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Abril indígena e um ano todo de luta, luto e invisibilidade

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Atualizado às 07:43

Na última semana, ocorreu em Brasília a 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que é a maior mobilização de Povos Indígenas do Brasil. Talvez, do mundo. O evento acontece todos os anos no mês de abril e reúne mais de 5 mil lideranças indígenas do país todo que vêm até Brasília reivindicar direitos e demarcar a Capital nacional com jenipapo, urucum e luta por direitos.

A grandiosidade do acontecimento, porém, é inversamente proporcional à visibilidade dada pela mídia: se você não acompanha das redes sociais de pessoas e organizações indígenas, dificilmente soube da ocorrência do ATL e da violência arbitrária praticada por policiais contra os indígenas que participavam de mobilização pacífica em frente ao Congresso Nacional no dia 10/04.

Na véspera da mobilização, em reunião realizada de modo virtual entre a Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e as forças de segurança do Distrito Federal para ajustes a respeito da mobilização, um dos participantes, posteriormente identificado como servidor do Itamaraty1, falou durante a reunião para deixar os indígenas descerem até o Congresso "e depois descer o cacete". Assim foi feito: após a marcha "A Resposta Somos Nós", em que mais de 7 mil indígenas se deslocaram da antiga FUNARTE em direção ao Congresso Nacional, a polícia do Distrito Federal, de modo truculento e injustificado, atacou os indígenas com gás lacrimogêneo e spray de pimenta.

Nada de novo sob o sol. Afinal, é isso o que acontece todos os dias em nossos territórios: luta pacífica pela garantia de direitos, violência estatal como resposta e invisibilização.

A primeira matéria2 que noticiou o fato falava sobre atuação da polícia para conter confusão iniciada por indígenas que teriam avançado e derrubado as grades de proteção que cercam o Congresso.

No entanto, não havia grades de proteção no gramado. Não houve confusão por parte dos indígenas. Aconteceu apenas uma violência arbitrária e premeditada da polícia contra indígenas que protestavam pacificamente e em seguida a utilização da clássica estratégia de narrativa que coloca grupos ditos minoritários como vilões e o Estado violador e violento como fiel da balança.

Se não fosse a presença da deputada federal Célia Xakriabá, que também foi atingida pela violência policial, este fato provavelmente entraria para as estatísticas de impunidade dos casos de violência contra Povos Indígenas.

Mas nem a presença da Deputada foi suficiente: a violência de todos os dias se repetiu no coração da Capital Federal e o mandato popular não foi suficiente para blindar um corpo-território. Célia sofreu violência, mesmo sendo "deputada eleita" como ela tantas vezes disse no vídeo em que pede aos policiais para que, visivelmente atingida, possa ter acesso à Câmara dos Deputados - seu local de trabalho.

A violência que atingiu a deputada, diariamente atinge os Povos Indígenas do Brasil e se manifesta de Norte a Sul: ela está na discriminação que os indígenas amazonenses sofrem, nos assassinatos de indígenas Guarani-Kaiowás em Mato Grosso do Sul, no minério que contamina os rios das aldeias em Roraima, na insegurança alimentar a que os Avá Guaranis estão submetidos no Paraná e na bala que faz os Pataxós da Bahia tombarem3. Todos, sem virar notícia.

Desde 1943, o dia 19 de abril é considerado o dia dos Povos Indígenas e, em razão disso, este mês costuma ser marcado por uma maior atenção à pauta. É comum ver escolas, universidades, instituições públicas ou privadas e meios de comunicação falarem sobre o tema. Nas escolas, durante muito tempo 19 de abril era o dia de pintar crianças com tinta guache, ouvir Xuxa cantar "Brincar de índio" e repetir gestos estereotipados para representar o que se acreditava ser o modo de ser indígena, reforçando preconceitos.

O mês de abril, assim como todos os outros 11 meses do ano, para pessoas indígenas é um mês de luta. Luta pela demarcação das nossas terras, pelo acesso à educação escolar diferenciada e de qualidade, pelo acesso e permanência nas universidades, pelo ingresso no mercado de trabalho em igualdade de condições (o que, considerando-se o conceito de igualdade material, implica na adoção de políticas afirmativas) e principalmente pelo direito ser e existir.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), no Brasil há mais de 305 etnias indígenas que falam mais de 270 línguas. Apesar de toda essa diversidade, no imaginário popular prevalece uma visão estereotipada correspondente ao tempo das Grandes Navegações. Esse desconhecimento sobre os Povos Indígenas que atravessa a sociedade brasileira serve como força motriz para alimentar a invisibilização das lutas e lutos deste Povo, mas também para legitimar a violência contra eles investida diariamente.

No extremo sul da Bahia, desde o ano de 2022, com o processo de retomada territorial por parte dos indígenas, a violência tem sido uma crescente, acompanhada pelo número de vítimas fatais. O sentimento anti-indígena também se multiplica naquela região, como se fossem os indígenas os causadores desta violência. Fala-se em disputa violenta, mas o que se verifica é que essa disputa, assim como a violência, é uma via de mão única: apenas corpos indígenas são atingidos, apenas indígenas têm seu direito de viver violado, apenas indígenas são presos.

A demarcação dos territórios indígenas é o primeiro passo para a alteração deste cenário de violência contra os Povos Indígenas e garantia de direitos. No entanto, no caso do Povo Pataxó do extremo sul da Bahia, apesar da inexistência de óbices à finalização do processo demarcatório, como divulgado em Nota Técnica publicada pelo Ministério Público Federal (MPF)4, o Estado brasileiro se mantém inerte.

No caso da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, no extremo sul da Bahia, minutas de Portarias Declaratórias já foram apresentadas nos autos do processo de demarcação em 2013 e em março de 2023. Isso significa que todo o procedimento legalmente previsto para se ter certeza se aquele território é terra indígena, incluindo o exercício do contraditório pelos fazendeiros interessados, já foi finalizado. Ou seja: há mais de 10 anos, os processos estão apenas aguardando a assinatura e a publicação da portaria desde data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 14.701/2023, a lei do marco temporal, que não incide neste caso.

Apesar disso, o Ministro da Justiça afirmou recentemente em reunião com lideranças indígenas dos Povos Pataxó e Tupinambá do extremo sul da Bahia que não dará andamento aos processos demarcatórios em razão da lei 14.701/20235.

Assim, após mais de 12 anos de espera, os indígenas do extremo sul da Bahia seguem sem previsão de finalização da demarcação dos seus territórios ancestrais.

Se por um lado o estado brasileiro mantém-se inerte, o mesmo não se pode dizer de fazendeiros que ocupam a área a ser demarcada e a cada dia intensificam a violência contra os indígenas, inclusive como retaliação por qualquer movimentação feita em prol da demarcação. Como exemplo, pode-se citar o assassinato de Vitor Pataxó6 e o incêndio da casa de um indígena7 no extremo sul da Bahia, enquanto cerca de 300 indígenas estavam em Brasília participando de audiência pública e reunião com o Ministro da Justiça para tratar sobre a demarcação daquela área.

Tudo isso está acontecendo todos os dias no país que sediará a COP30: violação de direitos, negação do direito ao território, violência, assassinatos.

Enquanto o Brasil busca consolidar a sua imagem internacional de liderança na pauta climática, ancorando-se na biodiversidade do seu território, internamente os guardiões da biodiversidade seguem sem ter suas terras demarcadas.

Os dados científicos que atestam a importância da demarcação e proteção de terras indígenas para garantia da manutenção da vida na Terra, constantemente citados como elogio aos indígenas, não são ouvidos para fins de adoção de políticas demarcatórias.

Mais um abril vai passar e a nossa luta vai permanecer, como tem sido há 525 anos. 

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.