O silenciamento da vítima como marca da violência racial
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Atualizado em 16 de maio de 2025 12:03
A tecnologia do racismo é sagaz e os ataques dela decorrentes adotam formas múltiplas e complexas. Muitos desses ataques são bastante sutis e, algumas vezes, disfarçados de elogios ou de meros comentários ou opiniões. Nesse contexto, diferentes impactos negativos podem ocorrer, dentre os quais, destacamos nesse texto o silenciamento da vítima.
A impossibilidade de responder à altura, de não poder ser firme ou de se exaltar para não perder imediatamente a razão e ser colocada na posição de pessoa raivosa. O silenciamento das vítimas é um dos mecanismos perversos do racismo e atua desencorajando a pessoa ofendida de denunciar e buscar amparo e reparação pelas violências sofridas.
Por muito tempo, difundiu-se, a partir da obra de Gilberto Freyre, a ideia de democracia racial e de que a miscigenação seria fator de fortalecimento das relações sociais e nacionais.
Abdias do Nascimento destacou que esse mito da democracia racial atuaria como um instrumento ideológico para negar a existência do racismo e deslegitimar as denúncias e reivindicações por uma sociedade verdadeiramente igualitária. Ademais, tal miscigenação decorreu de estupros e violência sexuais praticadas pelos colonizadores.
A perpetuação desse mito possui consequências diretas no silenciamento das vítimas, as quais frequentemente têm suas experiências questionadas e minimizadas.
Ao se reconhecer as pessoas negras como um grupo historicamente e socialmente vulnerabilizado, é imprescindível que os atores do sistema de justiça promovam o acolhimento das notícias de violação de direitos por meio de uma interpretação que lhes seja mais favorável. Assim como já ocorre com o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, em novembro de 2024, foi aprovado pelo CNJ, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Racial. Esta iniciativa do Judiciário é um marco extremamente relevante no sentido de que os órgãos Julgadores estejam atentos para as máculas e os impactos do racismo sobre toda a sociedade.
Essa perspectiva de interpretação normativa mais favorável aos sujeitos vulnerabilizados já é historicamente consolidada no Direito. Existe no Direito do Consumidor cuja interpretação é mais favorável ao consumidor; existe no Direito do Trabalho, cuja interpretação também é orientada a ser mais favorável ao trabalhador; no Direito Penal, pelo in dubio pro reo, entre outros.
Não obstante, a busca por responsabilização do agressor em casos de racismo é frequentemente marcada por obstáculos pessoais, sociais e institucionais.
Pessoais, porque a pessoa precisa se encorajar e enfrentar os traumas internos decorrentes das inúmeras violências raciais já sofridas no decorrer vida para decidir encarar a trajetória desgastante da formalização de um caso de racismo. Sociais, porque a partir do momento que for apresentada a notícia da ocorrência racista, muitas pessoas irão relativizar o ocorrido e confrontar a vítima que pode ser reputada como impaciente, raivosa etc. Institucional, porque a jornada a ser enfrentada junto aos trâmites administrativos e judiciais exige um custo emocional, financeiro e de tempo que nem toda vítima de racismo dispõe.
Ao se fazer uma leitura da realidade pela lente decolonial, confere-se espaço de fala e escuta ativa para grupos historicamente oprimidos pela colonialidade do poder que subjugou práticas culturais diversas daquelas produzidas pelo eurocentrismo e pelo imperialismo. Os diferentes saberes, práticas e produções científicas realizadas a partir de concepções e autores da Europa são historicamente tidos como merecedores de maior respeito, enquanto aquelas teorias e pesquisas produzidas no sul global são analisadas com desconfiança e maior reserva. E se isso ocorre com a produção científica imagine com as pessoas comuns no dia a dia.
Nessa perspectiva da colonialidade do poder, Aníbal Quijano assevera que a partir desse processo de exploração do colonialismo, foi desenvolvido pelos colonizadores o conceito de raça (brancos, negros, mestiços, índios) e a divisão racial do trabalho, na qual houve a escravização ou servidão dos não brancos, consolidando-se uma compreensão da branquitude europeia e de seus descendentes no sentido de que os melhores trabalhos e a adequada remuneração caberiam aos brancos. Aos demais, restaria a servidão e os menores salários.
Emmanuel Levinas traz uma contribuição fundamental para o debate sobre a dimensão ética das relações raciais através de sua filosofia da alteridade. O silenciamento das vítimas de racismo pode ser compreendido, nesta perspectiva, como uma negação da alteridade que viola o princípio ético fundamental do reconhecimento do outro. E reconhecer a pessoa negra como sujeito de direitos fundamentais em paridade e igualdade é essencial na luta antirracista.
Na obra, Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon analisa como o racismo colonial produz traumas profundos na subjetividade negra, criando o que ele chama de "complexo de inferioridade". O silenciamento opera como um mecanismo que aprofunda este trauma, impedindo sua superação e a própria reação da vítima diante do ataque racista.
Atente-se que o silenciamento atinge com ainda maior gravidade as mulheres negras. Conforme destaca María Lugones, as dinâmicas raciais e a colonialidade do poder não deixam de operar sobre as relações de gênero, de modo que, além da colonialidade do poder, atua, ainda, a colonialidade de gênero.
As violências racistas atingem as pessoas negras desde a mais tenra idade e prejudicam a construção da sua subjetividade e cria óbices à construção de uma vida plena e livre de preconceitos. Carla Akotirene, na obra Interseccionalidades, destaca que estas análises demandam uma compreensão geopolítica, especialmente na perspectiva das vivências do sul global. É preciso atentar aos efeitos perversos do capitalismo, do imperialismo, do racismo, do sexismo que marcam com mais intensidade determinados corpos que se tornam subalternizados e com menor acesso a direitos básicos.
O silenciamento não é apenas resultado de ações individuais ou institucionais específicas, mas um processo amplo e complexo que envolve diversos atores, instituições e mecanismos sociais. Todas as pessoas precisam compreender que são partícipes ativos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária e devem estar vigilantes dia a dia, adotando posturas antirracistas, evitando negar ou relativizar as experiências de violência racial que cotidianamente ocorrem.
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1 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2022.
2 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.
3 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48 ed. rev. São Paulo: Global, 2003.
4 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
5 LUGONES, María. Colonialidad y Género: hacia un feminismo descolonial. In: MIGNOLO, Walter. Género y Descolonialidad. Buenos Aires: Del Siglo, 2008, p. 13-54.
6 MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução: Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
7 NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
8 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005. p. 117-142.