco Central; Ou seja, o CMN só tem a atribuição de legislar sobre normas internas de regulação do Sistema Financeiro Nacional, inclusive sobre o registro de operações realizadas pelas empresas que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional ("registro" esse que deve ser entendido no sentido lato do termo, como mera anotação com finalidade de controle e fiscalização), mas não para baixar normas relativas a registros públicos ou direito civil, delegando a prestação desses serviços à revelia do que determina a Constituição Federal. E há imensa diferença entre fazer registros contábeis ou administrativos de controle de operações, no interesse da regulação do Sistema Financeiro Nacional, e a realização de verdadeiros registros públicos, para fins de publicidade propiciadora do seu conhecimento por toda a sociedade e decorrente oponibilidade a todos, como é o caso daqueles constituidores de garantias sobre bens ou direitos, previstos na legislação cível nacional. Há no país a previsão constitucional de como devem ser delegadas as atividades de registros públicos, o que criou o que aqui denominaremos de Sistema Nacional de Registros Públicos, que precisa ser respeitado, para que não seja solapada a segurança jurídica, que foi a motivação para a sua criação. E referida previsão constitucional obviamente se aplica a todos os entes públicos e autoridades do país, que não podem ignorá-la e criar um inconstitucional e paralelo Sistema de Registros Públicos. Se é certo que cabe ao estado decidir se deve delegar ou não uma atividade de registro público, também é certo que se decidir delegar, terá que fazê-lo segundo o mandamento constitucional. Por isso que o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil ou a Comissão de Valores Mobiliários não podem delegar atividades de registros públicos à revelia do que determina a Constituição Federal, ainda que leis atinentes ao SFN - Sistema Financeiro Nacional aparentemente permitam isso, porque a Constituição Federal deve prevalecer. Portanto, as regulações do Sistema Financeiro Nacional - SFN, estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, em razão mesmo de leis ordinárias federais, aparentando criar entes e regras para a delegação e prática de atos de "registro público", precisam ser interpretadas de modo a torná-las, tanto quanto possível, em conformidade com a Constituição Federal. E para que se lhes dê interpretação conforme a Constituição só há o caminho de entendê-las como eivadas de impropriedade técnica, porque de registros públicos não se pode tratar, visto que as delegações que aparentemente estabelecem para a prática desses serviços não se pautam pela regra constitucional do artigo 236 da Constituição da República, acima colacionada. Assim sendo, no intuito de superar o problema de inconstitucionalidade material, o melhor que se pode fazer é compreender a natureza jurídica de tais entes como prestadores de serviços de cadastro e controle de ativos financeiros e valores mobiliários admitidos a negociação no estrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional (aqui simplesmente os denominaremos "entes de cadastro e controle do SFN"), com atuação sob regulação circunscrita apenas a esse ambiente de negócios, e aplicável tão somente aos "agentes financeiros" que atuam neste subsistema (aqui denominaremos de "agentes financeiros" às empresas autorizadas a realizar transações no âmbito do SFN), porque a competência regulatória dos referidos Órgãos normativos do SFN - CMN, BCB e CVM - é circunscrita ao SFN, e não abrange legislar sobre registros públicos ou direito civil, de modo que referido serviço de cadastro e controle de ativos financeiros não pode substituir, nem substitui, de fato, conforme será demonstrado, o Sistema Nacional de Registros Públicos. Portanto, eis o primeiro elemento a lançar luz a questão: nenhuma entidade criada pelos entes públicos reguladores do Sistema Financeiro Nacional, ainda que em decorrência de lei, mas à revelia do que estatui o artigo 236 da Constituição Federal, pratica atos de registros públicos, podendo-se admitir e compreender que pratiquem apenas atos de controle cadastral sobre os ativos financeiros e valores mobiliários que podem ser transacionados no isolado subsistema do Sistema Financeiro Nacional. Assim considerando, acreditamos que seja possível construir interpretação que permita superar a inconstitucionalidade material acima referida. Uma vez estabelecidos os pilares para a construção de uma interpretação em conformidade material com a Constituição Federal, e deixando de lado a questão da inconstitucionalidade formal, inerente a leis ordinárias estarem regulando o Sistema Financeiro Nacional, em explícita vulneração do comando do artigo 192 da Constituição Federal, que exige lei complementar, passemos a examinar as normas legais que, de fato, estão regulando a atuação dos entes criados no âmbito desse "ecossistema" isolado, mas, antes, faremos breve digressão, com o fito de examinar o que são ativos, para, depois, distinguir entre estes, separando o que são ativos reais, do que são ativos financeiros e valores mobiliários, porque tais conceitos podem contribuir para a compreensão da análise a ser empreendida. Todo bem, valor em moeda, crédito ou direito é um ativo, ou seja, algo que agrega valor ao patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica, tais como um automóvel, uma bicicleta, uma ação representativa do capital de uma empresa, um título de crédito, direitos autorais, imóveis, títulos da dívida pública do estado, máquinas, equipamentos e muitos outros. Sucintamente, e para os fins deste trabalho, os ativos podem ser classificados, de um lado, como ativos financeiros e valores mobiliários, e, de outro, como ativos reais. Ativos financeiros e valores mobiliários são direitos, geralmente intangíveis, ou seja, sem um corpo físico, lastreados em títulos ou contratos negociados no mercado financeiro e de capitais, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, tais como títulos da dívida pública, emitidos pelos Tesouro Nacional, ações representativas do capital de empresas, quotas de fundos de investimento, debêntures e muitos outros, da mesma natureza. Mas, há que se compreender que nem todo bem intangível, representado por títulos ou contratos, se configura como um ativo financeiro, bem como que nem todo ativo financeiro se qualifica a ser negociado no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, mas apenas aqueles admitidos pelos entes de regência deste, quais sejam, o Conselho Monetário Nacional - CMN, o Banco Central do Brasil - BCB e a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.  Por sua vez, ativos reais são bens geralmente tangíveis, com existência física, um corpo, tais como um carro, uma máquina, uma casa ou apartamento. No entanto, não apenas bens tangíveis se classificam como ativos reais, mas também os títulos que representam um direito existente na economia real, tais como, exemplificativamente, recebíveis de uma empresa, direitos decorrentes de decisões judiciais contra entes estatais (denominados precatórios), direitos creditícios relativos a transações de empréstimo realizadas diretamente entre pessoas físicas ou jurídicas não financeiras, fora do âmbito do sistema financeiro, e muitos outros, cujo valor decorre de eventos e fatos da economia real e não do mercado financeiro. Neste ponto, é pertinente observar que títulos de crédito de emissão e titularidade de entes não financeiros (em que estes são os detentores do direito ao crédito neles consignado), antes que circulem mediante endosso, por ainda não terem adquirido as características dos títulos de crédito, são apenas recebíveis de propriedade do ente que os emitiu com lastro em suas operações de venda de bens ou serviços, os quais, por isso mesmo, não podem ser classificados como ativo financeiro, mas, sim, ativos reais.  Segundo a Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, do Banco Central do Brasil, conforme o disposto em seu art. 2º, seriam ativos financeiros, os seguintes títulos: I - os títulos de crédito, direitos creditórios e outros instrumentos financeiros que sejam: a) de obrigação de pagamento das instituições mencionadas no art. 1º, incluindo contratos de depósitos a prazo; Obs. do autor do presente texto: Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o registro e o depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários por parte das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, emitidos no País, bem como sobre a prestação de serviços de custódia de ativos financeiros por essas instituições. Parágrafo único. Não se incluem no objeto desta Resolução as ações e os contratos derivativos, ressalvado o disposto no inciso I do § 1º do art. 7º. >> (ações preferenciais resgatáveis) b) de coobrigação de pagamento das instituições mencionadas no art. 1º, em operações como aceite e garantia; c) admitidos nas carteiras de ativos das instituições mencionadas no art. 1º, exceto os objeto de desconto; d) objeto de desconto em operações de crédito, por instituições mencionadas no art. 1º ou entregues em garantia para essas instituições em outras operações do sistema financeiro; e) escriturados ou custodiados por instituições mencionadas no art. 1º; ou Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, de emissão ou de propriedade de entidades não autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, integrante de conglomerado prudencial, definido nos termos do Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional (Cosif); e II - os bens, direitos ou instrumentos financeiros: a) cuja legislação ou regulamentação específica assim os defina ou determine seu registro ou depósito centralizado; ou b) que, no âmbito de um arranjo de pagamento, sejam de obrigação de pagamento de instituição de pagamento aos seus clientes. § 1º Os ativos financeiros de que trata o inciso I do caput podem ser originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil, de prestação de serviços, entre outros, inclusive na hipótese de direitos creditórios de existência futura e montante desconhecido, desde que derivados de relações já constituídas. § 2º Excluem-se da definição de ativos financeiros de que trata o caput os valores mobiliários. (grifos do autor do presente artigo). E, segundo o que estatui a Lei nº 6.385/1976, em seu art. 2º, são valores mobiliários: I - as ações, debêntures e bônus de subscrição; II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores mobiliários; IV - as cédulas de debêntures; V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais; Obs do autor deste texto: Nota comercial é espécie de valor mobiliário que pode ser emitido por sociedades limitadas, para oferta no mercado mobiliário, como alternativa para se financiarem, devendo seguir normas estabelecidas pela CVM. Podem ser do tipo com ou sem garantia, contendo valor de face fixo, com vencimento em data determinada. VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. Retomando o tema que vinhamos abordando, passaremos a analisar as disposições da Lei Ordinária Federal nº 12.810/2013, atinentes à regulação do Sistema Financeiro Nacional. Assim sendo, começaremos examinando a sua previsão da constituição, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, dos depositários centrais, o que se encontra capitulado em seu artigo 23, que tem a seguinte redação: Art. 23. O depósito centralizado, realizado por entidades qualificadas como depositários centrais, compreende a guarda centralizada de ativos financeiros e de valores mobiliários, fungíveis e infungíveis, o controle de sua titularidade efetiva e o tratamento de seus eventos. Parágrafo único. As entidades referidas no caput são responsáveis pela integridade dos sistemas por elas mantidos e dos registros correspondentes aos ativos financeiros e valores mobiliários sob sua guarda centralizada. Então, em face da redação apresentada, e pelo que acima foi esclarecido, sempre que as leis que regulam o Sistema Financeiro Nacional se utilizarem do termo "registro", tal uso deve ser entendido em sentido lato do vocábulo, como uma anotação de cadastro e controle, e não como ato de registro público, porque tais entes, empresas privadas que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, não praticam atos de registros públicos. A mesma Lei nº 12.810/2013 também prevê, em seu artigo 24, que "os ativos financeiros e valores mobiliários, em forma física ou eletrônica, serão transferidos, no regime de titularidade fiduciária, para o depositário central". E, ainda, no parágrafo 1º do mesmo artigo 24, que: a constituição e a extinção da titularidade fiduciária em favor do depositário central serão realizadas, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente com a inclusão e a baixa dos ativos financeiros e valores mobiliários nos controles de titularidade da entidade. Pelas mesmas razões acima já referidas, a presente disposição só pode ser compreendida como que, para fins administrativos e de controle do Sistema Financeiro Nacional, referidas entidades privadas farão anotações administrativas de cadastro e controle, ou seja, "registros" em sentido amplo, lato, genérico, os quais serão oponíveis aos demais membros do SFN que não tenham tomado parte em determinada transação "anotada", que, assim, não poderão alegar ignorá-las. E isso porque é como se nesse "ecossistema" do mercado financeiro vigesse uma consensual e mútua confiança entre seus agentes, sob o pálio da regulação e fiscalização do CMN, BCB e CVM, de modo que as transações de compra e venda e principalmente aquelas de constituição de garantia, que requereriam registro público, o dispensarão, enquanto forem realizadas nesse circunscrito âmbito, apenas entre os agentes que nele atuam, fiando-se as partes tão somente na instrumentação contratual encetada e na segurança jurídica provida pelos referidos órgãos de regulação do Sistema Financeiro Nacional (CMN, BCB e CVM), com base no seu sistema de anotações e controles, realizado por empresas privadas constituídas em seu âmbito para tal finalidade. Assim sendo, a redação da disposição acima estabelece uma sistemática interna necessária ao controle de operações no circunscrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional, e quando refere os termos "registro", "fins de publicidade" e "eficácia perante terceiros", estes devem ser compreendidos como anotações de cadastro e controle válidas no referido ambiente de negócios circunscrito, porque envolve apenas os agentes que nele operam, mas não no específico sentido de registros públicos, para fins de oponibilidade a todos os integrantes da sociedade brasileira.  Assim, as "publicidade" e "eficácia", referidas nas disposições ora sob exame, podem ser aceitas, no meio jurídico nacional, como válidas e eficazes apenas se o forem tão somente perante os entes que atuam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, que deve ser compreendido como um subsistema isolado, cujos membros, em termos de segurança jurídica, fiam-se em mútua confiança e, principalmente, na regulação de controle estabelecida pelos órgãos de normatização, fiscalização e controle do SFN (CMN, BCB e CVM). Então, quando a disposição acima fala que a "constituição e a extinção da titularidade fiduciária em favor do depositário central (.) serão realizadas (.) inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente com a inclusão e a baixa dos ativos financeiros e valores mobiliários nos controles de titularidade da entidade", o que se pode entender, constitucionalmente falando, é que, para fins de cadastro e controle, e estritamente no âmbito do Sistema financeiro Nacional, os títulos e valores mobiliários nele habilitados para negociação deverão ser previamente depositados no depositário central, o que se fará na forma de titularidade fiduciária, com tal circunstância sendo oponível a todos os agentes que atuem em seu âmbito, mesmo sem a realização de um registro público, sendo suficiente, para a segurança jurídica desses agentes, apenas o instrumento contratual e os controles realizados pelas empresas privadas que nestas linhas estamos denominando entes de cadastro e controle, que atuam nesse meio exercendo as atividades de entidades depositárias ou, impropriamente designadas, "registradoras". É que nem todo ato envolvendo ativos precisa ser publicizado no Sistema Nacional de Registros Públicos, mas apenas aqueles que necessitem ser amplamente publicizados perante toda a sociedade, para que a todos os seus membros sejam oponíveis. No caso, como se trata de operações em um meio peculiar, dinâmico por natureza, e circunscrito apenas aos agentes financeiros admitidos a nele atuar, sob o pálio da regulação e fiscalização do CMN, BCB e CVM, pode-se ficar apenas na instrumentação das contratações de garantias, dispensando-se o registro público, sendo necessária e suficiente somente a sistemática de anotações de controle,  estabelecida pelos referidos órgãos, a qual só precisa abranger, em sua publicidade, eficácia e oponibilidade, as instituições financeiras que atuam em seu âmbito. Mas, até que um ativo financeiro passe a ser negociado no circunscrito âmbito do Sistema Financeiro Nacional, entre seus membros, as transações que os envolvam precisam se submeter ao que denominamos Sistema Nacional de Registros Públicos, porque operações com parte que não seja ente atuante no SFN, ou realizadas foram do seu "ecossistema" isolado, precisam da ampla publicidade que só os constitucionais registros públicos podem operar. Explicitando o que dissemos no parágrafo anterior, os controles do SFN não bastariam, se fosse o caso da constituição de uma garantia entre pessoas físicas ou jurídicas não financeiras, de um lado, e, de outro, um agente que atue no âmbito do SFN. Em eventos dessa natureza não bastariam as anotações de interesse ao controle do SFN, fazendo-se necessário um verdadeiro registro público operando a publicidade registral perante toda a sociedade brasileira, tornando a constituição de uma tal garantia oponível a todos. Mais adiante retornaremos a este assunto. Avançando na análise do tema, é ainda mais importante para a construção de uma interpretação em conformidade com a Constituição Federal, estabelecer uma adequada compreensão do que rezam as disposições do artigo 26-caput e § 1º, da Lei nº 12.810/2013, nos seguintes termos: Art. 26. A constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado será realizada, exclusivamente, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que os ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito. § 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas (grifos nossos). Portanto, o que reza o artigo 26, da Lei 12.810/2013, acima colacionado, é, a princípio, inconstitucional e, pior que isso, se prevalecesse sua interpretação literal, grassaria a  insegurança jurídica no ambiente de negócios do país, porque somente um registro público pode gerar publicidade e eficácia perante toda a sociedade brasileira, jamais uma anotação feita por empresa privada, de interesse para o controle do Sistema Financeiro Nacional, porque tal medida não obstaria práticas ilícitas por agentes econômicos, o que só é possível obter pela concentração das informações relativas aos registros públicos do país, sem exceção, em um único sistema de registros públicos, que é o criado pelo artigo 236 da Constituição Federal. Então, na tentativa de superar a explícita inconstitucionalidade das disposições acima, antes de tudo, é preciso que se compreenda que a atuação das empresas privadas que atuam como entes "depositários" ou, impropriamente designados, "registradores", criados pela Lei nº 12.810/2013, para atuar no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, limita-se aos ativos financeiros e valores mobiliários que se habilitem a ser objeto de negociação no mercado financeiro, e aos agentes financeiros que os depositem ou registrem para este fim, por previamente deterem sua titularidade, porque esta é a competência regulatória do Conselho Monetário Nacional, contida no artigo 10, inciso VIII, da Lei nº 4728/65, já colacionado e examinado, linhas acima. Depois, conforme a redação das disposições acima reproduzidas, tais títulos precisam estar previamente na titularidade dos agentes financeiros, para que estes possam transferi-los, no regime de titularidade fiduciária, para o depositário central, seguindo as normas que são apenas a eles aplicáveis, estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil ou Comissão de Valores Mobiliários, como decorrência de disposições legais, como é o caso daquelas estabelecidas no caput do artigo 24, no caput e § 1º do art. 26, e nos incisos I e II do art. 26-A, todos da Lei 12.810/13. Então, as próprias normas contidas na Lei 12.810/2013, acima referidas, são o elemento crucial viabilizador da adequação do arcabouço regulatório do Sistema Financeiro Nacional, ora sob exame, à Constituição Federal. É que, a despeito da impropriedade técnica, segundo as disposições da referida lei, ora examinadas, para que ativos possam se habilitar à negociação no âmbito do SFN, necessário é, em sequência: 1) sejam ativos financeiros ou valores mobiliários que o CMN considere passíveis de "registro" de controle e depósito centralizado; 2) sejam de titularidade de um agente financeiro; 3) sejam previamente depositados ou "registrados" (anotados) nas empresas com  com esta função de controle no contexto do SFN, como de titularidade de um agente financeiro. Até que se realizem tais circunstâncias, as transações envolvendo ativos financeiros se devem submeter às normas do Sistema Nacional de Registros Públicos. Melhor explicando, para a constituição de propriedade fiduciária sobre ativos, inclusive financeiros, de titularidade de entes que não integrem o SFN, que sejam dados em garantia de crédito concedido por instituição financeira, é imperativo que seja seguido o procedimento previsto nas leis cíveis, como o Código Civil Brasileiro, o que requer o registro público do respectivo instrumento, para fins de publicidade e oponibilidade a todos os entes da sociedade brasileira, condição sine qua non para a constituição dessa garantia em favor da instituição financeira. E isso deve ser assim porque o depósito ou anotação ("registro" lato sensu) nas empresas que atuam fazendo cadastro e controle no âmbito do SFN só deve ser feito por agentes financeiros, conforme previsão contida no caput e inciso I, do art. 26-A, da Lei 12.810/13, in verbis: Art. 26-A. Compete ao Conselho Monetário Nacional: I - disciplinar a exigência de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários por instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, inclusive no que se refere à constituição dos gravames e ônus prevista no art. 26 desta Lei. Disposição essa da qual também se extrai a informação de que os ativos financeiros e valores mobiliários a serem depositados, obviamente, devem previamente ser de titularidade das referidas instituições que atuam em negociações no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, porque só assim poderão transferi-los para o depositário central no regime de titularidade fiduciária, conforme determina o artigo 24-caput, também da Lei 12.810/13, nos seguintes termos: Art. 24. Para fins do depósito centralizado, os ativos financeiros e valores mobiliários, em forma física ou eletrônica, serão transferidos no regime de titularidade fiduciária para o depositário central (grifos do autor deste artigo). Logo, se o depósito deve ser feito pelos agentes que atuam no âmbito do SFN (art. 26A-I),  na forma de titularidade fiduciária (art. 24-caput), e considerando-se que só pode transferir titularidade quem a detenha, inclusive a fiduciária, é inconteste que a Lei 12.810/13 impõe que só agentes financeiros podem depositar ativos financeiros nas empresas que atuam como  depositários centrais, e que estes devem ser de sua titularidade plena ou fiduciária já previamente constituída. E só a partir de então tais ativos financeiros poderão ser objeto de transações no âmbito do SFN, inclusive aquelas pelas quais sejam pactuadas garantias que incidam sobre eles  - transações que, logicamente, só podem ser entre agentes financeiros autorizados a funcionar no SFN pelo BCB. Já o inciso II, do artigo 26-A, da Lei 12.810/13, conforme se poderá verificar pela leitura de sua redação, esclarece que a constituição de gravames e ônus referida em seu art. 26 - aquelas que devem ser "registradas" (anotadas) nas empresas depositárias/registradoras do SFN - restringe-se aos (gravames e ônus) que sejam decorrentes da inserção dos ativos financeiros em operações no âmbito do SFN. Ou seja, limita-se aos gravames e ônus que sejam pactuados em negociações que ocorram com tais ativos financeiros no âmbito do SFN - onde só atuam agentes financeiros autorizados a funcionar pelo BCB ou CVM, é bom lembrar. Vejamos a redação da disposição legal: Art. 26-A. Compete ao Conselho Monetário Nacional: (.) II - dispor sobre os ativos financeiros que serão considerados para fins do registro e do depósito centralizado de que trata esta Lei, inclusive no que se refere à constituição de gravames e ônus referida no art. 26 desta Lei, em função de sua inserção em operações no âmbito do sistema financeiro nacional. Assim, temos outro parâmetro definidor dos limites de atuação das empresas de cadastro e controle, do âmbito do SFN: só podem anotar ("registrar") gravames e ônus sobre ativos financeiros que sejam decorrentes de operações realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. E, por ser relevante, reiteramos: no âmbito do SFN só atuam agentes financeiros que, para isso, conforme visto acima, precisam previamente depositar/"registrar" seus ativos nas empresas depositárias/"registradoras" do SFN, de modo que as operações de constituição de gravames e ônus que essas empresas de cadastro e controle do SFN estão autorizadas a anotar ("registrar") são apenas aquelas realizadas: 1) com ativos de titularidade de agentes financeiros, previamente depositados/registrados nos entes de cadastro e controle que atuam no âmbito do SFN; 2) decorrentes de transações realizadas entre agentes financeiros autorizados a atuar no circunscrito âmbito do SFN; 3) realizadas no circunscrito âmbito do SFN. Mas é preciso observar que, para o perfeito funcionamento de controle do subsistema do mercado financeiro nacional, também caberá às referidas empresas de cadastro e controle, no estrito interesse do SFN, fazer a inaugural anotação da titularidade, previamente constituída, de agentes financeiros sobre ativos financeiros que desejem ou devam levar para negociação nesse ambiente de negócios, o que só poderá ser feito após a regular constituição dessa titularidade em nome dos mesmos, o que, a seu turno, precisará ser efetivado segundo os procedimentos estabelecidos nas leis cíveis de regulação do Sistema Nacional de Registros Públicos. Uma coisa não substitui a outra, porque a transação de aquisição da titularidade de um ativo por agente financeiro que a adquira fora do âmbito do SFN, conforme examinado, até mesmo em decorrência das normas da Lei 12.810/13, deve se constituir pelas regras do Sistema Nacional de Registros Públicos. Exemplificando, consideremos a operação de aquisição de um ativo realizada entre um agente financeiro e uma empresa não financeira que, em razão de crédito concedido, em contrapartida, ceda ao referido agente a titularidade fiduciária sobre recebíveis decorrentes de suas operações comerciais. Conforme verificado, a titularidade fiduciária do agente financeiro sobre o ativo só se constituirá, segundo o que prevê o Código Civil Brasileiro (artigo 1361), pelo registro do instrumento da transação no ente competente do Sistema Nacional de Registros Públicos, o que é corroborado pela Lei 12.810/13 (vide seus arts. 24-caput e 26A, incs. I e II, por se tratar de transação de cessão de ativos reais, realizada entre agente financeiro e ente não financeiro e fora do âmbito do SFN, através da qual referido agente adquire a titularidade fiduciária sobre ativos reais). No entanto, para que tal ativo - convolado em "financeiro" pela cessão fiduciária - possa ser inserido em negociações no âmbito do SFN, necessário será que previamente seja depositado/ cadastrado, ou seja, anotado, nas empresas de cadastro e controle, como de titularidade do agente financeiro depositante, estando, a partir de então, habilitado a ser objeto de transações nesse ambiente de negócios. Tal anotação não será de constituição de garantia em razão de operações realizadas no âmbito do SFN, mas, tão somente, a inaugural anotação de que um ativo financeiro é de titularidade de um agente financeiro, e está habilitado a ser objeto de negociações nesse subsistema. Anotação essa realizada somente para que, daí em diante, possam viger apenas as regulações do SFN sobre as operações que tenham tal ativo financeiro como objeto, realizadas em seu âmbito. Portanto, tendo sido verificado que, pela própria lei de regência da matéria (Lei 12.810/13), nas empresas de cadastro e controle do sistema por ela criado: i) apenas agentes financeiros podem depositar/"registrar" ativos financeiros; ii) que tais ativos devem ser de sua titularidade, iii) que apenas esses ativos podem ser objeto de transações no âmbito desse sistema (SFN), onde só atuam entes autorizados pelo CMN, BCB e CVM, bem como, iv) que os ônus e gravames constituídos em transações realizadas em seu ambiente de negócios são os únicos para os quais é suficiente a anotação de controle feita pelas referidas empresas depositárias/"registradoras", então já há o suporte para que se possa compreender toda a extensão do que está contido no parágrafo 1º do artigo 26 da Lei 12.810/13, que assim determina: § 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas. E entender adequadamente tudo que até aqui foi extraído das próprias disposições legais de regência do Sistema Financeiro Nacional é imprescindível, não apenas para que exista segurança jurídica no seio da sociedade brasileira, mas, também, porque a correta compreensão da regulação legal desse subsistema permitirá sua também correta implementação mediante normas infralegais, tornando possível a construção de uma interpretação de seu arcabouço jurídico em conformidade à Constituição Federal, a despeito da inconstitucionalidade material que aparentam algumas das disposições legais de sua regulação, em razão da utilização inadequada de determinados termos, conforme examinado. Seguindo em nossa análise, apenas após o depósito/anotação ("registro"), nas empresas de cadastro e controle do SFN, realizado por instituição financeira detentora da titularidade do ativo financeiro ou valor mobiliário, é que estes poderão ser transacionados em seu âmbito. E sendo transacionados em seu âmbito, as garantias sobre eles constituídas em tais operações é que poderão ser tão somente objeto de anotação de controle ("registradas") nas empresas de cadastro e controle do SFN, conforme previsto no caput do artigo 26, c.c. inciso II, do artigo 26-A, da Lei nº 12.810/13. Portanto, do que foi examinado resulta que não poderão ser objeto de simples anotação ("registro" ou depósito) nas empresas de cadastro e controle do SFN, mas sim de registro público, a constituição de garantias que ocorra em operações incidentes sobre: 1) ativos financeiros de titularidade de entes não financeiros, que sejam por estes dados em garantia para agentes financeiros, porque tais ativos: i) não são de titularidade de agente financeiro autorizado a funcionar no SFN pelo BCB; ii) não foram objeto de prévio depósito por instituição financeira nas empresas de cadastro e controle do SFN; iii) não tiveram a pactuação de gravames ou ônus incidentes sobre eles em razão de negociação realizada no âmbito do SFN; 2) ativos financeiros de titularidade de instituições financeiras, mas não previamente depositados/registrados nos entes cadastrais do SFN; 3) ativos reais, tais como máquinas, equipamentos e recebíveis de entes não financeiros. Exemplificando, para uma melhor compreensão, imagine-se o caso de duplicatas escriturais, emitidas eletronicamente por ente autorizado a escriturar tal emissão. Como se sabe, duplicatas são títulos de crédito emitidos com lastro em documentos fiscais representativos de venda de bens ou serviços. Ou seja, representam valores recebíveis, quer dizer, ativos reais, de titularidade da pessoa que os emitiu para documentar uma venda de bens ou serviços. O instrumento constitutivo de uma duplicata - a "cártula", o suporte, físico ou eletrônico, emitido por uma pessoa jurídica, até que circule pelo primeiro endosso que transfira sua titularidade a terceiros, ainda não ostentará nenhuma das características inerentes a títulos de crédito de sua natureza. Ou seja, uma duplicata emitida, enquanto for de titularidade da pessoa titular do direito ao recebível que representa, ainda não se terá constituído como um título de crédito, sendo apenas sua instrumentação. E disso não passará se nunca circular, pelo endosso, sendo transferida à titularidade de terceiros. Portanto, uma duplicata só poderá ser considerada um título de crédito, e por isso um ativo financeiro, quando circular, mediante endosso. E, então, se passar para a titularidade de um agente financeiro (mediante operação de desconto, por exemplo), poderá ser objeto de depósito centralizado ou anotação ("registro" de controle), sob a titularidade do referido agente financeiro, nas empresas autorizadas a essas funções de cadastro e controle no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, ficando, a partir de então, habilitada a ser objeto de transações no mercado financeiro, as quais deverão ser "registradas" (anotadas, registro lato sensu), apenas nas tais empresas privadas. No entanto, se referida cártula de duplicata, representativa de recebíveis de empresa não financeira, for dada em garantia de um crédito, sendo cedida fiduciariamente por seu titular originário - seu emissor, em garantia de empréstimo obtido junto a um agente financeiro, o registro da constituição dessa garantia - cessão fiduciária de recebíveis, que são ativos reais - deverá ocorrer nos competentes entes de registros públicos, e não nas empresas do Sistema de Controle do SFN. E isso por diversas razões, quais sejam: i) se trata de cessão fiduciária de ativo real; ii) a operação não é de constituição de garantia sobre ativos financeiros de titularidade de agentes financeiros, previamente depositados/"registrados", no âmbito do SFN; iii) a transação não foi realizada entre agentes financeiros; iv) a transação não foi realizada no âmbito do SFN. Conforme verificado em nossa análise, apenas após a titularidade fiduciária sobre a referida duplicata ter sido constituída em nome da empresa financeira, em razão do seu constitucional registro público nos entes competentes estabelecidos na legislação cível incidente (Ofícios de Registro de Títulos e Documentos), principalmente o Código Civil Brasileiro, é que esta poderá realizar seu depósito/"registro", ou seja, anotação de controle de titularidade, de interesse exclusivo ao circunscrito âmbito do SFN, como direito seu sobre um ativo financeiro, habilitando-o a ser negociado nesse ambiente de negócios. Então, da "interpretação conforme a constituição" das disposições legais acima colacionadas, e em razão mesmo dos parâmetros por elas estabelecidos, e da definição dos institutos jurídicos envolvidos, bem como por imposição lógica para fins de segurança jurídica, resulta que a competência para a atuação de cadastro e controle das empresas depositárias ou "registradoras" do SFN só começa a partir do momento em que ativos financeiros ou valores mobiliários são nelas depositados/anotados ("registrados") por agentes financeiros (em cumprimento às normas estabelecidas pelo CMN, como decorrência do que preveem os incisos I e II, do art. 26-A, da Lei 12.810/2013), para o que, obviamente, estes precisam deter sua titularidade. A partir deste momento e circunstância é que referidas empresas de controle do SFN passam a anotar (realizar registro de controle) as operações envolvendo tais ativos, realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, por estes mesmos agentes financeiros, nele autorizados a atuar pelo CMN, BCB ou CVM. Após a análise nestas linhas empreendida, acreditamos que dúvidas não podem remanescer quanto à natureza jurídica das empresas privadas chamadas para atuar no âmbito do SFN - de entes de cadastro e controle do Sistema Financeiro Nacional, com a atribuição de receber em depósito, cadastrar e anotar ativos financeiros e valores mobiliários emitidos ou admitidos neste ambiente negocial, no estrito interesse de permitir a administração, fiscalização e controle de suas operações, provendo sua segura e eficiente operação.  E também não deve haver dúvida de que, para que o mecanismo funcione, basta que os agentes do Sistema Financeiro Nacional se submetam às anotações de controle de entrada e saída de um ativo financeiro no Sistema Financeiro Nacional, sendo também conveniente e adequado que as empresas de cadastro e controle desse ambiente de negócios e os ofícios e órgãos públicos de registro tenham acesso recíproco às suas anotações e registros, respectivamente.  Espera-se que a compreensão da questão, nos termos da análise empreendida nestas linhas, operando a harmonização possível entre as normas legais que regulam o Sistema Financeiro Nacional e o Sistema Nacional de Registros Públicos, com suporte nos diplomas legais de regência da matéria, sirva para acabar com as confusões e conflitos que têm sido observados, relativamente à natureza jurídica e limites de atuação das empresas privadas chamadas a operar o cadastro e controle de ativos financeiros e de eventos a eles relativos, no estrito âmbito do mercado financeiro. Sem dúvida, referidos conflitos surgiram, em parte, como consequência da regulação inadequada do SFN, com utilização de terminologia imprópria, conforme já referido, até porque o ideal seria mesmo que todos os atos de constituição de garantias, e outros que requeiram publicidade e oponibilidade a todos, fossem levados a registro nos Ofícios de Registros Públicos, conforme previsão constitucional, com simples comunicação, em tempo real, às empresas de cadastro e controle do Sistema Financeiro Nacional. Mas também têm sido a origem das confusões e desentendimentos os arroubos de empresas privadas chamadas a atuar no âmbito do SFN, que, por não compreenderem, nem a lógica, nem os limites do arcabouço jurídico construído, e até mesmo por cobiça, têm externado pretensões de, à revelia da Constituição Federal, substituir os serviços de Registros Públicos, inclusive atuando no Legislativo neste sentido, o que não deve ser estimulado por quem pretenda criar em nosso país um saudável, seguro e eficaz ambiente de negócios, abrangendo não apenas o Sistema Financeiro Nacional, mas toda a sociedade brasileira. Esperamos que a presente análise contribua para iluminar os marcos definidores da questão, facilite a compreensão de todos sobre o tema, e cesse atitudes equivocadas e insensatas, que só podem resultar em prejuízo para a segurança jurídica e a paz social no seio da sociedade brasileira. *Emílio Guerra é bacharel em direito, especialista em Registros Públicos pela PUC-MG, e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte.
Objetivamos discutir se a procuração em causa própria é ou não fato gerador do ITBI quando for utilizada como uma forma indireta de transmissão de propriedade. Discute-se também se ela pode ou não ser registrada ou averbada na matrícula no competente Cartório de imóveis. Mandato1 é contrato por meio do qual o mandatário recebe poderes para praticar atos e administrar interesses em nome e por conta do mandatário. Por isso, o mandante é que fica obrigado pelo ato do mandatário. Em poucas palavras, pelo mandato, uma pessoa (mandante) pode praticar um ato jurídico por meio de outra (mandante). Como uma espécie de "corruptela" do instituto do mandato, o art. 685 do Código Civil (CC) admite o mandato (ou procuração) em causa própria, também designado de mandato in rem suam. Ele, ao contrário do que se dá com o mandato em geral, é outorgado no interesse exclusivo do mandatário (e não do mandante). É que o mandato em causa própria autoriza o mandatário a representar, no próprio interesse, o mandante. Como o mandatário não agirá no interesse do mandante, o mandato em causa própria, além de ser irrevogável, não se extingue com a morte e não gera dever de prestar constas. É comum a procuração em causa própria ser utilizada como forma de "alienar o bem": o "vendedor", no lugar de celebrar um contrato de compra e venda, outorga poderes ao "comprador" por meio de procuração em causa própria e recebe o preço do imóvel. Essa procuração não transfere o direito real de propriedade, mas dá poderes ao "comprador" para alienar a coisa para si mesmo ou para terceiros. Desse modo, se o "comprador" quiser transferir o direito real para si, basta ele, usando a procuração, celebrar um contrato consigo mesmo (ou autocontrato2), ou seja, celebrar um contrato de compra e venda em que o "comprador" assinará o campo da assinatura dos dois polos contratuais: assinará no polo do "vendedor" na condição de mandatário do titular do titular do direito real de propriedade (assinará "por procuração") e, também, assinará no polo do "comprador" em nome próprio. Soa estranha a aparência da escritura: uma mesma pessoa assinando os dois polos da escritura de compra e venda, como se ela estivesse vendendo o imóvel para si mesmo. Juridicamente, porém, não se trata de uma venda para si mesmo, pois, no campo do "vendedor", a pessoa está assinando em nome do mandante, e não em nome próprio. A propósito, o art. 62 do Provimento-Geral da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/DF exige que a procuração em causa própria contenha elementos próprios de um contrato de compra e venda, como o valor do imóvel, a descrição do bem e a emissão da Declaração de Operação Imobiliária - DOI3. O mandato em causa própria é usado também como forma de "contornar" o pagamento de ITBI, imposto cujo fato gerador é, à luz do STJ, a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente (STJ, AgRg no AREsp nº 215.273/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 15/10/2012). De fato, se eu quero comprar um imóvel a preço baixo com a intenção de obter um lucro com a sua revenda a um terceiro por um preço maior, esse arranjo negocial envolveria duas transmissões onerosas de imóvel: uma do atual proprietário para mim por meio do registro da escritura de compra e venda que celebraríamos; outra de mim para o terceiro adquirente. Haveria, pois, a cobrança de dois ITBIs. Para contornar um dos ITBIs, eu poderia obter uma procuração em causa própria do atual proprietário, pagando-lhe o preço do imóvel. Nesse caso, não há uma efetiva compra e venda e, portanto, não há transferência do direito real de propriedade, de maneira que não haverá o fato gerador do ITBI. Em seguida, eu posso, representando o atual proprietário, assinar uma escritura pública de venda do imóvel para o terceiro, que, em contrapartida, pagará para mim o preço maior que eu cobrei. Com o registro dessa escritura, o direito real de proprietário será transferido diretamente para esse terceiro, sem passar por mim, o que será o fato gerador do ITBI. Nessa sistemática, só haverá a cobrança de um ITBI. Finalmente, passamos a enfrentar as questões que introduziram este artigo: o aspecto tributário e o registral. Há controvérsias se essa operação configura ou não fraude fiscal e também se a procuração em causa própria poderia ser registrada no Cartório de Imóveis. Entendemos que não há fraude fiscal, pois o mandatário "em causa própria", além de ter-se valido de um negócio jurídico expressamente previsto em lei (no art. 685 do CC), jamais se tornou titular do direito real de propriedade e, portanto, nunca desfrutou dos privilégios desse tipo de direito (como a oponibilidade erga omnes), de modo que seria descabido cobrar ITBI para essa hipótese a pretexto de simulação. Não há simulação nem fraude. Entendemos ainda que a procuração em causa própria não pode ser objeto de registro na matrícula do imóvel em razão da taxatividade dos atos de registro (art. 167, I, da LRP), mas poderia ser objeto de averbação por força da natureza exemplificativa dos atos de averbação (art. 246, LRP), mas isso não terá o condão de transferir o direito real de propriedade. _____________ 1 "A denominação deriva de manu datum, porque as partes se davam as mãos, simbolizando a aceitação do encargo e a promessa de fidelidade no cumprimento da incumbência. O vocábulo mandato designa ora o poder conferido ao mandante, ora o contrato celebrado, ora o título deste contrato, de que é sinônima a procuração" (Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 410). 2 A autocontratação é admitida apenas nos casos permitidos em lei (art. 117, CC), como é o caso do emprego da procuração em causa própria (art. 685, CC). Não se admite a autocontratação quando for evidente o conflito de interesses entre o dominus negotii e o representante. Essa é a ratio essendi da Súmula nº 60/STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste". 3 Veja os arts. 62 e 81 do referido provimento: Art. 62. Na lavratura de procurac¸o~es ou substabelecimentos relativos a` alienac¸a~o de bens mo'veis ou imo'veis constara' a descric¸a~o do bem, observando-se, no que couber, o disposto no art. 81 deste Provimento, quanto a`s procurac¸o~es em causa pro'pria, das quais constara', ainda, o valor do bem imo'vel, bem como as cla'usulas de irrevogabilidade, irretratabilidade e isenc¸a~o de prestac¸a~o de contas. (...) Art. 81. O tabelia~o comunicara' a` Secretaria da Receita Federal do Brasil a lavratura de documentos de aquisic¸a~o ou alienac¸a~o de bens imo'veis por pessoas fi'sicas ou juri'dicas, na forma do disposto no art. 15 do Decreto-Lei n. 1.510/1976, nos arts. 71 e 72 da Lei n. 9.532/1997, no art. 8o da Lei n. 10.426/2002, e nas respectivas instruc¸o~es normativas expedidas pela Fazenda Pu'blica, independentemente da localidade em que situado o imo'vel.
Introdução e resumo do artigo  A doutrina não costuma despender muita atenção para uma espécie de garantia muito usual: a caução. É comum particulares receberem caução de dinheiro ou de outros bens como garantia do adimplemento de uma dívida. Buscaremos, com objetividade e pragmatismo, tratar da natureza jurídica da caução e das principais repercussões no Direito Civil, no Processo Civil, no Direito Penal e no Direito Notarial e de Registro. Para facilitar a leitura de algum leitor mais apressado, resumimos aqui o que será tratado neste artigo. O texto detalha aspectos pouco explorados pela legislação e pela doutrina sobre a "caução de bens". A caução é muito usual no quotidiano, mas o seu regime jurídico é obscuro. O texto pretende contribuir com a sistematização desse instituto. Em suma, entre outras questões, estabelece o seguinte: 1) Em regra, a caução de bens pode ser estipulada com base no princípio da autonomia da vontade. Se, porém, houver lei específica, ela poderá ser tanto um direito obrigacional com eficácia real ou como um direito real, a depender do que for previsto na lei (capítulo 2). 2) Na caução em dinheiro como direito obrigacional, se houver inadimplemento da dívida garantia, o caucionário pode simplesmente abster-se de pagar ao caucionante o valor equivalente ao da caução com base na exceptio non adimpleti contractus. Não há necessidade da propositura de ação judicial de execução da caução (capítulo 3.1.) 3) Na caução de dinheiro, se o credor caucionário tiver dever legal ou contratual de manter segregado os valores em um determinado local (conta bancária, aplicação financeira etc.), a propriedade do dinheiro continua sendo do devedor caucionante, de maneira que: (a) a não devolução do valor por dolo pode configurar crime de apropriação indébita; (b) o dinheiro não poderá ser penhorado por dívidas pessoais do credor caucionário; (c) o credor caucionário não poderá valer-se da impenhorabilidade da poupança prevista no art. 833, X, do CPC; e (d) não haverá proteção do bem de família se este tiver sido adquirido após o recebimento da caução pecuniária (capítulo 3). 4) Se a caução em dinheiro não tiver sido acompanhada de um dever legal ou contratual de o credor caucionário guardar a coisa em um local específico, a propriedade do dinheiro passará a ser do credor caucionário, que terá uma obrigação de dar (e não restituir) um valor equivalente ao final do contrato se não houver inadimplemento. Daí decorre que: (a) não há falar em crime de apropriação indébita; (b) dívidas pessoais do credor caucionário poderão acarretar penhora do dinheiro que o caucionário tiver consigo; (c) o credor caucionário pode valer-se da impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC e do bem de família (capítulo 3). 5) Se inexistir lei dando eficácia erga omnes, a caução de imóveis é devida como simples direito obrigacional, mas não poderá ingressar na matrícula do imóvel. Se, porém, houver lei, a caução de imóvel será um direito obrigacional com eficácia real ou um direito real e, nessa condição, poderá ingressar no álbum imobiliário no Cartório de Imóveis. 6) No caso de locação predial urbana, a caução de imóveis é um direito obrigacional com eficácia real, pode ser instituída por instrumento particular (não se aplica o art. 108 do CC) e é objeto de ato de averbação na matrícula do imóvel (capítulo 4). 7) A caução de direitos aquisitivos e creditórios relativos a imóveis é direito real e deve ser averbada na matrícula do imóvel (capítulos 5 e 6). 8) A caução de direitos de créditos pode livremente ser estipulada como simples direitos obrigacionais. Se houver lei específica, ela será um "direito obrigacional com eficácia real" ou um direito real. Se o crédito for hipotecário ou pignoratício, é necessária a averbação no registro público competente (capítulo 7). Definição e natureza jurídica (Direito real ou obrigacional)  Caução em sentido amplo significa qualquer tipo de garantia de uma dívida, mesmo as fidejussórias (como fiança). O art. 826 do CPC utilizada essa acepção ampla quando afirma que "a caução pode ser real ou fidejussória". Caução em sentido estrito é aquela que envolve a entrega de um bem em garantia de uma dívida. Também pode ser chamada de caução real, porque é focada na entrega de uma coisa, como dinheiro, veículos e até imóvel. Na prática, quando a legislação e os contratos se valem do verbete "caução", está referindo-se a essa acepção estrita. Aqui também estaremos reportando-nos a essa acepção quando utilizarmos o vocábulo "caução" sem fazer ressalvas. A caução (sentido estrito) é, em regra, um direito obrigacional e, como tal, não tem eficácia erga omnes. Decorre do princípio da autonomia da vontade e não depende de previsão legal específica. Entre particulares, é cabível a estipulação de caução de bens livremente, mas esse pacto, se envolver imóveis, não poderá ingressar na matrícula do imóvel por não ter eficácia erga omnes. Excepcionalmente a caução poderá assumir eficácia erga omnes, (1) se for materializada mediante a instituição de um direito real de garantia, como hipoteca ou penhor ou (2) se houver lei expressa emprestando essa eficácia erga omnes. Quanto ao primeiro caso, é viável que a caução seja dada em forma de uma hipoteca ou um penhor, caso em que a caução será o próprio direito real de garantia selecionado. Assim, um particular pode, em caução, instituir uma hipoteca em favor de outrem. No tocante ao segundo caso, a lei poderá dar eficácia erga omnes a uma caução por dois modos. De um lado, a lei criar um direito real, batizando a caução expressamente como tal. É o que se dá com a caução de direitos aquisitivos relativos a contratos de alienação de imóveis (art. 17, § 1º, da lei 9.514/97). De outro lado, a lei pode estabelecer um "direito obrigacional com eficácia real", emprestando eficácia erga omnes sem classificá-lo como um direito real. E pode fazê-lo indiretamente, ao determinar a publicidade da caução em um órgão de registro público. A caução de bens em locação é exemplo disso (art. 38 da Lei de Inquilinato - lei 8.245/91). Não é meramente estética a distinção. Se a caução for direito real e envolver imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, haverá necessidade de escritura pública na forma do art. 108 do CC. Se, porém, a caução for direito obrigacional com eficácia real, não se aplica o art. 108 do CC. Sem lei, não há como atribuir eficácia erga omnes à caução em razão do princípio da legalidade: terceiros não podem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. A doutrina é rarefeita sobre o tema. Destacamos, nessa seara, didático artigo do notável registrador João Pedro Lamana Paiva1. Caução de dinheiro Definição e "execução" da garantia A caução em dinheiro como direito obrigacional é a aquela baseada genericamente no princípio da autonomia da vontade. Trataremos dela aqui. Quando a caução consiste na entrega de um dinheiro, como esta coisa é fungível, a tradição transfere a propriedade do dinheiro ao credor2, que, em contrapartida, se obriga a pagar um valor equivalente após o pagamento da dívida garantia. A rigor, o credor não irá "restituir", e sim "pagar" o valor da garantia, pois ele se tornou proprietário da soma de dinheiro que havia sido entregue. "Restituir" é verbo usar para devolver coisa que pertence a outrem. Processualmente, cabe ao devedor ajuizar ação cobrando a restituição do valor se o credor voluntariamente não o fizer após o pagamento da dívida garantida. No caso de inadimplemento da dívida garantida, o credor não precisará ajuizar uma ação de execução da caução em dinheiro. Bastará ele abster-se de devolver o dinheiro até o valor da dívida garantida, tudo com base na exceptio non adimpleti contractus (art. 476, CC). Não há de ser invocado aqui a "proibição do pacto comissório" previsto no art. 1.428 do CC, pois essa vedação é apenas para direitos reais de garantia, e não para direitos obrigacionais. Entendemos ser desnecessário ele buscar uma homologação judicial ou uma expropriação judicial, pois, desde a tradição do dinheiro dado em caução, o credor já havia se tornado dono da coisa, de modo que, com o inadimplemento da dívida garantida, o credor poderá invocar a exceptio non adimpleti contractus. Caução de dinheiro em forma de penhor: o problema da fungibilidade do objeto  Questão curiosa é: seria cabível uma caução em dinheiro por meio de um penhor do dinheiro? Em regra, entendemos ser inviável o penhor sobre dinheiro diante da sua fungibilidade, que acaba acarretando a transmissão da propriedade com a tradição. O credor pignoratício tem de ser um depositário da coisa, mas, como o dinheiro é fungível, ele não é propriamente um depositário, e sim uma espécie de mutuário por força dos arts. 587, 645 e 1.435, I, do CC. O direito real de penhor exige uma individualização do objeto (especialização objetiva), o que não existe nesse caso diante do fato de o dinheiro entregue pelo devedor em garantia se perder dentro do patrimônio do credor. Excepcionalmente, entendemos ser viável o penhor do dinheiro se este for individualizado enquanto uma determinada universalidade de direito por contrato ou por lei. E há essa individualização quando, por contrato ou lei, o credor pignoratício se torna obrigado a manter o dinheiro recebido em separado, seja em uma conta bancária, seja em uma aplicação financeira, seja em um local físico. Atenta-se que o bem empenhado aí ("o dinheiro") não é um bem singular (art. 89, CC), e sim uma universalidade de direito (art. 91, CC). De fato, o bem empenhado não é uma moeda ou uma cédula, e sim uma expressão econômica que será tratada como uma unidade (ex.: uma quantia de R$ 30.000,00). Universalidade de direito é uma espécie de bem coletivo e consiste na pluralidade potencial de bens singulares com destinação única por força de norma legal ou contratual. Na universalidade de direito, a substituição de um bem singular por outro é admitido, mas o bem substituto passará a ser integrante da universalidade (sub-rogação real). No exemplo, ao entregar R$ 30.000,00 em garantia estipulando a conservação desse valor em uma determinada conta bancária, a expressão econômica (trinta mil reais) é uma universalidade de direito e está individualizada. Entendemos que, nesse caso, o devedor continua sendo proprietário dessa universalidade de direito. O fato de o credor poder substituir cédulas de R$ 100,00 pelo equivalente em cédulas de R$ 50,00 não infirma tal constatação, pois aí terá se operado uma sub-rogação real dentro da universalidade de direito. Situação similar em hipóteses em que um advogado, com procuração, levanta um dinheiro depositado em juízo para entrega posterior ao cliente. O dinheiro está individualizado aí, de maneira que a sua propriedade continua sendo do cliente, e não do advogado. Daí decorrem consequências práticas. Por exemplo, se, como o devedor ainda é proprietário do dinheiro dado em caução para ficar em uma determinada conta bancária, se eventualmente a coisa se perder fortuitamente (ex.: um hacker rouba todos os valores depositados), o prejuízo ficará com o dono da coisa, ou seja, com o próprio devedor diante da regra do res perit domino (a coisa perece para o dono), pois o credor não era proprietário do valor dinheiro dado em garantia. Resumindo, a regra é a de que a entrega do dinheiro em garantia transmite a propriedade diante de sua fungibilidade e da falta de sua individualização, de modo que, em regra, não é cabível o penhor de dinheiro. Excepcionalmente, quando o dinheiro entregue em garantia tiver de ser armazenado em um determinada conta bancária ou em outro lugar, a coisa (o dinheiro, entendido como uma expressão econômica) é uma universalidade de direito individualizada, de maneira que será cabível o penhor do dinheiro nesse caso em razão de a entrega dessa coisa não transmitir a propriedade ao credor3. Portanto, a caução em dinheiro poderá assumir a forma de penhor apenas se for determinada a conservação da coisa em uma determinada conta bancária, aplicação financeira ou outro local. Caução de dinheiro em locação urbana  No caso de locação de imóvel urbano, o § 2º do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91) estabelece que a caução em dinheiro tem de ser necessariamente ser depositada em uma caderneta de poupança para, quando do levantamento do valor, o inquilino se beneficiar dos rendimentos dessa aplicação financeira. Nesse caso, entendemos que a lei do inquilinato individualizou o dinheiro enquanto uma determinada universalidade de direito, conforme já exposto no subcapítulo anterior, de maneira que a propriedade ainda é do inquilino: a tradição da garantia pecuniária não transmitiu a propriedade. Reitere-se que, ao se referir ao "dinheiro", não estamos tratando da moeda ou das cédulas (bens singulares), e sim da expressão econômica (ex.: R$ 30.000,00), que é uma universalidade de direito por força de lei ou do contrato (art. 91, CC). Repercussões práticas Direito Penal: retenção da caução em dinheiro vs crime de apropriação indébita  Como, em regra, a tradição do dinheiro dado em caução transmite a propriedade, entendemos ser equivocado considerar que o fato de o credor não entregar de volta o valor equivalente configuraria crime de apropriação indébita.  Não há aí o elemento "coisa alheia móvel" do tipo penal desse crime (art. 178, CP). Situação diferente seria se o dinheiro dado em caução tivesse de ficar armazenado em algum local específico por força do contrato (conta bancária, aplicação financeira etc.), pois aí a coisa ("o dinheiro"), enquanto universalidade de direito, ainda continuaria sendo de propriedade do devedor, tudo conforme já expusemos. Nesse caso, a não devolução da caução em dinheiro por dolo configuraria o elemento típico "coisa alheia móvel" do crime de apropriação indébita. Sob esse prisma, no caso de caução de dinheiro em locação urbana, consoante já exposto, a tradição não transmitirá a propriedade do dinheiro, entendido como uma universalidade de direito e tido como infungível, de sorte que haverá o crime de apropriação indébito se dolosamente o locador não o restituir4. Processo Civil: penhora do dinheiro dado em caução por credores de quem o recebeu e hipótese de falência É ou não cabível a penhora desse dinheiro por credores pessoais de quem recebeu a caução? E, no caso de falência de quem recebeu a caução, o dinheiro irá ser atraída pela vis attractiva do juízo falimentar de modo que o quem deu a caução teria de se habilitar no quadro geral de credores? Precisamos distinguir o modo como a caução pecuniária foi pactuada. Há dois casos. A primeira é a da caução em que, por lei ou por contrato, o dinheiro tenha de se manter individualizado em um determinado local (conta bancária etc.). Nesse caso, conforme já expusemos, a propriedade do dinheiro - entendido como uma universalidade de direito - continua sendo do devedor. Por isso, o credor caucionário não é proprietário do dinheiro, de modo que este não poderá ser penhorado por dívidas pessoais que ele tenha nem tampouco será sugado pela vis attractiva do juízo falimentar. A propósito, no caso de falência, bastará ao devedor caucionante formula simples pedido de restituição do dinheiro, sem necessitar habilitar-se no quadro-geral de credores (art. 85, lei 11.101/05). A segunda hipótese é a de que não havia obrigação legal ou contratual de o dinheiro caucionado fosse conservado em um determinado local específico. Nesse caso, conforme já explicamos, o credor caucionário se tornou proprietário do dinheiro no momento em recebeu o dinheiro, razão por que este poderá ser penhorado por dívidas pessoais suas e será atraída pela força atrativa do juízo falimentar de modo a despachar o devedor caucionante ao transtorno de engrossar a fileira do quadro-geral de credores para receber seu crédito. Processo civil: cobrança da restituição da caução pecuniária vs impenhorabilidade do bem de família e da poupança Se o devedor caucionante, após pagar a dívida, cobrar a restituição da caução, indaga-se: o credor caucionário poderá invocar a impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/90) ou da poupança até 40 salários-mínimos (art. 833, X, CPC)? Há duas situações, conforme já exposto. A primeira situação é o caso de o dinheiro ter sido individualizado mediante comando legal ou contratual que ordenava sua conservação em um determinado local (ex.: conta bancária). Nesse caso, o credor caucionário não se torna proprietário do dinheiro com a tradição; o dono é o devedor caucionante. Sob essa ótica, não se poderá alegar a impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC, pois o dinheiro lá depositado se presume, até o valor da caução, pertencer ao devedor caucionante. O dinheiro, enquanto universalidade de direito, é propriedade deste último. No entanto, se o credor caucionário não tiver dinheiro em suas contas bancárias, há presunção de que ele cometeu crime de apropriação indébita. Por essa razão, somente será cabível a penhora do bem de família dele para pagamento do valor caucionado se esse bem de família tiver sido adquirido após a entrega da caução, pois aí se presumirá que essa aquisição ocorreu com uso do dinheiro dado em caução, a configurar uma exceção à impenhorabilidade do bem de família: a da aquisição do bem de família com produto de crime (art. 3º, VI, lei 8.009/90). A segunda hipótese é a de caução pecuniária sem individualização da coisa. Nesse caso, o credor caucionante se tornou proprietário do dinheiro e tem apenas uma obrigação de dar (e não de restituir) um valor equivalente ao da caução ao final do contrato. Por isso, essa sua obrigação será tratada como as demais dívidas em geral, de maneira que não poderá furar a impenhorabilidade legal da poupança até 40 salários-mínimos nem a do bem de família. Caução de imóvel em locação urbana Noções gerais, execução e atos no Cartório de Registro de Imóveis   A caução de imóvel é admissível em qualquer hipótese na condição de mero direito obrigacional. Não poderá, no entanto, ser averbada na matrícula do imóvel para produzir efeitos erga omnes sem uma lei específica. De fato, se não houver lei, a caução de imóvel terá natureza meramente obrigacional com eficácia inter partes e, portanto, não poderá ingressar na matrícula no Cartório de Imóveis. Em consequência, o credor sofrerá prejuízos se o devedor alienar ou hipotecar o imóvel, pois o adquirente ou o credor hipotecário terão direitos reais e, assim, prevalecerão sobre o credor caucionário. Do ponto de vista processual, para executar a garantia, o credor caucionário terá de pleitear judicialmente a penhora do imóvel caucionado, pois a transmissão da propriedade dela depende de registro no Cartório de Imóveis. Se, porém, houver lei dando eficácia erga omnes - o que acontece quando a lei autoriza o ingresso da caução de imóveis na matrícula no Cartório -, a caução de imóvel deverá ser lançada na matrícula do imóvel e, assim, deixará o credor caucionário protegido de posteriores adquirentes ou credores hipotecários. Um exemplo de caução de imóveis que pode ser averbada na matrícula é aquela prestada como garantia de aluguel de imóvel urbano por força do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91). Essa caução de imóvel no âmbito de locação urbana é um "direito obrigacional com eficácia real", e não um "direito real", por falta de um batismo legal. Nesse caso, o ato a ser praticado na matrícula é de averbação por força desse dispositivo, e não ato de registro. Entendemos ser atécnica a opção do legislador por ato de averbação pelo fato de o ingresso da caução na matrícula configurar uma constituição de direito (o que tecnicamente recomendava o ato de registro, e não de averbação).  Direito Notarial e de Registro: dispensa de escritura pública e registro na matrícula  Em qualquer caso dos casos de caução supracitados, a caução é um direito obrigacional, ainda que, no caso de caução de imóvel no âmbito de locação urbana, a caução seja um "direito obrigacional com eficácia real". Daí decorre que não se aplica o art. 108 do CC e, portanto, a caução de imóvel nesses casos pode ser formalizada por meio de instrumento particular: não há necessidade de escritura pública ainda que o imóvel valha mais do que 30 salários-mínimos. Se, porém, a caução de imóvel for dada mediante a instituição de uma hipoteca, aí haverá necessidade de escritura pública se o imóvel for de valor superior a 30 salários-mínimos, pois, nesse caso, o art. 108 do CC será aplicável para a instituição da hipoteca. Ademais, se existisse alguma lei estabelecendo textualmente uma caução de imóveis como "direito real", seria aplicável a exigibilidade de escritura pública do art. 108 do CC. Caução de direitos aquisitivos sobre imóvel  Direitos aquisitivos sobre imóvel construído ou "na planta", como os direitos do promitente comprador e do devedor fiduciante, podem ser objeto de caução na forma dos arts. 17, § 1º, e 21 da lei 9.514/1997. Essa caução pode ser pactuada por instrumento particular por permissão expressa do art. 38 da lei 9.514/97 e deverá ser averbada na matrícula do imóvel por força do art. 167, II, "8", da LRP. É o caso, por exemplo, do adquirente de um imóvel "na planta" (em regime de incorporação imobiliária") que, após já ter pago 60% das prestações do preço, decide oferecer o seu direito aquisitivo em garantia de alguma dívida pessoal perante terceiros. Essa garantia poderá ser formalizada por uma caução de direitos creditórios, na forma do art. 21 da lei 9.514/1997. A caução de direito creditório é um direito real, e não um direito obrigacional com eficácia real, pois o art. 17, § 1º, da lei 9.514/97 textualmente o diz. Em regra, essa caução não depende de prévio consentimento do alienante. Todavia, se o direito aquisitivo for decorrente de uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante só poderá caucionar o seu direito aquisitivo a terceiros mediante prévio de prévio consentimento do credor fiduciário por força do art. 29 da lei 9.514/1997. Esse dispositivo exige consentimento do credor fiduciário para a transmissão do direito aquisitivo e, por consequência, exige indiretamente para a caução desse direito (afinal de contas, a caução destina-se a uma possível transmissão em sede de execução da garantia). Caução de direito creditório decorrente de contratos preliminares ou definitivos de alienação de imóveis  O art. 17, § leiLei nº 9.514/97) e deverá ser averbada na matrícula do imóvel (art. 167, II, "8", da LRP). A título ilustrativo, suponha que a empresa Incorporadora Legal Ltda caucione, para o Banco da República S/A, os créditos que ela possui perante os consumidores em razão da venda de imóveis "na planta". Essa caução é feita em garantia do pagamento de empréstimo que a empresa contraíra com o Banco para financiar a construção do prédio. Na prática, porém, a caução de direito creditório não é utilizada nem é recomendada, pois há um outro direito real mais vantajoso para o credor: a cessão fiduciária de direito creditório (arts. 17, § 1º, 18, 19 e 20 da lei 9.514/97). A principal vantagem da cessão fiduciária é que o credor fiduciário (cessionário) se tornar titular resolúvel do crédito e, portanto, terá vantagens na execução da garantia, como, por exemplo, no caso de falência do devedor fiduciante: o credor fiduciário fará mero pedido de restituição e não precisará participar do quadro-geral de credores se o título representativo do crédito ainda estiver com o devedor fiduciante (art. 20, lei 9.514/97).  Caução de direitos de crédito, inclusive os hipotecários ou pignoratícios Direitos de crédito podem ser objeto de caução, que, em regra, terá eficácia meramente obrigacional, salvo se houver lei dando-lhe eficácia real ou batizando-a como direito real. Se o crédito a ser caucionado estiver garantido por uma hipoteca (crédito hipotecário) ou penhor (crédito pignoratício), a caução é igualmente admitida e implicará que o caucionário poderá aproveitar-se da hipoteca ou do penhor. Nesse caso, será necessária a averbação da caução na matrícula do imóvel se se tratar de crédito hipotecário (art. 289, CC) ou às margens do registro do penhor no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Entendemos que o único obstáculo à caução de direitos de crédito é se estes não puderem ser cedidos por força de lei, de pacto ou da natureza da obrigação, pois a caução destina-se a, em último caso, permitir que o crédito seja expropriado judicialmente.  Seja como for, para evitar dúvidas que imperavam na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas editou o decreto 24.778/1934, cuja razão de ser foi dissipar - para copiar excerto dos Considerandos dessa norma - "dúvidas quanto à validade do penhor, ou caução, de créditos hipotecários e pignoratícios, dúvidas que ainda perduram apesar de as ter resolvido, implicitamente, o decreto 21.449, de 9 de junho de 1932, que incluiu tais cauções entre as operações da Caixa de Mobilização Bancária". Esse Decreto permanecesse em vigor, conforme chegou a ser atestado expressamente pelo decreto 3.329/2000. Conclusão A legislação não possui a clareza devida acerca da caução enquanto uma importante garantia bem popular. A doutrina também não costuma debruçar sobre essa espécie de garantia. Nosso objetivo aqui foi delinear os principais efeitos jurídicos da caução a fim de contribuir para o debate. O Congresso Nacional precisa aprofundar a discussão, pois há necessidade de ajustes na legislação. E, entre essas reflexões, convém ser tratado de outras modalidades de garantia que seriam bem-vindas no Brasil, como a hipótese da garantia flutuante, que encontra paralelo no floating charge da Inglaterra e no floating lien dos Estados Unidos e que é bem tratado pelo catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa Luís Manuel Teles Menezes Leitão em sua obra "Garantia das Obrigações"5, ao qual reportamos o leitor. __________ 1 PAIVA, João Pedro Lamana. A caução locatícia no Registro Imobiliário. Disponível aqui. Data de elaboração: agosto de 2005.  2 Semelhantemente, a tradição do dinheiro no mútuo ou no depósito também transfere a propriedade exatamente por conta da fungibilidade desse bem (arts. 587 e 645, CC). 3 Quando o § 3º do art. 66-B da lei 4.728/1965 autoriza a alienação fiduciária em garantia sobre bem móvel fungível, está, na verdade, a tratar de um bem fungível que, com o contrato, foi transformado em uma universalidade de direito individualizada a ser guardada em separado pelo credor fiduciário a fim de que, no caso de inadimplemento, esse bem seja vendido para quitação do débito. 4 Em caso de caução pecuniária em locação predial urbana, a jurisprudência dos tribunais locais costuma admitir o crime de apropriação indébita, sem, contudo, tecer os argumentos acerca da infungilização e da universalidade de direito. A título ilustrativo: TJDFT, APR 0097110-15.2009.807.0001 DF, 2ª Turma Criminal, Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos, DJe 21/01/2011. 5 LEITÃO, Luís Manuel Teles Menezes. Garantia das Obrigações. Coimbra/Portugal: Editora Almedina, 2018.
Introdução O presente artigo tem como objetivo contribuir com o estudo da flexibilização do princípio da especialidade no registro de títulos oriundos da regularização fundiária urbana. Os princípios registrais  Princípios são normas de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico, em sua aplicação e integração, estejam ou não positivadas.1 De modo que toda a compreensão do direito passa, inicialmente, pelo estudo dos princípios. Assim como os princípios gerais de direito, existem princípios que norteiam a atividade registral, dentre os quais o princípio da legalidade, moralidade, prioridade, continuidade e especialidade. Esses princípios norteadores e informativos do Direito Registral estão positivados essencialmente na lei Federal 6.015/73, na Constituição Federal, no Código Civil, na doutrina e na jurisprudência. Passa-se, então a tratar especificamente de cada um deles. O princípio da legalidade é um dos princípios fundamentais do registro de imóveis. Inclusive, é aquele que norteia todos os demais princípios. Trata-se, em sentido amplo, de princípio pelo qual toda ação da Administração e toda decisão dos tribunais deve ser resultado da aplicação da lei. No âmbito dos registros públicos, o princípio da legalidade é definido por Luiz Guilherme Loureiro como aquele pelo qual se impõe que os documentos submetidos ao Registro devem reunir os requisitos exigidos pelas normas legais para que possam aceder à publicidade registral2. Marcelo Rodrigues também tece comentários: Na esfera do direito registral, exprime o princípio a ideia de que os títulos, públicos ou particulares, judiciais ou extrajudiciais, sem distinção, aptos a registro ou averbação, devem reunir os requisitos exigidos nas leis, a cujo fim é necessário submetê-los a um prévio exame, verificação ou qualificação, que assegure sua validade ou perfeição, do ponto de vista extrínseco ou formal.3 De modo que o título não pode ingressar no fólio real se não observados os requisitos do ordenamento jurídico, notadamente o princípio da legalidade.              Ultrapassada a legalidade, passa-se a tratar da prioridade, que tem por finalidade tanto ordenar o procedimento registral, estipulando o que deve ser analisado e registrado em primeiro lugar, quanto graduar os direitos reais contraditórios, excluindo aquele posterior incompatível e prorrogando o grau daquele compatível.4 Desta forma, um dos efeitos da prioridade é resguardar a preferência5 do título levado ao fólio real. Sendo que o título prenotado com número menor tem preferência sobre aquele prenotado com número maior. No que diz respeito ao prazo da prática de todo o serviço na serventia, este prazo é de 30 dias, conforme o disposto no art. 188 da lei 6.015/73. Diante disso, considera-se de 30 dias o prazo de prenotação. Especificidade que merece detalhamento é que em casos de regularização fundiária o prazo se dilata para 60 dias, prorrogável por igual período, nos termos do art. 44, parágrafo 5º da lei 13.465/17. Dando seguimento ao estudo dos princípios, há também o princípio da continuidade ou trato sucessivo. Trata-se de princípio que garante segurança jurídica ao estabelecer a necessidade de observância da cadeia de titulares, de modo a criar um elo perfeito na cadeia. Segundo Victor Kumpel, a continuidade ou trato sucessivo designa que, no fólio real, uma inscrição é consecutiva a outra, devendo obrigatoriamente existir uma correspondência entre o titular do direito que outorga o título e o titular tabular (continuidade subjetiva), bem como a coincidência do próprio objeto (continuidade objetiva)6. Verificada rapidamente as especificidades de cada um dos princípios acima, passa-se a tratar, no tópico seguinte e com maior profundidade, do princípio da especialidade. O princípio da especialidade  Ultrapassado o breve estudo dos princípios registrais, passa-se a tratar especificamente do princípio da especialidade registral. Trata-se de princípio segundo o qual todo imóvel que seja objeto de registro deve estar perfeitamente individualizado.7 Deve-se individualizar não só o imóvel em si, como também o proprietário tabular. Divide-se, portanto, em especialidade objetiva (aquela que se refere ao imóvel) e especialidade subjetiva (aquela que se refere ao sujeito). A especialidade objetiva, de acordo com a doutrina, desenvolveu-se à partir da necessidade de se combater a clandestinidade das hipotecas8 e compreende a plena e perfeita identificação do imóvel na matrícula e nos documentos apresentados para registro. De acordo com Marcelo Rodrigues: Por esse princípio protege-se o registro imobiliário de equívocos que possam confundir os imóveis (e os sujeitos a que se referem os direitos inscritos), causando embaraço à segurança e à consulta dos títulos. Assim, não se pode admitir que o título inove a descrição do registro anterior, devendo manter a descrição pré-existente de forma rigorosa, sob pena de ofensa ao princípio da especialidade objetiva. Note, ainda, que não basta a descrição geométrica do imóvel, sendo também necessária uma amarração geográfica que marque a posição do imóvel no espaço, o que pode ser feito com a indicação dos confrontantes. Assim, para Afrânio de Carvalho, a existência da expressão "confrontando com quem de direito" aposta na escritura pública ou no registro viola o princípio em questão9. De modo que se deve mencionar o nome dos confrontantes. Atualmente, com a lei 6.015/73, pode-se extrair a especialidade objetiva do art. 176, §1º, que exige a identificação do imóvel, que será feita com indicação a) se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; b) se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver. Anote-se também que o art. 225 da lei 6.015/73 trouxe a necessidade de que se indique com precisão as características e as confrontações do imóvel. E em se tratando de imóvel rural, a localização, limites e confrontações devem ser obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida anotação de responsabilidade técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional fixada pelo Incra (art. 225, § 3º da lei 6.015/73). Por outro lado, a especialidade subjetiva, como o próprio nome indica, diz respeito ao sujeito. Exige-se, pois, a perfeita identificação e qualificação das pessoas nomeadas na matrícula e nos títulos levados a registro.10 A doutrina trata da especialidade subjetiva: Em se tratando de pessoa natural, o princípio da especialidade está plenamente atendido quando se faz referência ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas no Ministério da Fazenda (CPF), número do Registro Geral (RG) de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e a qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento [...]11. Portanto, a título de exemplo, o registro de uma escritura pública em que a qualificação de uma das partes diverge daquela que se apresenta no registro levará o registrador, na qualificação registral, à devolução do título, em observância ao descumprimento do princípio da especialidade subjetiva.  A qualificação registral Quando um título é levado a registro no Registro de Imóveis, o registrador deve examiná-lo para verificar se aquele título observou os princípios registrais e a legislação vigente. Assim, a qualificação registral é definida pela doutrina como o "poder-dever do registrador de verificar a existência no título de todos os requisitos necessários para que ele possa ingressar no registro de imóveis".12 Para Vitor Kumpel a qualificação registral, ou registrária consiste na exteriorização do princípio da legalidade, ou seja, constitui a forma mais contundente deste, ante a incumbência do registrador de fazer análise dos títulos de acordo com o ordenamento jurídico em vigor. A qualificação jurídico-registral, nesse cenário, é difícil e complexa; é um dever do registrador, exercido com independência funcional [...] mas sempre de forma jurídica e técnica13. Assim, é no momento da qualificação que o registrador vai verificar se os princípios registrais foram observados. Sendo seu dever, com a independência que lhe é própria, apresentar nota devolutiva daqueles títulos que não estão de acordo com os princípios. Dentre os títulos que são submetidos à qualificação estão aqueles indicados no art. 167 da lei 6.015/73. O dispositivo elenca os títulos hábeis a registro (inciso I) e a averbação (inciso II). Em que pese o amplo rol do dispositivo, o presente trabalho tratará da qualificação registral de um título específico: a Certidão de Regularização Fundiária, que se apresenta no item 43 do inciso I do art. 167 da lei 6.015/73. No entanto, antes de se estudar o título oriundo da regularização fundiária, revela-se importante contextualizar a regularização fundiária e sua mais recente alteração legislativa. Estudo que se apresenta em seguida. A regularização fundiária no Brasil Levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontou que o déficit habitacional14 no país cresceu 7% em apenas dez anos, de 2007 a 2017, tendo atingido 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017. Levando-se em conta que este dado é de 2017, nos dias atuais é provável que esse número tenha ultrapassado oito milhões de famílias. Famílias estas que vivem em situação precária de moradia no país. A problemática do desenvolvimento urbano informal no país não é nova. E devido a existência dessas moradias irregulares, já na década de 1980 alguns Municípios contavam com algumas poucas leis esparsas de programas de regularização. Já no âmbito Federal, a ainda vigente lei 6.766/79, previa - como prevê - um mecanismo de regularização em que o Município poderá terminar as obras de infraestrutura e levantar os valores depositados pelos adquirentes dos lotes perante o Registro de Imóveis15. Destaca-se, ainda, que a Constituição Federal de 1988 trouxe o conceito de política de desenvolvimento urbano a ser executado por meio de leis municipais ou planos diretores.16 E mais, desde a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia passou a ser tratado como direito social, conforme o art. 6º da Constituição Federal. Em seguida, houve a aprovação do Estatuto da Cidade, que tem como objetivo, além de outros, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação.17 Ainda no cenário nacional, pode-se destacar a lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Fundo Nacional de Interesse Social, com o objetivo de implantar políticas e programas que promovam o acesso 'a moradia para a população de baixa renda. Cite-se também a lei 11.481/2007, que trouxe alguns mecanismos de regularização fundiária em terras da União. Mais recentemente, toda a sistemática de leis esparsas foi substituída pela lei 11.977/2009. Essa lei dispôs sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Não obstante a importância da lei 11.977/2009, no ano de 2016 a Medida Provisória 759/2016, convertida na lei 13.465/17 revogou completamente os dispositivos referentes à regularização fundiária da lei 11.977/2009. A lei 13.465/17, dentre outras questões, trouxe a Reurb (Regularização Fundiária Urbana). Na realidade, a Lei trouxe uma simplificação da então existente regularização fundiária da lei 11.977/09. Sem entrar no mérito da formalidade legislativa, foi louvável a iniciativa do legislador, no sentido de conferir à população um facilitador na regularização fundiária de núcleos informais consolidados. De modo que a Reurb veio para conferir o acesso ao direito social à moradia constitucionalmente estabelecido.18 A lei define a Reurb como um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.19 Dentre seus objetivos, elencados no art. 10 da lei 13.465/17, estão o de ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados, garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas e, ainda, garantir a efetivação da função social da propriedade. Trata-se de um verdadeiro procedimento administrativo dividido em duas fases distintas: a) a primeira, consiste em um processo administrativo junto ao respectivo Município, cuja sequência de atos está prevista no art. 28, da Lei nº 13.465/17; b) já a segunda fase se trata do registro, no cartório de registro de imóveis competente, da chamada Certidão de Regularização Fundiária.20 Afinal, com a edição da lei 13.465/17, foi inserido o item 43, no inciso I do art. 167 da lei 6.015/73. Acrescentou-se, portanto, a CRF como título passível de registro no cartório de registro de imóveis. Em que pese a riqueza de detalhes existentes na lei, o presente trabalho não se presta a tratar do procedimento administrativo conduzido junto ao Município, mas tão somente com relação a segunda fase do procedimento, notadamente o registro da CRF e o exame de qualificação registral frente ao princípio da especialidade. O registro da Certidão de Regularização Fundiária A primeira etapa do processamento da Reurb ocorre integralmente no órgão municipal competente. Trata-se, pois, de um processo administrativo. Com a finalização da primeira etapa, passa-se a segunda etapa, que consiste no registro da Certidão de Regularização Fundiária no Cartório de Registro de Imóveis competente. A Certidão de Regularização Fundiária corresponde ao documento expedido pelo Município ao final do procedimento da Reurb, constituído do projeto de regularização fundiária aprovado, do termo de compromisso relativo à sua execução e, no caso da legitimação fundiária e da legitimação de posse, da listagem dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado, da devida qualificação destes e dos direitos reais que lhes foram conferidos21. A lei 13.465/17 prevê, ainda, alguns requisitos22 exigidos na CRF: a) o nome do núcleo urbano regularizado; b) a localização; c) a modalidade da regularização; d) as responsabilidades das obras e serviços constantes do cronograma; e) a indicação numérica de cada unidade regularizada, quando houver; f) a listagem com nomes dos ocupantes que houverem adquirido a respectiva unidade, por título de legitimação fundiária ou mediante ato único de registro, bem como o estado civil, a profissão, o número de inscrição no cadastro das pessoas físicas do Ministério da Fazenda e do registro geral da cédula de identidade e a filiação. Com relação ao prazo do registro, há uma exceção à regra geral da Lei de Registros Públicos23. O prazo do registro da CRF é de 60 (sessenta) dias24, podendo ser prorrogado por igual período, de forma fundamentada pelo oficial de registro. Assim, após todo o trâmite do processo administrativo, pelo princípio da rogação caberá aos interessados apresentarem requerimento para o registro da CRF25 junto ao cartório de registro de imóveis competente. Compreendem-se como interessados aqueles elencados no rol do art. 14, da lei 13.465/17. Desta forma, além dos demais títulos elencados na Lei de Registros Públicos, a Certidão de Regularização Fundiária também se submete ao exame de qualificação do oficial de registro. Cabendo ao oficial examinar a CRF, verificando se os requisitos legais para o registro estão preenchidos, além da observância aos princípios registrais e do ordenamento jurídico. No que concerne à qualificação da CRF, há que se mencionar que, em função dos objetivos da regularização fundiária, a lei mitiga diversos princípios registrais e cria diversas exceções pontuais para a facilitação do procedimento. Dentre essas mitigações e exceções, importa um maior aprofundamento no princípio da especialidade. De modo que a seguir serão trazidas as experiências dos tribunais com a flexibilização da especialidade para, posteriormente, se passar a tratar dessa flexibilização relativa aos títulos oriundos de regularização fundiária. A experiência dos tribunais na flexibilização da especialidade Em recomendado trabalho, José Renato de Freitas Nalini26 analisou a flexibilização do princípio da especialidade como a possibilidade que o registrador tem de, valendo-se da sua independência jurídica, interpretar as normas vigentes, modelando-as ao momento histórico e ao caso concreto, para alcançar a sua natural atribuição, que é a efetiva realização do ato no registro. Como o próprio autor comenta, o tema não é novo. Existe uma variedade de casos e decisões nos quais optou-se por abrandar o efeito de algum princípio ou norma com o intuito de possibilitar o assentamento de determinado título.  A título de exemplo de flexibilização da especialidade objetiva, cite-se decisão proferida pelo Conselho Superior de Magistratura de São Paulo, que admitiu continuidade da descrição incompleta no registro de imóveis, ressalvando que "não obstante a necessidade de aperfeiçoamento a ser realizado por meio de retificação do registro imobiliário, não é absolutamente vaga, permitindo compreensão acerca da localização do bem e sua individualização perante outros", concluindo que "nessa ordem de ideias, há atendimento do Princípio da Especialidade Objetiva, contido no art. 176 da lei 6.015/73, porquanto possível compreensão da localização do imóvel com suas característica fundamentais"27. Há, ainda, casos em que houve a flexibilização da especialidade subjetiva. Cite-se como exemplo a situação em que há a necessidade de apresentação do CPF do proprietário de imóvel para registro de Escritura Pública de Compra e Venda. Em recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu-se que: Muito embora o princípio da especialidade subjetiva deva ser respeitado, com qualificação completa do titular de domínio, o art. 176, III, "a" da Lei de Registros Públicos traz um abrandamento ao mencionado princípio, ao admitir para registro, com referência 'as pessoas físicas, o 'estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da Cédula de Identidade, ou 'a falta deste, sua filiação. Observo na presente hipótese que o rigor do princípio da especialidade subjetiva deve ser mitigado, vez que a vendedora [...] encontra-se qualificada no registro nº 2 da matrícula, constando o número de seu documento pessoal (RG) e sua qualificação, espancando qualquer dúvida de que se trata da mesma pessoa constante do título apresentado28. Portanto, existem inúmeros julgados cujo entendimento fora pela flexibilização da especialidade. Os exemplos acima trazidos são apenas alguns dentre vários outros. Verificada essa tendência de se flexibilizar a especialidade em alguns casos, questiona-se sobre a possibilidade de flexibilização do princípio diante do registro da certidão de regularização fundiária. Questão a ser tratada no tópico seguinte. A flexibilização da especialidade no registro da CRF  Como se verificou, a CRF é título hábil a ser levado a registro no competente Cartório de Registro de Imóveis. Verificou-se, ainda, que um dos objetivos da Reurb é ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais.29 Assim, não à toa que a própria exposição de motivos da Medida Provisória originária da Reurb trouxe uma preocupação com o direito social à moradia: Demais disso, o crescimento muitas vezes desordenado dos grandes centros urbanos e a explosão demográfica brasileira em curto espaço de tempo vem causando diversos problemas estruturais que, por falta de regramento jurídico específico sobre determinados temas, ou mesmo por desconformidade entre as normas existentes e a realidade fática dos tempos hodiernos, não apenas impedem a concretização do direito social à moradia, como ainda produzem efeitos reflexos negativos em matéria de ordenamento territorial, mobilidade, meio ambiente e até mesmo saúde pública. Como forma de garantir o direito social à moradia, a lei 13.465/17 trouxe regime próprio para o registro da Certidão de Regularização Fundiária, título oriundo dos processos de Reurb. No bojo do regime trazido pela legislação, cite-se a flexibilização de algumas regras registrais, para que haja completa viabilidade do registro da CRF, uma vez que dentre os propósitos da legislação está aquele que visa garantir o direito social à moradia. Assim, nas palavras de Vitor Kümpel, a qualificação registral da CRF é especial [...] na medida em que se sujeita à regras registrais próprias e a questões procedimentais únicas exauridas na lei 13.465/1730 [...] Exatamente por existirem regras registrais próprias, que visam os propósitos da própria lei, continua o autor: não caberá a aplicação de todos os princípios e regras registrais, pois o regime jurídico da regularização fundiária flexibiliza questões registrais para atender os propósitos da respectiva lei, em especial conferir o direito de propriedade e torná-lo trafegável sob o aspecto econômico e registral31. E se a própria lei, com o fim de garantir ao interessado seu direito social à moradia, flexibiliza essas regras, os mais recentes Códigos de Normas dos Estados acompanharam esse espírito. Cite-se como exemplo de flexibilização da especialidade subjetiva aquela prevista no Código de Normas de São Paulo, que estabelece que a ausência da qualificação completa do proprietário do imóvel objeto de Reurb não impede seu prosseguimento.32 Sendo ass, ainda que não seja possível se obter determinado dado do proprietário para efeitos de sua notificação, caso possa ele ser identificado por outras formas, deve haver o prosseguimento do procedimento. Já o Código de Normas de Minas Gerais traz um exemplo de flexibilização da especialidade objetiva. Apesar de estabelecer que a identificação e caracterização da unidade imobiliária derivada de parcelamento de solo seja feita com a indicação de sua área, medidas perimetrais, número, localização e nome do logradouro para o qual faz frente e, se houver, a quadra e a designação cadastral, apresenta a ressalva de que a ausência desses elementos não obstará o registro da CRF e da titulação final quando o registrador puder identificar com exatidão a unidade regularizada, por quaisquer outros meios33. Não obstante o espírito da lei 13.465/17, há aqueles Códigos de Normais estaduais que ainda não contam com capítulo específico acerca do registro da CRF, tampouco com tipificações pontuais acerca dessa flexibilização. Assim, questiona-se: a falta de amparo no provimento Estadual acerca da flexibilização da especialidade seria um óbice à flexibilização e consequente registro do título? A nosso sentir, a resposta que mais se adequa ao espírito da regularização fundiária é que a ausência de provimento com a flexibilização não pode obstar o registro da CRF no fólio real. Esse posicionamento possui fundamento no espírito que a lei 13.465/17 trouxe para a regularização fundiária, conferindo o direito social à moradia ao ocupante desses núcleos. Tanto nos casos de Reurb-S quanto nos casos de Reurb-E. Corroborando com este entendimento, cite-se recente decisão do juízo de primeiro grau de Ponte Nova/MG. Na oportunidade, ainda sob a égide da lei 11.977/09, foi apresentada dúvida pela registradora de imóveis decorrente de pedido de averbação de auto de demarcação urbanística para a realização de Regularização Fundiária. Dentre as questões controvertidas que se apresentaram, estavam a divergência dos ocupantes dos lotes com o projeto apresentado e a divergência da quantidade de lotes que seriam regularizados. A dúvida fora julgada procedente pelo juiz, que entendeu que a averbação deveria ser autorizada, tendo em vista o interesse social "a moradia a ser resguardado aos moradores da localidade"34. Portanto, ainda que o Código de Normas Estadual não preveja possibilidade de flexibilização, a lei Federal o faz. E mais, o próprio espírito da norma possibilita ao registrador, no caso concreto, realizar a qualificação registral se fazendo presente a garantia do direito social à moradia do ocupante. *Fellipe Simões Duarte é advogado. Pós-graduado em Direito Ambiental (UFPR) e em Advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial (UNISC). Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral da OAB/MG de Juiz de Fora. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM) e da Academia Nacional de Direito Notarial e Registral (AD NOTARE). Coautor da obra "O Direito Notarial e Registral em Artigos, volume IV" da YK Editora. __________ 1 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução 'a ciência do direito. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 462.  2 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de Direito Notarial: da atividade e dos documentos notariais. 3ª ed. ver., atual. E ampl. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 301.  3 RODRIGUES, Marcelo. Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. 3. Ed. rev. Ampl. A atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 437.  4 KERN, Marinho Dembinski. Princípios do Registro de Imóveis Brasileiro. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 123.  5 Os Códigos de Normas das Corregedorias Estaduais regulamentam a matéria, a exemplo do art. 752, do Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais, que estabelece que "o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta, a preferência dos direitos reais, ainda que apresentado mais de um título simultaneamente pela mesma pessoa".  6 KUMPEL, Victor Frederico. Et. Al. Tratado Notarial e Registral, vol. 5, 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, P. 288  7 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática (p. 312).  8 Ricardo Dip esclarece que "essa normativa (ele se refere a uma lei francesa de 27 de junho de 1795) visou, explicitamente, a combater a clandestinidade das hipotecas, por meio da publicidade, e a generalidade desta garantia real, mediante a expressão singular do imóvel afetado e a quantidade a que se estendesse a hipoteca[...]" (grifei) DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (Princípios). Descalvado, SP: Editora PrimVs, 2018, p. 7.  9 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática (p. 312/313).  10 Art. 176, p. 1º, II, 4 da lei 6.015/73.  11 KERN, Marinho Dembinski. Princípios do Registro de Imóveis Brasileiro. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 179.  12 SERRA, Monete Hipólito. Registro de Imóveis, coordenado por Christiano Cassetari. 4 ed. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2020, p.104.  13 KUMPEL, Victor Frederico. Et. Al. Tratado Notarial e Registral, vol. 5, 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, P. 233.  14 Disponível aqui.  15 O art. 38 e seguintes da leiº 6.766/79 prevê um mecanismo de regularização em que o Município ou o Distrito Federal poderão regularizar o parcelamento para evitar lesão aos padrões de desenvolvimento urbano e danos aos direitos dos adquirentes dos lotes.  16 Art. 182, CF.  17 Art. 2º, XIV, lei 10.257/2001.  18 Art. 6º, Constituição Federal.  19 Art. 9º, lei 13.465/17.  20 Art. 167, I, 43, lei 6.015/73.  21 Art. 11, V, da lei 13.465/17.  22 Art. 41, lei 13.465/17.  23 Art. 188, lei 6.015/73.  24 Art. 44, §5º, lei 13.465/17.  25 A Certidão de Regularização Fundiária é título hábil a registro no cartório de registro de imóveis competente, nos termos do art. 167, I, 43 da lei 6.015.  26 NALINI, José Renato de Freitas. Flexibilização do princípio da especialidade no registro imobiliário. In AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (coords.); SANTOS, Queila Rocha Carmona dos (org.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comcarca de São Paulo: Quartier Latin, 2016.  27 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 0003435-42.2011.8.26.0116.  28 1VRPSP - PROCESSO: 1085622-26.2020.8.26.0100  29 Art. 10, III, lei 13.465/17.  30 Kümpel, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2216.  31 Kümpel, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2216.  32 Item 290.2.1 do Provimento nº 58/89 CGJ/SP: A ausência de qualificação completa do proprietário do imóvel, na matrícula ou transcrição, não impede sua notificação nos termos da Lei 13.465, de 2017, desde que identificável, sendo dispensada a prévia averbação dos dados faltantes para efeito de prosseguimento do registro ds Reurb.  33 Art. 1.122 e seu Parágrafo Único, do Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais.  34 TJMG, Processo nº 0150261-07.2015.8.13.0521.
Introdução O objetivo desse artigo é discutir algumas figuras com grande aplicação prática e que integram o Direito Civil: o patrimônio de afetação, o regime fiduciário e o escrow account. Trata-se de conceitos importantes para a prática forense, a prática contratual e a prática notarial e registral diante da presença dessas figuras no quotidiano do Direito Civil. Patrimônio de afetação, patrimônio separado ou patrimonial especial Patrimônio de afetação1, também chamado de patrimônio separado ou patrimônio especial, não é um direito real, e sim um regime jurídico incidente sobre um conjunto de bens de uma pessoa para destiná-lo prioritariamente à satisfação de determinada obrigação. É, pois, um regime jurídico que recai sobre o direito de propriedade de um bem ou de um conjunto de bens para "afetá-los" à satisfação preferencial de uma dívida específica. Em outras palavras, os bens sujeitos ao regime de patrimônio de afetação não se comunicam com os demais bens da pessoa, mas permanecem confinados juridicamente. Os bens que integram o patrimônio de afetação bem como as dívidas a cuja satisfação prioritária esses bens estão afetados podem ser presentes ou futuros, tudo depende da lei específica que autoriza a instituição do regime de patrimônio de afetação. Em uma metáfora, se uma pessoa possui uma parcela do seu patrimônio em regime de patrimônio de afetação, é como se essa parcela estivesse ilhada só pode ser alcançada pelos credores em favor dos quais o regime foi instituído. Se, por exemplo, for decretada a falência de uma sociedade que possuam bens sob regime de patrimônio de afetação, somente os credores em favor dos quais se instituiu esse regime poderão fatiar a parcela do patrimônio afetado. No caso de todos terem sido satisfeitos, extingue-se o regime de patrimônio de afetação sobre eventual sobra patrimonial, a qual poderá ser excutida por outros credores. Como o patrimônio de afetação flexibiliza o princípio da patrimonialidade, segundo o qual, salvo lei, todos os bens do devedor respondem por suas dívidas (art. 789, CPC), ele só é admitido se houver lei expressa admitindo-o. O regime do patrimônio de afetação tem duas utilidades principais na prática: ser garantia de dívida ou viabilizar a administração de bens próprios em interesse alheio. A primeira é a de que servir como uma espécie de garantia do pagamento de determinada dívida. Sob essa utilidade, temos os seguintes casos de patrimônio de afetação na legislação: 1) Constituição de capital (art. 533, § 1º, CPC): está sob regime de patrimônio de afetação o capital que o responsável civilmente tem de manter segregado a fim de garantir o pagamento de pensão alimentícia indenizatória, como nos casos de alguém que matou outrem e, assim, foi condenado a pagar alimentos indenizatórios para os dependentes econômicos do falecido. Os bens móveis e imóveis que constituíram esse capital continuarão sob a propriedade do responsável civilmente, mas não poderão ser penhorados por seus credores pessoais por estarem afetados à satisfação das pensões alimentícias devidas à vítima. 2) Incorporação imobiliária (arts. 31-A a 31-F, Lei nº 4.591/64): é facultado ao incorporador instituir regime de patrimônio de afetação a fim de que o terreno, as acessões e os demais bens vinculados a uma determinada incorporação (como os créditos frutos das vendas de imóveis "na planta") sejam afetados à satisfação prioritária dos credores dessa específica incorporação. 3) Fundo Garantidor de Parceria Público-Privada - FGP (art. 21, lei 11.079/2004): é facultativa a instituição de patrimônio de afetação sobre bens do FGP para a satisfação de determinada parceria público-privada em específico. 4) Sistema de Pagamentos Brasileiro - SPB (arts. 5º e 6º, da lei 10.214/2001):  as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e liquidação no âmbito do SPB devem separar bens como patrimônio de afetação a fim de garantir o cumprimento de suas obrigações, observada regulamentação do Banco Central do Brasil. 5) Contas de pagamento em instituições de pagamento integrante do Sistema de Pagamentos Brasileiro - SGP (arts. 6º e 12, lei 12.685/2013): os ativos constantes das contas de pagamento estão em regime de patrimônio de afetação como forma de impedir que credores pessoais da instituição gestora da conta de pagamento penhorem os ativos dessas contas, tudo em proteção do cliente. 6) Fundo de investimento com previsão expressa de patrimônio de afetação para cada classe de quota (art. 1.368-D, III, Código Civil): os bens vinculados a determinada classe de quotas de fundos de investimento ficam prioritariamente vinculados à satisfação dos créditos dos quotistas dessa classe. 7) Patrimônio rural em afetação (arts. 7º ao 16 da Lei do Agro - lei13.986/2020): o imóvel rural, total ou parcialmente, tornam-se prioritariamente destinados à satisfação de dívida contida em CIR (Cédula Imobiliária Rural) ou CPR (Cédula de Produto Rural). A CIR é fruto de alguma operação de crédito (art. 17, Lei do Agro), ao passo que a CPR decorrente da promessa de entregar um produto rural (Lei nº 8.929/1994). Como garantia do pagamento desses títulos de crédito, o emitente pode instituir um regime de patrimônio de afetação sobre todo ou parte do seu imóvel rural. A segunda é a de que viabilizar uma espécie de segregação patrimonial de um ente que assumiu o direito de propriedade sobre bens apenas para administrá-lo e guardá-lo no interesse de outrem. As principais hipóteses legais nesse sentido são estas: 1) Grupo de consórcio privado (art. 5º, lei 11.795/2008): os bens vinculados a um Grupo de Consórcio - que é um ente despersonalizado - ficam na titularidade da administrador do consórcio em regime de patrimônio de afetação em favor das obrigações decorrentes desse grupo de consórcio, de modo que credores pessoais do administrador não poderão penhorar esses bens. 2) Fundo de investimento imobiliário (art. 7º, lei 8.668/1993): os bens vinculados de um Fundo de Investimento - que é um ente despersonalizado - ficam sob a propriedade fiduciária da instituição administradora em regime de patrimônio de afetação. 3) Regime fiduciário no caso de securitização de recebíveis imobiliários por meio da emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários - CRI (art. 11, I, lei 9.514/97): os créditos que lastreiam a emissão de CRI (títulos que são vendidos a investidores na Bolsa de Valores) ficam em regime de patrimônio de afetação em nome da companhia securitizadora, que deve conservá-los em favor dos adquirentes da CRI. Haverá um agente fiduciário, que é uma instituição financeira incumbida de fiscalizar a atuação da companhia securitizadora em proteção dos adquirentes de CRI, conforme art. 13 da lei 9.514/97. 4) Regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundos de investimento (art. 88, § 3º, da lei11.196/2005): havendo a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento pelo inquilino em favor do locador, forma-se um regime fiduciário sobre as quotas, de modo que a instituição financeira administradora do fundo ficará como agente fiduciário das quotas para as administrar em proveito do locador. O texto legal nos parece atécnico por falar em um regime fiduciário e por falar em indisponibilidade das quotas, como se o agente fiduciário fosse o proprietário das quotas e, assim, fosse necessária a segregação patrimonial. É que, nesse caso, a propriedade, ainda que resolúvel, das quotas é do locador, conforme expressamente assentado no § 1º do art. 88 da lei 11.196/2005. Para nós, não há propriamente um regime fiduciário, e sim meramente uma administração feita sobre uma quota de fundo pertencente ao credor fiduciário. Não há, pois, patrimônio de afetação, embora a lei insinue o contrário. 5) Regime fiduciário no caso de emissão de Letra Imobiliária Garantida - LIG (art. 69, II, e 70 da lei 13.097/2015): a instituição emissora de LIG fica com a propriedade dos créditos sobre os quais se lastreiam esse título em patrimônio de afetação e sob a fiscalização de um agente fiduciário, que é uma instituição financeira. Trata-se de um regime fiduciário. Regime fiduciário Regime fiduciário é um arranjo jurídico-real em razão do qual um bem ou um conjunto de bens fica sob a propriedade de uma pessoa (= o fiduciário) em regime de patrimônio de afetação com o objetivo de que ela administre a coisa em proveito de terceiros (= os beneficiários). Diz-se "fiduciário", porque esse regime decorre de forte confiança (fidúcia) na pessoa incumbida da gestão dos bens. A propriedade do fiduciário está sujeita a uma condição resolutiva, cujo implemento fará reverter os bens em favor dos beneficiários. Especialmente nas hipóteses em que os beneficiários do regime fiduciário ficam difusos, é conveniente a existência de um "agente fiduciário", que é uma pessoa incumbida de fiscalizar o fiduciário no interesse dos beneficiários e que possui mandato legal para praticar atos em favor destes. Entendemos que a instituição de um regime fiduciário depende de lei específica apenas pelo fato de ele envolver um regime de patrimônio de afetação instituído por vontade do próprio proprietário: os bens ficam em nome do fiduciário nesse regime, cuja instituição depende de lei específica por conta do princípio da patrimonialidade (art. 789, CPC). Ninguém pode, sem lei específica, segregar uma parcela do patrimônio. O principal exemplo de regime fiduciário é o envolvendo emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) para venda a investidores. Nesse caso, os investidores serão os "beneficiários", a companhia securitizadora que emitiu os títulos será o "fiduciário" e titularizará os créditos sobre os quais se lastreiam esses títulos em regime de patrimônio de afetação e uma instituição financeira será o "agente fiduciário", tudo conforme arts. 9º ao 16 da lei 9.514/97. Também é utilizado o regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundo de investimento, embora, conforme já expusemos anteriormente, entendemos que houve atecnia no art. 88, § 3º, da lei 11.196/2005 ao regular a matéria. Igualmente a emissão de Letra Imobiliária Garantida - LIG é submetida a regime fiduciário em que os adquirentes da LIG são os "beneficiários", a instituição emissora da LIG é o "fiduciário" e uma instituição financeira é o "agente fiduciário" (art. 63 e ss, lei 13.097/2015). Outrossim as companhias securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio podem instituir regime fiduciário sobre esses créditos a fim de proteger os investidores, caso em que serão observadas, no que couber, as regras do regime fiduciário próprio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (art. 39, lei 11.076/2004). Escrow account vs patrimônio de afetação vs penhora: o exemplo dos contratos administrativos de serviços de mãos-de-obras terceirizadas A escrow account (traduzido, "conta-garantia") é uma conta bancária em que se depositou uma quantia com finalidade de servir de garantia à satisfação de determinada obrigação. A ideia é segregar uma quantia pecuniária para ser liberada apenas para garantir o pagamento de uma obrigação. Os bancos atualmente disponibilizam um produto conhecido como "conta vinculada", na qual pode ser depositado um valor que só poderá ser levantado mediante autorização conjunta dos interessados ou ordem judicial. Essas contas vinculadas podem ser utilizadas como uma escrow account. Em contratos administrativos destinados a contratar empresas de terceirização de mão de obra, a União costuma valer-se de contas vinculadas para depositar valores destinados a garantir o pagamento das verbas trabalhistas dos empregados da empresa de terceirização. Essas contas ficam em nome das empresas terceirizadas, mas só podem ser movimentadas com autorização expressa tanto da União quanto das empresas terceirizadas. Nesses casos, há o grave risco de credores pessoais da empresa terceirizada penhorarem os valores depositados nessa conta por meio do famoso sistema Bacenjud. De fato, sob uma dogmática fria, no direito brasileiro, por falta de previsão legal, a escrow account não pode ser considerada submetida ao regime de patrimônio de afetação. Assim, se a conta bancária estiver no nome de uma pessoa, credores pessoais dela podem acabar penhorando o dinheiro contido na conta-vinculada. A legislação, portanto, não dá o respaldo adequado ao escrow account, que acaba sendo formalizado por meio de contratos e, portanto, acabam tendo natureza obrigacional. Seria até possível instituir um penhor ou uma alienação fiduciária sobre esses valores depositados, mas, na prática, a dinâmica dos negócios não chancela essa prática. Entretanto, em nome da doutrina do terceiro cúmplice, que se lastreia na boa-fé objetiva e na função social, convém admitir que os valores depositados em uma escrow account sejam protegidos de penhoras de credores pessoais do titular da conta bancária se a obrigação garantida ainda não tiver sido satisfeita. A jurisprudência tende a proteger as partes de um contrato diante de terceiros credores que realizar penhoras que frustrariam aquele contrato, como nos casos de promessas de compra e venda de imóveis sem registro (Súmula nº 84/STJ) e de aquisição de imóveis "na planta" (súmula 308/STJ). __________ 1 Em riquíssima obra sobre o trust - obra que é de visita obrigatória para aprofundamentos sobre o tema -, o jurista português Antonio Barreto Menezes Cordeiro (2014, pp. 1097-1101) lembra que a segregação patrimonial já estava presente desde o Direito Romano antigo, com a figura do peculium profecticium.
Introdução No caso de danos causados a particulares por atos notariais e registrais, quem responde civilmente? Trataremos da responsabilidade civil por atos decorrentes dos serviços notariais e registrais. Noções gerais Os serviços notariais e de registro ("cartórios ou serventias extrajudiciais") são delegações de serviço público outorgadas a particulares aprovados em concurso público na forma do art. 236, CF. Não se confundem com as hipóteses gerais de delegação de serviço público e, por isso, o seu regime de responsabilidade civil não se sujeita à hipótese geral do art. 37, § 6º, da CF. Por ordem do § 1º do art. 236 da CF, a responsabilidade civil desses oficiais extrajudiciais será disciplinada por lei específica. Trata-se de delegação sui generis. Responsabilidade do oficial Os oficiais extrajudiciais respondem subjetivamente pelos danos que causar pessoalmente ou por meio de seus prepostos, assegurado o direito de regresso contra esse preposto. Essa responsabilidade subjetiva passou a ser textual no art. 22 da lei 8.935/94 com a nova redação recebida pela lei 13.286/2016. Somente o oficial à época do ato danoso é que responde. A responsabilidade é pessoal dele. Novo delegatário de serviço notarial e de registro não responde por ato danoso praticado pelo anterior. O oficial não é uma pessoa jurídica, e sim uma pessoa natural que recebe a delegação, razão por que não pode responder por danos causados por outra pessoa. Veja este julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ): RESPONSABILIDADE CIVIL. NOTÁRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO DE PERNAMBUCO PELOS DANOS CAUSADOS PELO TITULAR DE SERVENTIA EXTRAJUDICIAL NÃO-OFICIALIZADA. PRECEDENTES. A responsabilidade civil por dano causado a particular por ato de oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor, atual titular da serventia, responder pelo ato ilícito praticado pelo sucedido, antigo titular. Precedentes. Recurso especial provido. (STJ, REsp 696.989/PE, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 27/11/2006). Responsabilidade civil do preposto No caso de o ato danoso ter sido praticado por preposto, indaga-se: o preposto pode ser demandado diretamente pelo prejudicado? Entendemos que não, porque o art. 22 da lei 8.935/94 adota o princípio da dupla garantia. É semelhante com a responsabilidade civil do Estado por ato agente público à luz do art. 37, § 6º, da CF: não cabe ação diretamente contra o agente público. O art. 22 da lei 8.935/1994 e o art. 34, § 6º, da CF possuem a mesma estrutura redacional. E há motivos para tanto. O legislador preferiu colocar o risco da atividade sobre o oficial, inclusive o risco decorrente de demandas propostas por terceiros. O preposto não deve ser submetido a constrangimentos de ações judiciais de terceiros. É, porém, assegurado que o oficial exerça direito de regresso contra o preposto no caso de dolo ou culpa. A jurisprudência não é consolidada. Faltam precedentes. De qualquer forma, há um julgado do STJ que acena nesse sentido: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFICIAL DE CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL. ATO PRATICADO ANTES DE SUA TITULAÇÃO, QUANDO DESEMPENHAVA A FUNÇÃO DE OFICIAL SUBSTITUTO. EMISSÃO DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE DE MATRÍCULA COM BASE NA QUAL FOI REALIZADO NEGÓCIO JURÍDICO. POSTERIOR ASSUNÇÃO DA TITULARIDADE DO CARTÓRIO. CANCELAMENTO DA MATRÍCULA EM FUNÇÃO DE DUPLICIDADE. IMPUTAÇÃO DE RESPONSABILIDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA. 1. Em princípio, a responsabilidade dos titulares de Cartórios Extrajudiciais é pessoal e intransmissível. Contudo, o art. 22 da Lei 8.935/94 assegura o exercício, por estes, do direito de regresso em face de seus prepostos nas hipóteses de dolo ou culpa. 2. Se um preposto do Cartório, na qualidade de Oficial Substituto, atesta a regularidade de uma matrícula e, posteriormente, ao assumir a titularidade do Cartório, cancela a mesma matrícula cuja legitimidade atestara, é possível que o prejudicado ajuíze diretamente em face dele uma ação para apurar sua responsabilidade civil. Isso porque, nas hipóteses em que haja dolo ou culpa, seria dele, de todo modo, a responsabilidade final pelo incidente. 3. Recurso especial conhecido e improvido. (STJ, REsp 1270018/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/06/2012). Questão interessante é saber se o preposto poderia vir a ser demandado caso ele venha a se tornar, posteriormente oficial. Entendemos que aí seria cabível sua responsabilização direta por parte da vítima. O STJ segue essa linha. Na hipótese de esse preposto vir a, no futuro, assumir a delegação do serviço extrajudicial, a ação de indenização poderá ser proposta diretamente contra ele, e não contra o anterior oficial, pois, em razão do direito de regresso, seria esse ex-preposto que suportaria o encargo financeiro da responsabilidade civil (STJ, REsp 1270018/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/06/2012). Capacidade de ser parte: pessoa do oficial, e não cartório Cartório não tem personalidade jurídica nem é um ente despersonalizado. É apenas uma designação da delegação para fins de controle administrativo, como para identificação administrativa (ex.: 7º Ofício de Registro de Imóveis de Anápolis). De fato, nas palavras do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, "os cartórios ou serventias não possuem legitimidade para figurar no polo passivo de demanda indenizatória, pois são desprovidos de personalidade jurídica e judiciária, representando, apenas, o espaço físico onde é exercida a função pública delegada consistente na atividade notarial ou registral" (STJ, REsp 1177372/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 01/02/2012). Logo, não cabe ação diretamente contra o cartório, pois ele não tem capacidade de ser parte. O polo passivo da ação deve ser da pessoa do tabelião ou do registrador (STJ, REsp 1177372/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 01/02/2012; REsp 545.613/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 29/06/2007; AgRg no REsp 1360111/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 12/05/2015). Responsabilidade do Estado por ato do oficial extrajudicial O Poder Público (mais especificamente o Estado, que é o ente federativo delegante) responde objetiva e solidariamente pelos atos praticados pelos oficiais extrajudiciais, dada a aplicação do § 6º do art. 37 da CF. Esse é o entendimento do STF, que foca o fato de os oficiais serem delegatários de serviço público (STF, RE 842846, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 13-08-2019). Cabe ao Estado agir regressivamente contra o titular dos serviços notariais e de registro no caso de culpa. Não nos parece o melhor entendimento. Temos que o ideal era considerar a responsabilidade do Estado como sendo subsidiária em razão de o regime de delegação dos serviços notariais e de registro não se confundir com o dos demais serviços públicos por ter previsão específica no art. 236 da CF. Para aprofundamento, remetemos à dissertação de mestrado do tabelião e jurista Hércules Alexandre da Costa Benício1. __________ 1 BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
Introdução Usando linguagem popular, é comum pais "colocarem" imóveis no nome do filho, mas manterem, para si, de forma vitalícia, o direito de usar ou alugar o imóvel. Trata-se de prática comum, que inevitavelmente frequenta os cartórios de notas e os de imóveis. Juridicamente, há dois caminhos mais comuns para esse tipo de operação: um é o usufruto deducto e o outro é a compra e venda bipartida (com doação de dinheiro). Trataremos dessas figuras com olhos nos aspectos registrais, tributários e sucessórios. Para tanto, começaremos explicando o direito real de usufruto. Em seguida, passaremos a tratar das figuras do usufruto deducto e da compra e venda bipartida. Por fim, enfrentaremos a aplicação dessas figuras como forma de os pais "colocarem" imóveis no nome do filho. Direito real de usufruto Regulado pelos arts. 1.390 ao 1.411 do CC, o usufruto é um direito real outorgado pelo proprietário - que se torna nu proprietário - ao usufrutuário a fim de que este possa exercer as faculdades de usar e fruir da coisa. As partes envolvidas são: (1) nu-proprietário: o titular do direito real de propriedade onerado pelo usufruto; e (2) usufrutuário: o titular do direito real de usufruto. O direito real propriedade onerada pelo usufruto é chamado também de "nua-propriedade" por uma metáfora: como o titular do imóvel onerado não pode usar ou fruir, mas apenas dispor, a sua propriedade está metaforicamente desnuda. O usufruto pode incidir sobre móvel, imóvel ou patrimônio e estende-se aos acessórios (pertenças, benfeitorias, frutos e etc.) e aos seus acrescidos (arts. 1.390 e 1.392, CC). Esses acrescidos são as acessões, como um edifício construído no imóvel objeto do usufruto. Em regra, a constituição do usufruto ocorre com: (1) o registro do título na matrícula do imóvel no Cartório, no caso de imóvel (art. 1.391, CC); (2) a tradição, no caso de móvel (art. 1.226, CC); e (3) o transcurso do tempo no caso de usucapião, que pode envolver móvel ou imóvel. O usufruto é inalienável, embora o seu exercício não o seja (art. 1.393, CC). O motivo é que o usufruto é instituído em favor de uma determinada pessoa, levando em conta suas particularidades, donde dizer-se que ele é instituído intuitu personae. Um exemplo disso é que, ao instituir um usufruto vitalício para um idoso de 100 anos, o instituidor tem a expectativa de que o usufruto virá a se extinguir de modo mais breve do que se tivesse instituído em prol de um jovem de 12 anos, tendo em vista a diferença da expectativa de vida restante de cada um. Não pode o idoso ceder o usufruto para um jovem, frustrando a expectativa do instituidor. Assim, se instituo o usufruto em favor de João sobre um apartamento, ele sempre será o usufrutuário e, portanto, no caso de sua morte, o usufruto se extinguirá (art. 1.410, I, CC). Não poderá João alienar o usufruto para uma criança recém-nascida a fim de evitar essa extinção com a sua morte, pois o usufruto não pode ser alienado. Isso, porém, não impede que João ceda o exercício do usufruto para outrem, que iria poder morar ou alugar o apartamento. Daí decorre que credores de usufrutuários não podem pedir a penhora do usufruto diante de sua inalienabilidade, mas podem pleitear a penhora do "exercício" do usufruto, de sorte que a constrição recairá sobre o direito à percepção dos frutos e privará o usufrutuário de fruí-los provisoriamente. Usufruto Deducto O usufruto deducto ou reservado se dá quando alguém aliena a propriedade a outrem, mas reserva o usufruto para si. No popular, isso ocorre quando, por exemplo, os pais querem colocar o apartamento no nome do filho, mas pretendem garantir, para si próprio, o direito de continuar morando e fruindo do imóvel. Nesse caso, o pai pode doar o apartamento com reserva de usufruto, de modo que ele ficará com o direito real de usufruto, e o filho, com a nua propriedade. O CC reconhece essa prática expressamente (art. 1.400, parágrafo único). Apesar de o art. 1.400, parágrafo único, do CC mencionar o usufruto deducto em sede de doação, ele não proíbe que a prática seja feita com base em outro tipo de contrato, como uma compra e venda. Assim, temos por plenamente viável uma venda da nua propriedade com reserva do usufruto. O usufruto deducto pode ser instituído, inclusive, em testamento, quando o testador lega a propriedade da coisa a uma pessoa e reserva o usufruto para os herdeiros ou para um terceiro. Quais os atos devem ser lançados na matrícula do imóvel no caso de um usufruto deducto? Segundo doutrina e jurisprudência majoritárias, devem ser feitos dois registros na matrícula: um para a alienação da propriedade e outro para a constituição do usufruto1. Há uma cautela importante a ser levada em conta na redação do título a ser registrado no Cartório. É preciso que do título conste expressamente a reserva do usufruto; não basta a mera menção à alienação da nua-propriedade, à vista da necessidade de uma instituição de usufruto. O usufruto não pode ser constituído pelo proprietário da coisa em prol de si mesmo, pois é direito sobre coisa alheia. O usufruto só pode ser constituído pelo proprietário em prol de outrem. Isso decorre do art. 1.391 do CC, que vincula a constituição do usufruto ao seu registro no CRI2. Compra e venda bipartida com doação de numerário Prática comum é a "compra e venda bipartida", assim entendida uma venda da nua-propriedade em favor de uma pessoa concomitantemente à instituição onerosa do usufruto em prol de outra pessoa. De fato, o proprietário de um bem pode instituir o usufruto a uma pessoa e, em seguida, vender a nua propriedade para outra. Tem de ser observada essa ordem na redação da escritura (se os negócios forem formalizados na mesma escritura) e no lançamento dos atos de registro na matrícula perante o competente Cartório de Imóveis. É que, se o proprietário, em primeiro lugar, vender a nua propriedade e reservar para si o usufruto, não haverá como ele posteriormente transferir o usufruto a terceiros em razão da sua inalienabilidade (art. 1.393, CC). Haverá dois fatos geradores de ITBI aí: um pela transmissão onerosa da nua propriedade e outro pela instituição (=transmissão) onerosa do usufruto (o usufruto é um bem imóvel por determinação legal, conforme art. 80, I, CC). A base de cálculo é diferente para cada um dos fatos geradores. As leis municipais costumam indicar o valor dessa base de cálculo. Por exemplo, no Distrito Federal, a base de cálculo do ITBI incidente sobre a aquisição onerosa da nua propriedade toma o valor de 30% do valor venal do imóvel, deixando os outros 70% para a instituição do usufruto3. Compra e venda bipartida com doação modal de dinheiro e com cláusula de inalienabilidade: aspectos registrais É comum os pais, ficando com o usufruto, comprarem imóveis no nome do filho como uma "forma de doação" destinada a garantir o conforto material do filho no caso de falecimento dos pais. Nesses casos, é comum também os pais quererem tornar o direito dos filhos inalienáveis para que, ao menos, o filho sempre tenha um imóvel onde viver. Esses arranjos negociais podem ser chamados de "compra e venda bipartida com doação de numerário (dinheiro) e com cláusula de inalienabilidade". Cuida-se, em geral, de compra e venda de imóvel em favor de filho menor, com dinheiro de seu pai, cumulada com instituição de usufruto vitalício em prol do pai e com imposição de cláusula de inalienabilidade sobre o imóvel. Há vários modos de representar a operação. A mais adequada é entender que há os seguintes negócios jurídicos: (1) instituição onerosa de usufruto vitalício em favor dos pais com direito de acrescer; (2) doação de dinheiro dos pais em prol do filho com o encargo de comprar a nua propriedade e com cláusula de inalienabilidade - doação modal -; (3) compra e venda da nua propriedade pelos filhos com cláusula de inalienabilidade que recaía sobre o dinheiro e que, por sub-rogação real, passa para o imóvel. Daí decorre que, na matrícula do imóvel no Cartório, seriam praticados os seguintes atos: (1) registro da instituição onerosa do usufruto para os pais com direito de acrescer; (2) registro da compra e venda da nua propriedade; (3) averbação da cláusula de inalienabilidade. Não importa se o filho é menor de idade. Não haverá necessidade de alvará judicial para esses negócios. E há diferentes formas de justificar isso. A primeira forma é que, em termos práticos, temos um efeito similar a uma doação pura da nua propriedade em favor do filho, a qual pode ser recebida pelo absolutamente incapaz mesmo sem sua aceitação (art. 543, CC). A própria cláusula de inalienabilidade não passa de uma proteção ao próprio incapaz. Ademais, os pais estão a representar o filho incapaz nesses negócios, o que deve ser tido por suficiente para a prática dos atos. O Conselho Superior da Magistratura já decidiu assim (CSM-TJSP, Apelação cível 78.532-0/3, Rel. Corregedor-Geral de Justiça Luís de Macedo, j. 30/08/20014). A segunda forma de justificar a dispensa de alvará judicial é enxergando o fenômeno acima de maneira diversa, mas chegando ao mesmo resultado final. Basta pensar que, na verdade, teria havido uma doação do dinheiro para o filho com o encargo de que este deveria adquirir o imóvel e, ato contínuo, instituir o usufruto ao pai, como enxerga Gilberto Valente (2007). Uma terceira forma é cogitar na aquisição do imóvel pelo pai que, ato contínuo, doa-o, com reserva de usufruto e com a cláusula de inalienabilidade. O resultado prático, porém, é o mesmo. Por fim, indaga-se: como ficam os tributos? Será devido ITCD pela doação do dinheiro, além de: (1) ITBI sobre a instituição onerosa do usufruto e (2) ITBI sobre a venda da nua propriedade. Lembre-se que o somatório das bases de cálculos desses dois ITBIs corresponderá ao valor total do imóvel. Usufruto para deixar imóvel "no nome do filho": aspectos tributários, sucessórios e dever de colação É comum os pais ficarem com o usufruto para colocarem uma casa no nome do filho. Isso pode ocorrer por meio de uma doação com reserva de usufruto ("o usufruto deducto") ou de uma compra e venda bipartida com doação de numerário. No mais das vezes, o objetivo é antecipar e proteger a herança. Há as seguintes vantagens nesse tipo de postura: (1) a operação é uma espécie de antecipação de herança em que o bem doado é, no caso de compra e venda bipartida, apenas o valor do dinheiro utilizado na compra da nua propriedade ou, no caso de doação com reserva de usufruto, apenas a nua propriedade; (2) futuros credores do pai não poderão penhorar a nua propriedade, mas apenas o exercício do usufruto, o que protegerá a herança do filho no caso de naufrágio financeiro posterior do pai; (3) a consolidação da propriedade pelo filho no caso de morte do pai não dependerá de inventário e partilha, pois a morte do pai é hipótese de extinção do usufruto: basta o filho apresentar a certidão de óbito ao Cartório de Imóveis e pedir a averbação do cancelamento da nua propriedade. Do ponto de vista tributário, no momento da operação, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor da nua propriedade. No futuro, com a morte dos pais - a causar a extinção do usufruto -, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor do usufruto5. Como doação a filho é considerada uma antecipação de herança, a liberalidade ora tratada terá de ser colacionada na forma dos arts. 544 e 2.002 ao 2.012 do CC. Nesse caso, indaga-se: o que deve ser colacionado no caso de doação, a um filho, de um imóvel com reserva de usufruto? Temos duas hipóteses a analisar: uma envolvendo usufruto deducto e outra, a compra e venda bipartida. De um lado, no caso de o pai ter feito doação com reserva de usufruto (usufruto deducto), o objeto a ser colacionado é apenas a nua propriedade, e não a propriedade plena. Afinal de contas, o filho não tem a propriedade plena do bem. Ele não pode alugar a coisa, usá-la ou explorá-la economicamente, pois é nu proprietário. Só quando, no futuro, ocorrer a consolidação da propriedade é que o filho passará a ter a propriedade plena. A consolidação da propriedade ocorrerá com a extinção do usufruto, extinção essa que, entre outras causas, ocorre com a morte do usufrutuário. A título ilustrativo, repare que os filhos podem ter alienado a nua propriedade a terceiros, caso em que a consolidação da propriedade irá beneficiar o terceiro que adquiriu a nua propriedade. Seria, pois, uma atecnia jurídica dizer que a colação deveria recair sobre o valor do imóvel inteiro. Só o valor da nua propriedade é que deve ser colacionado. De outro lado, no caso de o pai ter feito uma compra e venda bipartida com doação de numerário, o resultado é próximo (mas não idêntico): o objeto a ser colacionado deve ser o dinheiro doado para a aquisição da nua propriedade, dinheiro esse que corresponde ao valor da nua propriedade no momento da operação. Entendemos que a liberalidade aí não é a nua propriedade, e sim o dinheiro doado. Conclusão O direito real de usufruto é a via legalmente mais adequada para acomodar a pretensão de pais que pretendem colocar um "imóvel" no nome dos filhos sem perder o direito de vitaliciamente usufruir do bem. Esmiuçamos aqui os aspectos civis, registrais e tributários nesses casos, com inclusão da definição de qual bem o filho donatário deverá colacionar em futura sucessão causa mortis dos pais. __________ 1 "EMENTA: Registro de Imóveis - Venda da nua-propriedade - Necessidade de Registro do Usufruto - Recurso não provido." (TJ/SP, Conselho Superior de Magistratura, Ap. Cível nº 23.526-0/9). 2 "Ementa Oficial: O usufruto sempre depende, por sua instituição, do registro, ainda que se tratando de simples reserva. Interpretação do art. 1.391 do novo CC. O imóvel deve ser tido como gravado por uma limitação, um ônus correspondente ao usufruto, uma servidão pessoal, e, para ser constituído e produzir toda sua eficácia, precisa ser inscrito" (Ap. Civ. 99.458-0/9, j. 27.02.2003. DOE SP 14.05.2003). 3 A propósito, confira-se o art. 5º, § 2º, da lei DF 3.830, de 14 de março de 2006: "Art. 5º A base de cálculo do Imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos ou cedidos. § 1º Não são dedutíveis do valor venal, para fins de cálculo do Imposto, eventuais dívidas que onerem o imóvel transmitido. § 2º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, para os efeitos deste artigo: I - o valor venal dos direitos reais corresponde a 70% (setenta por cento) do valor venal do imóvel; II - o valor da propriedade nua corresponde a 30% (trinta por cento) do valor venal do imóvel." 4 Disponível aqui. 5 No Distrito Federal, estima-se a nua propriedade em 30% do valor do imóvel e o usufruto em 70% do valor do imóvel.
quarta-feira, 26 de maio de 2021

Da transformação de imóvel rural em urbano

Introdução  Este artigo tem o propósito de tratar das transformações de imóveis rurais em urbanos. Para isso, será necessário introduzirmos dispondo, sinteticamente, sobre as políticas de urbanização, as formas e mecanismos de ampliações das áreas urbanas para depois tratarmos dos procedimentos junto ao INCRA e às Serventias de Registros de Imóveis. Historicamente, estudiosos relacionam a crescente e desenfreada urbanização e a expansão das cidades ao movimento populacional denominado êxodo rural. Na década de 1960, muito influenciados pelos reflexos oriundos da Revolução Industrial, como o surgimento de maquinários que substituíam a mão de obra no trabalho rural, causando inúmeros desempregos; o alto custo dos insumos necessários a produções e, principalmente, o atrativo do surgimento das grandes indústrias com abertura de novos empregos, os trabalhadores rurais se sentiam desmotivados por permanecerem dentro do campo e, ao mesmo tempo, atraídos por uma nova vida nas chamadas "cidades grandes", fazendo sua migração. Já, na década de 1990, ocorreram migrações de grandes centros urbanos para cidades médias e pequenas, em decorrência do menor custo de vida e também menores custos de produção. O problema é que os motivos desse crescimento urbano, seja o que se iniciou pós Revolução Industrial ou o na década de 1990, tinham motivações econômicas, interesses imobiliários, gerando um crescimento desordenado, sem planejamento estratégico, sem estudos relacionados a impactos ambientais, originando núcleos urbanos informais e favelizações. Nos dizeres de José Carlos Ugêda Júnior (pag.06, 1997) "O desenvolvimento metropolitano veio, portanto, acompanhado de problemas sociais e ambientais, tais como a falta de moradia e favelização, a carência de infraestrutura urbana, o crescimento da economia informal, a poluição, a intensificação do trânsito, a periferização da população pobre, a ocupação de áreas de mananciais da planície de inundação dos rios, e de vertentes de declive acentuado."  Como reflexos, ocorreram aumentos na violência, poluições visuais, impactos na natureza, que passaram a chamar a atenção da sociedade, da comunidade jurídica e dos próprios legisladores. A Carta Constituinte de 1988, a chamada Carta Cidadã, por outo lado, trouxe em suas normas diretrizes legislativas e administrativas ligadas ao urbanismo preocupadas e voltadas a uma ordenação de um pleno desenvolvimento das funções sociais e de garantia do bem estar dos habitantes de um determinado Município. Nesse diapasão, estabelece o artigo 182, caput da Constituição da República Federativa do Brasil: Artigo 182- "A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" Extrai-se do caput desse artigo que o legislador constituinte deu um enorme prestígio aos Municípios, outorgando-lhes competência para legislar normas que digam respeito ao seu espaço urbano. Além disso, atribuiu a todos os Municípios a competência para editar normas destinadas "a promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (artigo 30, VIII), e dispôs que os Municípios com mais de vinte mil habitantes são obrigados a ter plano diretor aprovado pela Câmara Municipal como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.  (artigo 182, § 1°). As diretrizes gerais previstas no caput do artigo 182, hoje, estão disciplinadas na Lei 10257/2001 (Estatuto da Cidade), e dentre elas, estão as ligadas a políticas públicas de desenvolvimento urbano, tais como: respeito e manutenção de um ambiente ecologicamente saudável; garantias de direito a uma cidade sustentável, à moradia urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, transporte, dentre outros. O Estatuto da Cidade dispõe também no seu artigo 42 B que, os Municípios que queiram ampliar o seu perímetro urbano devem elaborar projeto específico que contenha, no mínimo: a) demarcação de novo perímetro urbano; b) delimitação dos trechos com restrições a urbanização e dos trechos sujeitos a controle especial em função de ameaça de desastres naturais; c) definição de diretrizes específicas e de áreas que serão utilizadas para infraestrutura, sistema viário, equipamentos e instalações públicas, urbanas e sociais; d) definição de parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo, de modo a promover a diversidade de usos e contribuir para a geração de emprego e renda; e)  previsão de áreas para habitação de interesse social por  meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, quando o uso habitacional for permitido; f) definição de diretrizes e instrumentos específicos para proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural e; g) definição de mecanismos para garantir a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização do território de expansão urbana e a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária resultante da ação do Poder Público. Este projeto prévio é obrigatório para os Municípios que não possuem plano diretor, e deve ser instituído por lei municipal. Para os que já possuem, só não é obrigatório se já estiver no próprio plano diretor as diretrizes previstas no citado artigo 42 B da lei 10257/2001. Seja qual for a nomenclatura que o Município utilizar, para a ampliação do espaço urbano territorial, é necessária sempre uma lei específica a ser aprovada pela Câmara Municipal. Quando o Município estende seu espaço urbano territorial, evidentemente, ele transforma uma área rural em área urbana. Conforme dito neste artigo, existe uma série de diretrizes à serem observadas pelo Município, tais como: realizar obras de infraestrutura com calçamentos, luz, rede de esgoto, utilização racional e adequada dos recursos naturais disponíveis, estudos de manutenção de um equilíbrio ecológico, enfim, dar garantia de uma cidade sustentável com acesso à moradia urbana. No entanto, no meio desse núcleo urbano expandido, podem ainda existir imóveis rurais e que queiram permanecer como tal.  O critério de conceituação de imóvel rural e de sua diferenciação para imóveis urbanos se dá pela destinação do imóvel. Imóveis rurais são aqueles prédios rústicos que, independente de sua localização, realizam atividade extrativa, pecuária, agrícola ou agroindustrial. Seu conceito legal está previsto no artigo 4°, I da Lei 4504/1964 (Estatuto da Terra). Então, é perfeitamente possível existirem imóveis rurais em áreas urbanas ou de expansão urbana e é direito do proprietário permanecer como tal. Outra questão importante a ser abordada aqui diz respeito ao previsto no artigo 53 da Lei 6766/73, que é a norma que dispõe sobre parcelamentos do solo urbano. Este artigo traz a previsão de que para a alteração do uso do solo rural para urbano, seria necessária uma prévia audiência do INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura Municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente. Nesse aspecto, deve-se destacar a mudança de entendimento do INCRA no que tange à necessidade de sua audiência prévia. Através da Nota Técnica INCRA/DF/DFCN n° 02 de 2016, a Coordenação Geral de Cadastro Rural do INCRA, exteriorizou o seu entendimento atual de que não compete ao INCRA autorizar a transformação do solo para urbano, portanto, não tem que ser ouvido. O artigo 53 da lei 6766/73, deve ser reinterpretada no sentido de que compete à Autarquia, tão somente, realizar as operações cadastrais pertinentes, nos termos do Capítulo VI da Instrução Normativa INCRA n° 82/2015. Assim, compete ao Município transformar o solo em urbano, através de lei municipal e obedecendo projeto específico nos termos do artigo 42 B da Lei 10257/2001, e as diretrizes do seu Plano Diretor, mesmo que a área sofra depois projetos de desmembramento ou loteamento. Feita esta breve introdução, passaremos agora a análise do procedimento administrativo junto ao INCRA de descaracterização do imóvel rural para urbano. DA descaracterização para fins urbanos junto ao INCRA Conforme o disposto no artigo 22 e seus parágrafos da Lei 4947 de 1966, todos os imóveis rurais têm que ter o cadastro administrativo junto ao INCRA, sob pena do imóvel ficar indisponível. Sem o chamado CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural), não podem os proprietários, sob pena de nulidade, desmembrar, arrendar, hipotecar, vender ou prometer vender seu imóvel, assim como nas sucessões "causa mortis", nenhuma partilha amigável ou judicial poderá ser homologada pela autoridade competente. A exigência de ter tal cadastro teve início no dia 1° de janeiro de 1967. É através deste cadastro que o INCRA realiza seus objetivos estatutários de controle, ordenação fundiária rural e execução de reforma agrária com redistribuição de terras. Assim como é obrigatório ter o cadastro, o seu cancelamento ou atualização cadastral (a depender da descaracterização abranger o imóvel todo ou não), também é obrigatório. Tal procedimento é prévio à efetiva transformação do imóvel rural em urbano junto à matrícula do imóvel na Serventia de Registros de Imóveis competente. Só poderá ser objeto de descaracterização aquele imóvel que perder a sua destinação rural, ou seja, não se destinar mais a exploração vegetativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial. Tal procedimento está previsto na Instrução Normativa n° 82 do Incra de março de 2015, mais precisamente, no seu capítulo VI. O requerimento pode ser realizado pelo proprietário do imóvel ou pelo Município e, o procedimento se difere dependendo de quem for o solicitante. No caso do proprietário, a solicitação deve ser dirigida junto ao Superintendente Regional do Incra, contendo os seguintes requisitos mínimos: a) identificação do imóvel, com informação de denominação, município de localização, código do SNCR, dados referentes à situação jurídica, área total a ser descaracterizada; b) qualificação de todos os titulares e respectivos cônjuges, com informação de nome completo, documento de identificação e CPF ( pessoa natural) ou denominação e CNPJ (pessoa jurídica); c) declaração de que o imóvel se encontra inserido em perímetro urbano, conforme legislação municipal e, que é de interesse dos titulares utilizá-los para fins urbanos; d) endereço para correspondência. No caso de existir mais de um proprietário do imóvel, todos devem assinar o requerimento, incluindo seus cônjuges (artigo 22 da IN 82/2015). Além do requerimento, devem ser apresentados os seguintes documentos: a) certidão imobiliária de inteiro teor (original, cópia autenticada ou certidão eletrônica) da (s) matrícula (s) do imóvel, expedida pelo serviço de registro de imóveis no prazo máximo de 30 dias; b) certidão de localização expedida pelo Município, atestando que o imóvel está inserido no perímetro urbano, com indicação do ato legislativo que o delimitou; c) cópia da documentação relativa à pessoa natural ou jurídica; original ou cópia autenticada da procuração, se for o caso (o proprietário ou proprietários e seus respectivos cônjuges podem ser representados através de Procuração); d) recibo de entrega de declaração para cadastro de imóveis rurais, acompanhado da documentação nele relacionada, para fins de atualização da área remanescente, em caso de descaracterização parcial (artigo 23 da IN 82/2015 do INCRA). Após a apresentação da documentação, a Superintendência Regional faz a devida análise dos documentos. Estando tudo em ordem e regular, efetua o cancelamento do cadastro, caso a transformação envolva todo o imóvel ou faz a devida atualização cadastral da área remanescente, por meio da declaração eletrônica previamente enviada, comunicando a operação ao interessado, com cópia do CCIR mais recente, à serventia de registros de imóveis e ao Município. Uma vez recebida a informação através de ofício do INCRA de que ocorreu alteração cadastral de área remanescente ou o cancelamento do CCIR, o Registrador de Imóveis deve aguardar o comparecimento do titular do imóvel para que este requeira a transformação do imóvel em urbano junto à matrícula e o consequente cancelamento do CCIR ou alteração dos dados do cadastro. O Município também pode requerer a transformação, na qualidade de interessado juridicamente. Temos o entendimento que não é o caso de averbação de ofício a que alude o § 8° do artigo 22 da lei 4947/66. Segundo esta norma, sempre que ocorrerem mudança de titularidade, parcelamento, desmembramento, Loteamento, remembramento, retificação de área, averbação de reserva legal e outras restrições e limitações de caráter ambiental, o registrador deve comunicar ao INCRA mensalmente e este, por sua vez, após receber a comunicação, também mensalmente, encaminha ao Registrador os novos códigos dos imóveis rurais para serem averbados de ofício. Como exceção ao princípio da rogação, a interpretação desta norma deve ser estrita e, diz respeito aos casos acima destacados que são realizados junto a matrícula para depois sofrerem as alterações cadastrais junto ao INCRA. Assim, não cabe interpretação extensiva para entendermos que a alteração do código rural comunicada pela Autarquia, em decorrência de descaracterização de parte do imóvel rural ou o cancelamento, deva ser averbado de ofício junto a matrícula do imóvel. No caso do requerimento de descaracterização ser dirigido diretamente pelo Município, o procedimento passa a ter um diferente formato. O requerimento junto à Superintendência Regional deve ser feito pelo Prefeito Municipal e pode abranger mais de um imóvel localizado em sua área urbana ou de expansão urbana, desde que os identifique de maneira adequada, assim como seus titulares. (parágrafo único do artigo 25 da IN 82/2015). Nesse caso, o requerimento deve conter os mesmos requisitos mínimos previstos para o proprietário, a exceção de endereço para correspondência, e seu requerimento deve ser instruído com certidão de inteiro teor (original ou cópia autenticada) da (s) matrícula (s) do imóvel (is), expedida pelo serviço de imóveis no prazo máximo de 30 dias; planta representativa do zoneamento municipal, identificando a localização dos imóveis descaracterizados; e cópia do Termo de Posse, do documento de identificação e CPF do Prefeito Municipal (artigo 26 da IN 82/2015). Conforme já dito neste artigo, podem existir imóveis rurais dentro de áreas urbanas e seus proprietários podem querer que continuem como rurais. Tal continuação só pode se dar se este imóvel estiver destinado a atividade rural (pecuária, extrativa, agrícola ou agroindustrial). Por esta razão, o procedimento aqui é diferente. Após o requerimento do Município, o INCRA notifica os proprietários dos imóveis objeto do requerimento, mediante carta com AR, para que, no prazo de 30 dias, se manifestem (artigo 27 da IN 82/2015). Se o proprietário concordar com a descaracterização ou ficar silente, o INCRA realiza o devido cancelamento do cadastro (artigo 28 da IN 82/2015). Se resolver impugnar dentro do prazo, o proprietário deve provar que seu imóvel continua com sua destinação rural. O ônus da prova é do proprietário. O Município não tem que provar que o imóvel perdeu a sua destinação. (artigo 29 da IN 82/2015). Comprovando que mantém a sua destinação rural, o INCRA não realiza o cancelamento do cadastro e comunica sua decisão ao Prefeito Municipal e aos titulares do imóvel rural (artigo 30 da IN 82/2015). Nos casos em que o INCRA faz cancelamento a requerimento do Município, ele informa seu cancelamento a Serventia de Registros de Imóveis, ao Município e aos titulares dos imóveis. E, aqui, teremos a mesma situação já dita anteriormente. O Registrador ao receber o comunicado, arquiva em sua pasta e aguarda o comparecimento do titular do imóvel ou do representante do Município para requerer a transformação do imóvel em urbano e a averbação do cancelamento do CCIR. Da transformação de imóvel rural em urbano junto à serventia de registros de imóveis  Uma vez que o Município tenha expandido seu território urbano através de lei específica e que tenha ocorrido a descaracterização do imóvel junto ao INCRA, seja cancelando (caso a descaracterização abranja todo o imóvel) ou atualizando o cadastro (nos casos em que apenas parte do imóvel seja descaracterizado), passa-se a fase de transformação do imóvel para urbano junto à Serventia de Registros de Imóveis competente. Estamos propositadamente utilizando nomenclaturas diferentes, tratando de descaracterização no procedimento junto ao INCRA (de acordo com o que a própria Autarquia chama), e transformação quando da fase junto à Serventia de Registros de Imóveis. Isso porque a mudança do imóvel para urbano só se dá quando realizada junto à matrícula do imóvel. O cadastro administrativo é um repositório de informações necessárias para que a Autarquia exerça o seu controle fundiário, não tem o condão de constituir direitos. O seu cancelamento também não tem o condão de desconstituir direitos. Quando se tratar de transformação da área total do imóvel, o proprietário ou a Prefeitura Municipal, na qualidade de interessado juridicamente, deverá apresentar os seguintes documentos à Serventia de Registros de Imóveis competente: a) requerimento, por escrito, com firma reconhecida (alguns Códigos de Normas de alguns Estados permitem que não se exija o reconhecimento quando o requerimento for assinado na presença do Registrador), indicando a matrícula do imóvel; b) Certidão da Prefeitura Municipal indicando: o perímetro urbano em que o imóvel encontra-se localizado; a lei municipal que transformou a área como urbana e a devida descrição do imóvel como urbano, constando as suas características e confrontações, localização, área, logradouro e número, nos termos do artigo 176, § 1º, 3), b) e artigo 225, caput da lei 6015/73 (e, aqui, faz-se uma ressalva: no que tange às confrontações, apesar do citado artigo 225, caput, mencionar que teriam que ser citados os nomes dos confrontantes, a doutrina especializada entende ser mais técnico mencionar os prédios vizinhos); c) Certidão da Prefeitura indicando o cadastro municipal do imóvel, se já tiver. Caso ainda não tenha sido cadastrado, faz-se averbação junto à matrícula posteriormente; d) documento comprobatório do cancelamento do CCIR (Certificado do Cadastro Imobiliário Rural). Apresentadas as documentações, o Registrador irá fazer a devida prenotação do requerimento. Estando toda a documentação em ordem, caberá ao mesmo averbar junto a matrícula, dentro do prazo legal, a transformação do imóvel em urbano, com fundamento no artigo 246, caput da lei 6015/73. Este tipo de averbação também tem previsão no Código de Normas de São Paulo, no ítem 121 da Subseção III, com a seguinte redação: "Serão averbadas a alteração de destinação do imóvel de rural para urbano, bem como a mudança da zona urbana ou de expansão urbana do Município, quando altere a situação do imóvel." Para atender ao princípio da especialidade objetiva, deve-se descrever de forma precisa o imóvel com suas características e confrontações, área do imóvel, localização, logradouro, número e designação cadastral, se já tiver (artigo 176, § 1°, 3), b), combinado com o artigo 225, caput da lei 6015/73). Após, faz-se a devida averbação do cancelamento do CCIR. Quando se tratar de apenas parte do imóvel inserido na área de expansão urbana, além dos documentos já citados acima, deverão ser apresentados planta e memorial descritivo elaborados por Engenheiro, da área remanescente que permanecerá como rural e a ART quitada. Nesses casos, pode acontecer dessa área remanescente ficar abaixo da fração mínima para parcelamento de imóveis rurais. Por força do disposto no artigo 8°, caput da lei 5868 de 1972, nenhum imóvel pode ser desmembrado abaixo da fração mínima para parcelamento. A fração mínima consiste em uma área que seja suficiente para o seu proprietário ou possuidor conseguir, de sua exploração, a subsistência e o progresso social e econômico seu e de sua família. A fração mínima se baseia no que chamam de Zona Típica de Módulo da região em que se situa um Município, baseando-se nos aspectos ecológicos e econômicos à partir das microrregiões geográficas do IBGE. No CCIR de cada imóvel rural consta qual é a fração mínima para parcelamento. No entanto, existem exceções previstas na própria lei. O artigo 8°, § 4º da lei 5868/72, traz a previsão de que nos casos em que ocorra transformação do imóvel rural em urbano, a parte remanescente pode ficar abaixo da fração mínima para parcelamento. Nesses casos, o INCRA também realiza a alteração cadastral junto ao CCIR. Para esses casos em que a transformação é só de parte do imóvel rural, após análise da documentação e, estando tudo de acordo, o Registrador irá praticar os seguintes atos: a) averbar a alteração junto à matrícula do imóvel, nos termos do artigo 246 da lei 6015/73; b) averbar a área rural remanescente com base na planta e memorial descritivos apresentados, elaborada por Agrimensor, com ART quitada; c) averbar o CCIR com as alterações cadastrais, tendo que constar na matrícula, os seguintes dados do cadastro: código do imóvel; nome do detentor; nacionalidade do detentor; denominação do imóvel e localização do imóvel (artigo 22, § 6° da Lei 4947/66.); d) abrir matrícula da área urbana, com sua precisa descrição, características e confrontações, área do imóvel, localização, logradouro, número e designação cadastral, se já tiver (artigo 176, § 1°, 3), b), combinado com o artigo 225, caput da lei 6015/73), e averbar na matrícula de origem a remição de que a parte urbana passou a pertencer a outra matrícula e o seu número. Considerações finais   Para a compreensão do presente artigo, foi necessário introduzirmos falando, mesmo que de forma apertada, sobre aspectos ligados ao crescimento urbano desordenado, pós Revolução Industrial. e as normas atuais, constitucionais e legais à respeito de política urbana. Em seguida, tratamos da fase administrativa de descaracterização para fins urbanos junto ao INCRA, para depois tratarmos da transformação junto à matrícula do imóvel. Impende destacar aqui, ainda, que o entendimento de que o Município, representado pelo seu Prefeito Municipal, pode requerer a averbação da transformação de imóveis rurais em urbanos se dá, tendo em vista ter interesse jurídico direto. Realizando-se a transformação e o devido cadastro municipal, poderá passar a cobrar o Imposto Predial Territorial Urbano desses imóveis. Com relação à legitimação para requerer atos de averbação junto às matrículas dos imóveis, reza da seguinte forma o artigo 568 do Código de Normas do Estado do Rio de Janeiro: Artigo 568 NCGJRJ- "Terá legitimidade para requerer a averbação qualquer pessoa  (incumbindo-lhe as despesas respectivas) que tenha algum interesse jurídico no lançamento das mutações subjetivas e objetivas dos registros imobiliários." Outra questão importante a se destacar é que o proprietário do imóvel transformado em urbano é obrigado, por lei, a manter a reserva legal do seu imóvel, até que seja objeto de parcelamento para fins urbanos. Esta regra está prevista no artigo 19 da lei 12651/2012 (Novo Código Florestal). Esta regra merece, no entanto, uma interpretação sistemática e teleológica com o disposto no artigo 25 e seus incisos também do Código Florestal, para entender-se que, com o surgimento de um empreendimento urbano nesse imóvel, a área de reserva legal não será extinta, mas, sim, passará a compor a área verde urbana daquele Município. Referências bibliográficas BORGES. Antonino Moura. CURSO COMPLETO DE DIREITO AGRÁRIO. Mato Grosso do Sul. Editora Contemplar, 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CARVALHO, Afrânio de. REGISTRO DE IMÓVEIS. Rio de Janeiro. Forense, 1976. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. MARQUES, Benedito Ferreira. MARQUES, Carla Regina Silva. DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO. Atlas, 2017. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. UGÊDA JÚNIOR. José Carlos. URBANIZAÇÃO BRASILEIRA, PLANEJAMENTO URBANO E PLANEJAMENTO DA PAISAGEM. Disponível aqui.
Introdução Este modesto artigo não tem o objetivo de esvaziar todos os percalços que o tema exige, mas tão somente levantar algumas reflexões sobre a aceitação das procurações feitas no estrangeiro para utilização nos atos notariais no Brasil. Com a globalização, há uma enorme quantidade de documentos trafegando entre os países. Essa circulação extraterritorial envolve diferentes sistemas legais, alguns culturalmente mais próximos outros mais remotos. Nosso sistema notarial, do tipo latino, envolve um tipo documental que é elaborado sob um enfoque legal e de forma totalmente distinto de países com estrutura jurídica distante, como é o caso do sistema Common Law. Diante desse emaranhado de procedimentos e sistemas legais, o notário - com a sua percepção e técnica - emprega a profilaxia legal ao documento estrangeiro, buscando a segurança nos atos que elabora. Para uma profilaxia eficaz, algumas questões devem ser levantadas, tais como: validade, eficácia, autenticidade, forma (regularidade extrínseca) etc. do documento produzido no estrangeiro para efeitos e uso nos atos notariais no Brasil. Outro aspecto importante, o notário, ao receber qualquer documento estrangeiro, deve proceder a verificação da existência de convenção, tratado ou acordo multi ou bilateral existente com o país que regule a questão. Nesta seara, o Brasil tem acordo com Argentina, Paraguai, Uruguai (decreto 2.067/1996), Bolívia, Chile (decreto 6.891/2009), Espanha (decreto 166/1991), França (decreto 3.598/2000) e Itália (decreto 1.476/1995) para a desoneração de trâmites em documentos produzidos em um país para ser válido e eficaz no outro1. Há outros de caráter mais abrangente, como a Convenção Interamericana aprovada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, que trata do Regime Legal das Procurações para utilização no exterior2 e a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros3. O notário, no seu fazer notarial, deve verificar a procedência do documento e analisar a existência de algum sistema legal que permita ser aplicado ao caso concreto, não havendo, aplicar-se os requisitos legais internos (arts. 108, 215 e 657, CC) com o abrandamento dos requisitos extrínsecos (§ 1º, do art. 9º, da LINDB). Identificação das partes no ato notarial A identificação das partes4 faz parte do trabalho do notário e é seu dever legal (art. 215, § 1º, II, CC), bem como reconhecer a capacidade civil (e a sã consciência) das pessoas envolvidas no ato notarial5. Identificar é estabelecer a identidade (ou individualidade) de um fato, uma pessoa ou uma coisa, diferenciando-as dos demais para que não se confundam com os da mesma espécie ou seus semelhantes. Em matéria notarial, é o início, é a mola propulsora para realização de qualquer ato, exceto autenticação de cópias, cartas de sentença ou apostilamentos. A identificação se relaciona com o princípio da imediação notarial. Princípio pelo qual há o contato direto do notário com as partes. A atividade notarial sempre ocorreu com imediação. A captação da vontade das partes; a elaboração, a crítica e a reedição contínua da minuta para leitura, assim como a presença pessoal das partes perante o tabelião, exemplificam a ocorrência da imediação6. Entre nós, o modo seguro de identificar a pessoa natural é o documento de identificação original, sem qualquer indício de adulteração ou sinal indicativo de fraude7. Caso a fotografia gere dúvidas sobre a identidade do portador do documento, o tabelião de notas poderá solicitar outro documento que satisfaça a identificação e gere segurança ao ato8, do contrário, ato será negado. Abaixo alguns documentos que constituem identidade: Brasil - Carteira de Identidade9 emitida pelas Unidades da Federação. - Identificação Civil Nacional (ICN)10 - Carteira de Identidade emitida pelos órgãos fiscalizadores de exercício profissional instituídas por lei11 (OAB, CRM, CRO, CRC etc.) - Carteira Nacional de Habilitação - CNH12, válida e vigente13 - Registro Nacional Migratório - RNM14, válido e vigente15 - Passaporte Nacional16, válido e vigente - Passaporte Estrangeiro17, válido, vigente e com visto não expirado - Salvo-conduto e Laissez-passer, desde que, conjuntamente, seja apresentado, pelo estrangeiro, documento pessoal que permita a sua segura identificação18 - Autorização de retorno, carteira de identidade de marítimo, carteira de matrícula consular; certificado de membro de tripulação de transporte aéreo19 - Documento de identidade civil ou documento estrangeiro equivalente, quando admitidos em tratado20 - Carteira de Identidade das Forças Armadas (Aeronáutica, Exército ou Marinha) e a Carteira de Oficiais e dos Policiais Militares do Estado de São Paulo21 - Cédula de identidade Portuguesa22 - E se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, poderão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.23 Argentina24 - Cédula de Identidade expedida pela Polícia Federal, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Documento Nacional de Identidade, válida e vigente - Libreta de Enrolamiento, válida e vigente - Libreta Cívica, válida e vigente Paraguai25 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Uruguai26 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Bolívia27 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Chile28 - Cédula de Identidade, válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Colômbia29 - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Cédula de Identidade, válida e vigente - Cédula de Extranjeria, válida e vigente Equador30 - Cédula de Ciudadanía, válida e vigente - Cédula de Identidade (para estrangeiros), válida e vigente - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado Peru31 - Passaporte, válido e vigente; com visto de permanência não expirado - Documento Nacional de Identidade, válida e vigente - Carné de Extranjería, válida e vigente Sugere-se a máxima cautela na aceitação de documentos dos países do Mercosul, buscando conhecer os itens de segurança que permeiam cada documento no país de origem. As carteiras funcionais não constituem documentos de identidade, tendo por finalidade tão somente identificar seus titulares no exercício de suas funções (são exemplos, assessor parlamentar, fiscal de tributos, operador de tráfego, polícia civil etc.). De igual forma, a carteira de identidade expedida pelo antigo DOPS (tipo livrete) é inválida e não pode ser aceita, por não conter os requisitos de validade fixados na lei 7.116/83. Nos casos em que o nome divergir entre o documento de identidade apresentado e o nome escrito na ficha-padrão, ou ainda, entre o estado civil lançado na ficha e o documento de identidade apresentado, a parte deverá apresentar outro documento atualizado ou a certidão de casamento (não precisa ser atualizada, exceto se houver indícios que a macule). A pessoa jurídica é identificada por meio do contrato social32, sua consolidação ou eventuais alterações (arts. 45, 985 e 1.150, CC), devidamente registrado nos órgão competente, e de igual forma, não deve conter indícios de adulteração ou sinais indicativos de fraude. É necessário apresentar da inscrição no CNPJ/MF (Dec. 3000/99, art. 146). É recomendável a conferência do contrato social apresentado junto à respectiva Junta Comercial do Estado, para as sociedades empresárias e empresários33 ou solicitar certidão expedida pelo Registro Civil das Pessoas Jurídicas, para as sociedades simples, associações e fundações)34. Representação e presentação nos atos notariais Cabe aqui distinguir representação de presentação. Na primeira, há sempre dois sujeitos, um representante que age em nome do representado. Na presentação, o sujeito age em nome da empresa, manifestando a vontade da pessoa jurídica ou órgão, vez que essas não podem, de outra maneira, expressar a sua vontade. Quando uma pessoa não pode comparecer pessoalmente ao ato notarial, ela elege um representante que agirá em seu nome por meio de procuração com poderes suficientes. Pela dicção do art. 653, do Código Civil, opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses, sendo a procuração, o instrumento do mandato. E, para negócios jurídicos com valor superior a 30 salários mínimos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis a escritura pública é da substância do ato35. Ou seja, é requisito essencial da própria existência do ato sem o qual implica a nulidade36 do negócio entabulado pelas partes. Com isso, a lei prove segurança as pessoas e ao trafego imobiliário. A forma pública é indispensável para a validez do negócio jurídico e a utilização de procuração nesses casos - pelo princípio da atração da forma37 - também deve atender a forma pública, inclusive seu substabelecimento. É de se consignar que, o art. 655 do Código Civil não se aplica aos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. A regra esculpida no citado artigo é para atos jurídicos em geral, não afastando a incidência do art. 108. Ad solemnitatem x Locus regit actum Em países nos quais há consulados brasileiros ou notariado do tipo latino é possível levantar a forma pública para as procurações a serem empregadas nos atos notariais no Brasil -, em atendimento ao princípio da atração da forma. No entanto, suponhamos que a procuração tenha sido feita nos Estados Unidos em um estado onde não há consulado brasileiro. Essa procuração poderia ser aceita no Brasil para utilização numa escritura de venda e compra? A resposta é um desafio. Pelo art. 657, CC, a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. E se este ato é a escritura pública, se faz necessário que a procuração seja pública, inclusive o substabelecimento, pois a forma pública - no Brasil - é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. A Convenção Interamericana sobre o Regime Legal das Procurações para serem utilizadas no exterior38 adotada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, nos arts. 2º e 3º, informa que: "Art. 2º As formalidades e solenidades relativas à outorga de procurações que devam ser utilizadas no exterior ficarão sujeitas às leis do Estado onde forem outorgadas, a menos que o outorgante prefira sujeitar-se à lei do Estado onde devam ser exercidas. Em qualquer caso, se a lei deste último exigir solenidades essenciais para a validade da procuração, prevalecerá esta lei.". (grifo nosso) "Art. 3º Quando, no Estado em que for outorgada a procuração for desconhecida a solenidade especial que se requer consoante a lei do Estado em que deva ser exercida, bastará que se cumpra o disposto no artigo 7º desta Convenção." A Convenção, em seu art. 6º, informa que em todas as procurações, o funcionário que as legalizar deverá certificar ou dar fé do seguinte, se tiver atribuições para isso: a) a identidade do outorgante e a declaração do mesmo sobre sua nacionalidade, idade, domicílio e estado civil; b) o direito que tiver o outorgante para dar procuração em nome de outra pessoa física ou natural; c) a existência legal da pessoa moral ou jurídica em cujo nome for outorgada a procuração; d) a representação da pessoa moral ou jurídica, assim como o direito que tiver o outorgante para dar a procuração. Extraímos, ainda que, quando o Estado no qual o poder é concedido desconhecer a solenidade especial exigido pela lei local, é suficiente cumprir o disposto no artigo 7º da citada Convenção, ou seja, quando o local de emissão da outorga não conhecer os requisitos formais da lei do local da prestação, é suficiente para atender requisitos do artigo 7 º, vejamos: "Se no Estado da outorga não existir funcionário autorizado para certificar ou dar fé sobre os pontos indicados no artigo 6º, deverão ser observadas as seguintes formalidades: a) constará da procuração uma declaração jurada ou uma afirmação do outorgante de que diz a verdade sobre o disposto na alínea "a" do artigo 639; b) juntar-se-ão à procuração cópias autenticadas ou outras provas no que diz respeito aos pontos indicados nas alíneas "b", "c" e "d" do mesmo artigo40; c) deverá ser reconhecida a firma do outorgante; d) serão observados os demais requisitos estabelecidos pela lei da outorga." Contudo, o art. 5° estabelece que os efeitos e o exercício da procuração ficam sujeitos à lei do Estado onde for exercida, em consonância com a parte final do art. 2º. Indaga-se: o princípio da atração da forma estaria mitigado por tal Convenção? A resposta também é um desafio. Os países têm consagrado o princípio que vem das origens do direito internacional privado e se expressa na máxima locus regit actum, ou seja, o lugar determina o ato. Isso significa que o local de concessão do ato é que regula os aspectos extrínsecos. No Brasil, como vimos, exige-se a forma pública como elemento essencial a validade dos negócios jurídicos de valor superior a 30 salários mínimos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. Para Eduardo Gallino, notário argentino, quando o lugar de execução e constituição de um direito real sobre um bem de raiz exige a forma ad solemnitatem (formalidade que a lei exige para a validade de um ato ou negócio jurídico), o princípio lex rei site (lugar onde se encontra a coisa) prevalece sobre o princípio locus regit actum (o local de concessão do ato é que regula os aspectos extrínsecos). E complementa: Não importa o que diga a lei do lugar de celebração ou outorgamento do ato, que suponhamos admita o instrumento privado para transferir direitos reais sobre bens de raízes em seu país, mas quando se pretende fazer valer esse mesmo instrumento do ponto de vista formal, exige-se uma qualidade documentária superior - a forma pública. Isso significa que, a forma é ad solemnitatem prevalece sobre o princípio locus regit actum. Ressaltamos que o § 1º, do art. 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro admite as condições da lei estrangeira sobre a forma para as obrigações a serem executadas no Brasil, conforme se verifica do texto legal: "Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato". Assim, se o local de realização da procuração não conter a previsão legal da forma ad solemnitatem, e prevendo a lei local outra forma, recobre de plena validade o princípio locus regit actum. Podemos citar o cônjuge norte-americano que necessita prestar anuência nos casos de alienação de bem imóvel no Brasil, ou seja, a lei local não prevê forma ad solemnitatem, mas a LINDB e a Convenção Interamericana sobre o Regime Legal das Procurações para serem utilizadas no Exterior põem a salvo a procuração realizada pelo Notarý Public (art. 6º da Convenção c/c a parte final do art. 9º da LINDB). Uma procuração privada feita por brasileiro no exterior não pode ser aceita para os atos notariais no Brasil, exceto se não houver consulado ou notariado tipo latino, já que a lei local pode admitir outra forma. Concluímos que: a) nos países que possuir consulado brasileiro: brasileiros = procuração pública. b) nos países que possuir notariado: estrangeiros e brasileiros = procuração pública. c) nos países que não possuir consulado brasileiro nem notariado: brasileiros e estrangeiros = procuração na forma que dispuser a lei local. A título de exemplo, a procuração feita por americano, com a intervenção de um Notary Public41 (nos Estados Unidos da América) atende os preceitos da Convenção, art. 6º, bem como a parte final do § 1º, art. 9º, da LINDB e supre a exigência legal brasileira da forma pública (aspecto extrínseco), diante da intervenção do Notary Public na certificação da identidade e capacidade do mandante, leitura e assinatura feitas em sua presença, já que a lei local assim prevê. Poderes gerais x expressos e especiais Inúmeras são as procurações apresentadas nos tabelionatos de notas do Brasil para a celebração de negócios jurídicos que, por descuido, não apresentam os poderes especiais e expressos exigidos pelo art. 661, § 1º, CC. Mas o que é poderes especiais e expressos? A doutrina vem desmistificando tais requisitos de espectro tão genéricos: Cláudio Luiz Bueno de Godoy leciona que, poderes expressos identificam, de forma explícita (não implícita ou tácita), exatamente qual o poder conferido (por exemplo, o poder de vender). Já os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel).42 Pontes de Miranda diz que, mandato expresso e mandato com poderes especiais são conceitos diferentes. É expresso o mandato em que se diz: 'com poderes para alienar, hipotecar, prestar fiança'. Porém não é especial. Por conseguinte, não satisfaz as duas exigências do art. 1.295, § 1º, do Código Civil (atual 661, § 1°) que fala de 'poderes especiais e expressos'. Cf. o Código Comercial, art. 134, 'in fine', poderes expressos são os poderes que foram manifestados com explicitude. Poderes especiais são os poderes outorgados para a prática de algum ato determinado ou de alguns atos determinados. Não pode hipotecar o imóvel 'a' o mandatário que tem procuração para hipotecar, sem se dizer qual o imóvel: recebeu poder expresso, mas poder geral, e não especial.43 Carvalho Santos esclarece que, o Código exige não só poderes expressos, mas também especiais, o que vale dizer: para que o mandatário possa alienar bens do mandante faz-se mister que expressamente a procuração lhe confira poderes para tanto, com referência a determinado ou determinados bens especializados, ou concretamente mencionados na mesma procuração.44 Silvio Rodrigues, numa interpretação mais consentânea à realidade e dinâmica dos negócios imobiliários ensina que, se o outorgante confere ao procurador poderes para vender ou hipotecar bens imóveis sem dizer quais os bens que o representante pode alienar ou hipotecar, assume o risco de que este venda ou hipoteque os que entender. O que é perfeitamente justificável, tendo em vista que o mandato é um negócio com base na confiança que o constituinte deposita no representante. Querer interpretar de maneira excessivamente estrita as cláusulas do mandato constitui uma tentativa descabida e injusta de tutelar o interesse de pessoa capaz, que não encontra fundamento nem na lei nem no interesse social.45 (Grifo nosso) Neste sentido, Clóvis Bevilaqua ressalta que, o mandato geral, ainda que declare que o mandante terá todos os poderes, libera administratio, somente confere os da administração ordinária. O mandato para conferir direitos, que excedam da administração ordinária, deve ser especial, isto é, devem os poderes referir-se, expressa e determinadamente, ao negócio jurídico. "O mandato relativo a todos os negócios do mandante, omnium rerum não se restringirá aos atos de simples administração, desde que expressamente conferir poderes para os diferentes atos que os exigem especiais".46 (Grifo nosso) Carvalho Santos, citado por Arnaldo Marmitt, rechaça as dúvidas e assevera a necessidade dos poderes expressos e especiais para poder o mandatário alienar bens de propriedade do mandante resulta, também, a necessidade de constarem na procuração os bens a serem vendidos, devidamente individualizados, a não ser que os poderes abranjam todos os bens do mandante.47 (Grifo nosso) O Superior Tribunal de Justiça vem deliberando nesta mesma linha de pensamento, sobre a necessidade de poderes expressos e especiais: REsp. 79.660-RS, j. 25/11/1996, rel. nin. Waldemar Zveiter; REsp. 262.777-SP, j. 5.2.2009, rel. min. Luís Felipe Salomão; REsp. 31.392-SP, j. 25/08/1997, rel. nin. Waldemar Zveiter; RE 84.501-RJ e RE 90.779-3-RJ, é de ressaltar, neste último, o seguinte trecho: "Não nega vigência ao art. 1.295, § único, do Código Civil, o acórdão que anula doação feita com procuração que não especifica o bem a ser doado, nem o donatário, quando o mandatário, às vésperas do desquite, usando procuração genérica com poderes para alienar os bens do casal, doa parte do imóvel da esposa ao filho do casal, à revelia da mandante, com quem era casado pelo regime da separação absoluta de bens". O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, sinaliza nesta mesma direção: "Apelação Cível 524-6/3 - Serra Negra - j. 03/08/2006, Apelação Cível 982-6/2 - Capital - j. 17/03/2009 e Apelação Cível 990.10.473.290-5 - Capital - j. 07.07.2011. Apelação Cível 0024552-06.2012.8.26.0100 - Capital - j. 02/04/2013, rel. des. José Renato Nalini, prestigiando os precedentes administrativos a respeito, anotou o seguinte extrato do voto do Exmo. Des. Gilberto Passos de Freitas, Corregedor Geral da Justiça à época, na Apelação Cível n. 524-6/3, j. 03/08/2006" Assim, podemos concluir que: a) Os poderes especiais e expressos (citados no § 1º do artigo 661 do Código Civil) são requisitos distintos. Os expressos são aqueles mencionados no mandato, sem margem a táciticidade (por exemplo: vender, hipotecar, dar em pagamento, etc.). Os especiais correspondem ao objeto, é a especificação (e está intimamente ligado aos poderes expressos), por exemplo: vender o imóvel Y, doar o imóvel X em favor do donatário W etc.; b) A procuração que conste poderes expressos para vender ou hipotecar, sem identificar o objeto do negócio jurídico a ser realizado, vale dizer, sem poderes especiais, não deve ser aceita, sob pena de nulidade; c) A procuração que conste poderes gerais expressos para alienar, de modo a abranger todos os bens imóveis do mandante, é desnecessária a especialização (descrição) de cada um dos bens, pois o mandante, ciente dos poderes expressamente outorgados, consentiu em todos e quaisquer bens. Apostilamento, legalização (ou consularização) e tradução Desde 14 de agosto de 2016 os documentos vindos do exterior devem estar apostilados e registrados em RTD48 para terem validade no Brasil. Apostilar é um ato de concessão de uma apostila ao abrigo da Convenção da Apostila. O documento para o qual uma Apostila tenha sido emitida nos termos da Convenção é referido como tendo sido "apostilado". A emissão de uma Apostila substitui o processo de legalização. Mais informações, aqui. A Legalização (ou consularização) ainda persiste para os países que não integram a Convenção da Apostila, necessitando o documento, neste caso, ser consularizado no consulado Brasileiro no país de origem e registrado em RTD49. Veja quais são os países signatários. Traduzir é converter o texto em uma língua estrangeira para a língua nativa. E quando é da língua nativa para a língua estrangeira, é chamada de versão. Há acordos, dos quais o Brasil é signatário, que dispensa a tradução para a aceitação do documento estrangeiro em solo brasileiro, porém, a teoria não se aplica a prática. Para nós, a tradução é elemento de inteligibilidade que possibilita ao destinatário a exata e fiel compreensão do documento. Por mais que possamos empregar esforços intelectuais para traduzir e compreender o conteúdo de um documento estrangeiro, tal esforço pode ser uma zona perigosa, podendo afetar questões técnicas e legais. O professor Marco Antonio Greco Bortz em seu r. artigo sintetiza50: "A exigência da tradução acompanhando o documento decorre de sua própria conceituação, como representação cognoscível ao destinatário ." A tradução pública, também conhecida como tradução juramentada, é realizada por pessoa habilitada (em concurso público) e cadastrada na Junta Comercial das respectivas Unidades da Federação - nominado tradutor público. O documento em idioma estrangeiro, para ter validade no país, deve ser acompanhado de sua tradução juramentada (art. 224, do Código Civil51, art. 18, parágrafo único52, do decreto Federal 13.609/1943 e Item 4.3.2, do Manual do Serviço Consular e Jurídico). Não é demais lembrar que, nos locais onde não há tradutores públicos e o tabelião entender o idioma, prescinde-se de tradução, aplicando por analogia o § 4º, do art. 215, CC, devendo tal circunstância ser indicada no ato notarial. É de rigor ressalvar, a dispensabilidade de tradução de documentos provenientes de países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Inclusive este tema foi objeto do Pedido de Providências nº 0002118-17.2016.2.00.0000, no CNJ, onde recomendou-se a não exigência de tradução de documentos estrangeiros redigidos em língua portuguesa, conforme os arts. 224 do Código Civil brasileiro e 162 do Código de Processo Civil, bem como da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Procedimento de consulta de procurações lavradas nos Consulados brasileiros Em consulta escrita aos 188 (cento e oitenta e oito) consulados brasileiros espalhados pelo mundo, para a nossa grata surpresa, obtivemos respostas positivas sobre a possibilidade de confirmação da situação do ato notarial consular de procuração, tais como revogação, substabelecimento ou renúncia. Segundo as informações obtidas, os pedidos de confirmação podem ser enviados por e-mail com o nome das partes (mandante e procurador), a data de lavratura e os números de livro e folhas. A rede consular brasileira pode ser consultada via internet, acesse. Apesar da obrigatoriedade legal, temos recebido inúmeras informações de que os consulados do Brasil no exterior não expedem certidões dos atos consulares lavrados, a não ser para as próprias partes do ato, o que tem ocasionado grandes entraves. A norma consular é expressa e não condiciona a emissão a terceiros: 4.1.1 A Autoridade Consular expedirá unicamente documentos que forem de sua competência, previstos no MSCJ, e deverá expedir certidão dos termos que lavrar, quando requeridos pelos interessados ou por terceiros.53 (Grifo nosso). Alternativa é alterar as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo conforme sugestão abaixo: 15. O Tabelião de Notas manterá arquivos para os seguintes documentos necessários à lavratura dos atos notariais, em papel, microfilme ou documento eletrônico: e.1) traslados de procurações e substabelecimentos outorgados em consulados e notários estrangeiros, cujo prazo não poderá ser superior a 180 dias, exceto se for precedida de confirmação de procedência e eficácia do ato, por intermédio de meio idôneo, cujo comprovante de remessa e recepção também deverá ser arquivado, e constar do ato a realização do procedimento. Quadro Sinótico de Procurações públicas oriundas do estrangeiro para efeitos no Brasil Para visualizar o quadro, clique aqui. *Felipe Leonardo Rodrigues é tabelião substituto do 26º Tabelionato de Notas de São Paulo. Especialista em Direito Notarial e Registral. Colunista do Blog Notarial, do Colégio Notarial do Brasil. Coautor dos livros Tabelionato de Notas (Ed. Foco) e Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova (Ed. Juspodvm). Tem diversos artigos publicados sobre a atividade notarial. __________ 1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger, RODRIGUES, Felipe Leonardo Rodrigues. Coleção Cartórios - Tabelionato de Notas. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 69.  2 Decreto 1.213/1994.  3 Disponível aqui.  4 Os vocábulos parte ou partes designam os particulares que buscam os serviços notariais.  5 Numa interpretação sistêmica, arts. 83, 84, §§ 1º e 2º, 85, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência c/c os arts. 3º, 4º, 215 e art. 1.767, I, do Código Civil, os notários deverão reconhecer capacidade plena às pessoas com deficiência (física ou psíquica) quando elas puderem exprimir sua vontade sobre o ato notarial solicitado.  6 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger e RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial Doutrina, Prática e Meio de Prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 49.  7 Até porque, em nosso Estado, é vedada a abertura de ficha-padrão com documentos de identidade que contenham aspecto que não gere segurança, como p. ex.: documentos replastificados, foto em desacordo com a aparência real/atual da parte, documentos abertos, de modo que a foto se encontra de forma irregular etc.  8 Art. 1º, lei federal 8.935/1994.  9 Lei 7.116/1983 e seu decreto regulamentador 89.250/1983.  10 Lei 13.444/2017 (em fase de implementação).  11 Lei 6.206/1975.  12 Lei 9.503/1997.  13 Para nós, a expiração da validade de permissão para dirigir não invalida o documento de identidade.  14 Lei 13.445/2017 (Institui a Lei de Migração), antigo RNE.  15 Os estrangeiros que tenham completado sessenta anos de idade, até a data do vencimento do documento de identidade, ou deficientes físicos, ficam dispensados da renovação (lei9.505/1997). Lei 13.445/2017, art. 19, § 3º Enquanto não for expedida identificação civil, o documento comprobatório de que o imigrante a solicitou à autoridade competente garantirá ao titular o acesso aos direitos disciplinados nesta lei. Art.  21. Os documentos de identidade emitidos até a data de publicação desta Lei continuarão válidos até sua total substituição.  16 Decreto 1.983/1996.  17 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso I.  18 Processo CGJ|SP nº 2008/84896. Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso II e IV.  19 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso III, V, VI e VIII.  20 Lei 13.445/2017, art. 5º, inciso VII.  21 Decreto do Estado de São Paulo 14.298/1979.  22 Lei 7.116/83, decretos  89.250/83 e 70.391/972 e decreto 70.436/1972.  23 Art. 215, § 5º, CC. Nos dias atuais, tal forma de identificação deve ser utilizada em casos especialíssimos, a exclusivo e razoável critério do tabelião.  24 Decreto Federal 3.435/2000 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  25 Decreto federal 49.100/1960 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  26 Acordo de "Modus Vivendi" sobre Trânsito de Turistas Troca de notas em Montevidéu, em 2 de abril de 1982 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  27 Decreto federal 5.541/2005 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  28 Decreto federal 31.536/1952 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  29 Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  30 Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  31 Decreto federal 5.537/2005 e Acordo MERCOSUL/RMI 01/08.  32 A não adaptação (art. 2031, Código Civil) não obsta a realização de atos negociais no Tabelionato. Não há sanção nesse sentido, porém o tabelião deve aconselhar as partes a proceder ao previsto no Código Civil. (Enunciado 394 do STJ, 4º Jornada de Direito Civil: Ainda que não promovida a adequação do contrato social no prazo previsto no art. 2.031 do Código Civil, as sociedades não perdem a personalidade jurídica adquirida antes de seu advento).  33 No Estado de São Paulo é possível consultar as informações aqui.  34 A consulta no Estado de São Paulo é compulsória, por força das Normas da Corregedoria.  35 Art. 108, CC: Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.  36 Art. 166, IV, CC: É nulo o negócio jurídico quando: não revestir a forma prescrita em lei.  37 Art. 657, CC: A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito.  38 Decreto1.213/1994, convenção aprovada pelo decreto Legislativo 4, de 7 de fevereiro de 1994; 39 Art. 6º, "a" a identidade do outorgante e a declaração do mesmo sobre sua nacionalidade, idade, domicílio e estado civil.  40 Art. 6º, "b" o direito que tiver o outorgante para dar procuração em nome de outra pessoa física ou natural; "c" a existência legal da pessoa moral ou jurídica em cujo nome for outorgada a procuração; "d" a representação da pessoa moral ou jurídica assim como o direito que tiver o outorgante para dar a procuração.  41 Para o ilustre tabelião de protesto João Figueiredo Ferreira Notary Public é uma pessoa de reputação ilibada, sem requisito de instrução especializada, que recebe do governo do Estado onde reside uma autorização provisória ou permanente para tomar juramentos orais (oaths), redigir documentos (affidavits), certificar, tomar e declarar testemunhos, além de certificar documentos que lhe sejam apresentados, atividades que estão garantidas até o limite da fiança prestada. in O Notariado no Mundo O Modelo Latino e o Modelo Anglo-Saxão. Acesso 10/07/2011.  42 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado - Coordenador Cezar Peluso, 2ª ed. rev. e atual., Barueri, Manole, 2008, p. 616.  43 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1972, 3ª edição, reimpressão, Tomo XLIII, p. 35.  44 CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Direito das Obrigações. Vol. XVIII, 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 165.  45 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, atualizada de acordo com o novo Código Civil, volume 3, p. 291.  46 BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil comentado. Vol. V, 2º Tomo - Obrigações, São Paulo: Francisco Alves, 1926, p. 41.  47 MARMITT, Arnaldo. Mandato. Aide Editora, 1ª edição, 1992, p. 182-183.  48 Documentos oriundos do exterior para efeitos no Brasil é necessário o registro no RTD, arts. 129, item 6º e 148, da lei 6.015/73.  49 Documentos oriundos do exterior para efeitos no Brasil é necessário o registro no RTD, arts. 129, item 6º e 148, da lei 6.015/73.  50 Em artigo escrito para o Jornal do Notário, do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo.  51 Art. 224. Os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no país.  52 Art. 18. Nenhum livro, documento ou papel de qualquer natureza que fôr exarado em idioma estrangeiro, produzirá efeito em repartições da União dos Estados e dos municípios, em qualquer instância, Juízo ou Tribunal ou entidades mantidas, fiscalizadas ou orientadas pelos poderes públicos, sem ser acompanhado da respectiva tradução feita na conformidade dêste regulamento. Parágrafo único. Estas disposições compreendem também os serventuários de notas e os cartórios de registro de títulos e documentos que não poderão registrar, passar certidões ou públicas-formas de documento no todo ou em parte redigido em língua estrangeira.  53 Manual do Serviço Consular e Jurídico, Capítulo 4º, Atos Notariais e de Registro Civil, Seção 1ª, Normas Gerais.  Bibliografia  CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Direito das Obrigações. Vol. XVIII, 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993.  BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil comentado. Vol. V, 2º Tomo - Obrigações, São Paulo: Francisco Alves, 1926.  FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger e RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial Doutrina, Prática e Meio de Prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010.  FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger, RODRIGUES, Felipe Leonardo Rodrigues. Coleção Cartórios - Tabelionato de Notas. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.  GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado - Coordenador Cezar Peluso, 2ª ed. rev. e atual., Barueri, Manole, 2008.  MARMITT, Arnaldo. Mandato. Aide Editora, 1ª edição, 1992.  MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1972, 3ª edição, reimpressão, Tomo XLIII.  RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, atualizada de acordo com o novo Código Civil, volume 3.
Introdução  Este artigo trata do cabimento e da operacionalização dos atos de autenticação de cópia praticados por tabeliães de notas envolvendo documentos digitais. Um indivíduo pode querer digitalizar um documento e garantir que o arquivo digital tenha a mesma força do original (desmaterialização). Ou ele pode querer que um arquivo digital possa ser impresso e que essa versão impressa tenha a mesma força do original (materialização). Veremos como isso pode ser feito gerando arquivos (físicos ou eletrônicos) dotados com a fé pública de um tabelião de notas.  Cabimento da autenticação de cópia envolvendo documento eletrônico  A autenticação de cópia pode envolver arquivos digitais. De um lado, é viável a prática de ato de autenticação de cópia levando em conta que o original seria um documento digital (materialização). De outro lado, é viável que, pela via da autenticação de cópia, o tabelião digitalize um documento físico e dê fé pública da autenticidade desse documento digital (desmaterialização). O CNJ já autorizou os Cartórios de Notas a tanto. Os incisos I e II do art. 23 do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ expressamente reconhece a competência do tabelião de notas para a materialização e a desmaterialização de documentos eletrônicos. Veja os referidos preceitos:  Art. 23. Compete, exclusivamente, ao tabelião de notas: I- a materialização, a desmaterialização, a autenticação e a verificação da autoria de documento eletrônico; II - autenticar a cópia em papel de documento original digitalizado e autenticado eletronicamente perante outro notário; III - reconhecer as assinaturas eletrônicas apostas em documentos digitais; e IV - realizar o reconhecimento da firma como autêntica no documento físico, devendo ser confirmadas, por videoconferência, a identidade, a capacidade daquele que assinou e a autoria da assinatura a ser reconhecida. § 1º Tratando-se de documento atinente a veículo automotor, será competente para o reconhecimento de firma, de forma remota, o tabelião de notas do município de emplacamento do veículo ou de domicílio do adquirente indicados no Certificado de Registro de Veículo - CRV ou na Autorização para Transferência de Propriedade de Veículo - ATPV. § 2º O tabelião arquivará o trecho da videoconferência em que constar a ratificação da assinatura pelo signatário com expressa menção ao documento assinado, observados os requisitos previstos no parágrafo único do art. 3º deste provimento. § 3º A identidade das partes será atestada remotamente nos termos do art. 18.  Classificação dos atos de autenticação de cópia  Diante do cabimento do ato de autenticação de cópias para documentos eletrônicos e considerando que isso envolveria um modus operandi diferenciado da tradicional autenticação de cópia, sugerimos a seguinte classificação. A autenticação de cópia (lato sensu) pode ser dividida nas seguintes espécies: a) autenticação de cópia stricto sensu: é a que envolve a conferência de uma cópia física em relação ao original físico. b) autenticação-materialização: é a decorrente da conferência de um original digital com uma cópia física (fruto da impressão do arquivo digital). c) autenticação-desmaterialização: é a fruto da conferência de um original físico com uma cópia digitalizada (oriunda de uma digitalização do documento original). d) autenticação digital: é a que envolve a que decorre da criação de um arquivo digital a partir de um outro idêntico, tudo com o atesto do tabelião acompanhado da respectiva assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. e) carta de sentença notarial: é aquela que envolve a formação de uma carta de sentença e é admitida em vários Estados brasileiros1.  Modo de operacionalização da autenticação-materialização e da autenticação-desmaterialização e os emolumentos  Em termos operacionais, vejamos como se dá a desmaterialização e a materialização por meio do ato de autenticação de cópia. De um lado, a materialização ocorre quando o usuário, para o tabelião, apresenta um documento digital assinado eletronicamente no âmbito da ICP-Brasil. O notário, então, conferirá a autenticidade desse documento eletrônico nos sites do ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação) na parte do "Verificador de Conformidade"2. Em seguida, o tabelião imprimirá o documento (se o usuário já não o tiver impresso) e lançará, na versão física, o seu atesto de autenticação-materialização. É importante que, nesse atesto, o tabelião expressamente consigne que se trata de uma materialização do documento. Um exemplo de atesto que pode ser colocado nesse documento é este:  AUTENTICAÇÃO - MATERIALIZAÇÃO Certifico e dou fé que a presente cópia é a reprodução fiel do original que foi apresentado em arquivo eletrônico assinado com certificado digital no âmbito da ICP-Brasil. Emolumentos: R$ XXXX. Local, data. (assinatura) (nome do tabelião ou preposto)  Esse atesto, que será lançado na versão física, será acompanhado do selo de fiscalização do respectivo Tribunal de Justiça, tudo conforme as regras estaduais que disciplinam a respectiva atividade notarial. O selo de fiscalização é utilizado para controle da quantidade de atos e controle dos emolumentos arrecadados pela serventia. Como se vê, na materialização, não há necessidade de utilização da CENAD. De outro lado, a desmaterialização ocorre em cinco etapas. A primeira é quando o usuário entrega um documento físico original ao tabelião. A segunda etapa é quando o tabelião digitaliza o documento, gerando um arquivo digital. Esse arquivo digital tem de estar em formato "PDF/A" pela maior facilidade em seu manuseio com os programas atualmente disponíveis e pelo atendimento da exigência normativa de o arquivo ser em formatos de documentos de longa duração (art. 3º, IV, do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). A terceira etapa é quando o tabelião editar esse arquivo digital para apor um atesto com indicação do selo de fiscalização do respectivo Tribunal, considerando que as regras locais admitem selos de fiscalização eletrônicos (sem uso de etiquetas físicas)3. Sugerimos que esse atesto assuma a seguinte redação:  AUTENTICAÇÃO - DESMATERIALIZAÇÃO Certifico e dou fé que a presente cópia digital é a reprodução fiel do original que foi apresentado em meio físico. Emolumentos: R$ XXXX. Selo de fiscalização: XXXXX. Local, data. (assinatura eletrônica) (nome do tabelião ou preposto)  No lugar de colocar esse texto integral de atesto, o tabelião pode apor apenas o selo de fiscalização e, se for caso, o valor dos emolumentos. É que, conforme veremos na etapa posterior, o próprio site do CENAD haverá de lançar um atesto completo. A quarta etapa é quando o tabelião acessa o site da CENAD (Central de Autenticação Digital), que "consiste em uma ferramenta para os notários autenticarem os documentos digitais, com base em seus originais, que podem ser em papel ou natos-digitais4. (inciso XVII do art. 2º do Provimento nº 100/2021-CN/CNJ). Ele, então, fará o login com seu certificado digital no âmbito da ICP-Brasil, acessará o espaço destinado à realização de "autenticação", fará o upload do arquivo digital e dará o comando para a concretização do procedimento5. Pronto! O sistema da CENAD gerará um arquivo digital que deverá ser baixado (download) pelo tabelião. Esse arquivo digital que foi gerado é o arquivo final que será entregue ao usuário. Nesse arquivo, constará um atesto de autenticação-desmaterialização com a seguinte redação:  O presente arquivo digital foi conferido com o original6 e assinado digitalmente por XXXXX (nome do tabelião) em (data e hora). CNS: (código e nome da serventia), nos termos da medida provisória n. 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Sua autenticidade deverá ser confirmada no endereço eletrônico. O presente documento digital pode ser convertido em papel por meio de autenticação no Tabelionato de Notas. Provimento nº 100/2020 CNJ - artigo 22.  Esse arquivo digital que foi baixado (download) pelo tabelião será enviado ao usuário pelo canal eletrônico de sua preferência (e-mail, whatsapp etc.). É preciso salientar que esse arquivo digital é único. Se, por exemplo, o usuário deletá-lo, não há como recuperá-lo, pois nem o Cartório de Notas nem a CENAD armazenam o conteúdo do documento. Afinal de contas, o Cartório de Notas ou a CENAD não é órgão de registro público. Para conferir a autenticidade do arquivo digital, o usuário precisa acessar o site da CENAD7 e fazer o upload desse arquivo no campo correspondente. Por fim, cabe realçar como será a cobrança dos emolumentos no caso de materialização ou de desmaterialização. O correto é que cada folha enseje a cobrança relativa a uma autenticação de cópia.  Autenticação-materialização e certidões digitais expedidas por sites de órgãos públicos: uma exceção à regra da exigência de assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil  Expusemos, até agora, a regra geral. A autenticação-materialização depende de o arquivo digital estar singularizado e estabilizado, o que, em regra, ocorre por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Há, porém, exceção a essa regra. Trata-se de hipóteses em que a singularização e a estabilização do arquivo digital podem ser asseguradas por outra via juridicamente adequada. É o caso das certidões eletrônicas expedidas por órgãos e entes públicos. A Justiça Eleitoral, a Receita Federal, a Polícia Federal e outros órgãos públicos emitem eletronicamente certidões aos usuários por meio do seu site na internet. Essas certidões eletrônicas contêm um código de verificação que pode ser utilizado para conferência de autenticidade diretamente no próprio site do órgão público. É o caso, por exemplo, da certidão de quitação eleitoral disponibilizado no site da Tribunal Superior Eleitoral8. Essas certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos já são singularizadas e estabilizadas por força das normas próprias que lhe dão fé pública. Por exemplo, no caso da certidão eletrônica de regularidade fiscal perante o fisco federal, o art. 7º da Portaria Conjunta nº 1.751, de 2 de outubro de 2014, assegura-lhe fé pública. Nessas hipóteses, a autenticação-materialização poderá ser realizada a partir do arquivo digital contendo a certidão eletrônica do pertinente órgão público. Cabe, porém, ao tabelião previamente acessar o site do respectivo órgão para conferir a autenticidade da certidão por meio do código de verificação. Esse procedimento é fundamental, porque garante a singularidade e a estabilidade do documento digital a ser materializado. Por questões pragmáticas, o tabelião pode, se preferir, acessar diretamente o site do órgão público e obter uma nova certidão a ser materializada. Isso pouparia o tabelião de ter de conferir a autenticidade da certidão eletrônica apresentada pelo usuário.  Autenticação digital: operacionalização e o caso da materialização de documento digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil  Como já se viu, tanto a autenticação-materialização quanto a autenticação- desmaterialização envolve a necessidade de singularização e estabilização do arquivo digital por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Haveria insegurança jurídica se fosse diferente, pois, sem essa assinatura eletrônica, inexistiria garantia de singularidade do arquivo eletrônico envolvido. O motivo da obrigatoriedade do uso da certificação digital no âmbito da ICP-Brasil é que o § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 confere-lhe presunção de veracidade9. Daí se indaga: caso o usuário queira materializar um documento digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil, o tabelião poderia promover a autenticação-materialização? Entendemos que não, salvo se o próprio usuário assinar eletronicamente o arquivo com certificado digital da ICP-Brasil ou se ele solicitar ao tabelião uma autenticação digital. A autenticação digital consiste no ato de o tabelião criar, a partir do arquivo digital fornecido pelo usuário (e é irrelevante se esse arquivo já está assinado eletronicamente), um outro arquivo digital contendo o atesto do tabelião acompanhado da respectiva assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil. Esse atesto deverá ser lançado no arquivo digital criado por meio de ferramentas de edição de arquivo digital, e o recomendável é que seja utilizado arquivo em formato "PDF/A" diante da maior facilidade de manuseio na atualidade e do atendimento à exigência normativa de formatos de documentos de longa duração (art. 3º, IV, do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). Como sugestão de redação do atesto, indicamos este:  AUTENTICAÇÃO DIGITAL Certifico e dou fé que a presente cópia digital é a reprodução fiel do original que foi apresentado em meio digital. ATENÇÃO: este ato não atesta a autoria do documento original nem a legalidade ou a veracidade do seu conteúdo, mas apenas a coincidência gráfica com o original apresentado nesta serventia. Emolumentos: R$ XXXX. Selo de fiscalização: XXXXX. Local, data. (assinatura eletrônica) (nome do tabelião ou preposto)  Tal como indicado no modelo de texto acima, o selo de fiscalização do respectivo Tribunal deverá ser lançado nesse próprio atesto (à semelhança do que se faz com a aposição do selo de fiscalização em escrituras públicas eletrônicas na forma do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ), observadas as pertinentes regras locais. Portanto, se um usuário quiser uma autenticação-materialização de um arquivo digital sem assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil, ele, previamente, deverá singularizar e estabilizar esse arquivo. Essa singularização e essa estabilização poderão ser obtidas por meio da assinatura eletrônica no âmbito da ICP-Brasil pelo próprio usuário ou pelo tabelião (este último, mediante a prática de uma autenticação digital).  Diferença entre ata notarial sobre documentos digitais e a autenticação-materialização  Qual é a diferença entre a ata notarial sobre arquivos digitais e a autenticação-materialização? De forma objetiva, a ata notarial envolve um atesto, por parte do tabelião, da origem do arquivo eletrônico10. Se, por exemplo, um usuário pede a lavratura de uma ata notarial para materializar uma conversa tida com terceiros no aplicativo WhatsApp, o tabelião consignará, na ata notarial, tanto o teor da conversa (o que pode ser feito por meio da inserção de um print da imagem do aplicativo) quanto o modo como ele acessou essa conversa. Indicará, portanto, que, na data TAL, acessou o celular TAL11 e visualizou, no aplicativo WhatsApp, a imagem TAL. Como se vê, a ata notarial será mais útil ao usuário que queira comprovar que realmente teve uma determinada conversa com terceiros no WhatsApp. A autenticação-materialização, a seu turno, não envolve essa certificação da origem do arquivo eletrônico. O tabelião limitar-se-á a imprimir o arquivo digital recebido e a atestar a compatibilidade gráfica entre a versão física e a digital. No exemplo da conversa do WhatsApp, o usuário apresentará ao tabelião um arquivo digital assinado eletronicamente no âmbito do ICP-Brasil contendo a imagem de uma conversa que aparenta ser oriunda de um aplicativo de WhatsApp. O tabelião, então, imprimirá esse arquivo digital e lançará o seu atesto de autenticação-materialização. Ao contrário do que se dá no caso da ata notarial, esse atesto não comprovará que realmente a origem da imagem contida no papel é de um aplicativo de WhatsApp. O atesto da autenticação-materialização comprovará apenas que a versão física é reprodução de um arquivo digital apresentado pelo tabelião. Se esse arquivo digital foi obtido a partir de um print de uma conversa de WhatsApp ou se ele foi fruto de alguma "montagem" feita pelo usuário, isso não é objeto de prova na autenticação-materialização. É importante o tabelião orientar o usuário nesses casos a fim de identificar qual dos atos notariais acima é mais compatível para os seus objetivos.  Importância de constar advertência sobre extensão do ato de autenticação  Nos modelos de atesto da autenticação digital, sugerimos a seguinte advertência sobre a extensão jurídica do ato:  ... ATENÇÃO: este ato não atesta a autoria do documento original nem a legalidade ou a veracidade do seu conteúdo, mas apenas a coincidência gráfica com o original apresentado nesta serventia ....  A importância dessa advertência é para que terceiros (que nem sempre conhecem os atos notariais) estejam cientes de que o ato de autenticação-digital não representa um "selo de legalidade ou de veracidade" acerca do conteúdo e da autoria do documento. Há outros atos notariais que podem prestar-se a reforçar a autoria ou a veracidade de conteúdos, como o reconhecimento de firma ou a ata notarial. A rigor, é dever do usuário saber a extensão da autenticação de cópias, pois não se pode presumir ignorância da lei (art. 3º, LINDB). Todavia, em atenção ao papel do tabelião de prevenir litígios, é conveniente a inserção da advertência para livrar o mais leigo ou mais incauto de riscos de erro.  Conclusão  Os tabeliães de notas exercem papel fundamental na Era Digital. A autenticação-materialização e a autenticação-desmaterialização são amostras disso. Cabe à doutrina e aos operadores do Direito seguirem refletindo sobre o papel dos serviços notariais e registrais diante das transformações sociais e tecnológicas. __________ 1 GIGLIOTTI, Andrea; MODANEZE, Jussara. Tabelião de Notas. In: GENTIL, Alberto; et al. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 839. 2 Basta acessar o site do "Verificador de Conformidade" e fazer o upload daquele arquivo digital que teria sido assinado eletronicamente. O site, então, dirá se aquele arquivo realmente foi assinado eletronicamente ou não. 3 É semelhante com as escrituras públicas eletrônicas: o selo de fiscalização é lançado nelas de modo eletrônico. 4 Nato-digital é o documento que já nasce em forma digitalizada, como uma foto de uma câmera, um print de um computador, um arquivo em word etc. 5 Há um e-book disponibilizado pelo Colégio Notarial do Brasil no seguinte site, explicando o uso da plataforma. 6 O "original" aí está se referindo ao documento físico que está sendo objeto de desmaterialização. Para evitar dúvidas interpretativas, o ideal seria que o texto fosse "o presente arquivo digital foi conferido com o original apresentado em meio físico". Convém que seja avaliada a conveniência de mudar esse texto-padrão gerado pela CENAD. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Para aprofundamento sobre os tipos de assinaturas eletrônicas, reportamo-nos a este nosso artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em 20 de julho de 2020. 10 Veja, a propósito, o art. 384 do CPC: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial. 11 A individualização do celular pode ser feita mediante indicação do número do IMEI do aparelho. Esse número é como se fosse um documento de identidade do aparelho. Veja aqui.
O tema de que trataremos nas próximas linhas não é propriamente um caso de "desjudicialização", porque a realização dos atos de comunicação processual não é exclusividade dos Oficiais de Justiça, haja vista já se admitir, desde a vigência do antigo Código de Processo Civil (lei 5.869, de 11/01/1973), que sejam realizados mediante o concurso dos funcionários da empresa de correio - carteiros, bem como, já na vigência do atual Código de Processo Civil, lei 13.105, de 16 de março de 2015, que, sob o cânone da efetividade da justiça, adotou como princípio a instrumentalidade das formas (v. arts. 188 e 277 - CPC), também por quaisquer meios alternativos que atendam à sua finalidade essencial, já tendo sido admitida até mesmo a utilização de aplicativo de mensagens instantâneas - whatsApp. (v. PCA nº 0003251-94.2016.2.00.0000-CNJ; HC nº 641877-STJ). Portanto, há muito existe a previsão legal de que as comunicações processuais podem ser realizadas por meios extrajudiciais, embora essa realidade legal ainda não tenha sido adequadamente compreendida, nem posta intensivamente em prática no meio jurídico, em prejuízo das desejadas celeridade e segurança na efetivação de tais atos. Sabe-se que os processos judiciais no Brasil, via de regra, são lentos, geralmente devido a "gargalos" processuais, sendo talvez o principal deles a demora na efetivação das comunicações processuais, tornando precária a prestação jurisdicional pelo estado. No entanto, é do espírito do novo Código Processo Civil, lei 13.105, de 16 de março de 2015, a efetividade real do processo, que, para isso, deve ser célere e justo. Ou seja, o processo civil deve cumprir a lei material e, para entregar ao jurisdicionado uma resposta em tempo hábil, deve ser funcional, e a funcionalidade está diretamente ligada aos procedimentos que formam o processo, entre eles, as comunicações processuais. O princípio da celeridade processual (art.5º, LXXVIII, CF), caracterizado pela razoabilidade na duração do processo e celeridade na sua tramitação, bem como as previsões contidas no Código de Processo Civil, de que "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (caput do art. 247) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma" (inc. V, do art. 247), e que "os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial" (art. 188), bem como que "quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade" (art. 277), evidenciam à saciedade que as notificações extrajudiciais são meio adequado e dos mais seguros, céleres e eficazes para a concretização de comunicações processuais. Portanto, nem é o caso de realizar referidas comunicações por qualquer "outro modo", mas sim mediante correio qualificado, que é o múnus público exercido por Oficial Público de Registro de Títulos e Documentos, que é fiscalizado pelo Poder Judiciário, dotado de fé pública, e cujos atos - notificações extrajudiciais, por isso mesmo, gozam de presunção de veracidade, sendo, por isso, meio de prova superior a todos os outros previstos no Código de Processo Civil para a comunicação de fatos processuais, à exceção das comunicações realizadas por Oficial de Justiça, às quais têm status probatório semelhante, haja vista serem os Oficiais de RTD como que os Oficiais de Justiça do extrajudicial, em decorrência da capitulação legal das suas competências, especialmente aquela contida no artigo 160 da Lei dos Registros Públicos, para realizar notificações extrajudiciais veiculando qualquer conteúdo, como avisos, denúncias, cobranças e outros. Adite-se que o conceito de correio é o de "serviço de transporte e distribuição de correspondência", "pessoa que transporta ou distribui a correspondência" (Infopédia), "pessoa enviada com correspondência, despachos, ofícios, etc" ou "subalterno às ordens de um soberano para levar correspondência, transmitir ordens, avisos, etc" ("correio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021, - consultado em 04-04-2021). E é exatamente no que se enquadram os Oficiais de Registro de Títulos e Documentos quando exercem sua competência legal para realizar notificações extrajudiciais, agindo por delegação, sob o comando legal estatal. Ocorre que, apesar da clareza dos dispositivos da lei processual, acima referidos, na atualidade, por insegurança, muitos advogados ainda hesitam recorrer a esse meio para a efetivação de comunicações processuais, talvez pelo temor de que uma decisão judicial possa apresentar entendimento diverso, a despeito das explícitas disposições da lei processual. No entanto, referidas disposições já trazem em seu bojo a profilaxia dessa insegurança: o caput do art. 247-CPC reza que "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (inc. V) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma". Portanto, basta que já na inicial seja feito pedido* para que a citação e demais comunicações processuais sejam efetivadas mediante notificações extrajudiciais, tendo por supedâneo as disposições acima referidas, e por justificativa, a superior segurança jurídica, a celeridade e a eficácia do método, em relação à opção pelos funcionários da empresa de correio comum. Não fosse por isso, antes mesmo, conforme acima já referido, porque os Ofícios de RTD, quando atuam efetivando notificações, nada mais são que espécie de correio qualificado, segundo a acepção vernacular do termo, cujos atos, tais quais os dos Oficiais de Justiça, gozam de presunção de veracidade, porque realizados por agentes investidos em fé pública outorgada pelo estado, que lhes normatiza e fiscaliza a atuação, como entes, que são, de colaboração com o Poder Judiciário. Ou seja, as notificações extrajudiciais também são atos efetivados por correio, mas um correio qualificado, pelas razões referidas. Pelo exposto, evidenciado fica que recorrer às notificações extrajudiciais para a efetivação das comunicações processuais traz muitas vantagens para os advogados e titulares das ações, haja vista ser a demora na consecução de tais atos um dos principais motivos de retardamento na tramitação dos processos, criando os denominados "tempos mortos", em que estes se encontram parados nas secretarias das diversas varas de justiça, à espera da consecução das comunicações necessárias. Isso sem falar na insegurança de dar continuidade a processos tendo por lastro citações efetivadas, por vezes, de maneira precária, por servidores da empresa de correio, que, embora dignos e esforçados, não detêm a necessária expertise para o ato, nem são detentores de fé pública. Adite-se que, na atualidade, em razão da existência, em plena operação, do Sistema de Registro Eletrônico de Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas - SRTDPJ, criado pelo Provimento CNJ nº 48, de 16 de março de 2016, foi estabelecida uma rede de centrais de serviços eletrônicos compartilhados, integradas e coordenadas por uma centralizadora nacional - a Central RTDPJBrasil -, que interliga os Ofícios de RTD a seus congêneres em todo o território nacional, viabilizando o imediato envio eletrônico de notificações aos cartórios onde devam ser executadas, em todas as comarcas do país. Assim, além de todas as vantagens em celeridade e segurança jurídica, grande conveniência e comodidade pode ser obtida pelos advogados, que podem optar por meio seguro, célere e descomplicado para a comunicação dos atos processuais do interesse de seus clientes, visto que, sem sair dos seus escritórios, poderão requerer a emissão das necessárias certidões de peças processuais e providenciar seu envio para os cartórios de Registro de Título e Documentos de todo o país, a fim de que estes realizem a segura comunicação dos atos processuais, o que os livrará - e a seus representados - de transtornos, dispêndio de recursos e de tempo, porque não precisarão deslocar-se até as secretarias das varas dos tribunais, nem serão surpreendidos por decretações de nulidade em razão de citações inadequadamente realizadas por funcionários da empresa de correio, que não têm o devido preparo para a correta efetivação desses atos, o que, ao fim e ao cabo, resultará mais tempo para que se possam dedicar a sua atividade-fim. E tudo isso porque, além da fé pública de que são dotados os Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, o que confere a seus atos presunção de veracidade, as certificações notificatórias que fazem são minuciosas (ao contrário do que normalmente ocorre com os atos praticados pelos funcionários da empresa de correio), o que resulta higidez na constituição e tramitação dos processos judiciais, dando-lhes mais celeridade e eficácia, com reflexos positivos para toda a sociedade, por torná-la mais justa, com uma justiça célere, que de forma eficaz entrega a prestação jurisdicional. Finalmente, sobre este tema, recomendamos a leitura do excelente artigo do Dr. Marco Paulo di Spirito, Defensor Público de Minas Gerais, que foi quem primeiro alertou quanto à existência dessa opção à disposição das partes e advogados, no qual analisa o correspondente suporte legal e relata sua experiência com a utilização das notificações extrajudiciais, acessível aqui, no qual recolhemos subsídios para a elaboração do presente texto. *Emílio Guerra é bacharel em Direito, ex-advogado, especialista em Registros Públicos pela PUC - MG e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte. __________ Exemplificação de petição inicial com pedido para realização de citações e demais comunicações processuais mediante notificações extrajudiciais: Petição Inicial    Excelentíssimo senhor, Juiz de Direito da ____ Vara ____ da Comarca de ___________, Doutor....., ..................  AÇÃO DE....., em face de....(nome do demandado e sua qualificação completa)...pelos fatos, motivos e fundamentos de direito que passa a expor:  I - dos Fatos: .............  II - ....................  III - ...................  ....................  IV - Dos pedidos:  a - ..................  b - ..................  c - ..................  d - Finalmente, com supedâneo no princípio da celeridade processual (art.5o, LXXVIII, CF), caracterizado pela razoabilidade na duração do processo e celeridade na sua tramitação, bem como nas previsões contidas no Código de Processo Civil, de que a "a citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto" (caput do art. 247) "quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma" (inc. V, do art. 247), e que "os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial" (art. 188), bem como que "quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade" (art. 277), o autor pede que V. Exª, ao deferir a presente inicial, autorize que a citação e demais comunicações processuais de seu interesse possam ser por ele promovidas mediante notificações extrajudiciais, a serem realizadas pelos Ofícios de Registro de Títulos e Documentos, que são espécie de correio qualificado, quando atuam na entrega de notificações extrajudiciais, porque dotados de fé pública e fiscalizados pelo Poder Judiciário, do qual são agentes auxiliares, cujos atos gozam de presunção de veracidade, o que proporcionará superior segurança jurídica, celeridade e eficácia ao ato, em relação à opção pelos funcionários da empresa de correio comum.  Nestes termos, Pede deferimento.  Cidade de ......., em.........  Dr. Fulano de Tal Advogado - OAB nº xxxxx ______________________________________________________________________________
1. Introdução Este artigo dedica-se a discutir questões práticas envolvendo o condomínio edilício de graus sucessivos e a formatação jurídica de outras espécies de condomínios edilícios que envolvem várias torres. 2. Definição de condomínio edilício O condomínio edilício é disciplinado nos arts. 1.331 ao 1.358 do Código Civil - CC e também nos arts. 1º ao 27 da lei 4.591/64. O entendimento majoritário é o de que o CC não revogou esses dispositivos da lei 4.591/64, salvo naquilo em que houver frontal divergência. As duas normas seguem em vigor, mas, no caso de eventual conflito entre elas, deve-se valer-se da técnica do diálogo das fontes, que estabelece a necessidade de, no caso concreto, o intérprete buscar a melhor solução. A lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP) também tem disciplina, sob o aspecto registral, do condomínio edilício. Em praticamente todas as cidades brasileiras há edifícios de dois ou mais andares com unidades imobiliárias autônomas, que são geralmente apartamentos ou lojas. Trata-se da figura do condomínio edilício, que também envolve situações de edificações de casas, conforme veremos mais à frente. Ao contrário do que sucede com o condomínio tradicional, o condomínio edilício não envolve obrigatoriamente uma pluralidade de pessoas na titularidade do mesmo bem.1 Para esse tipo de condomínio, o fundamental não é a pluralidade de pessoas, e sim a pluralidade de unidades autônomas vinculadas a um mesmo terreno e a áreas comuns. Uma única pessoa pode ser titular de todas as unidades autônomas, seja no momento da instituição do condomínio, seja posteriormente mediante a aquisição delas. Metaforicamente, o condomínio edilício não é um condomínio de pessoas, e sim de imóveis (as unidades autônomas). Desse modo, se uma única pessoa for titular de todas as unidades autônomas, ainda assim haverá um condomínio edilício. Em definição, condomínio edilício é a situação jurídica envolvendo uma edificação (ou um conjunto de edificações) que, por ficção jurídica, é dividida em duas partes: (1) as unidades imobiliárias autônomas, que correspondem às áreas de propriedade exclusiva do seu titular, e (2) as áreas comuns e o solo, que são de propriedade de cada um dos titulares das unidades imobiliárias na proporção da respectiva fração ideal. O condômino, portanto, é proprietário exclusivo da unidade imobiliária e, concomitantemente, de modo indivisível, titular de uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O cálculo da fração ideal de cada condômino é feito com base em normas técnicas editadas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) por força do inciso IV do art. 53 da lei 4.591/64. A definição da fração ideal leva em conta a proporção da área construída de cada unidade autônoma, de maneira que o titular de uma unidade autônoma de maior tamanho terá uma maior fração ideal nas áreas comuns e no solo. Em tese, se a edificação ruir e se os condôminos não deliberarem pela reconstrução (art. 1.357, CC), cada condômino terá perdido a unidade autônoma e as áreas comuns que estavam na edificação (como a área do corredor dos andares), mas ainda será titular de uma fração ideal no solo. O condomínio edilício aí se extinguirá pela falta de uma edificação e, no seu lugar, haverá um condomínio tradicional sobre o solo. O condomínio edilício pode ser vertical ou horizontal. É vertical quando se trata de condomínio em uma edificação em andares (art. 8º, "b", lei 4.591/64). É horizontal quando se trata de edificações de casas: as unidades autônomas estão alinhadas horizontalmente (art. 8º, "a", lei 4.591/64). Não se ignora que há quem classifique de forma oposta, focando a direção dos planos imaginários que separam as unidades autônomas;2 todavia, preferimos a classificação mais utilizada na jurisprudência. 3. Nascimento do condomínio edilício: instituição vs constituição do condomínio edilício Instituição do condomínio é o ato jurídico praticado pelo titular de um imóvel com edificação para criar as unidades autônomas vinculadas a áreas comuns e ao solo. É o ato que dá existência jurídica às unidades autônomas do condomínio. Do ponto de vista do Cartório de Imóveis, a instituição do condomínio é ato registrado na matrícula do solo (matrícula-mãe) para, em seguida, gerar a abertura de matrículas para cada uma das unidades autônomas (matrículas-filhas). O ato de instituição se instrumentaliza por meio do registro de um ato entre vivos ou de um testamento contendo os requisitos do art. 1.332 do CC e do art. 7º da lei 4.591/64. Esses requisitos são basicamente a descrição jurídica do condomínio edilício, ou seja, a indicação das unidades autônomas, a respectiva fração ideal no solo e nas áreas comuns e a finalidade das unidades (ex.: residencial, comercial etc.). Ao se tratar de condomínio edilício, constituir o condomínio é diferente de instituí-lo. Apesar de sinônimas no vernáculo, constituição e instituição são conceitos diversos em relação a condomínio edilício. Instituir é o ato que dá existência jurídica ao condomínio, fazendo nascer juridicamente as unidades autônomas vinculadas a uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O ato de instituição é registrado na matrícula do imóvel, a qual fica no Livro 2 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", 176, 227, 237-A da LRP). Constituir é o ato pelo qual se registra a convenção de condomínio, estabelecendo regras relativas ao funcionamento do condomínio. A convenção, além de reiterar os requisitos formais do ato instituição - para deixar claro quais são as unidades autônomas -, dá as regras relativas à custeio financeiro do condomínio, à sua administração, à competência da assembleia e ao regimento interno. Os seus requisitos estão no art. 1.334 do CC e no art. 9º, § 3º, da lei 4.591/64. A constituição se instrumentaliza por uma convenção que deve ser registrada no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", e 178, III, LRP e art. 9º, § 1º, da lei 4.591/64). Ela não é registrada na matrícula do imóvel - a qual fica no Livro 2 -, porque a convenção não trata da estrutura de direito real de propriedade do condomínio edilício, e sim das regras de funcionamento do condomínio. Numa metáfora, instituir o condomínio edilício é criar o corpo (esqueleto e carne). Constituir é dar a alma para esse corpo funcionar. Na prática, há ainda a "instalação do condomínio", que nada mais é do que a primeira assembleia dos condôminos destinada a nomear síndico e aprovar orçamentos. Não se trata de uma assembleia prevista em lei; é apenas uma prática. Nessa assembleia, pode também ser aprovada a convenção, mas nem sempre isso ocorre na prática: o costume é a aprovação ocorrer posteriormente. 4. Questões práticas 4.1. Condomínio edilício em parcela de um imóvel O condomínio edilício necessariamente importa na vinculação da fração ideal das unidades autônomas ao terreno como um todo. Não é possível, portanto, vincular apenas a uma fração ideal do solo. Se o titular do imóvel tiver esse interesse, o recomendável é ele desdobrar o imóvel em outros dois, criando duas outras matrículas, um para cada um dos imóveis. Em um desses imóveis menores (que terá uma nova matrícula), será viável construir um prédio e instituir um condomínio edilício próprio. Se, porém, o imóvel for indivisível, o caminho poderá ser o do condomínio de graus sucessivos ou o do condomínio edilício com várias torres, que serão tratados mais à frente. 4.2. Condomínio edilício de graus sucessivos Apesar de pouco usual e de gerar alguns inconvenientes de ordem funcional, não há obstáculo algum para que, na matrícula de uma unidade autônoma de um condomínio edilício, seja instituído um novo condomínio, que aqui designamos de condomínio de segundo grau. Chamamos assim, porque se trata de um condomínio edilício dentro de um outro. É possível também que, em uma unidade autônoma desse condomínio de segundo grau, seja instituído um novo condomínio edilício, que agora receberia o batismo de condomínio edilício de terceiro grau. Outros graus sucessivos de condomínio edilício seriam juridicamente cabíveis. O ordenamento admite o que chamamos de condomínio edilício de graus sucessivos. Temos que só há dois requisitos necessários: (1) a existência de autorização expressa no ato de instituição, na convenção do condomínio originário ou em votação unânime dos condôminos, porque o condomínio de segundo grau mudará as características da unidade autônoma; e (2) a unidade autônoma na qual será instituído o condomínio de grau sucessivo precisa fisicamente comportar uma construção. Quanto a esse último requisito, exemplifique-se que um apartamento em um prédio é fisicamente inapto a receber uma nova construção em si. No caso de condomínio de segundo grau, haverá um novo ente despersonalizado, com direito a CNPJ próprio e com um síndico próprio. Não se confunde esse novo ente despersonalizado com o do condomínio edilício originário. O incômodo nesse tipo de condomínio de graus sucessivos é o fato de que o síndico, por não poder praticar atos de mera administração sem prévia autorização da convenção ou da assembleia, poderá retardar a dinâmica das assembleias do condomínio originário. 4.3. Imóvel indivisível de larga extensão com condôminos interessados em construir prédios nas áreas proporcionais às suas frações ideais Já tivemos notícia de casos concretos de condomínios de graus sucessivos em serventias de registro de imóveis. Suponha que um terreno de extensão considerável seja indivisível por força de lei. Há matrícula para esse imóvel no competente Cartório de Registro de Imóveis (art. 176, § 1º, da lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos - LRP). Imagine que João seja titular de uma fração ideal de 30% desse imóvel e Artur seja dono do restante. Nessa situação hipotética, João pode ter interesse em construir um prédio com apartamentos em uma área correspondente a 30% do solo do terreno, deixando o restante do solo para o Artur. Para formalizar isso, João e Artur poderão instituir um condomínio edilício, estabelecendo que 70% do solo do terreno corresponderá a uma unidade autônoma que coexistirá com as várias unidades autônomas que corresponderão aos apartamentos. Artur pode ficar como proprietário dessa unidade autônoma heterogênea. Nesse caso, como essa unidade autônoma extravagante comporta uma construção em si, nada impede que Artur edifique um prédio e institua um condomínio edilício de segundo grau. Essa instituição ocorrerá por meio de um registro de instituição de condomínio na própria matrícula da unidade autônoma heterodoxa. 4.4. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres Figuras comuns nas grandes cidades são os empreendimentos imobiliários envolvendo várias torres (prédios de andares) erguidas em um mesmo terreno com a construção de áreas de lazer nesse mesmo terreno (campo de futebol, piscina etc.) e com o fechamento de todo esse terreno mediante muros e instalação de portarias para controle de acesso de entrada e saída. Como se podem estruturar juridicamente esses condomínios edilícios fechados com várias torres? Enxergamos os seguintes arranjos. Em primeiro lugar, é possível simplesmente instituir um único condomínio edilício, fixando que cada proprietário de uma unidade privativa (um apartamento) será um condômino. Se, nesse conjunto imobiliário houver 4 torres e cada uma contiver 50 apartamentos, teremos 200 condôminos. Uma desvantagem dessa estrutura é a de que, havendo a necessidade de assembleia para resolver problemas pontuais de apenas uma das torres, será difícil obter quorum para votação. Aliás, diante da grande quantidade de condôminos, haverá dificuldade para a obtenção de quorum de votações para as questões em geral, pois, nesses arranjos imobiliários, é comum a comunidade de condôminos envolver centenas de pessoas. Para atenuar essa desvantagem, convém que a convenção estabeleça uma gestão descentralizada, conforme exporemos mais abaixo. Em segundo lugar, é viável valer-se do condomínio de segundo grau. Inicialmente, pode-se instalar um condomínio em que a unidade autônoma será a base territorial do solo sobre a qual será erguida cada torre. No exemplo acima, como serão erguidas 4 torres, haverá 4 unidades autônomas e, portanto, 4 condôminos. Em seguida, em cada uma dessas unidades autônomas, poderá ser instituído um condomínio edilício (condomínio de segundo grau) após a construção da respectiva torre. Nesse caso, cada torre corresponderá a um condomínio edilício próprio e, portanto, os titulares dos apartamentos de cada torre poderão resolver os seus problemas individuais relativos a cada edifício de modo isolado, por meio de assembleias próprias. Quanto ao primeiro condomínio edilício - aquele que, no exemplo, possui 4 condôminos -, caberá a ele resolver os problemas comuns a todas as torres, como as questões relativas a reparos das piscinas, do campo de futebol, da portaria etc. As assembleias reunirão os 4 condôminos, que, agora, serão os 4 condomínios edilícios de segundo grau criados, os quais serão representados pelos respectivos síndicos. Parece-nos que essa estrutura de condomínio edilício é mais vantajosa juridicamente, por facilitar a resolução de questões de interesse restrito de cada torre. Para a formalização desses condomínios de segundo grau, é importante observar o  exposto mais acima no tocante aos seus requisitos, como a autorização expressa na convenção ou em assembleia do primeiro condomínio. Por fim, não nos parece adequado que, nesses arranjos, seja utilizada a figura do condomínio de lotes, exatamente porque ela tem de decorrer de um loteamento. Nesses empreendimentos imobiliários para a instalação de várias torres, não há a intenção de criar lotes, com toda a autonomia jurídica que lhe é inerente. 4.5. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres Há condomínios edilícios em que as unidades privativas estão espalhadas em várias torres em um mesmo terreno. Geralmente, nesses arranjos imobiliários, o terreno é cercado, há uma portaria central para controle de acesso e as áreas comuns possuem piscinas, quadras de esportes e outros equipamentos de uso comum, além de envolver centenas de moradores. Esses mesmos arranjos imobiliários poderiam ser obtidos de outros institutos jurídicos, como por meio de um condomínio de lotes (em que, em cada lote, seria instituído um condomínio edilício para a respectiva torre). Estamos aqui a focar a situação em que essa organização imobiliária assume a figura de um condomínio edilício com centenas de condôminos. Formatos jurídicos como esse costumam apresentar problemas operacionais pela dificuldade de aprovação de determinadas matérias em razão da baixa presença dos condôminos nas assembleias ou do desinteresse da maioria em resolver problemas de interesse apenas dos condôminos de apenas uma torre. Em Brasília, em um desses grandes condomínios que envolviam cerca de 800 condôminos, os moradores nunca conseguiam a presença da quantidade mínima exigida para obter o quórum necessário para autorizar a instalação de unidades externas de ar-condicionado na fachada do prédio. Para esses casos, é recomendável que a convenção de condomínio preveja uma gestão descentralizada para cada uma das torres, nomeando um síndico setorial para cada torre e permitindo que determinadas matérias de seu interesse possam ser deliberadas em assembleia descentralizada que envolvam apenas os condôminos da respectiva torre. A convenção pode fixar quórum específico para essas matérias setoriais. Poderiam essas assembleias setorizadas, inclusive, fixar contribuições extraordinárias oponíveis apenas contra os condôminos da torre envolvida. 4.5. Associação de moradores vs condomínio edilício Nenhum outro ente tem poder de gestão sobre os interesses comuns dos condôminos senão o próprio condomínio edilício, que é um sujeito de direito. Só ele pode exigir contribuições dos condôminos, fazer obras nas áreas comuns etc. Nenhuma associação, ainda que composta por condôminos, pode sobrepor-se ao condomínio edilício. Não podem, por exemplo, fazer obras nas áreas comuns nem cobrar dos associados os valores que estes teriam de pagar a título de quota de contribuições condominiais. Nesse sentido, eventual associação de moradores criada por condôminos de uma das várias torres de um grande condomínio edilício não pode realizar obras nas áreas comuns (com inclusão da fachada e da estrutura de nenhuma das torres) nem pode dispensar os condôminos de continuarem pagando a contribuição condominial para o condomínio edilício. Por isso, o STJ condenou um condômino a pagar as contribuições condominiais atrasadas perante o condomínio edilício, ainda que aquele tenha entregado o valor dessas contribuições para a associação dos moradores de uma determinada torre (STJ, REsp 1231171/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/02/2015). Aliás, se a associação de moradores tiver por objeto social administrar as áreas comuns relacionadas a um dos vários edifícios que compõe um condomínio edilício, esse objeto é ilícito, de maneira que sequer o registro do seu ato constitutivo no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas deveria ser admitido (art. 115, LRP3). 5. Conclusão A figura dos condomínios edilícios acomoda novos arranjos negociais desenvolvidos pelo mercado imobiliário. Expusemos, neste artigo, formas de aplicação dessa figura para situações envolvendo empreendimentos imobiliários com várias torres ou com perfis diferentes de exploração.  __________ 1 Ressalva-se que há respeitoso entendimento doutrinário contrário, afirmando que tecnicamente haveria necessidade de haver pluralidade de pessoas, embora seja admitida a instituição do condomínio apenas por um único titular (Melo, 2018, p. 245), entendimento com o qual não acompanhamos pelo fato de inexistir óbice a que uma única pessoa adquira todas as unidades autônomas e o condomínio continue existindo. 2 Condomínio de andares seria condomínio edilício horizontal, pois linhas imaginárias horizontais separam as unidades. Condomínio de casas seria condomínio edilício vertical, pois linhas imaginárias verticais separam as unidades. 3 Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73).
Introdução É ou não cabível o usucapião extrajudicial em favor do ocupante de um apartamento integrante de um "condomínio edilício de fato"? E como fica a proteção possessória do ocupante perante terceiros? E se estivermos diante de um condomínio de lotes ou de um condomínio multiproprietário irregular? Trataremos do tema neste artigo. "Condomínio edilício de fato" Por condomínio de fato, entende-se a situação de um terreno que, sem os devidos registros no Cartório de Imóveis, contém uma edificação composta por apartamentos que, de fato, são ocupados por pessoas que se comportam como se fossem condôminas. Esse tipo de estrutura é usual no Brasil. Há duas situações principais em que isso ocorre. A primeira é quando o proprietário do terreno não conseguiu o "habite-se" para averbar a construção diante da falta de respeito às normas urbanísticas locais. Nessas hipóteses, o proprietário do terreno costuma celebrar promessas de compra e venda ou cessões de direito de posse relativamente às unidades autônomas do futuro condomínio edilício que, um dia, espera-se vir a ser regularizado (mediante a averbação da construção seguida do ato de instituição de condomínio). É possível também que o proprietário do terreno celebre uma escritura pública de venda da fração ideal do terreno correspondente à unidade autônoma do futuro condomínio edilício. Trata-se, porém, de hipótese menos usual. Entendemos que, caso o tabelião identifique que a alienação de frações ideais está sendo realizada como forma alternativa diante da falta da prévia averbação da construção e da prévia instituição de um condomínio edilício, deve o  tabelião  alertar as partes sobre essa situação de irregularidade e consignar expressamente tal situação na escritura. De qualquer forma, não há obstáculo jurídico algum à lavratura da escritura: alienação de fração ideal do terreno é lícita. Questão sensível é saber o seguinte: se tal escritura contiver expressa menção à existência de uma edificação ou de um condomínio edilício, o Cartório de Registro de Imóveis poderá ou não promover o registro? Entendemos que sim, desde que haja requerimento expresso das partes nesse sentido. Nessa hipótese, a notícia, na escritura, da irregularidade da construção ou do condomínio edilício de fato será apartada do negócio jurídico relativo à alienação da fração ideal, tudo por conta do requerimento expresso das partes. Aliás, esse requerimento pode ser dispensado se, na própria escritura, houver expressa declaração das partes no sentido de quererem o registro da alienação da fração ideal a despeito da ciência da irregularidade da construção e do condomínio edilício. Trata-se de uma aplicação do princípio da cindibilidade do título. Entendemos que não há violação ao princípio da especialidade objetiva nesse caso, pois, por requerimento expresso das partes, a questão relativa à edificação ou a instituição do condomínio foi destacada para futuro tratamento registral. Se escritura não fizer referência à edificação ou à existência de um condomínio edilício, evidentemente caberá o registro no cartório de Imóveis. Não há necessidade de prévio requerimento de cindibilidade do título. Nesses condomínios de fato, é questão de algum tempo para a situação de irregularidade agravar-se. Os ocupantes acabarão por ceder seus direitos a terceiros por meio de contratos de cessões de direito de posse, o que alavancará os potenciais riscos de conflitos futuros pela titularidade dos direitos de posse sobre a unidade autônoma. A composse edilícia: desdobramentos práticos Introdução A questão central para lidar com os problemas causados pelo condomínio de fato é identificar qual é a natureza jurídica dos direitos dos ocupantes das unidades autônomas. As titularidades de direito podem ser encaixadas em uma das seguintes categorias: a) direitos pessoais; b) direitos reais; c) posse; d) detenção; e) direitos da personalidade; f) propriedade imaterial. O ocupante de um apartamento em um condomínio edilício de fato tem um direito com expressão econômico. Isso é bem. Não como negar. A questão é definir a natureza jurídica desse bem. Entendemos que aí há uma posse, mais especificamente o que chamamos de "composse edilícia". Composse pro diviso e pro indiviso: definição, a proteção possessória, o usucapião e a via extrajudicial do usucapião Antes de explicamos a composse edilícia, convém esmiuçarmos o conceito de composse e discutirmos a viabilidade de usucapião nessas hipóteses. Composse, posse comum ou compossessão é a posse exercida por duas ou mais pessoas sobre o mesmo bem indiviso ou em estado de indivisão. Distingue-se da posse singular, que é a aquela exercida apenas por uma pessoa. São, pois, requisitos da composse: (i) pluralidade de sujeitos e (ii) coisa indivisa ou em estado de indivisão. Em uma comparação, a propriedade está para o condomínio, assim como a posse está para a composse. Na composse, cada possuidor pode exercer atos de posse, desde que não exclua os outros compossuidores (art. 1.199, CC). Daí decorre que é possível manejo de interdito possessório por um compossuidor contra o outro. À semelhança do que sucede com o condomínio, a doutrina costuma dividir a composse em: (a) pro diviso, quando a área ocupada por cada compossuidor é definida, e (b) pro indiviso, quando cada compossuidor exerce atos de posse sobre a coisa toda. Na realidade, composse pro diviso não é composse, e sim uma pluralidade de posses singulares em áreas contíguas. De fato, só há composse na comunhão pro indiviso. Não sucede o mesmo em relação ao condomínio, que pode ser pro diviso, pois, nesse caso, haverá um único direito de propriedade em comunhão (há comunhão de direito) com várias posses exclusivas (não há comunhão de fato). Em notável obra, James Eduardo Oliveira1 brande esses argumentos com apoio em Moreira Alves. Em consequência de a composse pro diviso não ser uma verdadeira composse, e sim uma contiguidade de várias posses singulares, não é cabível que um compossuidor sirva-se de meios de proteção possessórias relativas à área do seu vizinho, pois cada um possui posse exclusiva. Igualmente, na dita composse pro diviso, cada um poderá pleitear o usucapião para a sua respectiva área. A propósito, se um dos compossuidores está de má-fé, essa característica da sua posse não contaminará os demais compossuidores que estão de boa-fé, o que poderá acarretar prazos de usucapião diversos para cada um dos compossuidores. Já na composse pro indiviso, perante terceiros, cada compossuidor é considerado um possuidor único e exclusivo do bem, razão por que tem legitimidade para, sozinho, valer-se de ações possessórias para protege a composse. Aplica-se, por analogia, o art. 1.314 do CC. Outrossim, na composse pro indiviso, os compossuidores podem usucapir a coisa inteira em conjunto, de modo que cada um ficará com uma fração ideal do bem usucapido. O usucapião gerará um condomínio tradicional. Entendemos que não há, porém, obrigatoriedade de litisconsórcio. Nada impede que um compossuidor pleiteie o usucapião sozinho, mas, nesse caso, só terá direito de pleitear a aquisição de uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse. Em princípio, não vemos obstáculo a que um compossuidor tenha posse de má-fé e outro tem posse de boa-fé, na medida em que se trata de condição subjetiva (art. 1.201, CC). Daí decorre que, em princípio, o prazo de usucapião para cada um dos compossuidores pode ser diferente, de maneira que poderá acontecer de apenas um dos compossuidores obter êxito na ação de usucapião para adquirir uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse. Ilustrando, imagine que três pessoas compram um imóvel de um grileiro para que cada um fique como uma fração ideal de 1/3 do imóvel. Apenas um dos compradores sabia da fraude, mas resolveu arriscar. Logo, dois compradores têm posse de boa-fé, e outro, de má-fé. Suponha que os compradores exerceram posse sobre a coisa ao longo de 10 anos sem se enquadrar nas hipóteses de posse-moradia e posse-trabalho até que o legítimo proprietário propôs ação reivindicatória. Nesse caso, o possuidor de má-fé não poderá alegar usucapião (para ele, seria necessário o prazo de 15 anos do usucapião extraordinário - art. 1.238, CC), ao contrário dos demais, que terão direito ao usucapião ordinário (art. 1.242, CC). Assim, 2/3 do imóvel pertencerão, pro rata, aos dois adquirentes de boa-fé, ao passo que 1/3 do imóvel será de propriedade do reivindicante diante da impossibilidade de o possuidor de má-fé ter-se valido do usucapião. Ademais, na composse pro indiviso, um compossuidor só poderá usucapir a coisa toda sozinho se cometer esbulho. De fato, se um dos compossuidores passar a exercer, com exclusividade, posse ad usucapionem sobre todo o bem, já não há mais composse, e sim posse singular, que, atendidos os demais requisitos, gera usucapião. Cabe uma última pergunta: o usucapião, nas hipóteses acima, poderia ocorrer na via extrajudicial com fundamento no art. 216-A da Lei de Registros Públicos e no Provimento nº 65/2017-CN/CNJ? Não enxergamos obstáculo algum ao emprego da via extrajudicial do usucapião, contanto que todos os demais requisitos legais estejam presentes, como o consentimento (ainda que tácito) do proprietário tabular. Entendemos, porém, que haverá necessidade de consentimento dos demais compossuidores acerca da fração ideal correspondente ao usucapiente. O motivo disso é que o usucapião extrajudicial pressupõe um ambiente de concórdia entre o usucapiente e os demais atores que guardem diretamente potencial conflito de interesse com ele, como os demais compossuidores. Composse edilícia: proteção possessória, usucapião e a via extrajudicial do usucapião Posse é a aparência da titularidade de um direito real. Sob essa ótica, ao tratar de composse, a doutrina limita-se a falar em composse pro diviso e pro indiviso, o que acaba refletindo apenas a composse como uma aparência de titularidade de fração ideal de um condomínio tradicional. Essas categorias não são adequadas para lidar com a situação de possuidores que aparentam ser titulares de unidades autônomas de condomínio edilício. Por isso, entendemos ser possível falar em uma outra categoria de classificação: a composse edilícia. Nesse caso, os compossuidores aparentam estar em um regime de condomínio edilício. Cuida-se de situação recorrente no quotidiano com prédios construídos em áreas irregulares sem a devida instituição de condomínio edilício. Nesses prédios, os apartamentos são ocupados por diferentes pessoas, as quais compartilham o uso do hall de entrada, dos corredores, das piscinas e de outras áreas de uso comum. Trata-se do que chamamos de composse edilícia, em que, dentro de uma construção, cada compossuidor tem posse singular e exclusiva sobre espaços privativos e tem composse pro indiviso sobre espaços comuns. Nesse caso, em relação à área privativa, só o respectivo compossuidor tem legitimidade para valer-se de ações possessórias, pois aí se aplica o regime de posse singular. Para as áreas comuns, qualquer compossuidor tem legitimidade para, sozinho, proteger a coisa, em razão da aplicação do regime da composse pro indiviso, que atrai, por analogia, o art. 1.314 do CC. Quanto ao usucapião, cada compossuidor sozinho pode valer-se do usucapião para pleitear a aquisição apenas de uma fração ideal da propriedade do bem na proporção de sua participação na composse edilícia. Se todos os compossuidores obtiverem o usucapião, eles se tornarão proprietários de todo o imóvel com fração ideal correspondente à participação deles na composse edilícia. O usucapião, porém, não formará um condomínio edilício, pois este depende de um prévio ato formal de instituição. O usucapião gerará um condomínio tradicional, em que cada usucapiente terá uma fração ideal. A construção ainda está na informalidade. Caberá aos usucapientes, por ato próprio, averbar a construção e, em seguida, promoverem a instituição do condomínio edilício. A questão central é a seguinte: é cabível a via extrajudicial do usucapião pelo compossuidor edilício no caso de irregularidade do condomínio edilício? Entendemos que sim, desde observados os pertinentes requisitos legais. O art. 7º do Provimento nº 65/2017-CN/CNJ prevê a necessidade de concordância de todos os titulares tabulares (os titulares de direitos inscritos na matrícula do imóvel). Não há necessidade de consentimento dos demais compossuidores edilícios, salvo se estes forem titulares de direitos inscritos na matrícula do imóvel. Exigir o consentimento deles seria inviável na prática, pois sequer se pode ter certeza acerca de quem é o compossuidor. Todavia, como há necessidade de a fração ideal do terreno que será usucapida estar atrelada proporcionalmente à área privativa ocupada pelo usucapiente, essa informação precisa ser comprovada mediante um memorial descritivo subscrito por um engenheiro indicando as frações ideais devidas a todas demais áreas privativas. A ata notarial exigida no procedimento de usucapião extrajudicial deverá especificar esse fato. O usucapião - reitere-se - será apenas da fração ideal do terreno. Não se poderá instituir um condomínio edilício nem se abrir uma matrícula autônoma relativamente ao espaço privativo ocupado pelo usucapiente na edificação. Afinal de contas, além de a regularidade da construção depender de uma prévia averbação (precedida de um "habite-se" atestando a conformidade da construção com as normas urbanísticas), a instituição do condomínio edilício é ato que remodela juridicamente a propriedade e que cria um sujeito de direito novo (que receberá um CNPJ próprio): o condomínio edilício. Esse ato não pode ser substituído por um usucapião dos compossuidores condominiais, porque envolve repercussões que vão além dos interesses do usucapiente e porque depende da prática de atos previstos em lei. Composse edilícia e deveres próprios de "condomínio edilício": inaplicabilidade no caso de irregularidade Embora a composse edilícia aparente uma situação jurídico-formal de condomínio edilício, trata-se de mera aparência. Daí decorre que os deveres legais previstos para o condomínio edilício não podem ser estendidos aos compossuidores edilícios se estes expressamente não houverem formalmente aceitado pela via legalmente disponível: a instituição de um condomínio edilício. Trata-se de decorrência do princípio da legalidade: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei. Daí decorre que não há obrigatoriedade de nenhum dos compossuidores edilícios pagar contribuições para concorrer com as despesas das áreas comuns. Nem mesmo o argumento da vedação ao enriquecimento sem causa seria aplicável, pois não há dever legal de contribuição com as despesas das áreas comuns. Aliás, quem seria o credor dessa suposta contribuição? É que inexiste um ente despersonalizado chamado condomínio edilício aí, pois se trata apenas de uma composse edilícia. E eventual associação de moradores não pode exigir contribuição de quem não é associado. Aliás, em tese, cada grupo de moradores poderia instituir uma associação de moradores diversa, a aumentar o ambiente de confusão. O compossuidor edilício, portanto, só contribuirá com as despesas comuns se tiver voluntariamente se obrigado por contrato ou por meio de sua filiação à associação dos moradores. Aplica-se, por analogia, aí o entendimento do STJ firmado para os loteamentos irregulares no seguinte sentido: "As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram" (STJ, REsp 1280871/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,  Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, DJe 22/05/2015). Cabe uma última observação aqui: o conceito de composse edilícia tem utilidade prática para lidar com os casos de condomínios edilícios irregulares. Entretanto, mesmo no caso de condomínio edilício regular, é possível afirmar que os ocupantes das unidades autônomas exercem uma composse edilícia, ainda que também sejam titulares do direito real de propriedade. Entretanto, essa composse edilícia envolve, na verdade, uma posse singular sobre a unidade autônoma e uma composse sobre as frações ideais sobre o terreno e as áreas comuns. Não enxergamos, porém, utilidade prática em se valer do conceito de composse edilícia nesses casos. É mais fácil ao jurista observar esse fenômeno simplesmente como uma posse singular sobre a unidade autônoma, porque os desdobramentos práticos disso - como a proteção possessória e o usucapião - sempre estarão focados apenas na unidade autônoma. Composse loteada Como o nosso ordenamento passou a admitir a figura do condomínio de lotes (art. 1.358-A, CC), é preciso também ter uma figura para retratar aqueles que aparentam ser titulares de lotes em regime de condomínio de lotes nas hipóteses de irregularidades. Chamamos essa hipótese de composse loteada, na qual cada compossuidor tem posse singular sobre o espaço do seu lote e tem composse pro indiviso sobre o terreno comum (ruas, praças etc.). Aplica-se a esse caso tudo quanto foi escrito para a composse edilícia diante da similaridade dos institutos. Composse Multiproprietária Como o nosso ordenamento passou a admitir a figura do condomínio em multipropriedade (arts. 1.358-B ao 1.358-U do CC), é necessário haver uma categoria de composse para retratar a aparência de titularidade de uma unidade periódica em condomínio multiproprietário. Chamamos tal hipótese de composse multiproprietária, assim entendida aquela em que cada compossuidor tem posse singular sobre a unidade periódica e tem composse pro indiviso sobre o imóvel-base e o mobiliário. Nesse caso, por falta de previsão legal, não há como obrigar nenhum compossuidor multiproprietário a pagar contribuições aos demais compossuidores nem a eventual associação de moradores, salvo se ele houver se obrigado voluntariamente em contrato ou em ato de filiação à eventual associação de moradores. Aplica-se, por analogia, o entendimento do STJ sobre a as associações de moradores de loteamentos irregulares (STJ, REsp 1280871/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,  Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, DJe 22/05/2015). Quanto à proteção da posse sobre a unidade periódica, cada compossuidor pode, sozinho, valer-se de ações possessórias para proteger o tempo de seu uso, pois tem posse singular sobre essa unidade periódica. No tocante ao imóvel-base em si e ao mobiliário, há legitimação concorrente entre os compossuidores multiproprietários para os proteger de terceiros, pois cada compossuidor tem composse pro indiviso sobre esses bens. O usucapião é cabível, mas é preciso identificar se há ou não um condomínio em multipropriedade já instituído. Se não houver, o usucapião não implicará automaticamente a instituição de um condomínio multiproprietário, mas apenas outorgará ao usucapiente a propriedade de uma fração ideal do imóvel proporcionalmente à sua participação na composse multiproprietária. É que a instituição de um condomínio multiproprietário depende de um ato formal de instituição, o que não é suprido com o mero usucapiente. O usucapião pelos compossuidores multiproprietários nesses casos gera um condomínio tradicional, de modo que os usucapientes poderão, se quiser, praticar posteriormente os atos formais destinados à instituição de um condomínio multiproprietário. Se, porém, já houver um condomínio multiproprietário formalmente instituído, o compossuidor multiproprietário adquirirá, por usucapião, a própria unidade periódica, que já possui matrícula própria. O usucapião poderá ser extrajudicial também, tudo nos termos do que já expusemos em relação ao usucapião extrajudicial nos casos de condomínio edilícios irregulares. O usucapião não implicará instituição de um condomínio multiproprietário, mas apenas a aquisição de uma fração ideal do imóvel-base. Há necessidade de comprovação da fração ideal devida ao usucapiente sobre o imóvel-base, o que deverá ser consignado na ata notarial. Conclusão A composse não se restringe aos casos de aparência de um condomínio tradicional. Ela também alcança a aparência das outras espécies de condomínios admitidas no ordenamento jurídico, caso em que receberá o nome de composse edilícia (aparência de condomínio edilício), composse loteada (aparência de condomínio de lotes) e composse multiproprietária (aparência de condomínio multiproprietário). A utilidade prática dessas categorias para essas demais espécies de condomínio edilício volta-se aos casos de irregularidade do respectivo condomínio, tudo para permitir discutir como ficam a proteção possessória e o usucapião. __________ 1 OLIVEIRA, James Eduardo. Posse e interditos possessórios. Brasília: Alumnus, 2013.
Questão das mais relevantes, hodiernamente, reside na atual redação do artigo 1.641, II, do Código Civil pátrio, o qual impõe o regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos. Assim dispõe o aludido dispositivo: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;   III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (grifo nosso) Em que pese a disposição literal do artigo, que trata do instituto do casamento, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que tal imposição também se aplica à união estável, conforme bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 1676/1677): Aliás, o STJ tem entendido que a imposição do regime de separação obrigatória de bens imposto a quem se casar com mais de 70 anos também é aplicável à união estável (STJ, REsp 1.689.152, Rel. Min. Luis Salomão, 4ª T, DJe 22/11/2017). Pela atual regra, que praticamente replicou a disposição do revogado artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, ao se instruir processo de habilitação para o casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, o Oficial do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente deverá, obrigatoriamente, fazer constar de todo o processo, assim como do registro de casamento e das respectivas certidões, que o regime de bens estabelecido para aquele casamento é o da separação obrigatória de bens. Dessa forma, não há a possibilidade de o casal optar, por exemplo, pelo regime da Comunhão Universal, haja vista a disposição legal que impõe, nesses casos, o regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, ressalvada a possibilidade de adoção do regime da separação convencional (CC, art. 1.687), a fim de afastar a incidência da Súmula 377 do Pretório Excelso, conforme dispõe o Enunciado 634 CJF, aprovado na VIII Jornada de Direito, in verbis: É lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF. Deve-se ressaltar que, inicialmente, o Código Civil de 2002 previa a imposição de tal regime no casamento da pessoa maior de 60 (sessenta) anos. Posteriormente, por meio da lei 12.344/2010, houve a ampliação dessa idade para os atuais 70 (setenta) anos constantes da norma. Mister se faz frisar que a motivação de tal disposição reside na preocupação do legislador em preservar a pessoa idosa dos intentos de pessoas "aproveitadoras" e "mal-intencionadas", que poderiam "se aproveitar" de um suposto estado de fragilidade/vulnerabilidade da pessoa maior de 70 (setenta) anos, de forma a preservar o seu patrimônio e garantir a sua subsistência/provisão, protegendo-o de relacionamentos mesquinhos e interesseiros, e, principalmente, do vulgarmente conhecido "golpe do baú". Acontece que, na atual conjuntura e estágio do desenvolvimento humano, em que a ciência evolui exponencialmente a cada ano, influenciando diretamente na qualidade de vida das pessoas, a expectativa de vida do ser humano tem aumentado radicalmente, chegando-se a uma maior longevidade. Para se ter uma ideia, sem o objetivo de adentrar em questões mais científicas, em 1940 a expectativa de vida do brasileiro era de 45,5 anos, enquanto que, em 2018, passou a ser de 76,3. (SENRA, Dante. UOL, 2019) Houve, portanto, um salto na média de vida do brasileiro, que passou a viver mais. Isso fica ainda mais evidente se compararmos a expectativa de vida do homem moderno com a existente, no Brasil, no ano de 1.900, que era de apenas 33,7 anos. (SENRA, Dante. UOL, 2019) O fato é que o brasileiro está vivendo mais e com uma qualidade de vida superior àquela existente há alguns anos. Vê-se, também, atualmente, uma preocupação maior das pessoas com o seu bem-estar físico, com um número crescente de pessoas das mais diversas idades, inclusive idosas, procurando se exercitar nas praças, pistas de caminhadas e academias de todo o país. É evidente que, com o passar dos anos, as coisas tendem a mudar nas vidas de todos; a tendência é que aos 40 não se tenha o mesmo vigor físico que se tinha aos 20, tampouco que uma pessoa com 60, 70 anos ou mais tenha a mesma disposição de uma com 50, mas isso não quer dizer que o idoso não esteja apto a exercer todos os atos de sua vida civil, ainda mais diante do gradual aumento da expectativa de vida e com a preocupação de todos em envelhecer bem e com saúde.   Pensar diferente seria rebaixá-lo a uma vexatória condição de presunção de incapacidade, o que é completamente vedado pelo nosso Ordenamento Jurídico. A idade avançada, por si só, não pressupõe a incapacidade do indivíduo de exercer todos os atos de sua vida civil, normalmente. Muito pelo contrário! Os idosos têm o direito constitucional de envelhecer com dignidade. Aliás, as pessoas idosas detêm algo que nenhum jovem possui: a experiência de vida!   Outra vantagem que as pessoas maduras possuem, ao contrário do que pensam alguns, é o fato de que não estão tão suscetíveis às paixões quanto estão os mais jovens. Penso que, salvo em casos excepcionais, quando uma pessoa mais velha se casa com outra bem mais nova está plenamente ciente de tudo o que envolve essa decisão, fazendo-o dentro de sua autonomia de vontade. Além disso, haja vista o dinamismo social/tecnológico e de troca de informações atualmente existente, as pessoas estão cada vez mais atentas e informadas sobre as mais diversas questões, inclusive sobre "golpes do baú" e tudo o que envolve esse tipo de situação, mostrando-se a norma legal, a nosso ver, deveras ultrapassada. Lembremo-nos que semelhante disposição já constava do Código Civil de 1916, época em que se vivia, definitivamente, uma outra realidade. Digo mais, tal disposição legal, se olhada sob o prisma constitucional, parece ferir terrivelmente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no artigo 1º, III, da Constituição Federal, afrontando, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito, por ser um de seus fundamentos. Além disso, referida norma tutela direito patrimonial em detrimento do direito existencial do indivíduo de ver as suas escolhas prevalecerem e de ser respeitado. Isso fica ainda mais evidente se a analisarmos à luz de uma principiologia civil-constitucional norteadora do Direito de Família Contemporâneo, amplamente aceita pelo nosso Ordenamento Jurídico, sobretudo com relação ao Princípio da Liberdade, Princípio da Isonomia e o Princípio da Autonomia da Vontade, estando tal dispositivo, a nosso ver, eivado de patente inconstitucionalidade. Convém ressaltar, entretanto, que, por se tratar de norma cogente, os Oficiais de Registro Civil, em regra, somente poderão instruir processo de habilitação de casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos, com a adoção de regime diverso daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil (separação obrigatória de bens), caso haja a declaração de inconstitucionalidade de tal dispositivo legal, pelo Poder Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado. Contudo, questão peculiar e que merece destaque é a inerente ao casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, por conversão de união estável iniciada antes dessa idade. Diante dessa situação, indaga-se: nesses casos, o regime de bens do casamento deverá ser o da separação obrigatória de bens? Certamente que não! Dever-se-á, em tais situações, permitir ao casal que adote outro regime de bens para o casamento, sobretudo nos casos em que facilmente se prova a existência da união estável, em razão da existência de filhos do casal e/ou mediante a apresentação de Escritura Pública Declaratória de União Estável ou Contrato de Convivência com firma reconhecida. Explico: Imagine que João e Maria mantiveram uma união estável por mais de 30 ou 40 anos, possuindo vários filhos comuns e decidam se casar já na velhice, como forma de "regularizar" a sua situação. Qual seria a razão de se impor a esse casamento o regime da separação obrigatória de bens ou de enviá-los ao Judiciário para pleitear provimento judicial que autorize a adoção de outro regime? Defendemos, nessas situações, a plena possibilidade de o casal optar, na Serventia de Registro Civil, por um regime de bens diferente daquele estabelecido no artigo 1.641, II, do Código Civil, desde que inexistam outras causas legais de imposição de tal regime. Nesse sentido, fora aprovado, na III Jornada de Direito Civil, o Enunciado 261 do CJF, cujo teor é o seguinte: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos [hoje, setenta], quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade." (grifo nosso) Nesse diapasão, também são as lições de Milton Paulo de Carvalho Filho (2019, p. 2035): Na hipótese específica da união estável iniciada antes que um dos companheiros tenha completado 70 anos, portanto, sob o regime de comunhão parcial, entende-se não aplicável a regra (art. 1.641, II), pois não se pode privar os nubentes dos bens que adquiriram juntos em união estável, por sobrevir casamento sexagenário. (grifo nosso) Convém ressaltar, por derradeiro, que tal entendimento também vale para a formalização da união estável, e não só para o casamento. Desse modo, ao se lavrar, em Tabelionato de Notas, a competente Escritura Pública Declaratória de União Estável de pessoa maior de 70 (setenta) anos, cuja união tenha iniciado antes de tal idade, dever-se-á permitir ao casal que livremente escolha o regime de bens que a regerá. Referências BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021. CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - Coordenação Ministro Cezar Peluso. Barueri[SP]: Editora Manole, 2019. CJF. Enunciado 261 do CJF. Disponível aqui.  Acesso em: 11 fev. 2021 CJF. Enunciado 634 do CJF. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado - Artigo por Artigo. Salvador : Editora Juspodivm, 2020. SENRA, Dante. Expectativa de vida do brasileiro aumentou: o que isso realmente significa? Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.
As irregularidades jurídicas, em regra, comportam sanções punitivas ou anulatórias, destinadas ao retorno do estado de normalidade ou às indenizações. Converter o que para o direito é irregular, tornando-o regular e em conformidade com a lei, é medida excepcional. Talvez, por esta razão, por um bom tempo não houve em nosso ordenamento um sistema destinado a regularização imobiliária. A este fato, é possível acrescentar diversos outros fatores que contribuíram sobremaneira para que em nosso país tenhamos uma vasta quantidade de imóveis irregulares. São fatores históricos, sociológicos, econômicos, culturais e jurídicos que também contribuíram para este cenário. Com relação a um microssistema jurídico que visa sanar as irregularidades imobiliárias, apesar de uma evolução histórica lenta ou praticamente inexistente, ordeiramente, a Lei 13.465 de 2017 estabelece normas centrais de um sistema próprio de regularização fundiária, sendo um importante instrumento de promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel. O objetivo deste trabalho é traçar algumas linhas a respeito da relação das irregularidades imobiliárias com a evolução da legislação de organização e regularização territorial no Brasil. Estima-se que aproximadamente metade dos imóveis no país estão em situação irregular, apesar da existência de um sistema registral eficaz, similar ao de países nos quais esta mesma estimativa se aproxima de zero. A origem destas irregularidades fundiárias no território brasileiro tem ligação direta com a evolução da legislação de organização territorial e urbanística e com seu descumprimento. O primeiro "sistema" jurídico que vigorou no Brasil foi o sistema das sesmarias, pelo qual a terra na colônia era concedida pela Coroa portuguesa para sua exploração agrícola. Decorrido longo tempo, apesar de algumas câmaras municipais terem editado alguns instrumentos com regramentos urbanísticos neste período colonial, foi somente no século XIX, com a chamada Lei de Terras (lei 601 de 1850) e seu Regulamento 1.318 de 1854, que houve um efetivo tratamento da posse e de seu registro, o qual era efetuado pela Igreja na tentativa de diferenciar o que era de domínio público do particular. Um registro de imóveis, com atribuições de transcrever propriamente as transmissões e instituições de ônus sobre imóveis, surgiu somente em 1864, com a lei 1.237, regulamentada pelo decreto 3.453 de 1865. A partir de então as transcrições imobiliárias passaram ser necessárias para operar efeitos para terceiros. Com o Código Civil de 1916, estas transcrições passaram a significar efetiva aquisição do direito de propriedade. Este diploma legal também determinou o registro de ônus hipotecários e estabeleceu a obrigatoriedade do registro de transmissões mortis causa. De outro lado, no que tange a matéria de ordenação e divisão do solo em si, o primeiro texto legislativo federal a esse respeito foi editado somente em 1937. O decreto-lei 58 e seu regulamento, o decreto 3.079 de 1938, apesar de ainda não conter disposições urbanísticas, tratou pela primeira vez do parcelamento do solo, dispondo que quando houvesse intenção do proprietário em subdividir seu imóvel para venda em prestações, por oferta pública, ele tinha o dever do registro do loteamento, depositando em cartório planta e memorial assinados, exemplar do contrato-tipo de compromisso de compra e venda e demais documentos exigidos pela lei. Em relação aos condomínios edilícios, a lei 4.591 de 1964, ainda em vigor, passou a exigir registro prévio e uma série de condições para alienação de unidades imobiliárias futuras em construção, cabendo ao registrador imobiliário a verificação destas condições. A lei 6.015 de 1973 revolucionou o sistema registral, implantando o sistema das matrículas, que substituíram os livros de transcrições, simplificando sobremaneira o a formalização dos negócios jurídicos imobiliários.    Com a chamada Lei de Parcelamento do Solo, lei 6.766 de 1979, em vigor até os dias atuais, que surgiram as regras mais importantes a respeito do loteamento e parcelamento do solo, com grande preocupação urbanística. Foi esta lei que previu parcela mínima da área loteada a ser destinada ao Poder Público para implantação de equipamentos públicos urbanos, comunitários e área de circulação; vedou parcelamento em determinadas áreas, como, por exemplo, áreas alagadiças, sujeitas a inundações, com declive acentuado e em áreas de preservação ambiental; determinou a observação de aprovações urbanísticas e ambientais rígidas, entre outras medidas. Apesar da louvável preocupação do legislador, suas regras foram reiteradamente descumpridas, dando origem a loteamentos clandestinos, que nunca obtiveram nenhum tipo de aprovação ou autorização dos órgãos competentes, e irregulares, aqueles que, apesar de aprovados, não foram executados ou foram executados em descompasso com a legislação ou com os atos de sua aprovação, os quais proliferaram ao longo destes mais de 40 anos. Descumprida a legislação de organização territorial e registral, constata-se a situação de irregularidade fundiária. Para saná-las, faz-se necessário um conjunto de medidas, que são denominadas regularização fundiária, que, historicamente, passou de umas poucas leis municipais até chegarmos a um sistema jurídico organizado com a lei 13.465 de 2017, regulamentada pelo decreto 9.310 de 2018. Alguns municípios e estados, a partir das décadas de 1970 e 1980, sofrendo com a questão do desenvolvimento informal urbano, a despeito de uma política nacional de regularização fundiária, editaram alguns programas de regularização, instrumentalizados por leis ou até por normativas infra legais. Por exemplo, no Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça editou Normas do Serviço Extrajudicial disciplinando a regularização de loteamentos, procedimento feito perante o Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis competente, com participação do Ministério Público e exigência de diversos documentos. Ações de usucapião, historicamente, foram e ainda são amplamente utilizadas como forma de regularização de um imóvel urbano ou rural. Entretanto, observa-se que proporcionam regularização dominial e não há propriamente uma melhora da qualidade de infraestrutura do local, ou preocupação com áreas de risco, problemas sanitários ou ambientais. Vale lembrar que a própria lei 6.766 de 1979 dispõe sobre um mecanismo de regularização de loteamentos, pelo qual o Município fica responsável por finalizar as obras de infraestrutura, levantando os valores depositados pelas adquirentes dos lotes perante o Registro de Imóveis. O embrião da Regularização Fundiária no Brasil foi implementado pelo Estatuto das Cidades, lei 10.257 de 2001, que instituiu diretrizes gerais da política urbana, prevendo expressamente a necessidade da regularização em áreas ocupadas por população de baixa renda, com a simplificação da legislação de parcelamento do solo e normas edilícias. Nesta lei também foi introduzida a usucapião especial coletiva, para regularizar áreas ocupadas por grande número de pessoas. O estatuto da cidade tem louvável iniciativa em estabelecer princípios e objetivos, mas em termos práticos, não ofereceu muito além do que já existia. Vela lembrar que solução para os imóveis irregulares não deve passar apenas por conferir título de propriedade. Deve também haver significativa melhora das condições de vida da população que habita essas áreas. Neste contexto, a lei 11.977 de 2009 (alterada pela Lei 12.424 de 2011), conhecida por instituir o Programa Minha Casa Minha Vida, mudou completamente o tratamento da regularização fundiária, causando significativo avanço no tratamento da matéria, na medida em que implementou uma sistematização de procedimentos a nível nacional, apresentando uma política pública consistente, com procedimentos, critérios e instrumentos próprios. Apesar de vários assentamentos irregulares terem sido regularizados sob a égide da lei 11.977 de 2009, e ela foi revogada pela Medida Provisória 759 de 2016, a qual foi convertida na lei 13.465 de 2017, atualmente em vigor. Conclui-se, assim, que além de diversos outros fatores, a lenta evolução legislativa que trata de organização territorial e de regularização fundiária propriamente dita é diretamente relacionado com a vasta quantidade de imóveis irregulares existentes em nosso país. Quanto maior o cumprimento desta legislação e o consequente imóveis regulares maior será a contribuição para promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel. Referências bibliográficas  ALMADA, Ana Paula P. L., Registro de Imóveis. In: Registros Públicos. GENTIL, Alberto (Coord). São Paulo: Editora Método/Gen, 2020.  AMADEI, Vicente de Abreu. Teoria Elementar da regularização Fundiária. In: Primeiras Impressões sobre a Lei 13.465/2017. AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Wando de Barros. São Paulo: Arisp, 2018.  FERRO JR., Izaías Gomes. 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O crime de tráfico de drogas O tráfico de drogas é um delito com alta repercussão social, danos incalculáveis principalmente aos jovens, vidas muitas vezes perdidas e, portanto, o constituinte dispensou graves sanções a alguns fatos delituosos, especialmente quando envolve as drogas, tendo se estabelecido no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal: "[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem" (BRASIL, 1988). Após ter sido incluído no próprio Código Penal, anteriormente à lei atual, houve a vigência da lei 6.368/76 por praticamente três décadas, mas, nos dias de hoje o tráfico de drogas, propriamente dito, é o previsto no 33 da Lei 11.343/2006, com uma enorme variedade de ações delineadas: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (Incluído pela lei 13.964, de 2019) De outro giro, quanto a crimes militares, o tráfico de drogas está previsto no próprio Código Penal Militar (Decreto-lei1.001, de 21 de outubro de 1969):  Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, até cinco anos. (BRASIL, 1969) Em regra, os crimes de tráfico transnacional de drogas serão julgados pela Justiça Federal da Subseção do local da apreensão; tráfico estadual e interestadual será julgado perante o Juízo de Direito da Comarca de apreensão, enquanto o tráfico cometido em instituições militares ou por militares em serviço serão julgados pelo Juiz Militar Federal, se cometidos por militares das Forças Armadas, ou Juiz Militar Estadual, se cometido por Policiais Militares ou Bombeiros, também do local de apreensão. Por sua vez, o crime (denominado ato infracional) de tráfico transnacional, interestadual ou local, cometido por adolescente, será julgado pela Vara da Infância e Juventude da Comarca, em virtude de determinação específica do Estatuto da Criança e Adolescente, tendo competência absoluta, ainda que conexo a feito em que réus maiores de idades sejam acusados, pois nesse caso há cisão do feito. Em virtude da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça, se houver crime estadual e federal conexos, os dois serão julgados pelo Juiz Federal, o quê implica dizer que muitas vezes haverá crime de tráfico estadual, mas conexo a outro delito federal, por exemplo, contrabando, e os dois serão julgados em conjunto. Por sua vez, a lei 8.072/90, por sua vez, ao tratar dos crimes hediondos, trouxe tratamento gravoso a tais delitos delineados, equiparando o tráfico de drogas, o terrorismo e a tortura aos demais crimes hediondos. O fato de ser equiparado a hediondo, produz, no crime de tráfico de drogas, o fato de que  impossibilita a anistia, graça, indulta, fiança e, precipuamente, a pena será cumprida inicialmente no regime fechado, ou seja, em Penitenciária, conforme artigo 2º da aludida Lei: Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (Vide Súmula Vinculante) I - anistia, graça e indulto; II - fiança. (Redação dada pela lei 11.464, de 2007) § 1o  A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.    Não se pode olvidar, contudo, a Súmula Vinculante 26 do STF, que assevera: "[...] Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico". Portanto, o juízo criminal competente pode efetivar regime inicial diferente do fechado, ou seja, semiaberto ou aberto, caso haja a devida fundamentação. O conceito de droga, por ser tipo penal em branco, é complementado pela Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998, da Anvisa, vinculada ao Ministério da Saúde, sendo que esta é constantemente atualizada, já que novas drogas são descobertas a todo momento. Veja-se que o tráfico de drogas é considerado tão grave pelo legislador que, em regra, o brasileiro naturalizado não será extraditado, com exceção de crime comum cometido antes da naturalização, ou do tráfico de drogas, como define o inciso LI da Carta Magna: "[...] nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei" (BRASIL, 1988). Agora passaremos à uma consequência da condenação, a expropriação de bens. Da Expropriação de bens Importante asseverar que os bens móveis, imóveis, direitos, capitais ou valores utilizados em proveito do tráfico de drogas são expropriados em favor da União, conforme artigo 243 da Carta Magna: "[...] Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. (BRASIL, 1988) Neste aspecto, a legislação brasileira, portanto, é dura e segue a Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, conforme introduzido no Brasil no decreto 154, de 26 de junho de 1991. No artigo 3º, item 5, inclusive, há determinação: 5 - As Partes assegurarão que seus tribunais, ou outras autoridades jurisdicionais competentes possam levar em consideração circunstâncias efetivas que tornem especialmente grave a prática dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, tais como: a) o envolvimento, no delito, de grupo criminoso organizado do qual o delinqüente faça parte; b) o envolvimento do delinqüente em outras atividades de organizações criminosas internacionais; c) o envolvimento do delinqüente em outras atividades ilegais facilitadas pela prática de delito; d) o uso de violência ou de armas pelo delinqüente; e) o fato de o delinqüente ocupar cargo público com o qual o delito tenha conexão; f) vitimar ou usar menores; g) o fato de o delito ser cometido em instituição penal, educacional ou assistencial, ou em sua vizinhança imediata ou em outros locais aos quais crianças ou estudantes se dirijam para fins educacionais, esportivos ou sociais; h) condenação prévia, particularmente se por ofensas similares, seja no exterior seja no país, com a pena máxima permitida pelas leis internas da Parte (BRASIL, 1991) Em tal Convenção, inclusive, em seu artigo 5º, há previsão específica para o confisco dos bens utilizados no delito de tráfico: "[...] ARTIGO 5 Confisco 1 - Cada parte adotará as medidas necessárias para autorizar o confisco: a) do produto derivado de delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3, ou de bens cujo valor seja equivalente ao desse produto; b) de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, das matérias e instrumentos utilizados ou destinados à utilização, em qualquer forma, na prática dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3 (BRASIL, 1991). Os bens móveis, imóveis, direitos, valores ou capitais com qualquer elo ao crime de tráfico de drogas terão perdimento na sentença do Juiz Criminal competente (Federal, Estadual, Militar ou da Vara da Infância e Juventude), em favor da União, conforme o artigo 63, § 1º da lei 11.343/2006: Art. 63.  Ao proferir a sentença, o juiz decidirá sobre: (Redação dada pela Lei nº 13.840, de 2019) - o perdimento do produto, bem, direito ou valor apreendido ou objeto de medidas assecuratórias; e (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019) I - o levantamento dos valores depositados em conta remunerada e a liberação dos bens utilizados nos termos do art. 62 (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019) § 1º Os bens, direitos ou valores apreendidos em decorrência dos crimes tipificados nesta Lei ou objeto de medidas assecuratórias, após decretado seu perdimento em favor da União, serão revertidos diretamente ao Funad. Nesse viés o Supremo Tribunal Federal já julgou o Tema 647 de repercussão geral, sem se perquirir, inclusive, acerca da habitualidade ou não: "[...] É possível o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico de drogas, sem a necessidade de se perquirir a habitualidade, reiteração do uso do bem para tal finalidade, a sua modificação para dificultar a descoberta do local do acondicionamento da droga ou qualquer outro requisito além daqueles previstos expressamente no art. 243, parágrafo único, da CF. (RE 638.491, rel. min. Luiz Fux, j. 17-5-2017, P, DJE de 23-8-2017, Tema 647. Vide AC 82 MC, rel. min. Marco Aurélio, j. 3-2-2004, 1ª T, DJ de 28-5-2004) Neste compasso, verifica-se que: "[...] No contexto da narcotraficância, portanto, para haver o perdimento, não interessa se o bem é lícito ou ilícito. Ocorrerá o confisco tanto dos bens utilizados para a prática do narcotráfico (nexo instrumental), ainda que não tenham sido adquiridos com os rendimentos dessa atividade; como também das coisas provenientes do lucro (direto ou indireto) da atividade, ainda que não sejam utilizadas em prol da narcotraficância, com esteio no art. 91, II, b, do CP (nexo causal) com a traficância". (MASSON, 2019, p. 289) Portanto, quaisquer bens vinculados ao narcotráfico serão expropriados pela justiça criminal, sejam ou utilizados para o crime ou provenientes com o lucro de tal delito, com exceção, obviamente, de terceiros de boa fé - o quê necessitará de prova em tal sentido e verificação na sentença condenatória competente. De qualquer forma, a questão interessante que surge é a relativa aos bens imóveis e seu respectivo registro nas serventias extrajudiciais, em nome da União. É que sabidamente os narcotraficantes utilizam-se de 'laranjas' ou 'terceiros' para a compra de bens imóveis de alto valor, como forma de dissimular a origem do crime e, em geral, também cometem com isto o crime de lavagem de dinheiro, previsto na lei 9.613/98. Ocorre que no momento em que o Juiz competente, na sentença penal condenatória, declara o perdimento em favor da União de bem imóvel, este geralmente não está em nome do réu condenado pelo crime de tráfico de drogas, mas sim de outra pessoa, utilizada para a lavagem do respectivo dinheiro. Aí surge outro questionamento, perante o respectivo Registro de Imóveis, pois dentre os vários princípios registrais previstos na Lei 6.015/73, está o da continuidade, conforme o artigo 195: "[...]  Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro" (BRASIL, 1973). Outrossim, no artigo 273 também se faz alusão ao aludido princípio: "[...] Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro" (BRASIL, 1973). Veja-se que o registrador de imóveis, como delegatário do serviço público, conforme o artigo 236 da CF, deve efetivamente respeitar o princípio da legalidade, sob pena de perda da delegação, pois o princípio da continuidade é: "[...] designativo de uma cadeia formal que vincula ininterruptamente os titulares inscritos (ou tabulares) e seus correspondentes sucessores, de tal forma que a constituição, declaração, modificação ou extinção reflita o histórico jurídico dos imóveis sem qualquer interrupção" (KÜMPEL, 2020, p. 287). Deveras, tal princípio da continuidade: "[...] preconiza um encadeamento entre os assentamentos registrais. Para o lançamento de um ato, é necessário que haja um registro anterior a ele relacionado, de tal maneira que a "série de títulos inscritos produza uma genealogia de titulares" (SARMENTO FILHO, 2018, p. 71) Portanto, inexistindo correlação entre o proprietário do imóvel e o réu em que houve o perdimento do bem, em tese, poderia se cogitar do registrador qualificar negativamente o título judicial, devolvendo-o ao juiz criminal, pois ofenderia diretamente tal princípio. Ocorre que a expropriação delineada no artigo 243 da Constituição Federal é forma de aquisição originária, assim como a desapropriação e a usucapião, dando claro suporte à transferência do título executivo judicial diretamente à União, sendo que a sentença penal condenatória, com trânsito em julgado, em que a condenação do réu e o perdimento do bem imóvel simplesmente já basta para o registro na serventia extrajudicial de registro de imóveis, não podendo o delegatário a isso se opor. Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça já julgou:  "[...] Com efeito, a perda de bens como efeito da condenação pela prática de tráfico de entorpecentes pode ser considerada forma de aquisição originária da propriedade, porquanto, nesse caso, não se tem qualquer ato inter vivos ou mortis causa a constituir, declarar, transferir ou extinguir direitos reais sobre imóvel. Pelo contrário, só a vontade do Estado é idônea a consumar o suporte fático gerador da transferência da propriedade, sem qualquer relevância atribuída à vontade do proprietário ou ao título que possua, sendo ainda ponto inicial da nova cadeia causal que se formará para futuras transferências do bem. Em sendo assim, não há cogitar-se da necessidade de certidão de registro que identifique o proprietário do imóvel para a sua efetivação, haja vista que a sentença que decretou o perdimento do bem do Agravante em favor da União, por si só, é título hábil para a constituição do aludido ente federativo na propriedade do bem. Inegavelmente, em casos tais, o registro da sentença no cartório de imóveis tem cunho eminentemente declarativo e é feito apenas no intuito de dar publicidade ao ato judicial de aquisição da propriedade pela União, tornando-o oponível a terceiros, tal como se infere do art. 172, parte final, da Lei n.° 6.015/73." (e-STJ, fl. 614-615)" (Recurso Especial nº 1632726, rel. Min. Ribeiro Dantas, publicado em 28.11.2019)  Portanto, verifica-se que até mesmo como efeito pedagógico para fins de diminuição do consumo e do tráfico de drogas no País e no mundo, há severas punições aos narcotraficantes no Brasil, seja quanto à pena, seja quanto ao perdimento de bens móveis, imóveis, capitais, direitos ou valores. Por consequência, sabedores de tais punições, os agentes praticantes de tais delitos graves, em regra, utilizam-se da lavagem de capitais para compra de imóveis em nome de terceiros e, em sendo constatada a vinculação de tais bens imóveis com o narcotráfico, o juiz penal competente decretará o perdimento de tais bens, mesmo que inexista o encadeamento entre o titular da propriedade no fólio real do registro imobiliário e o réu da sentença penal condenatória, com trânsito em julgado. Nesse caso, conforme decidido acertadamente pelo Superior Tribunal de Justiça, a forma de aquisição do imóvel pela União será originária e independerá do princípio da continuidade registral, ou seja, de elo entre o proprietário e o réu na sentença penal ou a União, já que a Constituição Federal, com primazia à paz pública e preservação de vidas, determinou que todos os bens vinculados a tal crime equiparado a hediondo serão expropriados, não podendo o registrador de imóveis se negar ao registro do título (sentença penal condenatória com trânsito em julgado), efetivando-se imediatamente o imóvel em nome da União.  Referências preliminares BRASIL, Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2021. _______, Lei 6.015, de 31 dez. 1973. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021. _______, Constituição Federal. 1988. Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2021.  _______, Lei 8072, de 25 jul. 1990. Disponível aqui Acesso em 15 jan. 2021. _______, Portaria 344 do Ministério da Saúde - ANVISA, de 12 de maio de 1998. Disponível aqui. Acesso em 15 jan 2021. _______, Lei 11.343, de 23 ago. 2006. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021; _______, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 638.491, rel. min. Luiz Fux, j. 17-5-2017, P, DJE de 23-8-2017, Tema 647. Vide AC 82 MC, rel. min. Marco Aurélio, j. 3-2-2004, 1ª T, DJ de 28-5-2004) _______, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1632726, Rel. Min. Ribeiro Dantas, publicado em 28.11.2019 BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Herder, 1969, p. 318. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COSTA RICA, San Jose. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível aqui. Acesso em 15 jan. 2021. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de drogas: aspectos penais e processuais. São Paulo: MÉTODO, 2019.  SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. Direito registral imobiliário: teoria geral, Vol I. 2ª impressão. Curitiba: Juruá, 2018
Sabemos que o Brasil, dentre tantos males que o assolam, é atingido pelo "costume" dos próprios brasileiros de atuarem "sem compromisso", em desconformidade com as Leis, visando a algum benefício pessoal em detrimento do todo. O pensamento de muitos é no sentido de que: "a lei é boa, mas para os outros", ou ainda: "Se eu for esperto, pago menos tributos". Enganam-se com tais atitudes quem assim pensa, porque o Brasil somos todos nós e o que eu faço para o Brasil o faço para mim mesmo. Mas assim é, e tem sido por muitos anos... Porém, podemos mudar paradigmas, comportamentos arraigados, se o Estado (QUE SOMOS NÓS) agir de forma conjunta por meio de seus agentes, nas diversas esferas de poder, no sentido de criar-se uma nova cultura, uma cultura da Unidade Nacional - Universal, de que cada um, cada agente público é o próprio Brasil e que todos temos deveres e direitos recíprocos e responsabilidades dentro da esfera de nossa atuação pública. Cada um de nós, agentes públicos, ao assumirmos nossos cargos e funções, assumimos também compromissos para com o povo brasileiro (que é muitas vezes "inconsciente"  de seus atos por falta de oportunidades/educação), e em conjunto, podemos agir de forma propiciar a construção de um País forte e ético, deixando um legado positivo para as futuras gerações. Nesse aspecto, tem-se que os Registros Públicos são órgãos que desempenham um Serviço Público Essencial (delegado) e podem ter um papel crucial nesta mudança de paradigma, necessário para construção de um Brasil melhor, atuando - por meio de seus agentes (Titulares) - a serviço da moralidade, dificultando com tal prática, que a fraude e a clandestinidade impere no País. Dentre estes males e costumes arraigados a que me referi, há um que atinge de forma coletiva a todos, que é a clandestinidade imobiliária: Os chamados "contratos de gaveta", prática que retira do mercado formal e, por consequência, da esfera de tributação estatal, milhões de imóveis no País1. Ainda, os "contratos de gaveta" dão causa a milhares de processos nos tribunais, uma vez que cerca de 30% (trinta por cento) dos mutuários brasileiros são usuários desse tipo de instrumento2,, causando, por consequência, a tão falada "lentidão do judiciário", que precisa  voltar seu trabalho a resolver lides que seriam desnecessárias, se todos simplesmente cumprissem a Lei dos Registros Públicos. Essas lides são geradas porque o "comprador", na maioria das vezes, vem a ter prejuízos pela não utilização do Sistema dos Registros Públicos e ter optado por ficar à margem da lei. Dentre estes prejuízos, posso citar os que seguem : o imóvel vem a ser constritado judicialmente em razão de dívida do vendedor; o vendedor falece e o imóvel precisa integrar seu  inventário e o comprador acaba tendo lides com os herdeiros; ou ainda, o vendedor negocia o mesmo imóvel com terceiros e todos acabam na "justiça"3. Estes contratos que não são levados aos Registros Públicos são assim mantidos por anos, décadas a fio, sendo utilizados de forma usual por quem pretende ocultar patrimônio do Fisco (que somos todos nós), atingindo o Brasil nas mais diversas áreas (saúde, educação, organização e estrutura das cidades, etc). Atinge também os mais diversos credores de mal pagadores, que restam impossibilitados de constritar (penhorar, arrestar, sequestrar, etc.) bens ou direitos do devedor faltoso. Esses contratos também advogam a favor da criminalidade, porque servem para a chamada "lavagem de dinheiro". Prestam-se à sonegação tributária em várias esferas, Estadual, Municipal e Federal (Imposto de Renda, Lucro Imobiliário, ITBI, ITCMD). E, retiram da economia um produto propulsor de melhorias sociais, pois quem não tem imóvel registrado não tem patrimônio formal e, consequentemente, não tem crédito... Ainda, ofendem a Ordem Pública e a Ordem Jurídica em geral, porque o Sistema dos Registros Públicos foi criado para a Segurança, Autenticidade e Eficácia dos negócios jurídicos e os registros devem espelhar, quanto mais possível, a realidade (Verdade Real). Como registradora, venho desde que assumi a função pública de que sou Titular, buscando criar esta "cultura nova" da ética comercial imobiliária, na comarca em que atuo, conscientizando e promovendo divulgação dos benefícios do "imóvel legal", dentro da lei, registrado e matriculado, mas a tarefa é árdua! Tenho trabalhado  diariamente na comarca onde atuo de forma a exigir o registro de contratos de gavetas, das cadeias dominiais, visando a conscientização social, mostrando a responsabilidade de todos para com o bem comum, exigindo o recolhimento de tributos por quem visa a sua elisão. Porém, penso que a prática negocial dos "contratos de gaveta" somente será expurgada do nosso país, quando houver sanção prevista por Lei para a ausência de  seu registro imobiliário e os poderes públicos - dentre eles o Judiciário - passarem a aplicar a Lei dos Registros Públicos de forma geral, respeitando o seu espírito, e com isso, desestimulando-se a manutenção da informalidade e clandestinidade nas relações jurídico-imobiliárias no Brasil. Feita esta explanação inicial, passo a tratar dos aspectos jurídicos que envolvem o tema, trazendo a opinião da doutrina e o entendimento da jurisprudência atual, bem como decisões em Suscitações de Dúvida, que efetuei no decorrer destes quase 17 anos de atuação como registradora. Inicialmente, é importante destacar que o objeto deste estudo é o contrato que pode ser registrado validamente, mas que por "vontade das partes" é retirado do mundo jurídico, ou seja, do Sistema dos Registros Públicos, visando a alguma vantagem com isso (evasão tributária, iludir credores, ou até mesmo familiares). Não tratamos aqui, portanto, de outra questão tão ou mais séria que os "contratos de gaveta" que são os imóveis ilegais, aqueles que por não terem matrícula, não podem ingressar no Sistema Registral. Nestes casos, estão incluídos os parcelamentos irregulares, as favelas, etc., que tanto atentam contra o meio ambiente e o ordenamento das cidades.  Clique aqui e confira a coluna na íntegra. *Franciny Beatriz Abreu é registradora pública  na Comarca de Porto Belo/SC. __________ 1 "Metade dos imóveis urbanos no país não tem escritura. São nada menos que 30 milhões de propriedades nessa situação. Em Minas, 3 milhões não têm registro", acesso realizado  em 28/01/2020. 2  Notícia veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça - Coordenadoria de Editoria e Imprensa, em 26/05/2013. 3 Com relação aos contratos de gaveta, o STJ firmou entendimento no sentido de que a ausência de registro não retira a validade do contrato de promessa de compra e venda, porém cabe ao credor comprovar a má-fé dos terceiros adquirentes a fim de anular o registro efetuado em cartóriO: "AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO E DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. IMPROCEDÊNCIA. CONTRATO PARTICULAR DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO REGISTRADO. POSTERIOR COMPRA E VENDA. ESCRITURA LEVADA A REGISTRO. AUSÊNCIA DE PROVA DE SIMULAÇÃO OU DE MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PROVIMENTO NEGADO. 1. A jurisprudência deste eg. Tribunal já se consolidou no sentido de considerar que, nos casos de ausência do registro do contrato particular de compra e venda, cabe ao credor provar a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. Precedentes. 2.No caso, não houve registro imobiliário do contrato particular de promessa de compra e venda dos recorrentes. Tampouco foi provada a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. 3.Diante do contexto fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, incide o óbice da Súmula 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 320.470/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017)".
Inicialmente, gostaríamos de fazer a seguinte observação: Atos nulos não devem ser praticados por notários e registradores. Nesse ponto, não há divergência. A polêmica surge quando se trata de atos anuláveis. O tema tem dividido opiniões. Duas indagações são necessárias para começarmos a refletir sobre o assunto. 1)- Existe algum dispositivo legal, no ordenamento jurídico brasileiro, que proíba a prática de ato anulável, ou seria, tão somente, não recomendada a sua realização? 2)- Na falta de proibição legal, ou, no mínimo, de uma posição jurisprudencial a respeito, poderiam os notários e registradores se recusar a realizar o ato? Pesquisas não externam no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo legal que proíba a prática de atos anuláveis, pelo contrário; existem regras estabelecidas, no Código Civil Brasileiro, que, além de citar alguns casos passíveis de anulação, trazem detalhes e preceitos importantes, que, a nosso ver, demonstram que o legislador admitiu a prática de atos anuláveis. Vejamos, por exemplo, o artigo 172, do referido diploma legal: "O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro". Convenhamos, para que isso aconteça, certamente o negócio tem que ter sido realizado previamente. Outro exemplo é o artigo 176, do CC, que, a nosso ver, também reforça o convencimento de que o legislador sempre entendeu possível a prática de ato anulável, do contrário, não teria sentido algum a previsão ali contida, "Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente". O artigo 176, do CC, se dá, por exemplo, quando da realização de uma escritura pública de venda e compra de pai para filho, onde, um dos irmãos não compareceu dando sua anuência, mas o fez posteriormente, validando o ato. Isso é comum, pois, muitas vezes, um dos filhos está morando fora do país, e não consegue participar do ato, e acaba enviando, posteriormente, sua concordância de forma expressa. Outro exemplo sobre o dispositivo acima citado, que acontece frequentemente na prática, se dá quando o condômino que não deu a sua anuência no momento da celebração da escritura de venda e compra para terceiro, seja por não estar presente, ou por qualquer outro motivo, declara, posteriormente, e de forma expressa, a sua concordância com a venda realizada, validando totalmente o ato, mesmo antes de qualquer prazo decadencial estabelecido por lei, para anulabilidade do ato. Pela leitura dos artigos que tratam de anulabilidade, nota-se que existem aquelas que contêm vícios mais graves, como os contidos no artigo 171, incisos I e II. Atos anuláveis contendo esses vícios, certamente não serão realizados por notários e registradores, se cientes de sua existência. Tais vícios, no entanto, podem não ser identificados no ato, e neste caso, certamente não seriam os notários registradores responsabilizados pelo ato, caso não tenham condições nenhuma de saber. O professor Zeno Veloso (carinhosamente chamado por muitos de nós, seus alunos, de "mestre dos mestres"), ao abordar o tema em recente artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém, além de nos brindar com uma excelente aula sobre nulidade e anulabilidade, chama a atenção para o fato do ato anulável, enquanto não sanada a possibilidade de anulação, tratar-se de negócio inválido, mas ressalta que, desde que nasce e até que sobrevenha a anulação, o negócio anulável é eficaz. O estudioso Tabelião de Notas José Hildor Leal entende que os negócios anuláveis a que se refere o artigo 171, incisos I e II, do Código Civil, são inválidos; no entanto, alega que outros negócios, embora anuláveis, tal como a venda de ascendente a descendente, venda a terceiros sem a anuência de condômino, ou, ainda, de bem particular sem vênia conjugal, desde que não carreguem em si os vícios a que se refere artigo 171, como incapacidade relativa do agente, erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores, são válidos, até que sejam anulados por sentença judicial. Na visão de Hildor, e de muitos notários e registradores, há atos anuláveis inválidos - os que carregam vício em seu bojo - e atos anuláveis válidos, vale dizer, aqueles que cumprem as disposições do artigo 104: agente capaz, objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei. De qualquer modo, o fato é que não há divergência em serem, os negócios anuláveis, eficazes. Assim nos ensina o mestre Pontes de Miranda, que diz: "O anulável produz efeitos. Só os deixa de produzir quando transita em julgado a sentença constitutiva negativa. Então, apagam-se, como se não tivessem sido (eficácia ex tunc), os efeitos anteriores". Desse modo, por terem eficácia, e pela falta de proibição legal expressa para a prática dos mesmos, entendemos que não se pode negar a realização de todo e qualquer ato anulável, sob pena de ferir a liberdade contratual das partes. Assim, no nosso entender, o Tabelião terá que analisar caso a caso, para fazer valer as prerrogativas que se esperam da sua atuação, de garantir as vontades das partes. Com isso, como já dito, não deixamos de reconhecer que pode haver situações em que realmente possa haver a recusa de se realizar o ato, seja por estar enquadrado em uma das hipóteses do artigo 171, do CC, seja pela existência de entendimento jurisprudencial sobre aquele ato específico. A falta de vênia conjugal, nos casos exigidos por lei, é um exemplo de ato anulável que muitos notários e registradores do Estado de São Paulo se recusam a praticar, mas não somente pelo fato de ser anulável, e sim pela existência de jurisprudência nesse sentido (CSMSP - Apelação Cível: 1000050-19.2019.8.26.0236 / CSMSP - Apelação Cível: 1033886-29.2017.8.26.0114). Reconhecemos que até mesmo a falta de vênia conjugal estaria entre as hipóteses possíveis de se realizar o ato, que poderia ser convalidado posteriormente; no entanto, a existência de jurisprudência em sentido contrário, possibilita a recusa justificada por parte dos notários e registradores. A título de informação, em nosso país, há décadas, muitos notários e registradores praticam determinados atos anuláveis. Existem Estados que possuem até previsão normativa sobre o tema, a exemplo do Estado de Pernambuco, que traz a seguinte determinação: "O notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita" (Código de Normas, art. 221, §2º). E, para enriquecer um pouco o tema, analisamos como vem sendo tratado esse assunto na prática, ou seja, no dia a dia da sociedade, dos notários e registradores, e, também, como a jurisprudência vem tratando esse tema. Encontramos algumas decisões judiciais, principalmente no Estado de São Paulo, que tratam da possibilidade de se lavrar e registrar determinados atos anuláveis; a mais recente é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, inclusive, enfatizou que o registro, na falta de prova da comunicação ao interessado na anulabilidade do ato, servirá para o começo do prazo decadencial para se pleitear a anulação do ato (REsp nº 1.628.478 - MG - 2016/0252768-1). Entendemos que a recusa por parte dos notários e registradores, de praticar um ato anulável que lhe seja solicitado pelas partes contratantes (escritura e registro), mantendo como a única justificativa da recusa o fato de se tratar de um ato anulável, fere a liberdade contratual das partes, contida nos artigos 421 e 422, do CC, além de ir de encontro com as obrigações legais impostas a esses profissionais do direito, por exemplo, a de atender as partes de modo eficiente e adequado, garantindo a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, conforme determina a lei 8.935/94. Importante ressaltar que os notários e registradores são os únicos que detêm atribuições legais para a prática de determinados atos, e, ao se recusarem, retiram das partes o direito de praticarem aquele negócio jurídico. Um exemplo bem simples seria a regra contida no artigo 108, do CC, que determina que imóveis acima de 30 (trinta) salários mínimos, salvo disposição legal em contrário, necessitarão de escritura pública para sua validade, assim como, as partes só conseguirão registrar sua aquisição no registro de imóveis. Isto mostra que, em determinados casos, as partes só terão os notários e registradores para solicitarem a prática do ato, e, ao se negarem a realizar o ato sem que haja expressa proibição legal para tanto, ou, pelo menos, a existência de jurisprudência nesse sentido, estarão prejudicando muito as partes solicitantes, que terão seus direitos totalmente violados. Logicamente, antes de acatar o pedido, será necessário realizar as devidas orientações a respeito, mas este será o tema da continuação desse singelo artigo, que trará, inclusive, um link de acesso a uma pesquisa realizada com inúmeros notários e registradores do país, sobre a necessidade de publicidade do fato da anulabilidade do ato, tanto na escritura, como na matrícula. Por ora, a respeito do tema, e tomando por base a pesquisa citada, podemos adiantar que, dos 122 entrevistados até o momento, 120 entendem pela possibilidade de se praticar determinados atos anuláveis, a depender do caso, e com as devidas orientações a respeito, contra 02 entrevistados que acreditam não ser possível lavrar ato anulável, seja qual for. Assim, em relação à possibilidade de se realizar determinado ato anulável, não há muita divergência. A divergência surge em relação a dar, ou não, publicidade sobre a questão da anulabilidade na escritura e na matrícula do imóvel, como veremos no próximo artigo. Enfim, até o presente momento, defendemos a possibilidade de se realizar e registrar determinados atos anuláveis, trazendo, inclusive, jurisprudência nesse sentido. Em complemento a isso, gostaríamos de trazer aos leitores as informações de como é tratado esse tema em Portugal. Para isso, entrevistamos a Professora Dra. Mônica Jardim, que assim explicou: Os notários podem e devem realizar escrituras de quaisquer negócios anuláveis, pois tal não é causa de recusa. Mas, devem advertir as partes e fazer constar tal advertência da escritura. Por sua vez, tendo em conta que a anulabilidade pode ser sanada e que mesmo que tal não ocorra nem sequer é do conhecimento oficioso pelos tribunais, pois só pode ser invocada pelos interessados e em determinado prazo, os registradores devem de fazer o registro como definitivo. Se o negócio vier a ser anulado o registro será cancelado se, ao invés, a anulabilidade não for arguida no prazo legal, o registro já está feito. Existem, no entanto, umas hipóteses de anulabilidade em que os notários celebram a escritura (fazendo a advertência às partes e fazendo-a constar da escritura), mas os registradores têm de fazer o registo apenas como provisório por natureza. A saber: em decorrência da anulabilidade do negócio jurídico por falta de consentimento de terceiro ou de autorização judicial, antes de sanada a anulabilidade ou de caducado o direito de arguí-la, tal como no caso de ineficácia do negócio jurídico, for celebrado por gestor ou por procurador sem poderes suficientes, antes da ratificação. Com essa informação, notamos que em Portugal, assim como no Brasil, é perfeitamente possível a lavratura de atos anuláveis, e, já entrando no tema deste artigo, a publicidade sobre a anulabilidade nos atos praticados (escritura e registro) também é algo praticado naquele país, sendo este o posicionamento que defenderemos, a seguir. Ao lavrar ou registrar um ato anulável surge a seguinte dúvida: É necessário dar publicidade à anulabilidade existente no negócio jurídico? Esse tema tem dividido opiniões. A grande maioria dos notários e registradores entende ser prudente e necessário, ao lavrar um ato anulável, mencionar essa circunstância no corpo da escritura, com que concordamos plenamente, pelos motivos a seguir elencados: 1º)- para que fique comprovado que o Tabelião orientou as partes envolvidas a respeito desse fato,  advertindo-as de todas as possibilidades futuras; 2º)- para que as partes envolvidas possam declarar que, cientes da possibilidade de anulabilidade, assumem total responsabilidade pelo negócio jurídico que está sendo realizado; 3º)- para dar publicidade desse fato, que é de extrema importância, fazendo com que terceiros de boa fé, que eventualmente se interessem em adquirir o imóvel futuramente, estejam cientes dessa possibilidade de anulação; e, 4º)- para respaldar o registrador de imóveis, que poderá se valer da informação contida no título aquisitivo (escritura), para dar a publicidade necessária do fato na matrícula. Quando o assunto é a necessidade de se dar publicidade à anulabilidade na matrícula do imóvel, as opiniões estão bem divididas, no entanto, percebemos que muitos notários e registradores mudaram de opinião recentemente, passando a entender, assim como nós, que a publicidade na matrícula, tal como na escritura, é importantíssima. Essa mudança de entendimento pode ser comprovada pela pesquisa que realizamos, a qual ficará à disposição dos leitores ao final deste artigo. Defendemos que não só é necessária a publicidade na escritura e na matrícula, como deveria ser obrigatória. Essa publicidade é muito importante, pois será por meio dela que a sociedade terá conhecimento desse risco, dessa possível mácula existente sobre aquele imóvel, possibilitando, assim, que qualquer interessado possa tomar conhecimento do risco, enquanto ele existir. A notícia de modo expresso, tanto na escritura, como na matrícula, além de ser uma importante ferramenta de prevenção de litígios, protegendo terceiros de boa fé que estejam interessados em adquirir o imóvel no futuro, também protege os notários e registradores, que poderão comprovar que alertaram as partes e a sociedade sobre o fato, cumprindo, assim, sua importante função de dar publicidade, assessorar juridicamente as partes, prevenir litígios e promover ampla segurança jurídica. Não comungamos do entendimento de que muita informação na matrícula do imóvel pode "poluir" a mesma, ou, ainda, causar confusão. Muito pelo contrário; quanto mais informações relevantes, melhor. O que é necessário, a nosso ver, é que tais informações sejam verdadeiras, importantes e precisas. Em nossa visão, se bem redigidas, não há como causar confusão. Dar publicidade à verdade dos fatos não é nenhum absurdo, muito pelo contrário, é dever dos notários e registradores. Afinal, essa é uma das mais importantes missões atribuídas por lei aos notários e registradores, ou seja, a de dar publicidade, garantindo-se a máxima segurança jurídica para toda sociedade. Defendemos que, no registro de imóveis, a situação não deve ser diferente, há de se seguir a mesma lógica. Desse modo, também entendemos que pode, e deve, o registrador, ao efetuar o registro do título, inserir na matrícula o fato da anulabilidade existente, logicamente, se estiver expressa tal informação no título (escritura), uma vez que, se deixar de constar na matrícula, o registrador estaria omitindo uma informação importantíssima contida no título, colocando em risco terceiros de boa fé. Entendemos que os notários e registradores precisam se adequar às reais e atuais necessidades da sociedade, para serem cada vez mais úteis, e, para isso, é necessário evoluir, se desapegando de certos formalismos, de certas regras ultrapassadas, que em nada contribuem, só os distanciam cada vez mais da realidade atual do mercado, e dos anseios da sociedade. Sobre a publicidade na matrícula, chamamos a atenção do leitor para a seguinte reflexão: Qual seria o prejuízo em dar publicidade na matrícula sobre o risco de anulabilidade? Alguns vão dizer que pode passar a dificultar o tráfego imobiliário, retirando o bem de circulação, ou que a publicidade desse fato prejudicará o mercado imobiliário. Discordamos dessa afirmação, pois a lavratura e registro de ato anulável não são a regra, mas exceção, portanto, isto em nada prejudicará o mercado imobiliário, muito pelo contrário, irá contribuir, pois irá trazer um alerta à sociedade sobre o risco de ser anulada a transação anterior, gerando, ainda, a possibilidade para os interessados na aquisição do imóvel, de: 1º)- buscarem mais detalhes sobre essa mácula; 2º)- descobrir se o vício ainda existe, ou, foi sanado, mas ainda não levaram essa informação para a matrícula; 3º)- caso ainda exista, qual seria a proporção do mesmo, e, se ainda assim, o negócio é viável; e, 4º)- em determinados casos, poderia o interessado exigir com antecedência do proprietário, que se responsabilize em sanar o vício dentro de um prazo pré-estabelecido, retendo parte do pagamento para ser realizado após o cancelamento da possibilidade de anulação na matrícula. Além disso, se pensarmos em prevenção de litígio, atribuição dada aos notários e registradores, veremos que a inclusão da informação sobre a possibilidade de anulação do ato, tanto na escritura, quanto na matrícula, poderá evitar possíveis problemas futuros entre terceiros de boa fé, ou seja, entre aquele que comprou sem saber, portanto, de boa fé, e aquele que conseguiu anular posteriormente, demonstrando que foi lesado, que também era de boa fé. Casos como estes poderão ser evitados, pois o que comprar não poderá alegar desconhecimento, tendo em vista estar de modo expresso, tanto no título aquisitivo (escritura), como na matrícula do imóvel. Doutrinadores conhecidos e respeitados do Direito Notarial e Registral também mudaram a opinião a respeito do tema, a exemplo do mestre Leonardo Brandelli, registrador de imóveis no Estado de São Paulo e autor de importantes obras de Direito Notarial e Registral, que nos informou que atualmente entende pela possibilidade de lavrar e registrar determinados atos anuláveis, e acredita que o melhor caminho é constar o fato tanto na escritura, como na matrícula, e, nesta última, a publicidade pode ser feita no próprio registro. O professor Brandelli explicou que seu novo posicionamento será inserido na próxima atualização de sua obra. Uma última análise, que também divide opiniões na atividade notarial e registral, é sobre o melhor meio para se fazer constar essa notícia na matrícula, se no próprio ato do registro, ou se por meio de uma averbação realizada na sequência. Os que defendem ser no registro, pensam que isso garante às partes uma economia, o que resulta em não ferir o princípio da economia para as partes. Alguns adeptos a essa corrente também alegam que a averbação não poderia ser de ofício, por falta de previsão legal e em obediência ao princípio da rogação. Já os que defendem ser por meio de averbação, alegam que não há que se falar em rogação, pois a informação consta no título, e o ato da averbação traria mais destaque a essa questão, o que contribuiria para a segurança jurídica da sociedade. Também defendem que o rol das averbações é exemplificativo, portanto, não há que se falar em previsão legal expressa para tal averbação. Alguns também defendem o fato de que no registro não há como inserir tal informação, uma vez que nele só são inseridas as informações sobre transferência de titularidade. De nossa parte, entendemos que ambos os argumentos são consideráveis, mas, apesar de achar que independentemente da forma que será levada essa notícia para a matrícula, o que importa é que esteja nela inserida, nos simpatizamos mais com a ideia de já constar no registro, uma vez entendermos que, na dúvida, melhor priorizar a forma mais econômica para as partes, também contribuirá para o aspecto visual da matrícula. Sobre a forma de se levar para a matrícula que não há mais a possibilidade de se anular o ato, todos entendem que seria possível uma averbação, realizada pelo registrador, a pedido da parte interessada, desde que apresentados os documentos que comprovem essa situação. Por fim, com o intuito de contribuir para o aprimoramento dos atos praticados pelos notários e registradores, entendemos que, para a boa técnica notarial e registral, os notários poderiam inserir no texto da escritura que as partes requerem e autorizam o Oficial de Registro de Imóveis competente a praticar todos os atos necessários para dar publicidade à possibilidade de anulabilidade contida no ato, assim como averbar os fatos que comprovem que o ato não é mais passível de anulação, quando da apresentação dos documentos que comprovem a real situação. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias. *Arthur Del Guércio Neto é tabelião de Notas e Protestos em Itaquaquecetuba. Especialista em Direito Notarial e Registral. Especialista em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica. Escritor e Autor de Livros. Palestrante e Professor em diversas instituições, tratando de temas voltados ao Direito Notarial e Registral. Coordenador do Blog do DG (www.blogdodg.com.br)   **João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pela USP - Ribeirão Preto (2019). Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera - Uniderp (2012). Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR (2010). Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP (2005). Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999.
Introdução  Este artigo tem o propósito de tratar da revogação da Instrução Normativa 17 B do INCRA e suas nuances, consequências jurídicas. Para isso, será necessário introduzirmos falando sobre a criação do INCRA, sua natureza jurídica, atribuições e poderes; o que dispunha esta instrução normativa, para depois entrarmos no tema específico deste artigo. O INCRA, sigla que denomina o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, foi criado pelo decreto-lei 1110, de 09 de julho de 1970, como entidade autárquica, vinculada ao Ministério da Agricultura, passando a ter todos os poderes, atributos e competências que tinham o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário e o Grupo Executivo da Reforma Agrária, órgãos que foram extintos à partir da criação da Autarquia. (artigos 1° e 2 do DL 1110/1970). Seu objetivo principal é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. Como entidade autárquica, possui autonomia financeira e administrativa, não possuindo subordinação à União, mas, se submetendo ao controle finalístico pelo Ente que o criou. No que tange às Autarquias, fica a lição da doutrina de MATHEUS CARVALHO (p.178, 2019): "As autarquias serão criadas por lei. Elas são pessoas jurídicas de direito público que desenvolvem atividade típica do Estado, com liberdade para agirem nos limites administrativos da lei específica que as criou. (...)" Como corolário de sua natureza autárquica e de suas autonomias administrativa e financeira, o Incra possui a prerrogativa de produzir normas técnicas e administrativas, visando alcançar seus objetivos estatutários e finalísticos. Tais normas, sempre produzidas por corpos técnicos, são aprovadas por um Conselho de Direção do Incra, para posteriormente serem assinadas pelo seu presidente. Uma dessas normas técnicas expedidas pelo INCRA foi a Instrução Normativa 17-B, que teve início de vigência em 22 de dezembro de 1980.  Tal instrução normativa teve como objetivo disciplinar hipóteses específicas de fracionamento de imóveis rurais.  Na verdade, disciplinava três possíveis hipóteses de fracionamento ou parcelamento de imóveis rurais. A primeira hipótese, nos termos das alíneas 21, 22 e 23 da citada Instrução Normativa, dizia respeito ao parcelamento, para fins urbanos, de imóvel rural localizado em zona urbana ou de expansão urbana. Nesses casos, o INCRA entendia que se aplicava a lei 6766/76 e, eventuais leis estaduais ou municipais, cabendo à Autarquia apenas a atualização do cadastro rural do imóvel, com seu cancelamento (se a transformação em urbano abrangesse a totalidade do imóvel), ou retificação (caso abrangesse apenas parte do imóvel rural). A segunda hipótese, tratava de parcelamento, para fins urbanos, de imóvel rural localizado fora de zona urbana ou de expansão urbana. Conforme o disposto nas alíneas 31, 32, 33, 34, 35 e 36 da Instrução Normativa, caberia apenas prévia audiência ao INCRA, como condição para aprovação de tal tipo de fracionamento ou parcelamento do imóvel rural. Teriam como fundamentos o artigo 96 do decreto Federal 59428, de 27/10/1966 e artigo 53 da lei 6766/73. Aplicam-se aos casos de projetos de Loteamentos rurais com vistas à: a) urbanização, industrialização e formação de sítios de recreio; b) em áreas urbanas ou em áreas que estejam incluídos em planos de urbanização; c) ou oficialmente declarada pelo Município à qual integra como local turístico, ou caracterizada como estância hidromineral ou balneária; d) ou ainda, comprovadamente tenha perdido suas características produtivas, tornando antieconômico o seu aproveitamento. Para a audiência, o proprietário tinha que apresentar um requerimento por escrito, e comprovar tais circunstâncias possíveis por declaração do Município ou através de um circunstanciado laudo técnico expedido por um técnico habilitado. Já a terceira e última hipótese tratava de parcelamento, para fins agrícolas, de imóvel rural localizado fora da zona urbana ou de área de expansão urbana. Para estes casos, era necessária uma prévia aprovação do INCRA do projeto de Loteamento ou Desmembramento. O procedimento estava previsto nas alíneas 41 até 48 do citada Instrução Normativa 17-B, e, trazia uma enorme lista de exigências de documentos referentes ao imóvel; ao tipo de fracionamento, Loteamento ou Desmembramento; assim como observância aos ditames do artigo 61 da lei 4504/1964; artigo 10 da Lei 4947/66; artigos 93 e seguintes do Decreto 59428/66, e artigo 8° da lei 5868/72. Uma questão interessante à ser abordada aqui é que eram condições essenciais para a aprovação do fracionamento, o plano de exploração econômica do imóvel (destinação rural), assim como o respeito à fração mínima para parcelamento do imóvel rural, previsto no Certificado de Cadastro do Imóvel (CCIR). Assim, cada gleba à ser loteada ou desmembrada tinha que estar dentro do previsto como o mínimo para parcelamento; o proprietário ou adquirente tinha que exercer a função social do imóvel rural vinculado à um projeto de exploração econômica racional e adequado, respeitando as regras ambientais que, porventura, incidiam sobre o imóvel. Com relação aos Desmembramentos, a doutrina majoritária entendia que era dispensada a autorização prévia e formal do INCRA, sob o fundamento que a previsão da fração mínima para parcelamento nos CCIRs dos imóveis já configurava como uma autorização implícita para a realizações destes tipos de fracionamentos. Da revogação da instrução normativa 17-B do INCRA A lei 10267 de 28 de agosto de 2001, alterou dispositivos da lei 5868, de 1972, que é a lei que criou o Sistema Nacional de Cadastros de Imóveis Rurais. Assim, o artigo 1° da lei 5868/72, passou a ter a seguinte redação em seu parágrafo primeiro: "As revisões gerais de cadastros de imóveis a que se refere o parágrafo quarto do artigo 46 da lei 4504, de 30 de novembro de 1964, serão realizados em todo o país, nos prazos fixados em ato do Poder Executivo, para fins de recadastramento e de aprimoramento do Sistema de Tributação da Terra-STT e do Sistema Nacional de Cadastro Rural- SNR"; já o seus parágrafos segundo, terceiro e quarto, trouxeram a criação de um cadastro nacional de imóveis rurais (CNIR), que terá base comum de informações, gerenciada conjuntamente pelo INCRA e pela Secretaria da Receita Federal, produzida e compartilhada pelas diversas instituições públicas federais e estaduais produtoras e usuárias de informações sobre o meio rural brasileiro, com uma base comum, adotando um código único, a ser estabelecido em ato conjunto do INCRA e da Secretaria da Receita Federal, para os imóveis rurais cadastrados de forma a permitir sua identificação e o compartilhamento das informações entre as instituições participantes. Após a edição desta lei, o Poder Executivo expediu o Decreto Federal 4449, de 30 de outubro de 2002, com o objetivo de regulamentar as questões relativas às emissões dos chamados CCIR (Certificado de Cadastros de Imóveis Rurais); a relação entre os Registros de Imóveis e o INCRA, no que tange as informações de criações ou alterações de cadastros; a criação de um Cadastro Nacional de Imóveis Rurais; e, por fim, regras sobre prazos e procedimentos à respeito de georreferenciamentos de imóveis rurais. Assim, buscando adequação das suas normas técnicas com as recentes leis inovadoras ou alteradoras das regras que já incidiam sobre os imóveis rurais, em decorrência dos avanços tecnológicos que permeiam toda a Sociedade em seus diversos segmentos, o INCRA resolveu fazer uma revisão de suas normas técnicas e tentar, assim, uma melhora significativa dos seus serviços e um controle mais eficiente do ordenamento fundiário nacional. Nesse diapasão, sobreveio a Instrução Normativa 82 do INCRA, que dispõe sobre os procedimentos para atualização cadastral no Sistema Nacional de Cadastro Rural, e dando outras providências. Trouxe um aperfeiçoamento no que tange as regras para criação, alteração, retificação ou cancelamento dos cadastros, permitindo que o requerimento seja feito na forma eletrônica. Até o advento desta norma administrativa, o requerimento era feito por escrito à uma Superintendência Regional da Autarquia ou à algum agente credenciado no Município em que se localizava determinado imóvel rural. Este avanço tecnológico foi muito importante para facilitar maior acesso ao Sistema e, ao mesmo tempo, permitir um cadastro mais seguro, com maiores informações à respeito dos imóveis rurais e maior aperfeiçoamento do controle fundiário. No entanto, esta mesma Instrução Normativa, no capítulo das disposições finais, mais precisamente em seu artigo 35, revogou expressamente as Instruções Normativas 66, de 30 de dezembro de 2010 e, a Instrução Normativa 17 B de 22 de dezembro de 1980, com o intuito de concentrar todas as regras cadastrais em uma única instrução. Acontece que, as disposições referentes às hipóteses excepcionais de fracionamentos que eram regulamentadas pela IN 17 B e, que tinham o condão de regulamentar hipóteses previstas em Leis ou Decretos, já acima citados, que não tiveram inconstitucionalidades declaradas ou de não recepção pela Carta Constitucional, não foram reproduzidas na nova instrução que modernizava os cadastros rurais. Sobreveio, assim, diversas indagações junto ao INCRA, ante ao silencio à respeito de tais hipóteses já que as normas e decretos que tratam dos assuntos estão em vigor. Um dos indagadores foi o Ministério Público do Paraná, através de sua Promotoria do Meio Ambiente. Em resposta, o INCRA expediu um Ofício sob 148, em 16 de junho de 2016, informando que a Coordenação Geral de Cadastro Rural expediu uma Nota Técnica INCRA/DFC n° 02 de 2016, explicando as razões da revogação da IN 17-B. Nesta norma técnica, o INCRA trouxe como fundamentos principais o Princípio Constitucional do Pacto Federativo e as repartições de competências entre os Entes Federativos. Trouxe à baila, a previsão do artigo 30, VIII da Constituição da República Federativa do Brasil, para dizer que compete aos Municípios promoverem, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Em seguida, trouxe como argumentos o Estatuto da Cidade (lei 10257/2001), a lei 11977, que trata do Programa Minha Casa e Minha Vida e, outras seguidas leis para argumentar que as políticas de desenvolvimento urbano e suas execuções devem ficar a cargo dos Municípios e orientadas pelo Planos Diretores dos mesmos. A partir dessa premissa, as regras de fracionamento específicas do citado provimento revogado, segundo o INCRA, teriam perdido seu fundamento de validade com o advento da  Constituição de 1988. Em suas conclusões, o coordenador Geral de Cadastros Rurais da Autarquia, estabeleceu as seguintes instruções: a) que somente é admitido o parcelamento de imóveis rurais para fins urbanos nas áreas urbanas ou de expansão urbanas e que não cabe mais ao INCRA exigir uma prévia audiência. A previsão do artigo 53 da Lei 6766/79, ao dispor sobre necessidade de prévia audiência, deve ser reinterpretada no sentido de ser apenas necessária mera realização de operações cadastrais, nos moldes da Instrução Normativa 82/2015 (leia-se cancelamento ou retificação, à depender de ser alcançado o imóvel todo ou parte dele);  b) que nosso ordenamento jurídico pátrio, pós Constituição de 1988, não admite mais o parcelamento de imóveis rurais para fins urbanos em áreas não urbanas ou de expansão urbanas. Assim, eventuais procedimentos que estivessem em andamento até a data da emissão desta Nota Técnica, relacionados à processo de industrialização ou à formação de núcleos urbanos ou sítios de recreio, deveriam ser encerrados, em face da revogação da citada instrução normativa; c) no que tange aos parcelamentos para fins rurais nas zonas rurais, não se necessitaria mais de qualquer manifestação do INCRA. Apenas se necessitaria respeitar a fração mínima de parcelamento, à ser observado em todas as glebas oriundas da divisão, ficando a cargo do Registrador de Imóveis a responsabilidade de avaliar se os ditames legais estão sendo observados, além do respeito a fração mínima e as normas ambientais que incidem sobre o imóvel, como a necessidade de terem Cadastro Ambiental Rural com menção a reserva legal e a área de preservação permanente, assim como a proibição de construir nas áreas de uso restrito. Nestes casos, caberia ao INCRA, assim, apenas realizar as atualizações dos cadastros rurais, nos termos da Instrução Normativa 82/2015. Considerações finais Para a melhor compreensão do tema ora proposto, foi tratado neste artigo de forma introdutória, a natureza jurídica do INCRA como Autarquia, e suas funções principais de executar regularização fundiária e promover a ordenação fundiária nacional. Foi também esclarecido que o INCRA tem a prerrogativa de criar normas técnicas com o objetivo de realizar seus objetivos estatutários e finalísticos. Após, foi apresentado o que dispunha a Instrução Normativa 17-B do INCRA, trazendo as hipóteses em que necessitariam de prévia audiência, prévia aprovação formal ou apenas atualização cadastral, a depender do tipo de fracionamento pretendido. No que tange à revogação da citada instrução normativa, foram apresentadas as razões e fundamentos exteriorizadas pelo Coordenador Geral de Cadastros Rurais. Uma questão interessante a ser observada é o fato de a Autarquia invocar a não aplicação do previsto no artigo 96 do Decreto Federal n° 59428, de 27/10/1966, sob o fundamento de não mais ter um suporte jurídico constitucional de validade. Tal conclusão se chega ao percebermos nas razões de decidir exteriorizados na Nota Técnica n° 02 de 2016 do INCRA, ao disporem que "o item 3 da referida norma, que disciplinava o parcelamento, para fins urbanos, de imóveis localizados fora da zona urbana ou de expansão urbana, foi suprimido dos atos normativos internos do INCRA, tendo em vista a vedação deste tipo de parcelamento pelo ordenamento jurídico vigente, considerando a evolução legislativa ocorrida ao longo das últimas décadas, em especial após a instauração da nova ordem constitucional em 05 de outubro de 1988...." Assim, os chamados Sítios de Recreio, Hotéis Fazenda e Parques Ecológicos não mais são autorizados, por ferimento à função social do imóvel rural, não obstante o Decreto Federal ainda esteja em vigor. Sem querer entrar nesse tipo de discussão, até porque não é a proposta deste artigo, a Autarquia entendeu por não aplicar o Decreto por entendê-lo inconstitucional. Acertou, no entanto, ao criar a Instrução Normativa 82/2015, e determinar que, para as hipóteses de parcelamento para fins urbanos em área urbana ou de expansão urbana, o caso é de alteração cadastral a cargo da Autarquia, assim como entender que, respeitada a fração mínima de parcelamento prevista no CCIR do imóvel rural, fica à cargo do Registrador de Imóveis a análise de observância dos ditames legais e das regras ambientais, cabendo também ao Incra realizar as alterações cadastrais. Referências bibliográficas BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. |Salvador. Jus podium, 2019. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. *Marcelo da Silva Borges Brandão é notário e registrador do Ofício Único de Varre-Sai/RJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.
A Corregedoria Nacional de Justiça, no dia 26 de maio de 2020, editou o Provimento CNJ nº 100/2020, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos, regulamentando a forma pela qual tabeliães de notas brasileiros poderão, de forma remota, reconhecer a identidade e a capacidade das partes e de quantos figurem no ato. Pela nova regra administrativa, os interessados na lavratura de escrituras, procurações e testamentos públicos e outros serviços notariais, não precisarão mais se deslocar fisicamente ao Tabelionato de Notas, para subscreverem os documentos de forma autográfica. As assinaturas poderão ser colhidas por meio eletrônico, utilizando-se certificados digitais notarizados (fornecidos, gratuitamente, por tabeliães de todo o país) ou certificados digitais no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-Brasil)1. Além de colher a assinatura por meio de certificação digital, o tabelião promoverá sessão interativa de videoconferência notarial, para reforçar a adequada identificação e a clara manifestação de vontade das partes e de intervenientes. O Provimento CNJ nº 100/2020 foi bem recebido pelos usuários dos serviços notariais e de registro por viabilizar a continuidade de serviços essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação da propriedade, para a obtenção de crédito com garantia real, com a chancela da fé pública. Em aproximadamente um mês de vigência da norma, foram produzidos no Brasil mais de 3.500 atos assinados eletronicamente. Vale ressaltar que o referido ato normativo tem prazo de vigência duradouro, diferentemente de regras temporárias sobre atividades notariais e registrais recém-editadas pelo mesmo CNJ, originadas da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (confiram-se: Provimentos nº 91, de 22 de março de 2020; nº 93, de 26 de março de 2020; nº 94, de 28 de março de 2020; nº 95, de 1º de abril de 2020; nº 97, de 27 de abril de 2020 e nº 98, de 27 de abril de 2020). O Regulamento Brasileiro do Ato Notarial Eletrônico viabiliza o que se pode chamar de presencialidade mediada pela tecnologia. Ao prever a sessão interativa de videoconferência notarial (presidida pelo tabelião) com a adoção de tecnologia de certificação digital, viabiliza-se a adequada comprovação da autoria e da integridade dos documentos eletrônicos produzidos na confiável Plataforma e-Notariado, mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil. Nada obstante a confiabilidade dos meios tecnológicos utilizados, eventualmente, poderá haver falhas pelo prestador de serviço na identificação de pessoas, tal como - de resto - pode ocorrer em atendimentos presenciais físicos. O presente texto, a partir de situação hipotética de geração de danos em decorrência de emissão de certificado digital lastreado em documento falso, abordará aspectos da responsabilidade civil dos tabeliães pela prática de atos eletrônicos. Figuremos a seguinte cena: um suposto Cidadão C requer serviço de lavratura de procuração pública, para outorga de poderes de venda de um veículo. Para tanto, o interessado envia mensagem ao e-mail do Tabelião A, situado no município em que o requerente reside, esclarecendo que assinará eletronicamente a folha do livro. Informa, ainda, que possui certificado digital emitido pelo Tabelião B, localizado em município vizinho, no qual o outorgante possui sítio de férias, onde, recentemente, desfrutara período de isolamento social. Suponhamos que o Tabelião B, nos termos do Provimento CNJ nº 100/2020, tenha emitido, gratuitamente, o certificado digital para o suposto Cidadão C, com base em documento falso, cuja sofisticada contrafação seja aferível apenas por peritos, expertos. Diante de tais circunstâncias, o estelionatário, que obteve a identidade digital em nome do Cidadão C, poderá apresentar credenciais digitais se passando pelo pretenso indivíduo C e potencializará a ofensa ao patrimônio e, eventualmente, à honra deste, em contratos eletrônicos diversos. As questões que se buscam problematizar, nestas breves linhas, são as seguintes: caso o estelionatário consiga utilizar o certificado notarizado emitido pelo Tabelião B para outorgar procuração perante o Tabelião A, e daí advier prejuízo para o Cidadão C ou para eventual comprador do veículo, a quem será imputado o dever de ressarcir a(s) vítima(s)? Como evitar que, em caso de atribuição de certificado digital notarizado a um certo indivíduo estelionatário, o equívoco de identificação seja perpetuado pelos demais tabeliães participantes da rede de confiança constituída pela infraestrutura de Chaves Públicas mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil? A responsabilidade civil de notários e registradores, por força do dispositivo contido no § 1º do art. 236 da Constituição Federal, é regulada por lei, a qual estabelece, como requisito para a configuração do dever de ressarcir, a conduta culposa ou dolosa de tabeliães, oficiais de registro ou de seus prepostos (lei 8.935/94, art. 22 com redação dada pela lei 13.286/2016). A propósito desse tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão de julgamento do dia 27 de fevereiro de 2019, apreciando o Tema 777 da repercussão geral e tendo como leading case o RE 842.846/SC, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. De todo modo, o presente texto se circunscreverá à responsabilidade de notários, e não propriamente a do Estado por ato do tabelião. Na hipótese acima descrita, em que houve sofisticada falsificação documental, os tribunais brasileiros tendem a afastar a responsabilidade do tabelião em decorrência do rompimento do nexo de causalidade por fato exclusivo de terceiro. O tabelião não é (nem necessita ser) perito grafoscópico. O notário que toma os cuidados que lhe são exigíveis para a prática do ato não responde por falha do serviço3. Nesses termos, tanto o Tabelião B (emissor do certificado digital notarizado) quanto o A (que lavrou a procuração), referidos na situação, não seriam responsabilizados pelo evento danoso. Por outro lado, caso a falsificação seja grosseira, a negligência dos tabeliães estará configurada e lhes será imputada a responsabilidade pelos prejuízos. Mas, indaga-se, qual será a extensão do dever de ressarcir do Tabelião B, que - gratuitamente - emitiu a credencial eletrônica, viabilizando que o estelionatário se apresente como o Cidadão C em negócios eletrônicos? Por força dos arts. 186 e 927 do Código Civil, máxime nas hipóteses em que a lei determina a análise da culpa ou dolo do agente ofensor, a imputação de responsabilidade civil supõe o nexo causal, que é requisito lógico-normativo da responsabilidade civil. É lógico, porque consiste num vínculo referencial entre a conduta do agente e o resultado danoso. E é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, com influência direta na distribuição do prejuízo4. Em situação de fraude documental em serviços notariais e registrais (cfr. REsp 1.198.829/MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 05/10/2010), o STJ já teve a oportunidade de assentar, com base no art. 403 do Código Civil e no clássico precedente exarado pelo STF (no RE 130.764, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 07.08.92), que "vigora, no direito brasileiro, o princípio da causalidade adequada ou do dano direto e imediato"5. Como exposto, havendo falsificação evidente, via de regra, responderá por perdas e danos o tabelião negligente, mesmo que tenha apenas emitido o certificado digital gratuitamente para o usuário do serviço, sem intermediar nenhum negócio jurídico específico para o titular do certificado digital. Todavia, de volta ao tratamento da nova regra administrativa do CNJ, a sistemática do Provimento nº 100/2020 prevê, para a prática de atos eletrônicos pelos tabeliães brasileiros, além da assinatura com certificado digital (fato esse que gera, nos termos do art. 10 da MP nº 2.200-2/2001, o atributo do não repúdio ao documento), a obrigatoriedade da sessão de videoconferência interativa notarial. Tal circunstância conduz a interessante situação de eventual interrupção da série causal iniciada pelo Tabelião B, em decorrência da videoconferência levada a efeito pelo Tabelião A, profissional este que teve a última oportunidade ou chance de evitar o dano. Com efeito, na sessão de videoconferência, o Tabelião A tem condição de reavaliar a identificação (por meio de documentos, dados biográficos e biométricos) da pessoa que se apresenta como o suposto Cidadão C. Assim sendo, a despeito de o Tabelião B, emissor do certificado digital notarizado, ter agido de forma negligente ao analisar documentos falsificados apresentados por estelionatário, sua responsabilidade (i) será de menor envergadura (por conduta de baixa intromissão no evento danoso), ou (ii) será eventualmente afastada, em decorrência do rompimento do nexo causal perpetrado pelo Tabelião A. O certo é que a Plataforma e-Notariado, instituída pelo Provimento CNJ nº 100/2020, administrada pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, a qual constitui o único meio para a prática de atos notariais eletrônicos por tabeliães brasileiros, se apresenta à população de forma segura e em boa hora. Tal sistema estrutura uma rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas do país e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e de órgãos públicos, de modo a evitar danos à população e garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente. *Hercules Alexandre da Costa Benício é doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal. __________ 1 A respeito da segurança das credenciais para identificação das pessoas em seu relacionamento com os órgãos e entidades públicos, a Medida Provisória 983, de 16 de junho de 2020, em seu art. 2º, estabelece três espécies de assinaturas eletrônicas, quais seja: i) simples - aquela que permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; ii) avançada - aquela que está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e iii) qualificada - aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). Pode-se dizer que o certificado digital notarizado viabiliza assinatura eletrônica avançada. 2 No julgamento do RE 842.846/SC, formaram-se quatro distintos posicionamentos sobre a matéria concernente à responsabilidade civil do Estado decorrente das atividades notariais e de registro. (1) A maioria dos votos acompanhou o Min. Relator Luiz Fux, no sentido de que, em face de um modelo constitucional solidarista para proteger a vítima do dano, o Estado responde direta e objetivamente, tal como indicado na tese fixada no Tema 777 da repercussão geral. (2) Por outro lado, para o Min. Edson Fachin, abrindo a divergência, expressou entendimento de que o Estado deveria responder apenas subsidiariamente, enquanto os notários e registradores são responsáveis diretos e sob o critério objeto do risco administrativo e, por isso, em interpretação conforme ao §6º do art. 37  da Constituição, entendeu inconstitucional, incidentalmente, a expressão "dolo ou culpa" contida no art. 22 da lei 8.935/ 94, com a redação dada pela lei 13.286/2016. (3) Por seu turno, o Min. Luís Roberto Barroso, propondo evolução da jurisprudência do STF nessa matéria, votou no sentido de que a responsabilidade do Estado seria meramente subsidiária (a despeito de ser objetiva), ao passo que, à luz do que determinam o § 1º do art. 236 da Constituição e a lei 13.286/2016, notários e registradores respondem subjetivamente por seus atos. (4) Por fim, o quarto entendimento foi expresso pelo Min. Marco Aurélio, no sentido de que o Estado responde de forma meramente subsidiária e subjetiva, enquanto tabeliães e oficiais de registro respondem de forma direta e subjetiva. 3 Cfr. TJRS, Apelação Cível nº 70055155683 (nº CNJ: 0240195-82.2013.8.21.7000), da Comarca de Porto Alegre, Décima Câmara Cível, Relator: Des. Marcelo Cezar Muller, julgada em 29/08/2013, e TJSP, Apelação Cível nº 1037992-18.2013.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Relator: Des. Ronnie Herbert Barros Soares, julgada em 20/09/2016. 4 Sobre a influência do nexo causal na distribuição do prejuízo, cfr. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 313-344. 5 Tal entendimento não é imune a severas críticas de abalizada doutrina que, priorizando a situação da vítima, defende a imputação sem nexo de causalidade, por meio da análise da formação da circunstância danosa como elemento constitutivo da travessia da responsabilidade civil para responsabilidade por danos. A esse respeito, cfr. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba, Juruá, 2014.
E-notariado-uma revolução na forma de prestação do serviço notarial É fato que milhares de brasileiros vêm deixando o Brasil buscando uma melhor qualidade de vida no exterior, onde fixam residência e constituem família. Até então, referidos brasileiros tinham como única opção para os serviços notariais o atendimento nos consulados gerais, mediante agendamento e, muitas vezes, deslocamento para cidades onde estes estão sediados. Com a pandemia do Covid-19, tal situação se agravou, frustrando a expectativa daqueles que necessitam do serviço notarial. Por outro lado, estrangeiros que decidissem investir em imóveis ou fazer negócios no Brasil dependiam da nomeação de procuradores, através de notário de seu país, com tradução juramentada e registro no RTD, a fim de que o ato notarial produzisse efeitos no Brasil.   Tal realidade somente contribuía para o desgaste da imagem não só do serviço notarial, como também do próprio País. Isto porque, a eficiência e facilidade para a prática do ato notarial e registral é um dos requisitos levados em conta na avaliação do Banco Mundial, no relatório Doing Business, o qual estabelece o ranking dos países em termos de realização de negócios. Infelizmente o Brasil está entre os últimos colocados, figurando na 124ª posição entre os 190 países avaliados pelo ranking1 do Banco Mundial. No entanto, o tão esperado Prov. 100/20 deste E. CNJ trouxe nova realidade aos serviços notariais, inaugurando a era digitais para a lavratura de atos notariais, através da festejada plataforma e-Notariado. Pode-se dizer que o Prov. 100/20 fez com que a atividade notarial evoluísse 100 anos! Referida plataforma revoluciona a forma como os atos notariais são praticados no País, colocando o Brasil na vanguarda do direito notarial, à frente de diversos países de primeiro mundo, nos quais também se adota o modelo do notariado latino, presente em mais de 120 países, incluindo 22 dos 27 países da União Europeia2. Trata-se de revolução na forma de se prestar o serviço notarial no País e fora dele, quebrando barreiras e facilitando o acesso dos cidadãos à rede de tabelionatos do Brasil, o qual deve ser disponibilizado a todos os brasileiros. Brasileiros domiciliados no exterior e estrangeiros. Omissão. Insegurança jurídica. Necessidade de aprimoramento do provimento 100/20 CNJ Ocorre que, além dos brasileiros domiciliados no País, muitos brasileiros não residentes, impossibilitados de serem atendidos nos consulados gerais, em especial em razão da redução ou suspensão de atendimento causados pela Pandemia Covid-19, tomando conhecimento da Plataforma e-Notariado, têm procurado os tabelionatos de notas visando praticar atos notariais à distância, seja de compra e venda, inventário, procuração, etc. Neste contexto, depreende-se que o "e-Notariado" abre novos horizontes para esses cidadãos, a saber, a fruição direta e imediata do serviço notarial brasileiro, como se estivessem no Brasil (!) e mais, podendo praticar pessoalmente atos que, até então, somente poderiam praticar mediante intermediários, notadamente por meio de instrumentos de procuração (com maiores custos). Vale lembrar, ainda, que os consulados brasileiros não praticam diversos atos notariais, como compra e venda, inventário e divórcio com bens a partilhar, razão pela qual a única opção, nesses casos, era outorgar, via consulado, poderes para que um terceiro representasse o outorgante no Brasil. Além disso, o "e-Notariado" também franqueia ao estrangeiro que pretende realizar investimentos e negócios no Brasil, mormente com o dólar a quase R$ 6,00 (!) e mercado imobiliário em baixa, a possibilidade de adquirir diretamente bens imóveis no país, sem a necessidade de nomeação de um procurador no Brasil, contribuindo para o desenvolvimento da economia e do setor imobiliário. Não obstante, diversos tabelionatos vêm negando a prestação do serviço notarial eletrônico a estrangeiros e brasileiros com domicílio eleitoral comprovado em outro país, exigindo a comprovação de domicílio eleitoral ou fiscal no Brasil, o que tem gerado insegurança jurídica e frustração desses pretensos usuários. O Provimento n° 100/20 do CNJ prevê, como regra geral aos brasileiros residentes, uma restrição  territorial3 à prática do ato notarial eletrônico envolvendo direitos reais, limitando a competência dos tabelionatos à comprovação do domicílio eleitoral ou fiscal do usuário do serviço ou à localização do imóvel, quando for o caso. No mesmo sentido, nas procurações públicas é competente o cartório do domicílio eleitoral do Outorgante ou do local do imóvel, quando houver4. Com efeito, não há motivo lógico ou legal que impeça o brasileiro com domicílio eleitoral comprovadamente fora do país a utilizar os mesmos serviços notariais oferecidos ao brasileiro residente no Brasil, porém, neste caso, sem a limitação territorial de competência do tabelionato. Isso porque, o sentido teleológico que justificou a fixação do critério da territorialidade tanto na Lei dos Notários (art. 9º)5 como no provimento em exame, foi o de se evitar a concorrência predatória entre os notários, assim como o de tutelar a regra do concurso público, evitando a ampliação ilegal de competência, sem concurso público, em afronta ao art. 236 da CF. Com efeito, a territorialidade impede que um notário saia de sua cidade, para a qual recebeu a delegação por concurso, e busque lavrar um ato em local diverso do qual lhe foi delegado o serviço, sob pena de se violar os limites do ato administrativo de delegação, assim como de fomentar a concorrência predatória entre os tabelionatos. Frise-se, que a extensão territorial do Brasil impõe que cada Estado da Federação possua uma tabela própria de emolumentos, o que gera significativa diferenças de custo, razão pela qual o óbice da territorialidade é fundamental para se garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos serviços notariais e a própria capilaridade dos tabelionatos, presentes nas mais remotas cidades do país. Sensível ao tema e tendo em vista as peculiaridades do ambiente digital, o E. Conselho Nacional de Justiça, ao editar o Prov. 100/20, fez constar entre seus "considerandos" que justificam o referido ato normativo, expressamente, que: "(...) a necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial". No caso, a ausência de um critério territorial (no caso optou-se pelo domicílio) nos serviços prestados em ambiente digital para brasileiros domiciliados no País, resultaria no fomento desta concorrência predatória indesejada, já que franquearia uma liberdade absoluta de escolha pelo usuário e no consequente favorecimento de tabelionatos localizados em regiões com um custo mais reduzido de vida e com emolumentos espelhando essa realidade. No entanto, em se tratando de brasileiro com domicílio comprovado no exterior, não há como nem por que prevalecer tal limitação territorial. O cidadão que tem domicílio comprovadamente fora do país encontra-se em situação totalmente diferenciada, ou seja, não possui vínculo de domicílio com qualquer município ou território, a não ser o vínculo de cidadania com o Brasil, razão pela qual se revela razoável que tenha ampla liberdade de escolha do notário de sua preferência, independentemente do local em que sediado o serviço notarial ou localizado o imóvel adquirido. Trata-se de uma nova realidade na prestação do serviço notarial, que impõe novos paradigmas, tal qual a inovadora ampliação de territorialidade prevista pelo §2º do art. 19 do Prov.100/20, segundo o qual estando o imóvel e o domicílio do adquirente localizados no mesmo estado da federação, legitima-se ao adquirente plena liberdade de escolha de qualquer tabelionato naquele estado, permitindo que um cartório em uma cidade do interior do estado realize um ato notarial envolvendo imóvel e comprador situados em outra cidade daquele mesmo estado.  Tal qual a liberdade de escolha contida no citado §2º do art. 19, também ao brasileiro comprovadamente domiciliado no exterior deve ser garantido o mesmo direito. Com efeito, o cidadão domiciliado, v.g., em Miami, que deseje outorgar uma procuração para um parente lhe representar no Brasil deve ter liberdade plena de escolha do serviço notarial de sua preferência, certo de que tal liberdade, dado o domicílio do expatriado, não tem o condão de resultar em concorrência predatória por parte dos tabelionatos e nem o condão de colocar em risco o equilíbrio econômico-financeiro das serventias. Por outro lado, em sendo o domicílio do usuário do serviço o critério de territorialidade adotado pelo Prov. 100/20, tem-se que para os não domiciliados no País não há outra opção senão admitir-se a livre escolha do serviço, sob pena de serem privados do referido serviço tão somente por residirem fora do Brasil. Isso porque, exemplificativamente, o expatriado domiciliado em Boston/EUA, que deseje outorgar procuração para um parente no Brasil, vem encontrando dificuldades em encontrar um serviço notarial que aceite lavrar o ato, ao argumento de que a competência do tabelionato estaria restrita ao domicílio do outorgante, a teor do parágrafo único do art. 20 do citado provimento. Tal recusa na prestação do serviço é contrária ao próprio sentido que inspirou a edição do Provimento 100/20, expresso em seus considerandos, qual seja, "a necessidade de se manter a prestação dos serviços extrajudiciais, o fato de que os serviços notariais são essenciais ao exercício da cidadania e que devem ser prestados, de modo eficiente, adequado e contínuo;" Com efeito, vê-se que não há fundamento legal ou lógico em se negar a prestação do serviço ao cidadão nacional em razão de possuir domicílio fora do país. Neste caso, portanto, revela-se como fundamento para justificar a prestação do serviço ao cidadão expatriado e ao estrangeiro a aplicação, na íntegra e sem qualquer restrição, da livre escolha prevista pelo disposto no art. 8º da Lei 8.935/94, verbis: Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio. Mencionado art. 8º da lei 8.935/94 é a regra geral prevista para os atos presenciais e que deve ser aplicada de forma ampla e absoluta para os casos de escritura não presencial (via e-Notariado) envolvendo brasileiro comprovadamente domiciliado no exterior ou mesmo para estrangeiros não domiciliados no Brasil.   Nem se diga que tal critério encontra óbice no art. 9º da lei 8.935/94, na medida em que referido dispositivo tem por objeto impedir a prática de atos notariais fora do Município para o qual o tabelião recebeu sua delegação, o que não ocorre na hipótese em exame, envolvendo ato notarial eletrônico praticado por usuário domiciliado comprovadamente fora do próprio país. Além disso, vale ressaltar que a comprovação de domicílio fora do País não se confunde com a hipótese disciplinada pelo parágrafo único do art. 21, que trata da falta de comprovação do domicílio da pessoa física", caso em que será observado apenas o "local do imóvel." O expatriado possui domicílio comprovado fora do País e não pode ser tratado diferentemente do brasileiro residente no Brasil. Princípio da isonomia entre brasileiros residentes e expatriados De fato, negar a prática de ato notarial eletrônico ao brasileiro não domiciliado no país é dar a ele um tratamento desigual ao do brasileiro domiciliado no Brasil, sem qualquer justificativa legal, em flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia (art. 5º caput da CF/88), segundo o qual "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país (...)", certo de que a expressão "residentes no País" se refere, evidentemente, aos estrangeiros e não aos cidadãos brasileiros. Estes devem ser tratados de forma isonômica, independentemente de residirem ou não no país. Pelo exposto, tem-se que a aplicação literal do referido provimento, exigindo a comprovação de domicílio na cidade em que sediado o serviço notarial, seja para atos de procuração ou transmissão de direitos reais, tem levado diversos tabelionatos a negar, sem justificativa legal, a prática do ato notarial eletrônico a brasileiros expatriados, criando uma distinção ilegal entre brasileiros residentes e não residentes, o que, à toda evidência, em nenhum momento se pretendeu quando da edição do Prov. 100/20 CNJ e, por certo, não se coaduna com o novo paradigma buscado pelo CNJ ao autorizar e implementar esse novo modelo de ato notarial. Portanto, apesar das regras de hermenêutica e integração do direito serem suficientes para suprir dita lacuna, legitimando o ato notarial nos casos em análise, em homenagem à segurança jurídica que norteia a atividade notarial, a qual deve ser prestada de forma contínua e uniforme a todos os brasileiros, espera-se que tal omissão seja sanada pelo CNJ-Conselho Nacional de Justiça, editando norma expressa no sentido de garantir a todos os brasileiros, residentes ou não, os mesmos direitos, em especial aquele de usufruir do serviço público notarial através da plataforma e-Notariado, sem quaisquer restrições. *Gustavo Bandeira é tabelião titular do 8º Ofício de Notas; presidente do Fórum Permanente de Direito Notarial e Registral da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro ("EMERJ"); atuou como juiz titular das Varas Empresarial e Fazenda Pública na Comarca da Capital do Rio de Janeiro; mestre em Direito; professor convidado de Direito Civil da EMERJ. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 28.11.2020. 2 Disponível aqui. Acesso em 28.11.2020. 3 Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. 4 Art. 20. (-) Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso. 5 Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Aspectos relevantes da lei das XII tábuas

Introdução No presente artigo, busca-se analisar alguns dos principais institutos da lei das XII tábuas, em especial aqueles de Direito Privado que possuem ligação direta com o Direito Notarial e Registral, como o Direito de Propriedade e o Direito de Família. Além disso, é efetuada uma análise do Direito Penal previsto naquela norma, que, como se verá, previa  punição a delitos "tipificados" pelo não cumprimento de obrigações. Sendo essa a primeira norma positivada dentro do sistema de direito romano, seu estudo interessa a todas as áreas do direito. O leitor que lida diariamente com o direito notarial e registral com certeza encontrará a origem de diversos institutos que hoje são tratados cotidianamente nesta seara. A lei das XII tábuas (Lex Duodecim Tabularum) é um grande marco na história do Direito. Ela nasceu da insatisfação popular que havia com as decisões dos magistrados1 romanos antes de sua edição.2 Como não havia um conjunto de leis estáveis, as partes ficavam sujeitas a arbitrariedade do julgador. A importância da lei das XII tábuas era tão grande para o direito romano, que, séculos após sua edição, o grande jurista e orador Cícero chegou até mesmo a afirmar que ela valia mais do que a obra de todos os filósofos.3 Evidentemente, um exagero. Porém, é de se notar a importância da mesma na sociedade. A necessidade de se fazer um resgate histórico do que se passava naquela época (por volta de 450 a.C) é condição sine qua para a contextualização dos fatos e principais acontecimentos que motivaram a sua edição. Por isso o começaremos tratando sobre como era composta a sociedade romana daquele período e a relação com os demais países. Durante um longo e conturbado período coexistiram na Roma antiga pessoas de classes distintas, com direitos próprios e de forma não equânime, destacando-se os patrícios, plebeus e escravos, sendo a origem da Lei das XII Tábuas fruto também dessa disputa entre os variados estamentos da sociedade, uma vez que apenas poucos privilegiados tinham acesso às normas (ainda não positivadas) e isso fez com que houvesse uma pressão por parte daqueles pertencentes à classe dos plebeus com um pouco mais de condições financeiras mas ainda sem acesso a determinados direitos por não serem patrícios. A Lei das XII Tábuas foi mais passo, senão o principal, nessa disputa que serviu de pano de fundo na análise dos pontos mais relevantes analisados no decorrer das linhas que seguem. Sua origem, como se verá, sofreu forte influência do direito grego, haja vista que vários pontos foram textualmente copiados dos que era lá aplicado a partir do envio de uma comissão a Atenas de um grupo de Patrícios que compunham o chamado decenvirato. Ao tratar dos principais dispositivos que foram positivados, agrupamos para fins didáticos em três subtópicos, a saber: Do Direito de Propriedade e Posse; Da Família e Sucessão; e Do Processo Civil, Penal e Execução. A Sociedade Romana nos idos de 450 a.C Para a real compreensão do que representou a edição da Lei das XII Tábuas, como dito na introdução, é necessário adentrar na dinâmica social de Roma no período anterior ao de sua elaboração, não esquecendo de suas instituições e adotando as cautelas necessárias com relação às fontes de pesquisa, uma vez que existem poucos documentos originais, a exemplo das próprias Tábuas, que foram destruídas anos depois em um incêndio. Antes do surgimento da República, a forma embrionária da relação política interna romana de que se tem conhecimento é uma espécie de federação gentílica de aldeias, tendo a economia de subsistência a principal marca, com ênfase na agricultura e pecuária, passando-se para o surgimento das cidade-estado, as relações baseadas em vínculos familiares, a presença do rex, a Assembleia das Cúrias, dentre outros importantes instituições e momentos. O destaque que damos para fins de contextualização, ainda nessa fase pré-republicana, inicia-se 100 anos antes da edição da Lei em exame, mais especificamente a partir do reinado de Sérvio Túlio (578 a 539 a.C), oportunidade em que fora realizada uma espécie de reforma social ao dividir o povo romano em tribos, tendo por base o domicílio, bem como separando por classes levando-se em conta o critério censitário, conferindo aos plebeus o direito de poderem se alistar para o serviço militar. Pelo fato de Sérvio Túlio ter conquistado o trono romano de forma 'irregular', mas gozar de um grande apoio popular, e ser considerado não apenas um rei, mas sobretudo um 'magistrado proto-republicano', suas ações se destacaram por influenciar a dinâmica da vida social, como destaca Leão e Brandão: reorganização do corpo de cidadãos, construção de templos, edifícios públicos e fortificações, bem como importantes iniciativas em assuntos internacionais assentam numa firme base histórica e, em alguns casos, podem ser confirmadas por informação independente: a divisão em quatro tribos, segundo a região da cidade; a divisão em centúrias (assente sobre a riqueza), que prevaleceu até ao final da República e até depois; a criação do census.4 Tanto os patrícios como os plebeus eram divididos na sociedade com arrimo na riqueza, sendo que a exteriorização dessa condição se dava inicialmente pela quantidade de armamento e apetrechos militares que usavam, pois "a distinção inicial far-se-ia provavelmente entre classis e infra classem, isto é entre os que levavam armamento completo (infantaria pesada) e os mais levemente armados (infantaria ligeira)", sendo o critério posteriormente substituído pelo caráter fiscal e político, onde a classe mais abastada detinha o controle da votação nas assembleias denominadas de comitia centuriata.5 Mesmo com essa diferenciação adotada por muitos anos, foi ainda no período pré-republicano que os plebeus começaram a galgar espaços pouco a pouco, levando-se em conta sua admissão na legião a caracterizar a substituição do poder gentílico6 pela força da propriedade privada. Acerca dessa gradativa abertura de espaços por parte dos plebeus, adquirida a duras penas, Montagner traz uma série de conquistas que foram com o passar do tempo sendo implementadas: Insatisfeitos, os plebeus travaram uma longa guerra política para obterem paridade de direitos políticos e civis com os patrícios. Através de uma reforma política, os plebeus obtêm gradativas vitórias: participação nas assembleias com a criação do cargo de tribuno da plebe em 495 a. C; em 450, a legalização escrita (Lei das doze tábuas); em 449, a inviolabilidade dos tribunos; em 445, a concessão dos casamentos entre patrícios e plebeus; em 367, a abertura da magistratura para os plebeus, obrigando que um dos cônsules eleitos devesse ser plebeu.7 No mesmo sentido, Cicco menciona que estas medidas foram fundamentais para que se aproximasse de uma igualdade civil que há muito era buscada, enfatizando a permissibilidade do casamento entre patrícios e plebeus por meio da lei de Canuleiro em 444 a.C., a proposição de Licínio Stolon em 367 a.C, para que um dos cargos de cônsul fosse destinado a um plebleu e a abertura do Senado para estes em 337 a.C.8 Muito se discute sobre a origem das principais classes existentes (patrícios e plebeus). Para alguns, o mais correto seria tratar os plebeus como: um movimento político-social mais específico, que envolveu determinados grupos sociais enfrentando a crescente pretensão do patriciado de monopolizar o controle sobre elementos fundamentais da comunidade política romana, mas não envolveu todos aqueles que não eram patrícios.9  Ou seja, o enfrentamento ao patriciado era capitaneado por aqueles que não faziam parte dessa estrutura, mas tinham melhores condições econômicas e durou muitos anos, não foi da noite para o dia que houve a abertura e tratamento igualitário entre essas classes, razão pela qual ao longo do tempo se verifica características sociais e políticas bastante distintas.10 A resistência dos patrícios em não permitir à ascensão daqueles que não faziam parte da dinâmica e do controle do poder é natural e compreensível, pois a história nos mostra que a tendência dos que estão na classe dominante é tentar a manutenção e a conquista de mais direitos e privilégios, o que seria mais difícil com a abertura e tratamento igualitário com as classes sociais que começavam a demonstrar um potencial de crescimento econômico e certas conquistas políticas. Em que pese serem minoria, com relatos apontando para a organização de cerca de 300 famílias11, no início do período republicano se percebe de forma mais clara a separação entre essas duas classes, seja por motivos políticos, econômicos ou étnicos, podendo-se constatar que a intenção dos patrícios em controlarem de forma isolada as áreas político-religiosas acirrou ainda mais a disputa existente. A dicotomia referenciada entre as duas principais classes é claramente constatada com a leitura do primeiro item da Tábua XI, onde se lê que "são proibidos os casamentos entre patrícios e plebeus". Somente um século depois da edição da Lei das XII Tábuas começam a surgir a figura do magistrado de origem plebeia, destacando-se os das famílias mais abastadas e que conseguiam fazer aliança política com grupos e famílias de patrícios, somando-se ao fato de poderem eleger, após o ano 367 a.C seu próprios cônsules12, mas a relação entre essas duas classes só se tornaria mais equilibrada por volta do ano 300 a. C.13 Clique aqui e confira a íntegra do artigo. __________ 1 O nome "magistrado" em Roma era deferido a todos os mandatários eletivos, não apenas aqueles que tinham atribuições jurisdicionais. 2 A respeito do estado de arbítrio existente antes dela, vide: LIVY, Titus. The history of Rome from its Foundations, books I-V. London: Penguin Classics, 2002, 2.2. 3 MEIRA, Silvio A. B. A lei das XII tábuas. (3ª ed). Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 62. 4 LEÃO, Delfim; BRANDÃO, José Luís. As Origens da Urbe e o Período da Monarquia. In BRANDÃO, José Luís (coord.); DE OLIVEIRA, Francisco (coord.) - História de Roma Antiga volume I: das origens à morte de César. Coimbra: [s.n.], 2015, p. 39. DOI: Acesso em: 02 jan 2021. 5 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 49. 6 Idem ibidem. 7 MONTAGNER, Airto Ceolin. A Formação de Roma e os Primórdios da Literatura Latina. Principia, n. 24, 2012, p. 3. Disponível aqui. Acesso em: 02 jan 2021. 8 CICCO, Cláudio de. História do pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p, 27. 9  KNUSTA, José Ernesto Moura. Os Pláucios, a Emancipação da Plebe e a Expansão Romana: conectando as histórias interna e externa da república romana. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 234-254, maio/ago. 2019, p. 239. Disponível aqui. Acesso em: 10 jan 2021. 10 Idem ibidem. 11 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 47. 12 Knusta, cit., 2019, p. 240. 13 SANTOS, Maria do Rosário Laureano. Aspectos Culturais da Concepção de Justiça na Roma Antiga. Cultura Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 30, pp. 141-147. 2012, p. 148.
Com a entrada em vigor da lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, por conversão da Medida Provisória 881/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, ocorreram importantes modificações em nosso sistema jurídico, em razão da alteração de vários diplomas legais, dentre eles o Código Civil. Referida Medida Provisória, conhecida como a MP da Liberdade Econômica, teve, dentre os seus objetivos, estimular o empreendedorismo, a regularização de empresas, geração de emprego e renda e o desenvolvimento econômico da nação. Além disso, visou-se diminuir a percepção de que as atividades econômicas, no Brasil, somente devam ser exercidas se presente expressa permissão do Estado, conforme se vê da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP: "Existe a percepção de que no Brasil ainda prevalece o pressuposto de que as atividades econômicas devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado, fazendo com que o empresário brasileiro, em contraposição ao resto do mundo desenvolvido e emergente, não se sinta seguro para produzir, gerar emprego e renda". Desse modo, uma das novidades introduzidas pela citada norma legal foi a inerente à criação da sociedade limitada unipessoal, como forma de aderir a uma "tendência mundial que se consolidou há décadas", seguindo-se países como Estados Unidos da América, Alemanha e a República Popular da China, e com o objetivo de encerrar a prática existente em nosso país de se admitir sócio, na sociedade limitada, apenas para observar a pluralidade até então exigida pela nossa legislação. Alterou-se, assim, o Código Civil Brasileiro, de forma a ser incluir os §§1º e 2º ao seu artigo 1.052, in verbis: "Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. § 1º  A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas.  § 2º  Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social." Passou-se, então, a permitir, em nosso país, a criação de sociedade limitada com apenas um titular, a exemplo do que já ocorria com a EIRELI - Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (CC, art. 980-A), a Subsidiária Integral (Lei das S/A, art. 251) e a Sociedade Unipessoal de Advocacia (lei 8.906/94, art. 15), pessoas jurídicas constituídas por apenas um sócio/titular. Em razão disso, não se aplicará à sociedade limitada o disposto no artigo 1.033, IV do Código Civil, que impõe a dissolução à sociedade quando ocorrer a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, desde que, na própria alteração contratual de saída de sócio, haja a opção pela sociedade limitada unipessoal, promovendo-se a competente consolidação contratual, a fim de adequar o contrato social às disposições pertinentes e à sua nova realidade. A crítica que fazemos, em que pesem entendimentos em sentido contrário, é a inerente ao consequente desestímulo para a constituição de novas EIRELIS, haja vista o capital social mínimo, devidamente integralizado, exigido pelo artigo 980-A do Código Civil para essa espécie de pessoa jurídica, que não será inferior a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no País, o que, certamente, será considerado por muitos como um entrave se comparado à sociedade unipessoal limitada, para a qual o legislador não estabeleceu valor mínimo de capital. Bastava, a nosso ver, alterar citado dispositivo, de forma a não mais se exigir capital mínimo para a constituição das EIRELIS, e, se fosse o caso, não mais limitar a apenas uma a constituição de EIRELI por pessoas naturais. Como consequência, diminuir-se-á, na prática, consideravelmente, a criação de novas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada, conforme veremos nos anos vindouros, acabando por se desestimular a constituição dessa tão importante e, ainda, recém-nascida, espécie de pessoa jurídica, que foi tão aplaudida e prestigiada quando da edição da lei 12.441/2011. Corre-se o risco, inclusive, de cair em desuso, a exemplo do que ocorreu com a sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e em comandita por ações. Além disso, mister se faz frisar que, pela boa técnica, a própria expressão "sociedade unipessoal" é contraditória, eis que o termo "sociedade", por si só, designa a existência de pluralidade de sócios. Nesse sentido, bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 948), ao comentarem o artigo 980-A do Código Civil, que trata da EIRELI: "Cabe destacar que, embora criada para estimular a atividade empresária individual, por meio da bifurcação de patrimônios, a EIRELI não se confunde com a figura do empresário individual. Consoante o art. 44, VI, do Código Civil, ela é considerada pessoa jurídica de direito privado, ao passo que o empresário individual permanece como pessoa física. Não obstante alguns autores acreditem que a Lei Civil criou uma modalidade de 'sociedade limitada unipessoal' (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 132), tal denominação já é, por si só, contraditória, visto que o pressuposto de qualquer sociedade é a reunião de, ao menos, duas pessoas." (Grifo nosso) Feitas essas considerações, voltemo-nos ao ponto central deste artigo. A sociedade simples, cujo registro será feito no Serviço de Registro Civil de Pessoas Jurídicas de sua sede (CC, art. 1.150), encontra-se devidamente disciplinada nos artigos 997 e seguintes do Código Civil, podendo constituir-se sob a forma pura (sociedade simples pura) ou de conformidade com um dos tipos regulados em seus artigos 1.039 a 1.092, conforme preceitua o artigo 983 do mesmo diploma legal, in verbis: "Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 ; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias." A bem da verdade, não poderá, na prática, ser constituída sob a forma de Sociedade Anônima (arts. 1.088 e 1.089), tampouco sob a forma de Sociedade em Comandita por Ações (arts. 1.090 a 1.092), por serem estas sempre consideradas sociedades empresárias, independentemente de seu objeto, conforme preconiza o artigo 982, parágrafo único do Código Civil. Poderá, assim, a sociedade simples, constituir-se de conformidade com os seguintes tipos societários: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada, sendo esta última a sua forma mais usual, haja vista as inúmeras vantagens desse tipo societário. Na prática, portanto, a constituição de tal sociedade se dá em sua forma pura (Sociedade Simples Pura) ou revestindo-se da forma Limitada (Sociedade Simples Ltda), com a aplicação das regras atinentes à Sociedade Limitada, conforme dispõe o artigo 1.150 do Código Civil, que assim preconiza: "Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária." (grifo nosso) Desse modo, a pergunta que se faz é a seguinte: Com o advento da lei 13.874/2019, passou a ser possível a constituição de sociedade simples unipessoal limitada? A resposta é positiva, haja vista a autorização legal contida no artigo 983 c/c o disposto no artigo 1.150, ambos do Código Civil. Tanto é que o IRTDPJBrasil baixou, no final de 2019, a Orientação Técnica nº 2/2019, por entender ser plenamente viável o registro das sociedades simples unipessoais Ltda nos Serviços de Registros Civis de Pessoas Jurídicas de todo o país. Teve assim, a referida orientação, o objetivo de "esclarecer aos cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas como deve ser feito o registro desse tipo de sociedade simples" e "unificar os procedimentos de registro inicial e por transformação". A observação que fazemos é, inicialmente, no tocante ao nome empresarial desse tipo societário que, como bem sabemos, poderá ser formado por razão ou denominação social. A nosso ver, a denominação ou razão social deverá ser sempre seguida das expressões "Sociedade Simples Unipessoal Ltda', e não apenas da expressão "Ltda.", em razão do Princípio da Veracidade, tão importante para o Direito Societário, e a fim de distingui-la das demais espécies societárias, bem como para se garantir segurança jurídica e clareza a todos quantos venham a com ela manter algum tipo de relação jurídica, tal como ocorre com a EIRELI, com a Sociedade Anônima, com as Cooperativas e outros tipos de pessoas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico. Além disso, vale ressaltar que, na formação da razão social, não poderá ser utilizada a expressão "& Cia", por ser designadora da presença de outros sócios. Outra questão importante é a inerente à necessária consolidação contratual todas as vezes em que houver alteração contratual com saída de sócio e a opção, exercida pelo titular remanescente, pela adoção da sociedade simples unipessoal Ltda, a fim de se adequar o ato constitutivo às disposições pertinentes e à sua nova realidade. Registre-se, também, que no tocante à designação do integrante da sociedade simples unipessoal Ltda, mostra-se mais adequada a expressão "titular", no lugar de "sócio", na medida em que esta última designa relação societária mantida entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas. Por fim, resta dizer que a sociedade simples pura, por sua vez, não poderá ser constituída sob a forma unipessoal, por falta de autorização legal. *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário. Foi Tabelião Substituto do 2º Serviço Notarial e Registral da comarca de Campo Novo do Parecis/MT, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados e O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral. Referências BRASIL. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021. BRASIL. Lei de Liberdade Econômica, Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021. BRASIL. Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP. Disponível aqui. Acesso em: 03 fev. 2021 IRTDPJBRASIL. Orientação Técnica nº 2/2019. Disponível aqui. Acesso em: 05 fev. 2021 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado - Artigo por Artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.
Introdução O oficial de Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ), antes de fazer o registro do ato constitutivo de uma pessoa jurídica (contrato social ou estatuto social), precisa averiguar se o seu conteúdo viola ou não as regras de ordem pública estabelecidas pela legislação. Em outras palavras, o oficial precisa realizar a qualificação registral e, caso  identifique violações às normas de ordem pública, ele deve negar a realização do registro. No caso de associações, o legislador estabeleceu algumas regras de ordem pública que o estatuto precisa observar, tudo com o objetivo de evitar arbitrariedades e conferir um mínimo de proteção a minorias. Citamos estes casos como exemplos: (1) exclusão de associado só por justa causa e com direito a defesa e recurso (art. 57, CC); (2) reserva à assembleia-geral de deliberação sobre destituição de administradores e a alteração do estatuto (art. 59, CC); e (3) direito de um quinto dos associados em promover a convocação da assembleia (art. 60, CC). Há, porém, muitas dúvidas quando tratamos de estatutos sociais de organizações religiosas. Trataremos desse tema no presente artigo para expor que o oficial de RCPJ precisa atentar que, para elas, vigora um regime de grande liberdade por vontade do próprio legislador. Regras gerais sobre organizações religiosas As pessoas jurídicas que exercem atividade religiosa, independentemente da orientação de fé, são consideradas organizações religiosas. A opção do legislador de tratar as organizações religiosas como pessoa jurídica diversa possui cunho político e didático. De fato, o legislador objetivou evitar que os templos em geral tivessem de adaptar-se às inúmeras regras complexas e burocráticas de associação trazidas pelo CC/2002. Almejou, ainda, reconhecer que há um regime jurídico peculiar para elas, com direito a imunidade tributária sobre patrimônio, renda e serviços (art. 150, VI, "b", CF) e com liberdade de culto (art. 5º, VI, CF). Seja como for, na prática, o funcionamento das organizações religiosas costumam seguir o modelo das associações, embora a elas não sejam exigíveis a adaptação às regras de associação do CC/2002 previstas a partir do art. 53 (art. 2.031, parágrafo único, CC). Liberdade do estatuto social O CC não detalha regras de funcionamento das organizações religiosas, dando liberdade aos seus membros. E foi proposital, do que dá prova o fato de que o parágrafo único do art. 2.031 do CC/2002 ter textualmente excluído as organizações religiosas do dever de adaptar-se ao novo Código. Isso significa que as organizações religiosas não são obrigadas a seguir regras mínimas previstas para as associações. O único limite a que estão expostas são as normas gerais de ordem pública, como as relativas a direitos da personalidade. Por exemplo, em associações, a assembleia geral tem competência para destituir administradores e alterar estatuto por força do art. 59 do CC. Além do mais, em proteção à minoria, 1/5 (um quinto) dos associados possuem direito de promover a convocação da assembleia geral, consoante art. 60 do CC. Trata-se de regras obrigatórias para as associações: o estatuto social delas precisa prever uma assembleia geral com essas competências e assegurar o direito de 1/5 dos associados de promover a convocação da assembleia. Sem essas cláusulas, o estatuto social não pode ser registrado. Não sucede o mesmo em relação à organização religiosa, que não tem de observar essas regras. Seria plenamente legítimo que o estatuto social previsse que a destituição de administradores ou a alteração do estatuto fossem feitas solitariamente pelo chefe religioso (ex.: o bispo fundador da igreja). Aliás, a organização religiosa nem precisaria ter uma assembleia geral: é lícito que todas as decisões da pessoa jurídica sejam tomadas isoladamente pelo chefe religioso. Igualmente, a organização religiosa não precisa assegurar direito de minorias a convocar assembleia geral, se esta houver. O legislador acertou ao dar liberdade para as regras de funcionamento das organizações religiosas. É que o motivo da filiação das pessoas a uma organização religiosa é a fé, que consiste em uma crença acrítica em uma pessoa ou em uma coisa. Os dogmas da fé não são compatíveis com posturas críticas. Quem discordar de algum desses dogmas tem de se afastar e fundar a própria organização religiosa com outros valores de fé. Assim, se, por exemplo, um novo profeta surgisse anunciando-se como o enviado de Deus e ele decidisse fundar uma organização religiosa, não faria sentido algum obrigar que o estatuto social contivesse regras dando poderes a uma assembleia geral, sob pena de chegarmos à absurda conclusão de que a maioria da assembleia poderia destituir esse novo profeta e colocasse, em seu lugar, um outro chefe religioso com outros dogmas de fé. Essa liberdade normativa dada pelo CC às organizações religiosas coaduna com o direito constitucional à liberdade religiosa: postura diversa do CC fatalmente seria inconstitucional. Nem mesmo a regra prevista no art. 57 do CC no sentido de que a exclusão do associado só pode ocorrer com justa causa e com prévio direito de defesa é extensível às organizações religiosas pelo mesmo motivo. O estatuto social poderia licitamente prever que o chefe religioso tem poderes de, sozinho, excluir sumariamente um filiado. Se, no exemplo acima, o novo profeta tiver tido alguma revelação divina de que um dos filiados irá trair a fé ou tivesse recebido uma ordem divina para desligar um filiado, o estatuto poderia prever que esse chefe religioso poderia fazer isso sumariamente e sem prévio contraditório. Isso é questão de fé interna corporis da organização religiosa, de modo que impedir um estatuto social assim feriria o direito constitucional à liberdade religiosa. Seja como for, a liberdade de funcionamento das organizações religiosas não exclui o dever do chefe religioso e dos demais filiados em obedecer a regras de ordem pública, como os relativos a direitos da personalidade. Assim, por exemplo, se o chefe religioso, com base no estatuto social, desligar monocraticamente um filiado da organização religiosa agredindo verbalmente esse filiado, o ato de desligamento é lícito, mas o modo como essa desfiliação foi feita violou o direito à honra do filiado. Nesse caso, o fiel excluído não tem direito a ser reintegrado ao quadro social da organização religiosa, mas, em razão do modo agressivo como se portou o chefe religioso, poderá reivindicar indenização por dano moral. Igualmente, se o estatuto social previr que o chefe religioso poderá matar, espancar ou abusar sexualmente de seus membros, ele não poderá ser registrado por violar normas gerais de ordem pública. Portanto, as organizações religiosas possuem liberdade para desenhar seu estatuto social como lhes aprouver, respeitadas, apenas, as normas gerais de ordem pública. Por fim, alertamos que, na prática, apesar da liberdade normativa, a maior parte das organizações religiosas, como as igrejas evangélicas, os terreiros, os templos budistas etc., costumam adotar um estatuto social com regras muito parecidas com as de associações. Organização religiosa "unipessoal"? Entendemos ainda que a organização religiosa pode ser unipessoal: uma única pessoa poderia instituí-la. Além de o CC não exigir a pluralidade de filiados, a motivação de fé justificaria essa possibilidade. Não há necessidade alguma de o legislador vir a prever uma espécie de "organização religiosa individual", pois essa hipótese já está contemplada implicitamente no CC. No exemplo acima, o novo profeta poderia, sozinho, instituir uma organização religiosa enquanto pessoa jurídica. Seria inconstitucional exigir que esse novo profeta tivesse de conseguir mais alguém para instituir a organização religiosa, pois isso seria uma restrição indevida ao direito constitucional à liberdade religiosa. Particularidades da igreja católica A Igreja Católica foge à regra por conta de acordo internacional firmado entre o Brasil e a Santa Sé em razão do qual a Igreja Católica possui personalidade jurídica em conformidade com o direito canônico (decreto 7.107/2010). E, nesse sentido, cada Mitra Diocesana é uma pessoa jurídica que representa as igrejas católicas da respectiva diocese. Diocese é uma unidade territorial administrada por um bispo e também pode ser chamada de bispado, área episcopal ou sede episcopal. O papa é quem cria as dioceses e nomeia os respectivos bispos. A Mitra Diocesana é uma espécie de fundação por ser o patrimônio destinado a sustentar o bispado local. A respectiva Mitra Diocesana tem, portanto, capacidade para ser parte em processos judiciais e em negócios jurídicos. Cabe ao bispo diocesano representar a respectiva Mitra Diocesana nos atos jurídicos (STF, RE 21.802/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Mário Guimarães, DJ 11/06/1953; STJ, REsp 1.269.544/MG, 3ª Turma, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJe 29/05/2015). No Brasil, há várias Mitras Diocesanas, como a de Brasília, a de Patos de Minas, de Mogi das Cruzes etc. Paróquias são circunscrições territoriais dentro de uma diocese, e são administradas pelo pároco, que exerce a sua influência na respectiva igreja, que é o local do exercício de suas atividades. As igrejas não têm capacidade de ser parte em atos jurídicos, e sim a Mitra Diocesana à qual a igreja estiver subordinada.
Em virtude da entrada em vigor da lei 8/17, de 3 de Março, em Portugal, os animais deixaram de ser vistos como coisas, passando a assumir um status próprio, correspondente a um terceiro género entre as pessoas e as coisas. De facto, antes do preceito que nos dá a pouco rigorosa noção de coisa1, foi integrado no Código Civil português o art. 201.º-B, nos termos do qual: "os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de protecção jurídica em virtude da sua natureza", alteração legislativa que surgiu na esteira do que já tinha ocorrido noutros ordenamentos jurídicos (como o austríaco  - em 1988 -, o alemão - em 1990 -, o francês - em 1999 - ou o suíço - em 2003), assim se expressando uma crescente preocupação com os animais. Que, tendo embora fundamentos variados, assenta no pressuposto comum de que os animais são seres sensíveis e, por isso, não podem ser equiparados às coisas2. O legislador português, depois de ter reconhecido que os animais são seres dotados de sensibilidade, entendeu, então, que o devia fazer de forma expressa no Código Civil e daí retirar conclusões no plano jurídico-civil, dotando os animais de um estatuto que reconhecesse as suas diferenças e natureza, quer face aos humanos, quer face às coisas inanimadas. No entanto, adiante-se, apesar das alterações legislativas, a verdade é que, por um lado, os animais continuaram a ser vistos como objecto de relações jurídico-reais e, por outro, o seu estatuto não sofreu modificação especial. Desde logo, os animais são expressamente considerados como objecto do direito de propriedade, já que, nos termos do n.º 2 do art. 1302.º do Código Civil português, "podem ainda ser objecto do direito de propriedade os animais", ainda que o legislador adiante "nos termos regulados neste código e em legislação especial."3 Depois, as normas especiais sobre animais são escassas e não foram alteradas ou ampliadas e, nos termos do art. 201.º-D do mesmo diploma legal, "na ausência de lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza." Ou seja, o regime das coisas continua, na generalidade, a ser aplicável aos animais. Vejamos, então, quais foram as alterações legislativas - excluindo as meramente literais - introduzidas no Código Civil português em matéria de direito das coisas e de direito da família4. I)                    No domínio do direito das coisas. A redacção originária da epígrafe do artigo 1302.º do Código Civil português - "conteúdo do direito de propriedade" - alterou-se, podendo hoje ler-se "propriedade das coisas". Por outro lado, ao artigo 1305.º, do mesmo diploma legal, acrescentou-se um segundo número de modo a autonomizar o direito de propriedade sobre os animais do direito de propriedade sobre as coisas, do que decorre que o preceito legal por meio do qual se descreviam os poderes dos proprietários (de uso, de fruição e de disposição) e a forma como podiam ser exercidos (de modo pleno e exclusivo) passou a ter um âmbito de aplicabilidade limitado às coisas. Em síntese, aparentemente, o legislador português pretendeu deixar claro que a plena in re potestas apenas pode ser exercida em toda a sua amplitude ou plenitude sobre as coisas. Contudo, segundo o nosso entendimento, mal andou o legislador, uma vez que a antiga redação do art. 1305.º do Código Civil português apenas podia conduzir à afirmação de que os poderes do proprietário resultavam, por contraposição, dos limites e restrições fixadas pela lei, já não que o direito de propriedade, por ser indeterminado e pleno, fosse ilimitado. Efectivamente, o cariz indeterminado da propriedade resultava - e resulta -apenas do facto de este direito abranger uma série de faculdades, permitindo ao proprietário dispor dela como quiser, sem outras restrições que não as que resultem da lei ou do respeito de outros direitos subjectivos. E a característica da plenitude apenas revelava - e revela - que a permissão normativa de aproveitamento da coisa se estendia, e estende, até aos confins das possibilidades jurídicas permitidas pela coisa, na ausência de limitações ou restrições. Acrescente-se ainda, segundo o artigo 334.º do Código Civil português, o exercício de um direito - e, portanto, também o de propriedade ou de qualquer outro direito real - é ilegítimo sempre que o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Por tudo isso, o facto de os animais terem deixado de ser coisas não tornava necessária a alteração da epígrafe do art. 1302.º do Código Civil português. Mas, o legislador português, preocupado - desnecessariamente - em deixar claro que a plena in re potestas não pode ser exercida em toda a sua amplitude ou plenitude relativamente aos animais, veio introduzir no Código Civil o art. 1305.º-A. No n.º 1, determina-se, então, que o proprietário de animais tem os deveres de assegurar o bem-estar deste, respeitar as características de cada espécie, observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e protecção dos animais e, salvaguardar, sendo esse o caso, espécies em risco. E no n.º 2, a propósito do dever de assegurar o bem-estar dos animais, esclarece-se, de forma meramente indicativa, que o mesmo envolve: a) a garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão; b) a garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profiláticas, de identificação e de vacinação previstas na lei. Por fim, no n.º 3, o legislador veio esclarecer que o direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte. Ora, cumpre, antes de mais, afirmar que os n.º 1 e 2 do art. 1305.º-A do Código Civil português não se revelam particularmente inovadores, pois os proprietários de animais de companhia já se encontravam vinculados a assumir os comportamentos mencionados, em virtude dos arts. 6.º e 7.º do decreto-lei 260/12, de 12 de Dezembro que alterou decreto-lei 276/01, de 17 de Outubro, diploma que, por sua vez, transpôs para o direito português a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia. Acresce que, não sendo reconhecida personalidade jurídica aos animais, em causa estão vinculações dos proprietários que não consubstanciam obrigações ou deveres jurídicos integráveis no âmbito de uma relação jurídico-obrigacional. No que ao terceiro número diz respeito, temos de sublinhar que, aparentemente, o legislador se esqueceu, não só da proibição do abuso de direito, mas ainda dos preceitos legais já existentes a este propósito (designadamente, dos n.ºs 1 e 3 do art. 1.º da LPA5 e dos n.ºs 1 e 3 do art. 7.º do decreto-lei 260/126). Finalmente, saliente-se que não foi feita qualquer menção, mesmo que genérica ou remissiva, para as consequências jurídicas do não acatamento dos deveres impostos pelo art. 1305.º-A e que, por isso, o seu incumprimento apenas pode continuar a conduzir à aplicação de sanções contraordenacionais ou penais7. Em conclusão - não obstante considerarmos que podem e devem ser impostas vinculações ou deveres indirectos aos proprietários de animais -, o art. 1305.º-A é supérfluo e não devia ter merecido acolhimento no Código Civil português. Cumpre, agora, fazer referência às alterações introduzidas em matéria de ocupação. Neste domínio, apenas se verificou uma efectiva modificação da disciplina jurídica em dois pontos: por um lado, excluiu-se - não se sabe por que razão - o direito a um prémio dependente do valor do achado (no entanto, sublinhe-se, tal alteração foi introduzida tanto por referência aos animais, como por referência as coisas); por outro lado, nos termos do n.º 7 do art. 1323.º do Código civil, o achador passou a poder, na expressão do legislador, "rete[r] o animal em caso de fundado receio de que aquele seja vítima de maus-tratos por parte do seu proprietário." Ora, esta norma suscita-nos algumas dificuldades interpretativas. Em primeiro lugar, não são facilmente determináveis os pressupostos de aplicabilidade da norma: "fundado receio de maus-tratos do animal por parte do seu proprietário". Estando em causa situações de achamento de animais sem dono conhecido, pode ser muito difícil, senão impossível, formular juízos acerca de eventuais práticas pretéritas de maus tratos aos animais achados. Com efeito, acompanhamos na íntegra Filipe Albuquerque Matos e Mafalda Barbosa quando afirmam que: "a circunstância do animal sem dono ter sido encontrado em estado deplorável não permite, por si só, que o achador conclua pela existência pretérita de maus-tratos do seu proprietário, e subsequente surgimento por parte daquele de um fundado receio quanto a reiteração dessas práticas ofensivas da integridade do animal. Múltiplas podem ter sido as circunstâncias justificativas para o animal, no momento em que foi encontrado, se apresentar num estado deplorável: o lapso temporal do abandono, as contingências severas do meio por onde, entretanto, deambulou, a idade e o estado de saúde do animal..."8 Em segundo lugar, em que se traduz juridicamente tal poder de reter? No direito português, o direito de retenção é um direito real de garantia que atribui ao seu titular o poder de satisfazer o seu crédito, à custa de um bem certo e determinado, com preferência face aos demais credores9. Consequentemente, tal como em qualquer outro direito real de garantia, o direito de retenção, no direito português, é uma garantia acessória de certo crédito. Ora, assim sendo, é para nós certo que o referido poder de reter o animal não consubstancia  um qualquer direito real de garantia. E, se é inegável que, em Portugal, de acordo com o princípio da taxatividade, é ao legislador que compete elencar os direitos reais, também é inquestionável que não compete ao legislador dar a definição de direito real e que lhe está vedada a possibilidade de prever a existência de um direito real de garantia, não acessório, o mesmo é dizer que não vise assegurar a satisfação de um qualquer direito de crédito, mesmo que futuro ou eventual. Para além do afirmado e, portanto, abstraindo do facto de o achador não ser titular do poder de reter por não ser titular de um direito de crédito, sempre se poderá questionar: se em causa estivesse um direito real de retenção, em que medida a referida retenção poderia exercer uma pressão sobre o proprietário do animal? E, não funcionando tal pressão, por que razão ao achador poderia ser reconhecido o poder de promover a venda judicial do bem? Finalmente, não se tratando de um exercício de um direito de retenção como garantia de uma relação creditícia, mas de uma faculdade de reter o animal, retirando-o do poder do seu proprietário, com fundamento numa mera suspeita de maus-tratos, cumpre perguntar: em que medida não configurará tal poder de reter uma restrição desproporcional ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado? Em terceiro lugar, e depois de tudo isto, o legislador português manteve o prazo de recuperação do animal. Ou seja, nos termos do 4 do art. 1323.º do Código Civil, "anunciado o achado, o achador faz seu o animal ou a coisa perdida, se não for reclamada pelo dono dentro do prazo de um ano, a contar do anúncio ou aviso." O que quer dizer que o legislador português admite que, depois de ter sido estabelecida uma ligação entre o achador e o animal - ser sensível - durante o período de um ano, o animal possa ser retornado - como se uma mera coisa se tratasse - ao seu dono. Para terminarmos o nosso excurso sobre as alterações introduzidas no Código Civil português, no domínio do direito das coisas, em virtude da Lei n.º 8/2017, não podemos deixar de salientar, não obstante já resultar implicitamente do afirmado, que nenhuma alteração foi introduzida em matéria de propriedade horizontal/condomínio edilício. E, portanto, desde que constante do regulamento do condomínio inserido no título constitutivo, continua a ser plenamente válida e dotada de eficácia erga omnes a proibição de deter animais de companhia nas fracções autónomas10. II)                  No domínio do  direito da família Quanto às alterações introduzidas no Código Civil português, no domínio do direito da família, em virtude da lei 8/17, há que referir, a ocorrida no art. 1733º, a qual acrescentou à lista de bens incomunicáveis "os animais de companhia que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento" (cfr. alínea h) do n.º1)11, bem como, a introdução, em matéria de divórcio, da alínea e)  do art. 1775.º e do art. 1793.º-A12. A alínea e)  do art. 1775.º passou a determinar que o requerimento para o divórcio  por mútuo consentimento13 deve ser acompanhado - além da certidão judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou do acordo sobre o exercício das  responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial, do  acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça e do acordo sobre o destino da casa de  morada de família -, do acordo sobre o destino dos animais de companhia, caso existam14. Por seu turno, o art. 1793.º-A, tendo claramente em conta o facto de os animais serem seres dotados de sensibilidade, a propósito do divórcio litigioso, estatuiu que "os animais de companhia devem ser confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando os interesses de cada um deles e dos filhos do casal, como também o bem-estar do animal", deixando, assim, inequívoco que em caso de divórcio litigioso os animais não são objecto de partilha - ao contrário do que ocorre com os bens comuns do casal -, não são havidos como objecto do direito de propriedade do cônjuge que conste como seu titular no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC)15, etc., e, portanto, não são equiparados a coisas. Concluímos este escrito revelando que temos a convicção que melhor teria andado o legislador português se houvesse assumindo a defesa dos animais, de forma efectiva e como uma causa pública, introduzindo alterações à Lei de Protecção aos Animais e ao decreto-lei 260/12, ou, preferencialmente, criado um novo e integral Estatuto Jurídico dos Animais, como seres dotados de sensibilidade e, assim, como um tertius genus entre as pessoas e as coisas, merecedores de tutela jurídica específica. Isto porque, é para nós inquestionável que não são os nomes dados às realidades que as transformam juridicamente, mas o regime que lhes é dispensado. ___________ 1 O Código Civil português define coisa, no art. 202.º, como "tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas". No entanto, a noção em causa é demasiado ampla, uma vez que que abarca, designadamente, as pessoas, as prestações e as situações económicas não autónomas. De facto, dúvidas não subsistem quanto à possibilidade de as pessoas poderem ser objecto de relações jurídicas (assim, por exemplo, nos direitos de personalidade) e, no entanto, não são coisas. Também as prestações que, na sua essência, se traduzem em acções ou omissões das pessoas (e, por isso, são incindíveis destas) são insusceptíveis de assumir o estatuto de coisa. Quanto às situações económicas não autónomas, ou seja, situações economicamente vantajosas que se ligam incindivelmente a outras situações, por modo que só dominando estas últimas - se estas forem susceptíveis de domínio - é que alguém pode assenhorear-se das primeiras (por exemplo, os valores sui generis de um estabelecimento comercial, nomeadamente, as relações de facto de valor económico com os clientes, com os fornecedores e financiadores, etc.), também não são coisas. Assim, o conceito jurídico de coisa tem de ser restringido, acrescentando ao disposto no art. 202.º os seguintes requisitos: 1 - impessoalidade; 2 - autonomia (objecto com existência autónoma ou objecto distinto e separado que seja actual, certo e determinado); 3 - utilidade (objecto idóneo à satisfação de necessidades ou interesses humanos; 4 - apropriabilidade (o objecto susceptível de ficar subordinado juridicamente ao poder, acção ou disponibilidade exclusiva de um ou alguns homens).  Consequentemente, não cabe na noção jurídica de coisa: - quem detenha personalidade jurídica (as pessoas); - qualquer objecto que não tenha existência autónoma, isto é, qualquer entidade que não seja distinta e separada, pois que sobre aquilo que só existe como parte de um todo mais vasto não podem constituir-se relações jurídicas com individualidade própria (é o caso das partes integrantes e das partes componentes); - tudo aquilo que, por sua natureza, seja insusceptível de apropriação exclusiva por alguém. Assim os objectos de que todos os homens se podem aproveitar (a luz, o calor solar, o ar atmosférico) e os objectos de que ninguém pode tirar proveito (as estrelas; o próprio sol; os planetas, etc.); - tudo o que não é apto a satisfazer necessidades ou interesses humanos, isto é, tudo a que falte utilidade ou que seja insusceptível de ser utilizado (ex.: uma gota de água; um grão de areia, etc.). 2 Como ensina ANTÓNIO DAMÁSIO, efectivamente, as emoções são estruturas comuns a espécies tão simples como as moscas ou caracóis. Já a estruturas neuronais em que a consciência se alicerça (consciência nuclear) podem ser encontradas, não só nos primatas, mas também em aves e répteis Por fim, a consciência alargada - que nos remete para uma apreensão panorâmica da vida e que permite o altruísmo - é típica, dos mamíferos superiores, para além, clara está, dos seres humanos. 3 A lei não passou a reconhecer aos animais personalidade jurídica, nem, na nossa perspectiva, a qualidade de titulares de direitos subjetivos. Bem andou o legislador, pois o fundamento último do direito encontra-se na ineliminável dignidade ética do ser Pessoa, livre e responsável. E faltando aos animais tais dimensões, como é evidente, independentemente das suas particulares características ontológicas, tão bem salientadas por DAMÁSIO, não se pode defender que sejam titulares de direitos. Efectivamente, o único sujeito de direitos é o homem: Pessoa, livre e responsável. O acabado de afirmar não implica, obviamente, que se negue a existência de deveres das pessoas para com os animais. Mas tais deveres, segundo o nosso entendimento, têm de ser concebidos como deveres indirectos. 4 A par destas alterações foi introduzido o artigo 493.º-A em matéria de Direito das Obrigações. O artigo 493.º-A (Indemnização em caso de lesão ou morte de animal) tem a redação que de seguida se transcreve: "1. No caso de lesão de animal, é o responsável obrigado a indemnizar o seu proprietário ou os indivíduos ou entidades que tenham procedido ao seu socorro pelas despesas em que tenham incorrido para o seu tratamento, sem prejuízo de indemnização devida nos termos gerais. 2. A indemnização prevista no número anterior é devida mesmo que as despesas se computem numa quantia superior ao valor monetário que possa ser atribuído ao animal. 3. No caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal."  A propósito deste artigo, cumpre sublinhar o carácter inovador, a nível europeu, do seu n.º 3, o qual, em caso de morte ou de lesão corporal grave do animal, reconhece ao seu proprietário o direito a ser ressarcido ou compensado dos danos não patrimoniais (v.g. desgostos, angústias e sofrimentos). 5 No n.º 1: "são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal". Na al. d) do n.º 3 lê-se que "são também proibidos os actos consistentes em: abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação comercial ou industrial". 6 No qual se estatui que "são proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal." 7 E quanto a estas, não podemos deixar de afirmar que são absolutamente inconstitucionais, em virtude da inexistência de qualquer bem jurídico constitucionalmente reconhecido. Não obstante o acabado de afirmar, de seguida, passamos a transcrever o Título VI - Dos crimes contra os animais de companhia - do Código Penal português. "Artigo 387.º (Morte e maus tratos de animal de companhia) 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço. 3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias. 4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de: a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal; b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos; c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil. Artigo 388.º (Abandono de animais de companhia) 1 - Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. 2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar perigo para a vida do animal, o limite da pena aí referida é agravado em um terço. Artigo 388.º-A (Penas acessórias) 1 - Consoante a gravidade do ilícito e a culpa do agente, podem ser aplicadas, cumulativamente com as penas previstas para os crimes referidos nos artigos 387.º e 388.º, as seguintes penas acessórias: a) Privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 6 anos; b) Privação do direito de participar em feiras, mercados, exposições ou concursos relacionados com animais de companhia; c) Encerramento de estabelecimento relacionado com animais de companhia cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença administrativa; d) Suspensão de permissões administrativas, incluindo autorizações, licenças e alvarás, relacionadas com animais de companhia. 2 - As penas acessórias referidas nas alíneas b), c) e d) do número anterior têm a duração máxima de três anos, contados a partir da decisão condenatória. Artigo 389.º (Conceito de animal de companhia) 1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. 2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos. 3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância." 8 O Novo Estatuto Jurídico dos Animais, Coimbra, Gestlegal, 2017, p. 113.  9 Segundo o estatuído no art. 754.º do Código Civil português, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Ou seja não só pode recusar a entrega da coisa (visando compelir o devedor a realizar a prestação em dívida, em ordem a recuperar o objecto retido), como pode promover a sua execução judicial, para assim se pagar à custa do valor da coisa com preferência face aos demais credores. Assim, são requisitos para existência do direito de retenção previsto no art. 754.º: - que o titular do direito detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem; - que o titular do direito, obrigado à restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem a deve restituir; - que entre os dois créditos exista uma relação de conexão. É o caso-escola do mecânico que pode recusar a entrega da coisa reparada para assegurar o pagamento do crédito resultante das reparações. Segundo o art. 756.º do Código civil português, não há direito de retenção: a)                   a  favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta; b)                  a favor dos que tenham realizado de má-fé as despesas de que proveio o seu crédito; c)                   relativamente a coisas impenhoráveis; d)                  quando a outra parte preste caução suficiente. Saliente-se, ainda, que no n.º 1 do art. 755.º do diploma legal em apreço, o direito de retenção é admitido com carácter excepcional em relação ao transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. E dizemos "excepcional", porque se não trata aqui de usar o direito de retenção para garantir um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados.  10 Ao invés, como a assembleia de condóminos não pode decidir sobre o uso das fracções autónomas, salvo nos casos especiais previstos na lei (cfr. artigos 1422.º, n.º 2 a 4; 1422.º-A, n.º 3, 1428.º e 1429.º do Código civil português), o regulamento por si elaborado não pode proibir a detenção de animais em fracções autónomas. Acresce que, não obstante a assembleia geral, no âmbito dos seus poderes de administração, poder regular o uso da coisa comum no interesse colectivo do condomínio, ao fazê-lo não pode violar o direito de cada condómino, privando-o do uso da coisa comum. Por isso, a assembleia de condóminos não pode impedir que o condómino circule acompanhado de um animal de companhia em toda e qualquer parte comum do edifício, não obstante poder estabelecer, a cargo dos condóminos, deveres especiais de cuidado com a higiene das partes comuns ou com a segurança, quer do edifício, quer das restantes pessoas que nele habitam (por exemplo, o dever de não deixar um animal de estimação circular à solta pelas partes comuns). 11 A doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes em afirmar que os bens incomunicáveis, nos termos do art. 1733.º, no regime da comunhão geral de bens, também o são, por maioria de razão, no regime da comunhão de adquiridos. 12 Sublinhe-se que as referidas regras se aplicam também à separação judicial de pessoas, quer por mútuo consentimento, quer litigiosa, nos termos do art. 1794.º do Código Civil português. 13 Que, em Portugal, corre em uma qualquer conservatória do registo civil e não perante o notário, ao contrário do que ocorre no Brasil. 14 Sendo acordado que o destino do animal passará por ficar permanentemente apenas com um dos ainda cônjuges, nada obsta à convenção segundo a qual ambos continuarão a suportar as despesas com a sua alimentação, saúde, etc. No entanto, não sendo tal acordo necessário para que o divórcio por mútuo consentimento seja decretado, a ele não se referirá a decisão da conservatória. Consequentemente, não lhe poderá ser dada publicidade, pois, por um lado, em Portugal, apenas a decisão proferida é registada - mediante arquivo da fotócopia/xerox respectiva, em maço próprio (cfr. art. 273.º do Código do Registo Civil) - e, por outro, inexiste Registo de Documentos. 15 O Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) foi criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019 de 27 de Junho, em cujo preâmbulo se pode, além do mais, ler: "a regulação da detenção dos animais de companhia constitui uma medida destinada a contrariar o abandono e as suas consequências para a saúde e segurança das pessoas e bem-estar dos animais. A prevenção do abandono animal pela promoção da detenção responsável engloba, entre outras obrigações, a identificação e registo dos animais de companhia. O sistema de marcação com um dispositivo eletrónico denominado transponder e o registo no sistema informático permitem estabelecer a ligação do animal ao seu titular ou, quando aplicável, ao seu detentor e local de detenção, possibilitando a responsabilização do titular do animal pelo cumprimento dos parâmetros legais, sanitários e de bem-estar animal." Em virtude deste diploma legal todos os cães, gatos e furões, nascidos em Portugal, ou que residam neste território por um período igual ou superior a 120 dias têm que ser "registados" junto do SIAC, após a  colocação de um microchip ou transponder. O SIAC é uma base de dados pública, acessível a partir de um portal na internet, que agrega informação sobre cães, gatos e furões. Designadamente: a informação sanitária obrigatória do animal, o local onde habita e os dados do titular do animal. Sublinhe-se que antes da existência do SIAC, em Portugal existiam duas bases de dados relativamente aos animais de companhia: o Sistema de Identificação e Recuperação Animal (SIRA) - criado em 1992 pelo Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários - e o Sistema de Identificação de Canídeos e Felinos (SICAFE) - criado, em 2003, pela Direção Geral de Veterinária - no qual constavam os dados dos Centros de Recolha Oficiais e das juntas de freguesia. O SIAC surgiu a partir da fusão destes dois organismos. ____________