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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
Na tarde do dia 7 de abril, um domingo, doze militares descarregaram os fuzis contra o veículo, no qual Evaldo Rosa, músico, negro, trafegava com a família, na zona oeste carioca. O grupo se dirigia a um chá de bebê. Inicialmente, noticiou-se que os soldados dispararam "mais de oitenta" tiros em direção ao carro. Mais tarde, constatou-se pela perícia o número exato. Na verdade, os militares puxaram o gatilho 257 vezes.1 No quadro de um Estado Democrático de Direito, tal fato seria julgado pela justiça comum, precisamente pelo Tribunal do Júri. No entanto, por uma excrescência jurídico-política consubstanciada na lei 13.491/2017, o caso é julgado pela Justiça Militar Federal. A lei 13.491/2017 deu nova redação ao art. 9º do CPM, tirando a expressão "legislação penal comum" e substituindo por "e os previstos na legislação penal"2, crimes previstos em legislação especial, mesmo sem correspondência no CPM, tais quais a tortura e o abuso de autoridade cometidos por militares em certas condições (alíneas do inc. II), passam a ter natureza militar, de modo a atrair a competência da justiça castrense. Ademais, estabeleceu a famigerada lei que crimes dolosos contra a vida de civis, em certas condições, quando cometidos por militar das forças armadas, passam também para a competência da Justiça Militar da União. Em seu art. 2º uma cláusula de vigência temporária que assim versava:  "art. 2º. Esta lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada". Todavia, o referido artigo 2º foi objeto de veto pelo então presidente da República, Michel Temer. Por se tratar de dispositivo que versava sobre a vigência temporária da lei, o veto parcial acabou por transformar o que seria temporário em permanente. Nota-se que, no caso em tela, a estrutura normativa e a cultura autoritária que marca a história do Brasil favorecem violações ao princípio da separação dos poderes. José Murilo de Carvalho3 discorre sobre a evolução da cidadania no país e indica que a história institucional brasileira conduziu a uma estrutura que favorece a supremacia do Executivo4. O veto presidencial em exame ilustra bem a ideia do governo se colocar como o mais importante, o todo poderoso,  que pode ignorar o limite de seu poder para ao ponto de transformar uma norma temporária em permanente. Vale frisar que o então Chefe do Executivo, Presidente Michel Temer, não era desconhecedor de seus limites. Basta notar o que escreveu em sua obra Elementos de Direito Constitucional: Quais, entretanto, os limites do veto presidencial? Em primeiro lugar, relembre-se que o veto pode ser total ou parcial, abrangendo, em (sic) conseqüência, a totalidade do texto do projeto ou parte dele (artigo, inciso, parágrafo, alínea). Em segundo lugar, a ideia de veto encerra a de eliminação, de exclusão, de vedação. Nunca de adição, de acréscimo, de adjunção. (...) Por tudo isto, é impossível o veto aditivo ou restabelecedor, isto é, o veto que adicione algo ao projeto de lei ou restabeleça artigos, parágrafos, incisos ou alíneas suprimidos pelo Congresso Nacional5. (destaques do autor). Adverte o então professor Michel Temer que a ideia de veto parcial , introduzida no Brasil na reforma constitucional de 1926, pretendia impedir o que a doutrina designava por riders, "caudas legais", ou seja, uma prática na qual parlamentares inseriam emendas em projetos de interesse do governo,  o que o obrigava, não raro, aprovar tais emendas para não vetar a totalidade do projeto. Com o veto parcial, era possível extirpar dos projetos interessantes ao governo aquelas emendas que lhe pareciam perniciosas. Todavia Michel Temer, ainda professor, esclarece que a proscrição constitucional de se vetar palavras, como era possível na Constituição de 1969, tem por escopo evitar a desfiguração do projeto de lei, fazendo afirmativo o que era negativo, por exemplo. Aduz que o fundamento doutrinário de proibição de palavras ou conjuntos de palavras é que por esse mecanismo o Chefe do Executivo poderia modificar o todo lógico de um projeto de lei, podendo verdadeiramente legislar6. Mas note que o então professor Michel Temer já indicou que tal medida não seria eficiente para impedir o uso do veto de modo abusivo, ou seja, de modo a conferir poder legislativo positivo ao Presidente da República, vale transcrever: Data vênia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por inteiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer - tanto em razão do veto da palavra ou de artigo - o que se verifica é a usurpação de competência pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2º da CF; c) qual a solução para ambas as hipóteses? O constituinte as previu: aposto o veto, retorna o projeto ao Legislativo e este poderá rejeitá-lo, com o quê se manterá o todo lógico da lei. Objeta-se, entretanto: a rejeição do veto exige maioria absoluta e, por isso, uma minoria (1/2) poderá editar a lei que, na verdade, não representa a vontade do legislador. Responde-se: se isto suceder, qualquer do povo, incluídos os membros do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, pode representar aos legitimados constitucionalmente (art. 103, I a IX, da CF) para a promoção da representação de inconstitucionalidade daquela lei em face de usurpação de competência vedada pelo art. 2º da CF7. Já o presidente Michel Temer, sem ignorar o processo legislativo e suas vicissitudes, vetou o art. 2º da lei 13.491/2017, olvidando tudo que houvera ensinado ao menos desde 1996, ano da edição consultada de seu livro, emitindo a seguinte mensagem de veto: Senhor Presidente do Senado Federal, Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1º do art. 66 da Constituição, decidi vetar parcialmente, por contrariedade ao interesse público, o projeto de lei nº 44, de 2016 (5.768/16 na Câmara dos Deputados), que "Altera o decreto-lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar". Ouvido, o Ministério da Defesa manifestou-se pelo veto ao seguinte dispositivo: "Art. 2º Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada." Razões do veto "As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição"8. Diante deste cenário, no qual se nota claramente o mesmo sujeito escrevendo com base na dogmática jurídica constitucional e emitindo uma mensagem de veto no exercício de função política, deve-se pensar quais as  possíveis contribuições da teoria do direito e da filosofia política para a análise desta dissonância. Para tanto, selecionamos, precipuamente, as contribuições de Ferrajoli e Mbembe, com o intuito de uma leitura sobre o problema jurídico a partir do Garantismo e do problema político à luz da Necropolítica. Lei 13.491/201: Garantismo e Necropolítica. Não se pretende aqui promover uma abordagem sobre os temas Garantismo e Necropolítica. O que se busca é utilizar alguns conceitos como chave analítica da indigitada lei. Do Garantismo O Garantismo nasceu em um sentido estrito de "garantismo penal", comprometido em afastar o perigo da violação dos direitos, revelando desconfiança na espontânea satisfação e respeito aos direitos, principalmente os direitos fundamentais. A teoria não se ilude com a crença em um "poder bom"9. Tem por objetiva a conformação do Estado real ao modelo ideal, obra dos valores ético-políticos e de justiça, absorvidos pelo direito positivo, valores como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, os direitos individuais, sociais, coletivos e difusos, bem como as garantias desses direitos fundamentais10. Trata-se de um pensamento centrado na tradição iluminista, articulando mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano. Esta limitação se refere aos três poderes, com destaque ao Legislativo que também está vinculado aos direitos fundamentais, de forma que nem mesmo a vontade da maioria pode negar ou violá-los11. Nesta linha a crise jurídica, não decorre da necessidade de se aperfeiçoar o ordenamento jurídico e sim da falta de efetividade. Ferrajoli apresenta o Garantismo no plano formal marcado pelo princípio da legalidade e, no plano substancial, pela funcionalização dos poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais12. Em outro texto, revela a importância da lei como limite ao Judiciário, da Constituição como limite ao legislador e a separação dos poderes como limite ao Executivo13, dando relevo ao controle jurisdicional de constitucionalidade14. A jurisdição está investida de uma função crítica: a de aferir a validade constitucional das normas15. À luz de tais parâmetros, é possível notar que o hiato entre a dogmática constitucional do veto (Temer professor) e a realidade política da mensagem do veto Presidencial nº 402 (Temer Presidente), revela o quão autoritário (antidemocrática) é o reconhecimento da competência da justiça militar nos termos da lei 13.491/2017.  Da Necropolítica Afastados como estão de seus 'alvos' (...) quase nunca têm a chance de olhar suas vítimas no rosto e avaliar a miséria humana que têm semeado. Militares profissionais do nosso tempo não veem cadáveres nem ferimentos. Talvez, eles durmam bem; nenhuma pontada em suas consciências os manterá acordados. (ZYGMUNT, Bauman. Wars of the Globalization Era. European Journal of Social Theory, v. 4, n. 1, 2001.).  O termo "necropolítica" foi cunhado pelo historiador e cientista político camaronês, Achille Mbembe16, intelectual vinculado ao pensamento pós-colonial. Mbembe teve por foco as periferias criadas pelo sistema capitalista, ou seja, os indivíduos que foram dispensados por não possuírem mais sua utilidade como mão de obra, utilizada em momentos anteriores e agora substituída por processos de produção modernos. Nota-se, desta forma, o perfeito ajuste deste estudo à realidade brasileira. A necropolítica pode ser definida como uma política centrada na produção da morte em larga escala, revelando um mundo em crise sistêmica. Nesta perspectiva, a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer17, seu estudo evidencia que, na necropolítica, a função da soberania é delimitar e escolher aqueles que irão continuar a fazer parte da sociedade e aqueles que serão eliminados. O poder não pretende mais efetuar o controle pela via disciplinar bem definida por Foucault. O objetivo não é mais prender, pois a ordem da economia máxima é representada pelo massacre18. O novo ideal não é prender, é matar.  Para tanto, cria-se um cenário de guerra permitindo uma modalidade de crime que não faz distinção entre um inimigo interno e externo e populações inteiras são alvo do soberano. A vida cotidiana é militarizada19. O que se nota na sociedade brasileira contemporânea é uma crescente militarização da vida, da política, destacadamente da segurança pública. O uso sistemático de ações militares no âmbito da segurança pública vem sendo visto com naturalidade, submetido à normatização em pleno Estado de Direito em tempos de paz. O movimento de ampliação da competência da justiça militar quiçá tenha sido um dos primeiros movimentos de consolidação (pavimentação) jurídica da necropolítica. A questão se insere no debate eleitoral de 2018 quando afloraram bandeiras por métodos de "abate" ovid-19. Isto pode ser demonstrado através dos seguintes documentos: Cumpre ressaltar que as Forças Armadas encontram-se, cada vez mais, presentes no cenário nacional atuando junto à sociedade, sobretudo em operações de garantia da lei e da ordem. Acerca de tal papel, vale citar algumas atuações mais recentes, tais como, a ocorrida na ocasião da greve da Polícia Militar da Bahia, na qual os militares das Forças Armadas fizeram o papel da polícia militar daquele Estado; a ocupação do Morro do Alemão, no Estado do Rio de Janeiro, em que as Forças Armadas se fizeram presentes por longos meses; e, por fim, a atuação no Complexo da Maré, que teve início em abril de 2014. Dessa forma, estando cada vez mais recorrente a atuação do militar em tais operações, nas quais, inclusive, ele se encontra mais exposto à prática da conduta delituosa em questão, nada mais correto do que buscar-se deixar de forma clarividente o seu amparo no projeto de lei. Por fim, sugere-se substituir a expressão ação militar por atividade de natureza militar, por ser mais usual20. No mesmo tom, ouvimos as razões do veto ao art. 2º do Projeto de lei 5768/2016, convertido na lei 13.491/2017: "As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição". Essas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o dispositivo acima mencionado do projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional21. Sintomática é a frase "Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão". Nota-se que a pretensão é estabelecer, mas que tolerar, o uso permanente das forças militares no combate do inimigo interno. Para tanto, é preciso um aparato estatal que integre tais atividades ao sistema de justiça. Com efeito, a ampliação da competência da justiça militar representa esta estratégia, ou seja, é um reflexo da militarização da vida inerente à necropolítica. O deslocamento da competência para a justiça militar é um sinal tenebroso para a sociedade contemporânea. Trata-se de um desdobramento da necropolítica. A ampliação dos crimes militares em tempos de paz significa, de certo modo, o reconhecimento de inimigos internos que devem ser enfrentados, abatidos e o julgamento por estes fatos deve ser feito pela justiça militar, versada, ao menos no âmbito federal (no qual maior problema surgiu), em julgar agentes que combatem inimigos, a partir de premissas singulares, especializadas, fundadas na disciplina e hierarquia militar. A ampliação do aparato de justiça estatal militar em tempos de paz aprofunda o imaginário de guerra e de inimigos internos. A necropolítica possibilita uma análise crítica dos fenômenos de violência próprios da periferia do capitalismo22. Relacionando esta ideia com as políticas de segurança pública, tem-se que, se para uns a segurança pública significa proteção, para outros ela significa a morte. É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente23. Uma lógica de segurança pública, fundada na necropolítica,  garante, para alguns, o gozo dos direitos, isto é, para os abastados, mas para outros, materializa o permanente estado-de-exceção, isto é,  aos "condenados da terra", tão lembrados por Fanon24. O corte racial é fundamental no trabalho de Mbembe. Quem são os matáveis nessa guerra ? A necropolítica pressupõe esse controle através da distribuição da espécie humana em grupos e do estabelecimento de uma cesura biológica , que pode ser definido pelo termo "racismo"25. O racismo é uma tecnologia destinada a viabilizar o poder de morte, de regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado26. Não à toa, a letalidade da ação militar estatal destacadamente em áreas periféricas é aterrorizante27. O território desta guerra que se quer oficializar pelo direito está bem descrito nas justificativas do "Pacote Anticrime" do Ministério da Justiça conduzido pelo então Ministro Sérgio Moro: A realidade brasileira atual, principalmente em zonas conflagradas, mostra-se totalmente diversa da existente quando da promulgação do Código Penal, em 1940. O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes28. E por qual razão se relaciona a justiça militar a esta estratégia necropolítica? Ao que nos parece,  a manifestação da  Procuradoria Geral de Justiça nos autos da ADI 5.901, lastreada em inúmeros julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) nos dá boa pista sobre isso. Vale transcrever: O desenho institucional do órgão julgador militar - porque formado majoritariamente por militares, em atividade e vinculados à hierarquia castrense - não permite afastar, objetivamente, qualquer dúvida que se tenha sobre a sua imparcialidade para o julgamento de seus pares. São inúmeros os Tratados Internacionais de Direitos Humanos,29 aos quais o Brasil está vinculado e que, expressamente, excluem a possibilidade da justiça militar julgar crimes de militares cometidos contra civis, como é o caso da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, concluída em Belém, em 10 de junho de 1994 e promulgada pelo decreto 8.766/2016, ao excluir em seu artigo IX, expressamente, a jurisdição militar em casos desta natureza. Na doutrina30, afirma-se que a lei 13.491/17, ao ampliar a competência da Justiça Militar, modificando a disciplina dos crimes militares em tempo de paz, introduziu uma normatização que contém claríssimos privilégios na contramão com o processo de transparência e democratização no qual vinha o Brasil. A ideia de "questão militar", hierarquia e disciplina, dirigida a julgamento de civis em tempos de paz é uma subversão da função da justiça militar com o escopo se servir aos anseios de militarização da vida. Ademais, tais valores nada se relacionam com a necessária proteção contra violações de direitos humanos.   Oxalá não tarde o STF, por via da ADI 5901, a banir da ordem jurídica Brasileira a sombria lei 13.491/2017. __________ 1 OLIVEIRA, Vanessa et al (Comp). De bala em prosa: Vozes da resistência ao genocídio negro.  São Paulo: Elefante, 2020, p. 9. 2 É importante notar a diferença da redação antiga (os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum) com a atual (os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados). 3 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 4 É bem verdade que no contexto do constitucionalismo contemporâneo, evidencia-se uma crescente onipotência do judiciário, o que se nota através da judicialização da política e do ativismo judicial. 5 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 140. 6 TEMER, op. cit., p. 141-142. 7 TEMER, op. cit., p. 142. 8 BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria-Geral Subchefia para Assuntos Jurídicos. Mensagem de Veto nº 402 de 13/10/2017. 9 FERRAJOLI, Garantias...op. cit., p. 9. 10 CASARA, Rubens. Interpretação Retrospectiva: Sociedade Brasileira e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 87. 11 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 86-87. 12 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 687-688. 13 FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito. In: STRECK, Lênio; TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 249. 14 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio; TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 24. 15 FERRAJOLI, Constitucionalismo, op. cit., p. 23. 16 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. - São Paulo: n-1 edições, 2018. 17 MEBEMBE, op. cit., p. 5-6. 18 MBEMBE, op. cit., p. 59. 19 MBEMBE, op. cit., p. 48. 20 Projeto de Lei n. 5.768/2016, Justificativa do Deputado Esperidião Amin (PP-SC) apresentada ao Plenário da Câmara dos Deputados em 06/07/2016. Disponível aqui, acessado em 08/05/2020.   21 BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria-Geral Subchefia para Assuntos Jurídicos. Mensagem de Veto nº 402 de 13/10/2017. 22  HILÁRIO, Leomir Cardoso. Da biopolítica à necropolítica: variações foucaultianas na periferia do capitalismo. Sapere aude - Belo Horizonte, v. 7 - n. 12, p. 194-210, Jan./Jun. 2016 - ISSN: 2177-6342. 23 MBEMBE, op. cit., p. 62. 24 FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 25 MBEMBE, op. cit., p. 128. 26 Idem. 27 NICOLITT, André; LIMA, Paulo Henrique. De tigres a tiros: Negros, segurança pública e necropolítica. In: OLIVEIRA, Vanessa et al (Comp). De bala em prosa: Vozes da resistência ao genocídio negro.  São Paulo: Elefante, 2020, p. 133-137. 28 BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI 882/2019. JUSTIFICATIVA. Disponível aqui, acessado em 08/05/2020. 29 Declaração Universal de Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º) garantem a todas as pessoas julgamento por tribunais competentes, independentes e imparciais. 30 ABREU. Marcos Araguari de. A ampliação da competência das justiças militares pela lei ordinária federal 13.491, de 13 de outubro de 2017, e a incômoda questão do "nós" contra os "outros". Boletim do IBCCrim, Ano 26, nº 307, Junho/2018.
"Exu matou um pássaro ontem,com uma pedra que só jogou hoje"Ditado Iorubá É mais fácil arrancar uma árvore do solo quando suas raízes já foram cortadas. Mas Baobás1 têm raízes profundas! Essa metáfora é capaz de sintetizar a história de opressão e resiliência de pessoas africanas escravizadas no Brasil. O sistema colonialista escravocrata não se contentava em aprisionar e coisificar corpos negros. Além disso, era preciso capturar nosso espírito livre, retirar nossa dignidade para nos manter subjugadas/os, o que envolvia romper nossa ligação com nossas origens, memória e ancestralidade. Para tanto, diversas estratégias foram utilizadas pelos colonizadores, dentre as quais a mudança dos nomes das pessoas escravizadas, a separação de famílias negras e a perseguição às práticas culturais e religiosas de matriz africana. Nesse contexto, ao longo da história do Brasil, as religiões afro-brasileiras foram submetidas não apenas à marginalização social, mas também à repressão do Estado, por meio de seu aparato jurídico-político e policial. Embora atualmente assuma outras roupagens, o racismo religioso segue sendo reproduzindo pelos entes púbicos - notadamente pelo sistema de justiça -, como uma espécie de ciclo vicioso de repetição do passado. A criminalização das religiões de matriz africana teve início antes mesmo de o Brasil possuir uma ordem jurídica própria, quando ainda era regido pelas Ordenações do Reino de Portugal. As Ordenações Filipinas - as últimas das ordenações aplicadas em terra brasilis e que tiveram maior tempo de vigência (1603-1830) -, em seu Livro V (Dos Crimes), criminalizava a heresia, com penas corporais (título I), e a feitiçaria (título III), com a pena capital. Não foram poucos os processos contra pessoas negras escravizadas acusadas de feitiçaria em virtude das práticas religiosas que a elas eram associadas, ainda que de modo imaginário, pelos senhores e senhoras. A forma como se desenvolveram as religiões afro-brasileiras - em ambiente doméstico, a partir e em torno da "família/comunidade de santo", com minucioso legado ritualístico de matriz africana e, muitas vezes, associando Orixás a santos católicos - resultou, em grande medida, das tecnologias ancestrais aplicadas como estratégias de sobrevivência diante das restrições impostas pela ordem jurídica.  Com efeito, a Constituição de 1824 definiu o catolicismo como religião oficial do Império, garantindo, no entanto, a liberdade de culto de outras religiões, desde que exercido em ambiente doméstico e sem ostentação de templos. Em consonância com as normas constitucionais, o Código Criminal de 1830, em seu artigo 276, criminalizava a celebração pública, em casa ou edifício com forma exterior de templo, de cultos de outra religião que não a oficial do Estado. A pena prevista era de dispersão do culto pelo juiz de paz, demolição da forma exterior do templo, além da sanção de multa imputada individualmente aos participantes das reuniões. Como forma de manter o controle sobre as pessoas negras escravizadas e suas práticas religiosas, registre-se, ainda, um Decreto de 1832 que obrigava os escravos a se converterem à religião católica. O Código Penal de 1890, por sua vez, tipificava o espiritismo (art. 157) e o curandeirismo (art.158), práticas diretamente associadas às religiões de matriz africana. Nem mesmo a formalização do princípio da laicidade do Estado no plano constitucional, com a promulgação da Constituição Republicana de 1891 - que estabeleceu a separação entre Estado e Igreja e revogou parte das restrições aos cultos não católicos -, foi capaz de assegurar igual liberdade de crença e de culto às religiões afro-brasileiras. Já sob a égide do Estado Laico, um fato histórico ainda pouco conhecido2 ocorreu em Alagoas, num contexto de disputa pelo poder político local. O então governador, que se encontrava em seu terceiro mandato e prestes a eleger seu sucessor nas eleições vindouras, foi acusado de pacto com Xangô3. Era o pretexto ideal para a concretização de violentos atos de racismo religioso, praticados por populares associados à Liga dos Republicanos Combatentes, uma espécie de milícia opositora do Partido Republicano de Alagoas. Assim, em 1º de fevereiro de 1912, por meio da operação paramilitar que ficou conhecida como Quebra ou Operação Xangô, os principais terreiros da capital alagoana foram destruídos, seus objetos sagrados foram quebrados e religiosas/os afro-brasileiras/os foram espancadas/os em praça pública. O evento se espalhou pelo interior do estado e resultou num fenômeno de silenciamento dos rituais afro-brasileiros, conhecido como xangô-rezado-baixo, que se perpetuou nas décadas seguintes. Os rituais passaram a ser realizados de maneira silenciosa, sem o uso de atabaques, sem cânticos e sem palmas, o que representa uma significativa descaracterização da própria essência dessas religiosidades. Mesmo na segunda metade do século XX - um passado muito mais recente -, a repressão às religiões de matriz africana continuou sendo perpetrada pela ordem jurídica. O próprio Código Penal de 1940, ainda vigente, criminaliza o charlatanismo (art. 283) e o curandeirismo (art. 284), práticas que historicamente também foram associadas às religiões afro-brasileiras. Na Paraíba, a lei 3.443, de 1966, determinava que sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matriz africana se submetessem a exame de sanidade mental, com emissão de laudo psiquiátrico. Na Bahia, a lei 3.097, de 1972, impunha o cadastramento dos terreiros nas Delegacias de Jogos e Costumes, exigência que apenas foi abolida em 15 de janeiro de 1976, por meio do Decreto-Lei nº 25.095. Nesse período, era habitual a ostensiva repressão policial aos terreiros, com interrupção de atividades religiosas, prisão de filhas/os de santo e apreensão de objetos sagrados. De fato, as religiões afro-brasileiras foram as únicas que tiveram objetos sagrados sistematicamente apreendidos ao longo da história brasileira e expostos em museus do crime, fato que evidencia a criminalização seletiva do exercício de um direito fundamental: a liberdade de crença. Recorde-se que apenas em setembro de 2020 os objetos sagrados afro-brasileiros expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro foram transferidos para o Museu da República. Somente a partir da Constituição de 1988, consagrou-se no Brasil o direito à ampla liberdade de crença e de culto, excluindo-se as condicionantes de respeito à ordem pública e aos bons costumes, estabelecidas nas constituições anteriores. Nada obstante, mesmo após a garantia da plena liberdade religiosa em sede constitucional, as religiões afro-brasileiras continuam enfrentando, em diversas esferas, tratamento jurídico, político e social desfavorável. O histórico de discriminação religiosa centrada na inferiorização dos povos negros escravizados reflete-se até os dias de hoje em restrições a direitos fundamentais dos adeptos de religiões afro-brasileiras, afetando o gozo de seus direitos e estabelecendo desigualdades de tratamento em várias dimensões de suas vidas pública e privada. Essa realidade pode ser constatada na cotidiana recusa de atendimento em unidades de saúde, no constrangimento no uso de transporte público - em que o proselitismo religioso tem sido veículo de discurso de ódio às/aos religiosas/os de matriz africana4 -, e até mesmo na restrição de acesso a órgãos públicos com indumentárias próprias da religiosidade. Apesar da expressa previsão do artigo 226, § 2º, da atual Constituição, que atribui efeito civil ao casamento religioso, as religiões de matriz africana sofreram obstáculos também nessa seara, ante a persistente resistência no reconhecimento jurídico de matrimônios celebrados por seus sacerdotes. Apenas em 2002, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, por unanimidade, pela validade de casamento celebrado por um terreiro de umbanda5. Em maio de 2014 - por ocasião do julgamento de ação movida pelo Ministério Público Federal que solicitava a retirada do YouTube de vídeos ofensivos à umbanda e ao candomblé - , o  juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, ao indeferir o pedido de liminar formulado, argumentou que, diante da ausência de um texto base (como a Bíblia ou o Alcorão), bem como de estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado, essas manifestações não continham os traços necessários para serem consideradas religiões. Embora tenha revisto a decisão no que diz respeito ao não reconhecimento das crenças afro-brasileiras como religiões, o magistrado manteve o indeferimento da liminar, sob o fundamento de que o conteúdo dos vídeos estaria protegido pelo direito à liberdade de expressão. Também a ausência ou restrição de acesso a determinados benefícios legais são evidentes quando se trata de religiões de matriz africana. É o que ocorre no caso da imunidade tributária, garantida pela Constituição Federal, no seu artigo 150, inciso VI, alínea "b", ao vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto. Operando em estruturas informais - seja em razão de fatores socioeconômicos, seja em virtude da longa história de perseguição jurídico-policial -, aos terreiros acabam não sendo efetivamente aplicados os benefícios fiscais previstos. Pela própria tradição das religiões afro-brasileiras, cujas atividades costumam se desenvolver em torno da família, muitos terreiros são instalados na própria residência dos sacerdotes, o que inclusive gerou debate doutrinário e jurisprudencial acerca do alcance da imunidade tributária nessas hipóteses, tendo o Supremo Tribunal Federal se pronunciado a respeito, entendendo que a imunidade tributária abrange os imóveis com duplo propósito, o residencial e o religioso. Até mesmo a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva - estabelecida no artigo 5º, inciso VII, da Constituição - não é igualmente assegurada às religiões afro-brasileiras, cujos sacerdotes e sacerdotisas raramente conseguem acessar hospitais e estabelecimentos prisionais para tal finalidade constitucionalmente garantida. Além das formas de violência que se manifestam materialmente - envolvendo destruição e danos contra os espaços de culto e as pessoas que os frequentam - a intolerância contra as religiões afro-brasileiras também se expressa a partir da suposta proteção de outros bens jurídicos, igualmente tutelados. Revela-se, por exemplo, sob o discurso da poluição sonora supostamente provocada pela utilização de atabaques durante as práticas litúrgicas de matriz africana, desconsiderando-se que templos de outras religiões emitem sons de mesma ou maior intensidade, por meio de aparelhos mecânicos ou, ainda, sinos. Os atos orquestrados de dominação e tomada de poder de determinadas confissões religiosas têm se materializado também em atos normativos. Foi o que ocorreu em alguns Municípios brasileiro6, cujos representantes expediram decretos de caráter puramente religioso que, além de violadores do princípio da laicidade do Estado, estimulavam o ódio contra religiões afro-brasileiras. Em 2 de janeiro de 2017, o Prefeito do Município de Guanambi/BA decretou a entrega da chave da cidade a Deus, declarando que "todos os principados, potestades, governadores deste mundo tenebroso, e as forças espirituais do mal" estariam "sujeitas ao Senhor Jesus Cristo de Nazaré", e, ainda, cancelando "em nome de Jesus, todos os pactos realizados com qualquer outro Deus ou entidades espirituais". Arrematou, proclamando: "a minha palavra é irrevogável"! O Decreto Municipal gerou uma recomendação do Ministério Público do Estado da Bahia, para que o poder público revogasse o ato e se abstivesse de expedir novos decretos da mesma natureza. Diante da recusa no cumprimento da recomendação, foi necessário o ajuizamento de ADIn nº 0001175-24.2017.8.05.0000, que resultou na declaração pelo Pleno do Tribunal de Justiça da Bahia, à unanimidade, da inconstitucionalidade do decreto 01/2017 do Município de Guanambi-BA7. Também não são raros - embora pouco noticiados - os casos de mães que perderam a guarda de suas/seus filhas/os em decorrência da reprodução de racismo religioso institucional pelos órgãos do sistema de justiça. Recorde-se o recente caso ocorrido no Município de Araçatuba-SP, em que a Justiça, liminarmente, retirou a guarda de uma menina de 12 anos de sua mãe, após a adolescente passar por um ritual de iniciação no candomblé, mesmo não havendo indícios de maus tratos ou qualquer outra forma de abuso, o que foi constatado inclusive por laudo pericial. Diante de tudo que sinteticamente se expôs até aqui, nota-se a emergência e persistência do racismo também enquanto fator de não reconhecimento - até mesmo jurídico - da religiosidade afro-brasileira na perspectiva de aglutinadora de identidades religiosas e raciais8. No Brasil, o povo negro nunca experimentou igual liberdade religiosa! Com efeito, conforme visto, o Estado brasileiro, historicamente, figurou como agente decisivo na persecução das religiões afro-brasileiras, propagando os efeitos do racismo institucional também na esfera da religiosidade. A articulação entre racismo e intolerância religiosa reservou lugar de subalternidade às religiões afro-brasileiras9, por serem a expressão religiosa de grupos vulnerabilizados. O racismo religioso constitui-se como uma das graves interfaces do racismo à brasileira que assume caráter ubíquo e fluido, interseccionando-se com outros mecanismos de opressão. Não fosse a persistente continuidade da prática do racismo religioso no Brasil, poderíamos até afirmar que a história se repete, sob velhas e novas vestes; como um velho baú e suas novas vestes, ou um "museu de grandes novidades". Sim, porque revivemos o Quebra, quando organizações criminosas convertidas - sobretudo no Rio de Janeiro - depredam terreiros em nome de Deus. Ressuscitamos o xangô-rezado-baixo quando cerimônias afro-brasileiras são interrompidas pela polícia, com apreensão de atabaques; ou mesmo quando o Ministério Público - cuja missão constitucional é defender o regime democrático e, portanto, os direitos dos grupos vulnerabilizados - impõe, seletivamente, tratamento acústico de terreiros e restrições ao uso de atabaques. Tudo legitimado por um sistema político que se diz sem partido - mas com religião! - e cujo poder público instituído não se envergonha em proclamar ser terrivelmente cristão. Nesse campo pecaminosamente fértil, a intolerância e o racismo religiosos se proliferam como um milagre da multiplicação às avessas. A expiação do pecado alheio e o sacrifício do diferente (intolerável) parecem convertidos em mandamentos sacralizados, em verdadeiras leis divinas, de cujas boas intenções até mesmo Deus duvida.   Apesar de toda a violenta história de repressão, as religiões de matriz africana, no Brasil, representam o resgate do sentido de família para as pessoas negras escravizadas, separadas de suas famílias de origem pelo sistema escravocrata. Não é à toa que se diz mãe, pai, filha/o e irmã/o de santo. A  partir e em torno dos terreiros se formaram e se formam verdadeiras famílias. A tradição matriarcal afro-brasileira - em especial, no candomblé - é mais uma demonstração da matripotência das mulheres negras que gestam e gerem suas comunidades. As mesmas mulheres negras que foram as primeiras empreendedoras desse país e que, em seus tabuleiros, serviam quitutes e estratégias de sobrevivência e resistência para o seu povo, arquitetando revoltas e insurgências. Elas que - para além das lideranças dos terreiros - intentaram inúmeras ações de liberdade e se reuniram em irmandades em busca da libertação dos seus e das suas.    O legado afro-brasileiro, com seus sabores e saberes, é único no mundo! Nós, no entanto, insistimos em ignorar as possibilidades epistemológicas que os saberes ancestrais nos proporcionam e continuamos apegadas/os às perspectivas epistemicidas do colonizador. Seguimos buscando uma alvura10 inalcançável que não é nossa e que continua elegendo como alvos sempre os mesmos corpos negros. Isso se aplica também e especialmente ao sistema de justiça e à academia jurídica que, alicerçados num perverso epistemicídio jurídico, são incapazes de conter e esconder os efeitos da seletividade racial de suas teorias e práticas. O que nos faz contemplar uma deusa da justiça grega (Themis), diante do tão poderoso arquétipo de Oyá11, síntese mítica da luta das mulheres negras por liberdade e dignidade?  Por que seguimos reverenciando um juiz hércules - que exerce um esforço hercúleo na tentativa de proferir decisões justas e imparciais -, quando temos na missão cármica de Xangô12 a Justiça como lei do pertencimento? Qual a razão de escolhermos o deus Hermes, mais uma vez associado à mitologia grega, ao invés de Exu, mensageiro que representa a reciprocidade, a troca e a multiciplidade; que engole e mundo e o devolve repleto de sentido13; elementos tão inerentes à missão da/o intérprete do Direito? O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa - instituído pela Lei nº 11.635/2007 - marca o falecimento de Mãe Gilda, sacerdotisa do Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador-BA, vítima de violência verbal, física e patrimonial, em razão de sua religião. Apesar de sua importância simbólica, no atual contexto das cotidianas violações do Estado laico e de recrudescimento do ódio religioso no Brasil, 21 de janeiro não é um dia a ser comemorado, mas a inspirar reflexão e (re)ação. Que seja, então, o dia em que, com inspiração na arte ancestral de Exu, sejamos capazes de atirar hoje a pedra que matará ontem o pássaro sombrio do racismo religioso. __________ 1 De origem africana, os baobás são árvores de grande porte que, no Brasil, simbolizam a luta e a resistência do povo negro. 2 Registre-se a importante obra de Ulisses Neves Rafael, Xangô rezado baixo: religião e política na Primeira República. Maceió: EDUFAL, 2012. 3 Xangô era o modo como se denominavam as religiões afro-brasileiras em Alagoas. 4 Diversos autores têm apontado as religiões neopentecostais como instâncias de ampla fomentação, operacionalização e execução do racismo religioso nas últimas décadas. Por todos, cfr. Vagner Gonçalves da Silva, Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. 5 Tratava-se de caso em que a viúva pretendia ter acesso à pensão por morte do marido, e, diante da negativa de reconhecimento do casamento pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), precisou-se recorrer ao Judiciário. Por ocasião do julgamento, o relator ressaltou "que o casamento no candomblé ou na umbanda tem o mesmo valor dos casamentos realizados nas religiões católicas e israelitas. Não devemos valorar mais os pactos realizados em grandes sinagogas ou catedrais pomposas, pelo fato de o casamento ter sido realizado em terreiros. Em todas essas cerimônias, o que está em questão, antes de mais nada, é a fé que cada um dos parceiros tem numa força sobrenatural. Além disso, vale também, a confiança nos padres, pais de santos, rabinos e pastores, legítimos representantes das entidades dignas da fé de cada um. Enfim, mais do que um frio e burocrático casamento civil, a relevância do casamento religioso centra-se em valores transcendentes que o direito deve aprender a reconhecer seus efeitos".  (TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70003296555, Rel. Des. Rui Portanova, julgamento em 27/6/2002). 6 Importa mencionar os municípios de Sapezal-MT (dezembro de 2016); Santo Antonio de Pádua-RJ (janeiro de 2017), Alto Paraíso-RO; e Guanambi-BA (janeiro de 2017). 7 "EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE DECRETO MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PEDIDO DE SUSTAÇÃO DO ATO NORMATIVO. NECESSIDADE DE SUBMISSÃO AO ÓRGÃO COLEGIADO POR CONTA DO ARTIGO 10 DA LEI 9.868/99. INDÍCIOS DE CONDUTAS QUE REVELAM INTOLERÂNCIA RELIGIOSA. LIMINAR PROVIDA PARA SUSTAR O DECRETO 001/2017 DO MUNICÍPIO DE GUANAMBI." (Agravo nº 0001175-24.2017.8.05.0000/50000, Relator: Des. Ivanilton Santos da Silva, Órgão Pleno do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia). 8 Para Hédio Silva Júnior, A intolerância religiosa e os meandros da lei, p. 169, "a intolerância religiosa que historicamente se abate sobre as religiões afro-brasileiras constitui uma das facetas do racismo brasileiro". 9 Cfr. Ilzver de Matos Oliveira, A africanização do direito à liberdade religiosa: reconhecimento judicial das religiões de origem africana e o novo paradigma interpretativo da liberdade de culto e de crença no direito brasileiro, p. 6. 10 Aqui alvura serve como referência tanto ao racismo científico eugenista - no Brasil, reforçado pela política migratória de embranquecimento da população -, quanto ao racismo epistêmico que ignora os conhecimentos e contribuições dos povos negros e indígenas, focando-se quase que exclusivamente no norte global. 11 Ver Chiara Ramos e Lívia Sant'Anna Vaz, Oyá: a Justiça é uma mulher negra. Disponível aqui. Acesso 14 jan. 2021. 12 Ver Chiara Ramos e Lucas dos Prazeres, Justiça de Xangô: uma proposta ético-jurídica a partir da orixalidade. Disponível aqui. Acesso 14 jan. 2021.   13 A menção refere-se a um dos mais conhecidos itãs (lendas) relacionados a Exu. Conta-se que, por ter nascido com muita fome, Exu teria devorado o mundo e todas as coisas nele existentes. Por isso, foi perseguido e dividido em 201 pedaços, sucessivas vezes. Ocorre que, o ducentésimo primeiro pedaço sempre se regenerava e se transformava novamente em Exu inteiro. Para parar de ser perseguido, Exu prometeu devolver todas as coisas que devorou. Ao fazê-lo, as devolve com significado. Por isso, é considerado o senhor dos signos, dos símbolos e da comunicação; aquele que dá sentido ao mundo, numa concretização do dinamismo e da multiplicidade. Exu é, em si, o próprio movimento.
"A viatura foi chegando devagarE de repente, de repente resolveu me pararUm dos caras saiu de lá de dentroJá dizendo, ai compadre, cê perdeuSe eu tiver que procurar cê ta fodidoAcho melhor cê i deixando esse flagrante comigo (...) De geração em geraçãoTodos no bairro já conhecem essa lição (...) Era só mais uma duraResquício de ditaduraMostrando a mentalidadeDe quem se sente autoridadeNesse tribunal de rua!"  Tribunal de Rua - O RappaComposição: Marcelo Yuka Era véspera de Natal na Cidade de Deus. João - que, não se sabe se por acaso ou por ironia do destino, também era "de Deus" - voltava do seu ganha pão-de-cada-dia. Tinha "quase vinte e um; pai de um, quase dois"1. Na pele, tinha a cor da noite que há muito já havia caído sobre o sol daquele dia. Apertou o passo no ritmo das barrigas vazias que o esperavam para a janta. Cruzou com um grupo de meninos, tão jovens, tão pretos e tão pobres quanto ele e que pareciam rir da própria desgraça. No tempo de um piscar de olhos, os risos foram interrompidos por gritos de ordem (Perdeu! Polícia!) que desertificaram a rua. Só sobrou João! Suspeito natural, foi preso e autuado em flagrante delito pelo crime de associação para o tráfico: eis o seu Auto de Natal, testemunhado por mais de um policial. Naquela noite, o pão que não chegou em casa fez mais falta que o próprio João. Na delegacia, lembrou-se vagamente daqueles filmes de "polícia e ladrão" que sempre repetiam as mesmas frases feitas: "você tem direito de permanecer em silêncio; tudo que disser poderá ser usado contra você...". Perguntado sobre o crime que lhe era imputado, João foi silenciado, emudeceu. Não se sabe se por vergonha, por não conseguir articular as palavras ou por acreditar que o silêncio era sua melhor defesa. O fato é que permaneceu calado. Depois de passar a noite amontoado com outros tantos corpos tão descartáveis e suspeitos quanto o seu, foi levado à audiência de custódia. Do lado de cá, João e os dois policiais, tão pretos quanto ele. Do lado de lá, cuja distância parecia abissal, o juiz, a promotora e o defensor, personagens de uma tragédia que de tão anunciada já se sabia o final. Não bastaram seus bons antecedentes nem mesmo seu passado decente; não importavam as noites que passara sem dormir tampouco as outras tantas que ainda estavam por vir. Afinal, já nascera predestinado, a cor da pele era seu único pecado. Em nome da manutenção da ordem pública, sua prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Era o início do fim da sua vida. Quinze dias depois, sem qualquer acordo, foi, então, denunciado. Foi o tal direito ao silêncio que, na verdade, o havia "condenado". Qualquer semelhança com a realidade, não é mera coincidência. Este "conto de Natal" foi escrito com base num estudo de caso no qual, apesar do preenchimento dos demais critérios objetivos e subjetivos, o Ministério Público deixou de propor o acordo de não persecução penal e ofereceu denúncia, "diante do manifesto desejo do denunciado de permanecer em silêncio, deixando, assim, de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, requisito do benefício, conforme dispõe o art. 28-A do CPP", o que teria se dado na ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante perante o delegado de polícia. O caso de João de Deus nos leva a importantes reflexões sobre o instituto do acordo de não persecução penal, notadamente no contexto de prisões em flagrante delito. Neste ensaio selecionamos algumas questões práticas relevantes. Onde devem ocorrer as tratativas e a homologação do acordo? Como a confissão se coloca nesse momento? A questão atualmente se apresenta no contexto no qual o juiz das garantias está suspenso por decisão monocrática no STF. Todavia, poderia ser colocada também na dinâmica de sua implementação, pois, de um modo ou de outro, as audiências de custódia ocorrem em larga escala no Brasil. Assim, cumpre indagar, inicialmente, se na própria audiência de custódia poderia haver acordo de não persecução e sua homologação, como preconizam algumas resoluções sobre o tema. O § 4º do art. 28-A dispõe que, para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. Deve, portanto, ser designada uma audiência específica para a homologação do ANPP do que resulta que a audiência de custódia não seria a adequada para o efeito. Primeiramente, porque a finalidade da audiência de custódia - decorrente tanto dos tratados internacionais, quanto da normatividade interna - é o exame da legalidade e necessidade da prisão cautelar2, não tendo, portanto, como foco a análise do mérito, a colheita de confissões, delações ou qualquer exame mais elaborado sobre a dinâmica do fato criminal com fim satisfativo. Ademais, como analisar a voluntariedade do acordo de não persecução no contexto de uma privação de liberdade? Um acordo realizado na ambiência da audiência de custódia é de duvidosa voluntariedade. Falar em espaço de consenso em uma unidade prisional é algo verdadeiramente contraditório3. As centrais de audiências de custódia no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não ocorrem nos fóruns, e sim em unidades prisionais4. Do mesmo modo costuma acontecer no Estado da Bahia, cuja capital comporta uma Central de Flagrantes, onde são realizadas as audiências de custódia. Com efeito, entendemos não ser conveniente transformar as audiências de custódia no momento oportuno para o acordo de não persecução5, vez que o ambiente draconiano poderá comprometer não só a voluntariedade do aceite, como também macular a adequação e a proporcionalidade das condições, criando o que o Código Civil chama de "estado de perigo" que se traduz em um defeito do negócio jurídico6. E qual a relação que se pode estabelecer entre audiência de custódia e ANPP? Este funciona como mais um parâmetro de proporcionalidade. Diante da prisão em flagrante, vislumbrando o Ministério Público o cabimento do acordo de não persecução penal, deverá indicar sua viabilidade inclusive para fundamentar a soltura do indiciado, vez que sendo aplicável a solução consensual seria um contrassenso a conversão do flagrante em preventiva. Não se pode, em hipótese alguma, condicionar a liberdade do conduzido ao aceite de proposta de acordo, do qual se extrai a confissão circunstanciada7, subvertendo a audiência de custódia em um mecanismo eticamente extorsivo, ainda que implicitamente. Desse modo, em sede de audiência de custódia, ocorrendo a prospecção sobre a viabilidade de um acordo de não persecução, por conseguinte, impõe-se a soltura do conduzido, em razão da desproporcionalidade, desnecessidade e inadequação da prisão preventiva. Uma vez livre, deverão se desenvolver as tratativas do acordo. Eis, então, outra questão que se coloca. Onde e quando? Na dicção do §4º do art. 28 do CPP, a audiência ali retratada teria espaço apenas para a homologação do acordo, não estando expressamente indicada sua tratativa, elaboração e aceite. Diversamente do que ocorre na lei 9099/95, que dá significativo espaço ao consenso no processo penal, a lei 13.964/2019, por sua vez, não indica em que momento e como se darão as tratativas, a elaboração e o aceite da proposta do acordo a ser submetido ao juiz para homologação. Na lei 9.099/95 há uma audiência preliminar, presidida por conciliador ou pelo juiz (art. 72 e 73), na qual algumas soluções consensuais são construídas (transação penal e composição civil). De igual modo, ao tratar da suspenção condicional do processo (art. 89), a lei estabelece o momento apropriado (oferecimento da denúncia, art. 89, caput), bem como, de certo modo, define o momento para as tratativas e manifestações de vontade. Ou seja, uma audiência especial para esse fim, que deve ser anterior ao recebimento da denúncia (§1º do art. 89).   Estes dispositivos servem de farol interpretativo do novo instituto quanto ao tempo e ao local da audiência. Como bem aponta a doutrina8, seria conveniente estabelecer a sede judicial como o local para as tratativas e elaboração do acordo, solução que reforça a ideia de paridade de armas, na linha do que ocorre com a suspensão condicional do processo da lei 9099/95. A toda evidência, esse local aparentemente dotado de maior imparcialidade - o que no plano ideal se apresenta como melhor interpretação do sistema -, diante da cultura autoritária que inspira as práticas jurídicas, tal fato, por si só, não será garantia de que haja a almejada paridade de armas e a assistência jurídica efetiva. Basta ver as subversões práticas dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, transformadas, não raro, em formulários de adesão. De todo modo, deve-se ter em conta que espaços revelam valores e sua divisão ou distribuição, relações de poder9. Além disso, há questões práticas importantes que devem ser consideradas. A justiça criminal é um espaço frequentado esmagadoramente por pretos e pobres que não são patrocinados por grandes escritórios de advocacia quiçá insensíveis ao desconforto em entabular o negócio jurídico processual nas dependências do Ministério Público, apesar de que a prática das delações premiadas, destacadamente no âmbito da lava jato, demonstrou que nem mesmo os grandes escritórios de advocacia passaram completamente imunes aos problemas que podem decorrer de tal arquitetura negocial. Mas os que possuem a pele alvo da justiça criminal, pessoas pretas e pobres, majoritariamente são assistidas pela Defensoria Pública, órgão do Estado que, como tudo que está na estrutura burocrática, não possui a necessária mobilidade para prestar assistência também nas sedes do Ministério Público. O próprio Ministério Público, muitas vezes, não disporá de instalações para realizar audiência extrajudicial com a finalidade de promover as tratativas do acordo de não persecução penal. Vale lembrar, ainda, que de Estado para Estado as estruturas e funcionamentos do MP variam, bem como suas atribuições. Desse modo, o promotor com atribuição para oferecer o ANPP decorrente de prisão em flagrante nem sempre será o mesmo com atribuição para propor o ANPP decorrente de inquéritos iniciados por portarias. Há os que atuam nas Centrais de Inquéritos e os que atuam nas Varas Criminais. Essa pulverização seria altamente comprometedora da eficiência e da celeridade necessárias aos ANPP, destacadamente aos que são reclamados no curso de liberdade provisória ou da prisão preventiva desproporcionalmente mantida como no caso referido acima. Definidas a geografia e a arquitetura que devem abrigar a dinâmica do ANPP, passemos ao problema seguinte. Como se viu no Auto de Natal de João de Deus, mesmo diante da prospecção sobre a viabilidade do ANPP, não se concedeu liberdade provisória ao conduzido, que aguardou preso. Ademais, foi oferecida a denúncia sem a propositura do ANPP sob a justificativa de que, durante a lavratura do APF, desassistido, o flagranteado preferiu ficar em silêncio. Sem discutir a constitucionalidade da confissão exigida pela lei para a realização do ANPP, o fato é que imaginar que o exercício do direito ao silêncio (ou o silêncio imposto ao preso durante a lavratura do APF quando desassistido) possa ser impeditivo para o acordo. Como bem destaca a doutrina: A lei prescreve que o acordo seja proposto somente ao investigado que tenha confessado formal e circunstancialmente a prática de infração. Há, nesse ponto, uma diferença significativa com os requisitos das soluções consensuais dos Juizados Especiais Criminais. O acordo de não persecução seguiu a lógica das barganhas anglo-saxãs, ao exigir a declaração de culpa, mas manteve o velho fetiche inquisitório de registrar as minúcias do pecado.   Naturalmente, a negociação não está restrita à confissão realizada no curso da investigação. Nesse momento, não se tem certeza de que será formulada uma proposta de acordo e não se justifica o sacrifício do direito ao silêncio10.   A toda evidência, sob pena de fazer do instituo letra morta, não é possível exigir a confissão circunstanciada no ato de lavratura do APF, como requisito de oferecimento de ANPP. A própria dicção do art. 28-A espanca esta interpretação ao dispor: Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente... Ora, só é cabível ANPP, quando não for o caso de arquivamento (ou seja, investigação encerrada com justa causa). Em seguida outra exigência: "e" houver confissão do investigado (não do preso ou autuado, ou conduzido). A confissão circunstanciada é excludente do arquivamento. Caso a confissão tivesse que ser contemporânea do APF, a lei não faria dupla exigência: i) não ser hipótese de arquivamento ii) "e" ter confissão do investigado. Esta redação conduz à ideia de que há requisitos sucessivos. Conclui-se a investigação com reunião da justa causa (não é hipótese de arquivamento) e, a partir de então, abre-se espaço para o acordo e, no bojo das tratativas, advém a confissão como requisito. Destaca-se, ainda, um aspecto literal. A lei não fala em confissão do preso, ou do autuado ou do conduzido, e sim, do investigado. Ou seja, a confissão, se considerada constitucional, terá seu espaço no bojo da investigação (onde há o investigado) e/ou das tratativas do ANPP e não na lavratura do APF no qual há a figura do preso, conduzido ou autuado. A subversão dogmática que costuma dominar a práxis jurídica tem efeitos nefastos a serviço do racismo estrutural e institucional que inspiram o sistema de justiça criminal. É sabido que as prisões em flagrante (não apenas, mas especialmente) na guerra às drogas resultam, em grande medida, de abordagens policiais, cujos suspeitos costumam ter cor determinada. Não é à toa que as audiências de custódia são, quase sempre, "variações do mesmo tema sem sair do tom", rituais de passagem dos camburões, navios negreiros contemporâneos, para as prisões, as novas senzalas. A pesquisa intitulada A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais, publicada na Coleção "Pensando a Segurança Pública", identificou, por meio de observação direta e indireta, a existência de filtragem racial na seleção dos suspeitos abordados pelas polícias militares estaduais, sendo a cor da pele uma das características preponderantes apontadas nesse processo11. Segundo o estudo, "tipos suspeitos" alvos de agentes de segurança "são compostos por critérios estigmatizantes que informam a ação policial. Embora os policiais neguem realizar a seleção de suspeitos pela cor da pele, este diacrítico, articulado a outras marcas corporais, como cabelo, formas de corporeidade, tipo de vestimenta, local, horário, orienta a lógica da suspeição policial". Levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro revelou que, nas audiências de custódia realizadas naquele Estado, entre os meses de janeiro e abril de 2016, os presos em flagrante brancos apresentaram 32% mais chance de serem soltos do que os flagranteados negros12. Já a Defensoria Pública do Estado da Bahia divulgou, em setembro de 2019, o Relatório das Audiências de Custódia da Comarca de Salvador13 - referente ao período de 2015 a 2018 -, no qual se conclui que cerca de 99% dos presos em flagrante na capital baiana eram negros e pobres. É preciso reconhecer que há um evidente descompasso entre o sistema legal de garantias processuais e sua aplicação distorcida pelos órgãos do sistema de justiça, o que tem tornado o processo penal, notadamente através da dita "guerra as drogas", um braço da necropolítica estatal, que tem como inimigo ficcional sempre os mesmos corpos negros descartáveis. O Auto de Natal de João de Deus foi só mais um entre os tantos autos de flagrantes violações contra si e contra os seus. Diante dos olhos vendados da própria Justiça, nem mesmo Nossa Senhora Aparecida se compadeceu. Por isso, "tudo, tudo, tudo, tudo que nós tem é nós"14! "(...) Onde o milagre jaz Só prova a urgência de livros Perante o estrago que um sabre faz Imersos em dívidas ávidas Sem noção do que são dádivas No tempo onde a única que ainda corre livre aqui são nossas lágrimas E eu voltei pra matar, tipo infarto Depois fazer renascer, estilo um parto Eu me refaço, farto, descarto De pé no chão, homem comum Se a bênção vem a mim, reparto Invado cela, sala, quarto Rodei o globo, hoje tô certo de que Todo mundo é um (...) Principia - Emicida __________ 1 Trecho da música Cabô, de Luedji Luna. 2 Sobre o tema: SANTOS. Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2020, p. 199. 3 NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2020, p. 357. 4 Na Capital: Benfica - SEAPFM - Cadeia Pública José Frederico Marques; No interior: Campos dos Goytacazes, SEAPCF - Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca e Volta Redonda SEAPFC - Cadeia Pública Franz de Castro Holzwarth. 5 Não obstante, o Provimento nº 06/2020 da CG/SP, introduziu o art. 379-C nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, que prevê a possibilidade de acordo de não persecução penal no âmbito da audiência de custódia. 6 Art. 156. "Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa". 7 NICOLITT, op. cit. 8 SANTOS, op. cit., p. 196-197. 9 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Editora da Universidade de São Paulo: 2002, p. 83-89. 10 MARQUES. Leonardo Augusto Marinho Marques. Acordo de não persecução penal: um novo começo de era(?). Boletim Ibccrim, nº 331 - ESPECIAL LEI ANTICRIME JUNHO DE 2020. 11 Disponível aqui. Acesso em 30 de dezembro de 2020. 12 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 3º Relatório sobre o Perfil dos Réus Atendidos nas Audiências de Custódia". Defensoria Pública do Estado do Rio de janeiro, julho de 2016. Disponível aqui. Acesso em: 30 de dezembro de 2020. 13 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DA BAHIA, Relatório das audiências de custódia na comarca de Salvador/BA: anos de 2015-2018". Defensoria Pública do Estado da Bahia, setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 30 de dezembro de 2020. 14 Trecho da música Principia, de Emicida.
"Os tanque, as roupas suja, a vida sem amacianteBomba a todo instante, num quadro ao léuQue é só enquadro e banco dos réu, sem flagranteAté meu jeito é o delaAmor cego, escutando com o coração a luz do peito delaDescreve o efeito dela: breve, intenso, imensoAo ponto de agradecer até os defeito delaEsses dias achei na minha caligrafia tua letraE as lágrima molha a canetaDesafia, vai dar mó tretaQuando disser que vi DeusEle era uma mulher preta"  Mãe - Emicida Resultante dos compromissos internacionais subscritos pelo país, das lutas dos movimentos feministas nacionais e da sociedade, que compreendem que a vida sem violência se insere como direito humano universal da mulher, passível de exigibilidade nacional e internacional1, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), inaugurou um novel arquétipo legislativo e social no combate à violência doméstica e familiar no país. Todavia, ainda que passados 14 (quatorze) anos de sua vigência, a implantação homogênea das medidas prescritas na lei, no vasto território nacional, somada à superação dos elevados índices da violência letal e não-letal contra mulheres decorrentes da violência doméstica e familiar ainda constituem grandes desafios a serem enfrentados pelo Estado cujas políticas públicas desenvolvidas ainda centram olhar para um único tipo de mulher brasileira e de mulher trabalhadora, sujeitando à desproteção um vasto contingente de mulheres, ignoradas em suas idiossincrasias, próprias da raça, classe e atuação profissional que as diferencia2. A violência doméstica é uma faceta universal da violência de gênero, a qual permeia diferentes classes sociais, culturas, níveis educacionais etc. Nesse contexto, existe o que se pode chamar de uma espécie de tolerância histórica a esse fenômeno, de modo que alguns referem-se a ela como um fato social, inerente ao cotidiano das famílias, em que prevaleceria a máxima de que "em briga de marido e mulher não se mete a colher", como os antigos assim diriam. Essa tolerância à violência de gênero é "familiar" em nossas sociedades e é reforçada pelas estruturas jurídicas e argumentações androcêntricas refletidas pelo tipo de exposição a que comumente é submetida a vítima. A Lei Maria da Penha pretendeu, assim, encerrar o capítulo de não intromissão do Estado em questões ligadas à família e à intimidade, assegurando medidas protetivas que primam pelo tratamento integral da questão, para além da análise meramente criminal da ofensa e de imposição de pena ao agressor. Para tanto, previu a constituição de uma rede de enfrentamento mediante a criação de políticas públicas e serviços assistenciais a serem implementados, de forma articulada, pelos entes federados e Poderes da República, em prol do convívio harmônico no âmbito da unidade doméstica, da família e de qualquer relação íntima de afeto3. Tratando-se de crime que acomete a mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, o art. 8º, II, da lei previu, como medida integrada de prevenção à violência doméstica e familiar, que a política pública a ser implementada deveria ter como diretriz a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para fins de sistematização nacional de dados e de avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas. A despeito da prescrição normativa no que se refere à realização de estudos e pesquisas oficiais, de âmbito nacional, voltadas à temática, ainda persiste, no país, o que Sueli Carneiro denomina como "conspiração do silêncio"4, em que o recorte racial não tem sido considerado como variável indispensável para subsidiar a confecção de políticas públicas sobre violência doméstica e familiar5, em que pese os números revelarem que são as mulheres negras as que mais sofrem com esse tipo de violência6. A ausência de uma efetiva perspectiva de gênero e de raça no tratamento dos casos de vítimas de violência no âmbito do sistema de justiça, aliada a problemas como a demora na apuração, ausência de pessoal capacitado, descredibilidade da palavra da vítima, procedimentos e abordagens que levam ao rechaço e até humilhação, afligem as mulheres como gênero e fazem parte da realidade da rede de combate à violência. Estes fatores que instauram o que se pode denominar de subtexto de gênero7 aprofundam os traços sexistas e racistas presentes no sistema de justiça. Além disso, quando as vítimas conseguem ter acesso ao Sistema de Justiça, deparam-se com obstáculos à legitimidade de suas argumentações, considerando o modo como ocorre a abordagem e avaliação das provas e do testemunho, especificamente no que toca à linha de investigação. Estudos8 apontam que, nas últimas décadas, houve incremento no percentual de mulheres economicamente ativas. Contudo, a diferença entre as remunerações permanece significativa entre homens e mulheres (25 %): mulheres negras representam 39% das pessoas que exercem trabalho precarizado, seguidas por homens negros, os quais representam o percentual de 31,6 %; mulheres brancas representam 27 %, ao passo que homens brancos estão no patamar de 21,6 %.9 O que se percebe dos números é que mesmo diante dos esforços empenhados pela legislação constitucional e celetista - esse último título inclusive reserva vastas disposições normativas em prol da "proteção do trabalho da mulher"-, e pelo evolutivo processo de "reconstrução das imagens de gênero" descrito por Abramo10, no sentido de se adotar políticas públicas promotoras da igualdade de gênero quanto ao acesso e permanência da mulher no mercado de trabalho, a inserção qualitativa, em especial das mulheres negras, ainda não foi alcançada. Na legislação nacional, não há prescrição que identifique e, por conseguinte, sane as fraturas que constituem e identificam os diversos tipos de mulheres na dinâmica intragênero11.. Ao serem tratadas apenas como mulheres, enquanto ser universal, são os protótipos da mulher branca ocidental que embasam a formulação e a implantação das políticas públicas de combate à violência doméstica e familiar, sob um viés exclusivamente "monocromático": "As trabalhadoras negras são historicamente impelidas a ocupações marginalizadas pela condição de vulnerabilidade decorrente do entrecruzamento de classe, raça e gênero. O resultado desta condição se expressa nos indicadores de grande contingente de mulheres pretas e pardas no serviço doméstico, baixos salários e um alto grau de informalidade. Este padrão de inserção produz efeitos significativos sobre as práticas discriminatórias retroalimentando imagens e estereótipos na manutenção de guetos ocupacionais para essa população21 (o determinante de gênero incide principalmente sobre as resistências no acesso e permanência no trabalho, enquanto o determinante de raça recai predominantemente sobre a qualidade da inserção de modo a perpetuar indicadores de informalidade e precariedade)12. Não se pode perder de vista que contra as mulheres pesam ainda os fardos inerentes à divisão sexual do trabalho, que influencia e é profundamente influenciada pela distribuição assimétrica do trabalho doméstico e de cuidados nos lares que incidem sobre mulheres e homens, em menor ou maior grau, de acordo com sua posição de classe e cor. Flavia Birolli13 afirma que a divisão sexual do trabalho é um locus importante da produção do gênero, pois essa divisão, feita de modo desigual, é racializada e atende a uma dinâmica de classe, com restrições e desvantagens que modulam as trajetórias das mulheres e  se reflete diretamente na diminuição das possibilidades  de atuação profissional, pois as compartimenta, enquanto gênero, a certas profissões com menos direitos, menos reconhecimento e, por conseguinte, menor remuneração que a dos homens. Para além desses fatores que tradicionalmente obstaculizam a trajetória profissional das mulheres, a chaga da violência doméstica e familiar exsurge como mais um fator que condiciona e limita a inserção e permanência das mulheres no mercado de trabalho, o que é agravado quando se trata de mulheres negras.         Mesmo diante da elevação dos índices educacionais das mulheres negras em comparação aos homens nos últimos anos14, ainda assim, como destacado por Crenshaw15, elas representam o grupo social mais vulnerável social e profissionalmente aos influxos do mercado de trabalho, que as confina ao setor de serviços, em especial, no chamado "baixo terciário16", que congrega empregos precários, que exigem baixa qualificação, pagam os menores rendimentos e apresentam maior rotatividade da força de trabalho. Essa circunstância, inclusive, se confirmou durante a pandemia da Covid-19, em que as mais afetadas pelo desemprego foram as mulheres negras e os jovens17, cuja atuação se concentra prioritariamente no mercado de trabalho doméstico e informal, setores diretamente afetados pelas normas de prevenção editadas pelas autoridades de saúde. É bem verdade que a Lei Maria da Penha, consagrou medidas voltadas à assistência da mulher trabalhadora ou não, assentadas no art. 9º, da Lei nº 11.340/2006, que prescrevem a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal; o acesso prioritário à remoção à servidora pública, integrante da administração direta ou indireta, bem como o afastamento do local de trabalho, sem prejuízo do vínculo trabalhista. Entretanto, dada a presença massiva de mulheres negras em segmentos ligados à informalidade, em que não há vinculação sob o viés celetista tampouco sob a faceta administrativa, não é difícil compreender que as medidas de proteção asseguradas à mulher trabalhadora se quedam ineficazes à boa parcela das mulheres negras. A abordagem monolítica da questão, que adota como paradigma apenas um tipo de mulher para fins de modulação de políticas públicas sobre violência doméstica, desconsidera não apenas a raça das mulheres, mas também as múltiplas formas de inserção no mercado de trabalho. Afinal, o tipo normativo dedica proteção a condição profissional de apenas dois tipos de mulher trabalhadora: a servidora pública com vínculo com a administração direta ou indireta, a quem se assegurou o direito prioritário à remoção, e aquela regida pela Consolidação das Leis Trabalhista, a quem foi assegurado o afastamento do trabalho, sem prejuízo à vinculação. O que se percebe, com isso, é o desconhecimento das autoridades públicas em relação às múltiplas formas de inserção da mulher no mercado de trabalho, a exemplo da empreendedora individual sem registro e das que laboram no âmbito familiar, e por conseguinte, das suas necessidades específicas de tutela. Tudo isso concorre, portanto, para que um vasto grupo de mulheres, ainda que também vítimas de violência doméstica e familiar, fique à margem da tutela estatal. A limitação normativa quanto ao tipo de mulheres trabalhadoras beneficiárias da tutela em questão, segue, assim, na contramão até mesmo de outras políticas governamentais que assinalaram, dentre as metas prioritárias de inserção da mulher no mercado de trabalho, a pauta do empreendedorismo18. Afinal, à mulher inserida no mercado de trabalho, sob a forma de trabalho por conta própria, sem a necessária formalização, foi assegurado apenas o cadastramento em programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal. No que se refere à trabalhadora celetista, a quem se dirige o art. 9º, § 2º, II, da Lei Maria da Penha, a eficácia da medida esbarra, ainda, em limites de ordem constitucional, a exemplo do disposto no art. 195, §5º, da Constituição Federal que vaticina sobre a impossibilidade de criação, majoração e extensão de benefício da Seguridade Social, sem a correspondente fonte de custeio total, o que demonstra, mais uma vez, a falta de alinhamento do legislador no trato da questão, obrigando a trabalhadora, vítima de violência doméstica, a escolher entre dois valores que lhe são caros: a subsistência própria e de sua família ou a integridade física, moral e patrimonial. A lei, como visto, de fato, foi omissa em estabelecer a fonte de custeio dos benefícios que assegura às mulheres trabalhadoras. Entretanto, a despeito da limitação constitucional, em julgado recente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça19, para além de dispor sobre a competência jurisdicional e a natureza jurídica do afastamento do trabalho, assegurou importante provimento em favor da tutela da trabalhadora celetista. Conforme voto do Ministro Relator Rogerio Schietti Cruz, decidiu-se que a violência doméstica e familiar, ao ofender a integridade física ou psicológica da vítima, é equiparável à enfermidade da segurada, o que justificaria a concessão de direito ao auxílio-doença, independentemente de contribuição, pois a Constituição prevê que a assistência social será prestada a quem dela precisar. Os elevados indicadores de violência doméstica e familiar, somados à posição ocupada pela mulher negra no mercado de trabalho, apontam claramente que as políticas estatais até então desempenhadas são falhas em assegurar proteção integral a essas mulheres. Nesses termos, como destacado por Crenshaw e Hirata20, torna-se indispensável para compreender as múltiplas nuances da questão, a adoção da categoria analítica da interseccionalidade como ferramenta para identificar lacunas provocadas por políticas públicas que acabam por excluir essas mulheres, seja pelo seu caráter universalista, que omite a especificidade das mulheres vitimadas pelo racismo, seja pela abordagem especifista da sua relação em decorrência do gênero e da existência ou não de vinculação trabalhista, sob o viés celetista ou estatutário. Importante destacar que o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 284 de 05/06/2019, instituiu o "Formulário Nacional de Avaliação de Risco" para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, no qual consta o questionamento sobre a raça da ofendida. Entretanto, até o momento, não houve a consolidação nacional dos dados, tampouco a edição de políticas públicas específicas com base em uma perspectiva racial da violência de gênero. Além disso, destacamos que, no formulário, não consta o questionamento sobre o exercício de atividade profissional, bem como o tipo de vínculo contratual mantido, o que também não tem sido referido nas pesquisas oficiais, muito menos serviu de norte, até o momento, para o delineamento de políticas públicas nacionais específicas no que toca ao enfrentamento da violência doméstica e familiar de que é vítima a mulher trabalhadora, assim considerada em suas múltiplas facetas de inserção no mercado de trabalho. A ausência dessa informação, por certo, dificulta a adequada compreensão a respeito dos desequilíbrios que estruturam a vida de milhares de mulheres negras, decorrentes do racismo, do sexismo e da fragilidade dos vínculos profissionais mantidos no mercado de trabalho. A miopia institucional no que se refere à identificação de como o recorte racial impacta as condições de vida e afetividade das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, assim como a dinâmica que este fator influencia e interage sobre as condições de trabalho da mulher, infirmam os primados da lei que assinala a proteção total da mulher, em todas as esferas, física, moral, bem como patrimonial. Nesse particular, a elaboração de políticas públicas, ao desconsiderar as clivagens estruturais e estruturantes em que embasam as relações domésticas e familiares, bem como as existentes no mercado de trabalho, culminam por oferecer tratamento desigual e ineficaz a uma gama expressiva  de mulheres brasileiras, ainda que vítimas de violência de mesma origem, donde se constata franco prejuízo às trabalhadoras negras, a quem se imputa uma "situação endêmica" de vulnerabilidade social21, não apenas nos lares, como também no mercado de trabalho. ________ 1- A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher em seu art. 2º estabelece o compromisso dos Estados parte em estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher sobre uma base de igualdade entre os homens e garantir a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação. 2- Nos termos do art. 5º da Lei, violência doméstica e familiar contra a mulher consiste em toda e qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento física, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, ocorrida no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto. 3- CERQUEIRA, Daniel; MATOS, Mariana Vieira Martins; MARTINS, Ana Paula Antunes; PINTO JUNIOR, Jony. Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. Disponível aqui.  Acesso em 10 dez.2020. 4- CARNEIRO, Suelaine. Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números / Suelaine Carneiro - São Paulo: Geledés Instituto da Mulher Negra, 2017. Disponível aqui. .Acesso em 11 dez.2020. 5- A Resolução nº 284/2019, de 05/06/2019, do Conselho Nacional de Justiça instituiu o "Formulário Nacional de Avaliação de Risco para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher", que tem como finalidade identificar os fatores que indiquem o risco da mulher vir a sofrer qualquer forma de violência no âmbito das relações domésticas e familiares (art. 7º da Lei nº 11.340/2006), para subsidiar a atuação do Poder Judiciário e dos demais órgãos da rede de proteção na gestão do risco identificado. 6- CARNEIRO, Suelaine. Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números / Suelaine Carneiro - São Paulo: Geledés Instituto da Mulher Negra, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11 dez.2020. 7- VARGAS, Roxana Arroyo. Acceso a la justicia para las mujeres.el laberinto androcéntrico del derecho. Disponível aqui.  8- Luana Simões Pinheiro et al., Mulheres e Trabalho: Breve análise do período 2004-2014, IPEA. Nota técnica n. 24, 2016, p.3-28. 9- Luana Simões Pinheiro et al., Mulheres e Trabalho: Breve análise do período 2004-2014, IPEA. Nota técnica n. 24, 2016, p.3-28. 10- OIT. Igualdade de gênero e raça no trabalho: avanços e desafios / Organização Internacional do Trabalho. - Brasília: OIT, 2010.   11- BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Disponível aqui. Acesso em 11 dez.2020. 12- VIEIRA, Bianca. Mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro: um balanço das políticas públicas. Disponível aqui. Acesso em 10 dez. 2020. 13- Biroli, Flavia. Gênero e Desigualdades: Os limites da Democracia n Brasil. 1ª Ed. São Paulo. Ed Boitempo. 14- CARNEIRO, Suelaine. Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números / Suelaine Carneiro - São Paulo: Geledés Instituto da Mulher Negra, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11 dez.2020. 15- CREENSHAW, Kimberlé. A interseccionalidade na discriminação de raça e Gênero. In: Revista Estudos Feministas nº1. Salvador, 2002a. 16- CARNEIRO, Sueli; SANTOS, Thereza. Mulher Negra. São Paulo, SP. Nobel, 1985. 17- BARBOSA, Ana Luiza; COSTA, Joana S. M; HECKSHER, Marcos Dantas.Mercado de trabalho e pandemia da Covid-19: ampliação de desigualdades já existentes? Disponível aqui. Acesso em 10 dez. 2020. 18- BRASIL. Presidência da República. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Disponível aqui. Acesso em 12 dez.2020. 19- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2018/0193975-8. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz. Data de Julgamento: 20/08/2019. Sexta Turma. Publicação em 02/09/2019. Disponível aqui. . Acesso em 10 dez.2020. 20- KERGOAT, Daniele; HIRATA, Helena. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. In: Cadernos de Pesquisa, v. 37. 2007. 21- CARNEIRO, Suelaine. Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números / Suelaine Carneiro - São Paulo: Geledés Instituto da Mulher Negra, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11 dez.2020.
Delimitar os sentidos possíveis da norma jurídica não é só uma questão de interpretar o texto constitucional. Quem zela pela Constituição há de se preocupar com seu alcance social, se a mensagem democrática abraça os excluídos e garante um horizonte de transformação do próprio sistema de justiça, onde deságuam conflitos de toda sorte, dos simples aos mais polêmicos.   O Judiciário, com as novas hermenêuticas constitucionais, saiu da condição de aplicador acrítico e formal da lei para assumir um posicionamento de construção normativa do ordenamento jurídico, o que fica evidente com a incorporação da teoria dos precedentes vinculantes ao sistema processual brasileiro (art. 927 e ss do CPC). O ativismo judicial, em um país de democratização tardia, que ainda experimenta sufocantes estruturas sociais deixadas por um passado escravagista, surge, a princípio, como revigorante possibilidade de realização de direitos fundamentais.  Daniel Sarmento e Claudio Pereira de Souza Neto lembram que uma das justificativas do ativismo judicial é que "o processo político majoritário, que tem lugar no Parlamento e no governo, pode não ser suficientemente atento em relação aos direitos e interesses dos integrantes de grupos vulneráveis.1" Contudo, não se pode deixar de destacar que há no mundo várias concepções de ativismo judicial2. Nunca é demais lembrar que toda concepção de ativismo pressupõe uma espécie de disfunção no exercício da atividade jurisdicional, através da qual o Judiciário transpõe os limites da jurisdição, invadindo a esfera de outros poderes, quando então se coloca em questão a própria ideia de legalidade e segurança jurídicas.3 Por isso, ao se admitir a possibilidade de ativismo judicial, deve-se pensar sempre na intensidade de sua incidência no sistema jurídico e o risco de comprometimento da democracia. O modelo brasileiro de ativismo aposta no protagonismo judicial fundado na discricionariedade, que permite ao juiz fundamentar suas decisões em princípios que, muitas vezes, na prática judicante,  são  usados como máscaras de subjetividades, através de enunciados performáticos que permitem aos juízes decidirem como quiserem, merecendo destaque os enunciados "proporcionalidade" e "razoabilidade", invocados como verdadeiros curingas, servindo de muleta para todo tipo de argumento jurídico4. Aqui reside, seguramente, o maior problema no que toca ao processo penal. O agigantamento do Poder Judiciário é um sintoma do se chama neoconstitucionalismo e, nesse contexto, o ativismo judiciário, quando exponencial e salvacionista, pode fazer com que a Justiça seja levada à instância moral superior da sociedade. Esse agigantamento, essa veneração social do papel do juiz, é preocupante por turvar os limites de atuação desse poder e, também, fortalecer uma espécie de servidão coletiva a uma instituição.5 Nota-se que, em relação ao ativismo, há os entusiasmados e os que veem nele um grande perigo, como se lê no campo da teoria do Garantismo. Acreditamos que a questão deve ser vista a partir da história dos direitos fundamentais e da função jurisdicional comprometida com a Constituição. A partir desta perspectiva, não vemos incompatibilidade entre o ativismo judicial moderado e o garantismo. Inegável que o Judiciário como guardião da Constituição é, também, guardião das promessas6 descumpridas da modernidade, ou seja, instância de resgate dos ideais de justiça. Com efeito, enquanto os direitos fundamentais de primeira geração impõem um dever de abstenção, os direitos fundamentais de segunda e terceira gerações exigem um dever de promoção. Assim, como bem sistematiza Casara, há dois mandamentos aparentemente antagônicos, mas que na verdade se complementam, a saber: ativismo judicial moderado em prol dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações (direitos sociais) e a passividade radical do Judiciário, a fim de assegurar os direitos de primeira geração, ou seja, os direitos de liberdade. A passividade judicial decorre da necessidade de efetivar as garantias fundamentais de contenção do poder punitivo.7 No processo penal, a transcendência do juiz do campo da inércia só é possível no sentido de expandir ou garantir a liberdade.   Não fosse assim, perderia seu status de órgão de justiça para se transformar em órgão de segurança pública. Veja-se que a possiblidade de habeas corpus ex officio sempre esteve presente, do Império (Código Criminal de 1832, art. 344) à República (art. 48 do Decreto 848/1890). Até mesmo o Código de Processo Penal Militar de 1969 o previa em seu art. 470, segunda parte. Na doutrina, tradicionalmente se entendeu tal possibilidade como algo inerente, "natural" à função judicial de tutelar a liberdade, vale citar, por todos, Câmara Leal8, Espínola Filho9, Bento de Faria10, Florêncio de Abreu11 e Rui Barbosa12. Na quadra atual, pode-se dizer que o Supremo Tribunal Federal reinterpretou sua própria função de guardião da Constituição (art. 102 da CF/88), para desenvolver uma peculiar tradição hermenêutica, na qual se permite a (re)configuração de institutos jurídicos, como a própria extensão das hipóteses de cabimento de habeas corpus e a  audiência de custódia,   que será  abordada linhas à frente.  Independente das críticas que lhe são dirigidas, o que se constata é que o STF se tornou uma fonte viva da normatividade que toca a pele da sociedade brasileira.  Nas ações de controle de constitucionalidade - do difuso ao concentrado -, assume-se um protagonismo interpretativo para resolver demandas estruturais e multiculturais. A preocupação em preservar a ordem constitucional não se limita mais à relação binária traduzida na análise de conformidade/ desconformidade de uma lei com a Constituição. Buscam-se parâmetros jurídicos e sociopolíticos para se identificar quais são os preceitos fundamentais da Constituição. Além disso, os tratados internacionais consolidam um novo filtro de razoabilidade jurídica e humana das normas, o denominado controle de convencionalidade. Nesse cenário, ações de arguição de descumprimento de preceito fundamental passaram a ser recebidas pelo sistema de justiça com maior ênfase, a ponto de ter sido declarada, em 2015, na ADPF  347, a existência de um estado de coisas inconstitucional quanto ao sistema carcerário brasileiro.  A partir desse julgado, juízes e tribunais estão obrigados, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, "a realizarem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão." Em relação aos perigos do ativismo, apontados acima, não podemos olvidar um registro sobre a Suspensão de Liminar 1395, relativa ao Habeas Corpus 191836, julgada em outubro de 2020. O STF, preocupado com a periculosidade do réu para a segurança pública e a gravidade concreta do crime de tráfico transnacional, deferiu contracautela, em decisão ativista que pretendeu preservar a ordem pública em detrimento do direito de liberdade. O mais grave do episódio foi a fixação da tese de que "a inobservância da reavaliação no prazo de 90 dias, previsto no artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP), com a redação dada pela lei 13.964/2019 (conhecida como pacote anticrime), não implica a revogação automática da prisão preventiva: o juízo competente deve ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos.13 Esta interpretação contrária à lei será um relevante incremento para o encarceramento em massa, destacadamente da juventude negra Dito isso, no dia 9 de dezembro de 2020, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgará o Ag. Reg. na Reclamação n. 29303,  proposta pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na qual se impugnou resolução do Tribunal de Justiça/RJ, que  restringiu o instituto da audiência de custódia para hipóteses de prisão em flagrante. A fim de preservar o conteúdo decisório da ADPF 347, que não fez distinção quanto ao tipo de prisão em que seria aplicável a audiência de custódia, a referida Defensoria Pública pretende estender a aplicabilidade da audiência de custódia para a prisão temporária, prisão preventiva e prisão-pena.   Discute-se, portanto, qual interpretação constitucional deve prevalecer sobre a amplitude processual penal da audiência de custódia. Observe-se que a lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), quando alterou o CPP, ao  mesmo tempo em que previu a audiência de custódia para casos de prisão em flagrante (art. 310 do CPP) estabeleceu que "se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia. (art. 287 - nova redação)". A Lei 13.964/2019 surge quando já iniciado o referido debate constitucional sobre a extensão da audiência de custódia às diversas modalidades prisionais. No entanto, não conseguiu harmonizar, de forma sistematizada, o tratamento legislativo da matéria, deixando entrever, embora não a escancare com todas as letras, a possibilidade de aplicação da audiência de custódia para a prisão preventiva. Ao que parece, a nova redação do artigo 287 do CPP disse menos do que deveria dizer, já que, por uma perspectiva de controle de convencionalidade, fundamentada nos artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a audiência de custódia deve ser cabível para qualquer modalidade de prisão.  É a interpretação mais condizente com a lógica dos tratados de direitos humanos e a que mais potencializa o modelo de Constitucionalismo brasileiro, que prioriza, no campo penal, a implementação do Garantismo, na linha do que é especificamente estruturado por Luigi Ferrajoli.14   Ana Cláudia Bastos de Pinho e Fernando da Silva Albuquerque, sem deixarem de reconhecer eventuais pontos de tensão e lacunas no Garantismo Penal, o reconhece como um sistema teórico e axiomático que pode viabilizar, na prática, um Direito Penal humanitário, que não compactue com o terror punitivo, desde que conflua para os horizontes das Criminologias Críticas, aperfeiçoando-se as perspectivas de minimalismo penal com redução de danos.15 Nesse cenário, a audiência de custódia atenderia, no processo penal, essa proposta de reduzir os drásticos efeitos colaterais à dignidade humana que envolve qualquer ato prisional. A norma que consegue traduzir, com fidedignidade, essa expectativa constitucional garantista se encontra na resolução n. 213/2015 do CNJ: Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução. Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local. Apesar da nitidez dessa resolução, que segue eficaz naquilo que não foi regulamentado no CPP sobre a audiência de custódia, outros pontos centrais também conduzem a uma ampla aplicação da audiência de custódia às diversas modalidades prisionais: i) a audiência de custódia é um espaço procedimental de escuta sensível daquele que foi preso, seja qual for o motivo da prisão;  ii) mandados judiciais não evitam,  por si sós, a abusividade estatal; iii) o estado de coisas inconstitucional é, no Brasil, um estado de hiperencarceramento de pessoas negras. Essa escuta ativa, que deve caracterizar a audiência de custódia, solicita que defensores, promotores e juízes, principalmente esses últimos, que fazem girar a roda do Poder Punitivo, se coloquem à disposição para efetivamente compreender tudo aquilo que se apresenta na fala da pessoa presa, que desenvolvam a verdadeira arte de ouvir, conforme nos legou o filósofo Plutarco. Que estejam atentos não só à fala, mas que se preocupem captar quaisquer vestígios de abusividade policial - da roupa rasgada a hematomas no corpo -, a serem mostrados ali mesmo, a olho nu, perante as autoridades. Sabe-se que essa escuta sensível é uma prática que encontra  sérias dificuldades para ser implementada, pois  o que percebemos no processo penal, de maneira geral, é um juízo de superdimensionamento da narrativa policial somado ao juízo de descrédito a palavra do réu, que, via de regra, preto e periférico, nunca foi visto na história do Brasil com dignidade. Portanto, não podendo ser portador de qualquer verdade, traz na pele uma presunção de culpa diametralmente oposta à presunção de inocência.  São os efeitos deletérios do racismo estrutural no processo penal Na audiência de custódia, o corpo preso, em regra negro, não só é capaz de falar como de gritar, evidenciar a brutalidade exercida para algemá-lo.  Mesmo com as dificuldades acima apontadas, insiste-se aqui que se deve adotar como ponto de partida que a fala do/a custodiado/a é verossímil. É nisso que consiste uma escuta sensível, aquela que compreende que o processo penal brasileiro ainda não se libertou de sua historicidade escravagista e inquisitória. Essa necessidade de ser atentamente ouvido se relaciona com todas as modalidades de prisão, e não somente com a prisão em flagrante.   Nesse sentido, não se pode esquecer que, em geral, as prisões preventivas são decretadas sem se ouvir o réu, de modo que a audiência de custódia é uma regra compensatória fundamental a este contraditório diferido. Ademais, não raro, mandados de prisão preventiva são cumpridos muito tempo depois da decisão judicial, como em recente caso ocorrido na justiça fluminense envolvendo o músico Luiz Justino, e, nessas situações, abre-se espaço para que o sistema de justiça atue fora do adequado tempo processual, da dimensão de contemporaneidade fática que deve reger a prisão preventiva (art. 315, §1º, do CPP). Outro ponto  sensível é que, não raro, mandados de prisão preventiva são cumpridos estando fundados em decisões já revogadas, cujos mandados não foram recolhidos, o que, sem a  audiência de custódia, pode manter, pela burocracia do rito procedimental que marca o processo penal, uma prisão injusta por dias ou meses até que se detecte a incorreção. Oxalá seja decido pelo STF na direção da liberdade e em detrimento da força! __________ 1 NETO, Claudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros de ativismo. In: Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro:Editora Forense, 2015. p. 104. 2 Ativismo contramajoritário, ativismo de precedentes, ativismo jurisdicional, ativismo criativo etc. 3 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In: FERRAJOLI, Luigi et al (org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 27, 45-46.  4 TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. In: Ferrajoli, Garantismo... cit., p. 117-119. 5 CASARA, Rubens; MELCHIOR, Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen  Juris, 2013.vol. I, p. 183-185. 6 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Renavan, 1999. 7 CASARA, Teoria...cit., p. 179. 8 LEAL, Câmara. Comentários ao Código de Processo Penal brasileiro. 1943, v. 4, p. 207. 9 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Borsoi, 1955, v. 7, p. 217-218. 10 FARIA, Bento. Código de Processo Penal. Editora, Livraria Jacinto, 1942, v. 2, p. 253. 11 ABREU, Florêncio de. Comentários ao Código de Processo Penal. Revista Forense, 1945, v. 5, p. 586. 12 BARBOSA, Rui. Lições de Rui. In: Páginas coligidas por Heitor Dias, Bahia, Imprensa Oficial, 1949. 13 STF. 14 Cfr. FERRAJOLI,  Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal.  São Paulo: RT, 2010. p. 91-92. 15 PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p.  26-29.
sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Por uma consciência negra interseccional

Encontrei minhas origens Encontrei minhas origensem velhos arquivos ....... livros encontrei em malditos objetos troncos e grilhetas encontrei minhas origens no leste no mar em imundos tumbeiros encontrei em doces palavras ...... cantos em furiosos tambores ....... ritos encontrei minhas origens na cor de minha pele nos lanhos de minha alma em mim em minha gente escura em meus heróis altivos encontrei encontrei-as enfim me encontrei Oliveira Silveira1  Cortaram as mãos, deceparam sua cabeça! Zumbi, exposto em praça pública na cidade de Recife, conheceu a morte em 20 de novembro de 1695.  Apesar de ter sido acolhido pela mata, a emboscada do colonizador conseguiu alcançá-lo. Capturou-se o corpo. E só. A consciência negra resistiu. Desliza na atemporalidade. E hoje deve ser, alegremente, comemorada. Foram mais de 100 anos de Quilombo dos Palmares (1597-1695), símbolo histórico da resistência negra à opressão ditada pelo velho mundo. O antropólogo Kabengele Munanga conta que a palavra quilombo, versão aportuguesada de Kilombo, termo originário dos povos de língua bantu, refere-se a espaços geográficos, de acesso difícil, surgidos nos séculos XVI e XVII, ocupados por negras/os escravizadas/os que se rebelaram contra seus senhores. Munanga observa que os quilombos brasileiros, apesar de constituídos em sua maior parte por negros, tornaram-se "espaços abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar.2" O quilombo também era uma sociedade guerreira. Aquilombar-se, portanto, é um dos primeiros atos de consciência negra. Os sorrisos que amanhecem neste 20 de novembro de 2020 revelam a euforia de um pertencimento racial, que diz que "negro é a raiz da liberdade" ou "somos black power". São reflexos da felicidade em ver Kamala Harris eleita como a primeira mulher negra a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Depois do assassinato de George Floyd, promovido pela polícia norte-americana, a História precisava dar alguma esperança de que esse racismo estatal pode ser estancado. Rostos negros sorriem, porque, efetivamente, negros lábios começaram a narrar as próprias histórias. Negritudes se reconhecem em uma comunidade de saber, sentir e viver, que relembra o propósito maior da ancestralidade: o amor. As gotas de vida que, custosamente, venceram o rochoso solo do preconceito racial se transformaram em oceanos de sabedoria, que se comunicam com as próximas gerações. "Eu sou porque nós somos" (Ubuntu). A questão já não é mais de encontrar um/a negro/a doutor/a, figurante de certo heroísmo negro. Agora que se repete que há um racismo estrutural no Brasil, em que o Estado tende a uma política de matança de pessoas negras - o que já havia sido denunciado por Abdias Nascimento na década de 1970 como genocídio do povo negro3 -, a perspectiva interseccional (raça, gênero e classe) também passou a ser enfatizada nas análises políticas sobre a estrutura social brasileira.  Neste dia em que, no Brasil, vidas pretas comemoram seu (re)existir, deve-se lembrar que o Dia Nacional da Consciência Negra só foi reconhecido oficialmente com a edição da lei 10.639/03 (História e Cultura Afro-brasileira), sendo que a lei 12.519/11 reafirmou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.  Esse reconhecimento legal foi possível devido às ininterruptas lutas do Movimento Negro Unificado (MNU), empenhado para que a memória histórica da população negra fosse respeitada. Percebe-se que, quando o assunto é a reparação histórica à população negra, os caminhos estatais nem sempre estão abertos. A implantação de cotas raciais no setor público é outro exemplo de incansável luta dos movimentos negros, em um processo de árdua disputa legislativa e de constante vigilância sobre o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.228/10). Destaque-se, ainda, que somente em 2020 se obteve uma deliberação oficial, por meio do Tribunal Superior Eleitoral, ratificada por decisão do Supremo Tribunal Federal, sobre a obrigatoriedade de que a repartição de recursos do fundo eleitoral e do tempo gratuito de propaganda seja proporcional ao total de candidaturas negras disponibilizadas pelo partido político. No entanto, esse é um pleito antigo dos movimentos negros. De fato, os movimentos negros são as bases estruturais das negritudes contemporâneas, que passaram a liderar saberes científicos, literários, filosóficos, jurídicos, esportivos etc. São essenciais à descoberta, por vezes lenta e dolorida, do "tornar-se negro". Como registra Munanga, há negritudes possíveis, múltiplas, unidas em resistir a uma histórica opressão política e econômica, que insiste em subjugar a população negra nos quatro cantos do mundo.4 Neste dia de celebração da consciência negra, além de recordar que Lewis Hamilton é um consagrado ícone da Fórmula 1, lembre-se que a distinção entre consciência negra e consciência universal segue atualíssima, e sem qualquer ânimo de segregação racial. Aliás, um fato histórico, muito aplaudido no Direito, é exemplificativo de como a ideia de um sujeito universal, de suposta consciência "humanitária", não priorizou o respeito ao jeito de ser da gente preta. A Revolução Francesa (1789), que se dizia ser para todos, com o lema liberdade, igualdade e fraternidade, não conseguiu sustentar a extensão desses ideais para a libertação de colônias africanas, que continuariam, por muito tempo, a ser exploradas pela Europa. A Revolução do Haiti (1791-1804), um dos marcos do Constitucionalismo Negro, conduzida por pessoas escravizadas  que se rebelaram contra seus senhores e saíram vencedoras,   não contou com o apoio ideológico da França revolucionária, que se sentiu amedrontada ao notar que o modelo haitiano de revolução, efetivamente libertário, poderia ser copiado por outras colônias francesas. Isso apenas mostra o que passou a ser lugar-comum no Direito. Na prática, quando se diz que determinado direito é para todos, leia-se todos, menos para negras/os. A figura do sujeito universal, na forma como foi desenvolvida juridicamente - um portador ficcional de direitos humanos -não inclui as especificidades da presença negra no mundo. Ter uma consciência sobre a história e o tempo presente da negritude é o necessário ponto de partida para se entender a própria dignidade enquanto negra/o.  Em regra, a autopercepção sobre a negritude se dá de forma pejorativa, quando o negro/a sente que sua pele é motivo de todos os insultos vindos do mundo branco, que violentamente se impôs como referência estética, cultural e política. Que negra/o sou? Qual a história que devo buscar? Com quem devo desabafar as primeiras angústias de um conflito psicológico interracial? Com quem devo compartilhar as alegrias de ser negra/o, independentemente de qualquer classificação aviltante determinada pelo patriarcado branco e elitista? Quem serei a partir do momento em que me reconheço como negra/o? Qual afrofuturismo guiará a consciência negra? São algumas perguntas para um processo de conscientização negra que possui vários caminhos e requer muita solidariedade afetiva entre as negritudes. Mas se o Dia da Consciência Negra é uma homenagem à figura histórica de Zumbi dos Palmares, deve-se lembrar que ele não esteve só na resistência negra ao colonizador. Contou, indispensavelmente, com Dandara dos Palmares, sua esposa, com quem teve três filhos, guerreira que lutou nas batalhas de libertação, conhecedora da capoeira e figura sempre presente nas atividades de agricultura do quilombo. Dandara dos Palmares, para a história da resistência negra no Brasil, é tão importante quanto Zumbi dos Palmares. Talvez o patriarcado, que também alcança as masculinidades negras, fazendo-as opressoras, não tenha permitido que se enxergasse a figura revolucionária que é Dandara do Palmares.5 Apenas em 24 de abril de 2019, foi sancionada a lei 13.816/19, que inscreveu os nomes de Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. O patriarcado é nocivo, mesmo na construção da história da negritude. Por isso, propõe-se uma consciência negra interseccional, que respeite, o quanto antes, as elevadas contribuições históricas de mulheres negras, que não foram poucas. Consciência negra interseccional, que deve ter como fundamento as pluralidades dos movimentos de mulheres negras, que não são identitários, pois se mostram capazes, a partir dessa encruzilhada interseccional, de promover o encontro com outras tantas diversidades, encampando lutas para além do enfrentamento ao racismo e ao sexismo. Dandara dos Palmares cometeu suicídio assim como a psicanalista e escritora Neusa Santos Souza, autora do referenciado livro Tornar-se negro: as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social (Graal, 1983). Neusa Santos, precursora do movimento da psicologia preta (Black Psychology) no Brasil, em 20 de dezembro de 2008, "lançou-se do alto de uma construção, um imponente edifício onde vivia na Rua General Glicério, Laranjeiras6", no Rio de Janeiro. Dandara dos Palmares, em 1694, ao ser capturada, atirou-se de uma pedreira ao abismo, porque preferiu a morte dada por si própria a ter que retornar à condição de escravizada.   Inspirando-se na musicalidade de Emicida, pode-se dizer que muitas mulheres negras têm sido Ismálias, "querem tocar o céu, mas terminam no chão", por conta da persistente opressão imposta pelo "duplo patriarcado", cujas violências são, em grande medida, também reproduzidas por homens negros submersos nas hierarquizações de gênero ditadas por homens brancos, cujos privilégios, no entanto, aqueles jamais alcançam. Para romper essa realidade, a nova consciência negra há de ser uma consciência negra interseccional, que enxergue cada pessoa em sua singularidade pluriversal, para a qual a Justiça não deve permanecer alheia, se, de fato, pretende  ser uma Justiça democrática, atenta à necessidade de reparação histórica e oficial aos excluídos/as, que ainda são a base corpórea sobre qual  recai as chibatadas dos afortunados/as de privilégios sociais. Se "todas as mulheres são brancas" e "todos os negros são homens", "algumas de nós têm coragem."7 Que mulheres negras sigam demonstrando a coragem herdada de suas ancestrais e construindo caminhos que honrem nossos passos, que vêm de tão longe! Que homens negros não esperem um guia moral dos herdeiros do patriarcado! Que negros homens se encaminhem às negras mulheres, agradecendo-as pelo sacrífico histórico de suas vidas, que garantiram a (re) existência de quilombos, que, hoje, podem ser encontrados nas comunidades, conexões de uma verdadeira solidariedade. Que a gente preta prossiga viva, porque vidas pretas importam e merecem desfrutar de uma felicidade que entoe amorosidade!  ______________ 1 O Dia Nacional da Consciência Negra - celebrado, anualmente, em 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares - foi idealizado por Oliveira Silveira. Convencido da necessidade de recontar nossa história, de reverenciar nossos heróis e heroínas esquecidos, e de resgatar nossos saberes ancestrais invisibilizados, o poeta imortalizou a memória de Zumbi dos Palmares. 2 MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista usp, n. 28, p. 56-63, 1996. 3 NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016. 4 MUNANGA, Kabengele. Negritude-usos e sentidos. Autêntica, 2015, p. 11-20. 5 DOS SANTOS LEITE, Maria Laís. Lutando com Dandara de Palmares: feminismos e representatividade na literatura contemporânea. RELACult-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 6, n. 1, 2020. Para uma leitura ficcional, com referência em dados históricos, confira-se. ARRAES, Jarid. As lendas de Dandara. A autora, na apresentação, do livro, critica o machismo que envolve a comemoração do Dia da Consciência Negra. Nesse mesmo sentido, outro artigo de Jarid Arraes: Clique aqui. Acesso em 10. nov. 2020. 6 Clique aqui 7 Referência ao título do livro All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave". Gloria T. Hull, Patricia Bell Scott, and Barbara Smith. Feminist Press: 1993.
"Primeiro 'cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre elesNega o deus deles, ofende, separa elesSe algum sonho ousa correr, 'cê para eleE manda eles debater com a bala que vara eles, mano"Ismália - Emicida "Quantas/os professoras/es negras/os você já teve?" ou "Você já foi atendido/a por um/a médico/a negro/a?" são perguntas que costumam pautar debates sobre racismo no Brasil. Longe de ser retórica, a indagação - e o silêncio ou a hesitação que a sucedem - são flagrantes da sub-representação (ou quase ausência) de pessoas negras nos espaços de poder e decisão e nas posições sociais consideradas de destaque. A  ausência de pessoas negras no sistema de justiça nos convida a pensar em Franz Fanon, quando disse, ao refletir sobre a condição existencial do ser negro, que "há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer"1. De fato, o sistema de justiça brasileiro não reflete, sequer minimamente, a diversidade étnico-racial da população em seus quadros. A propósito, quanto juízes de direito, promotores de justiça ou defensores públicos negros você conhece? E, em se tratando de mulheres negras, quantas ocupam cargos no sistema de justiça? A informação sobre a presença negra nos órgãos do sistema de justiça segue sendo uma indecorosa incógnita no Brasil, revelando uma conveniente cegueira institucional para uma realidade excludente que, no entanto, salta aos olhos. A ausência de dados - notadamente no que se refere às mulheres negras - prejudica o reconhecimento da questão racial como um fator determinante das desigualdades na sociedade brasileira, reproduzidas, em diversas dimensões, por um sistema de justiça que reserva às pessoas negras uma espécie de "não lugar", não apenas nos seus quadros, mas também na própria construção da Justiça. É certo que, recentemente, alguns órgãos do sistema de justiça têm considerado a composição étnico-racial em levantamentos institucionais sem que, contudo, haja dados em âmbito nacional relativos a todas as carreiras que permitam extrair um retrato fidedigno dessa realidade. Na pesquisa publicada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)2, em 2016, revelou-se que o perfil dos membros do Ministério Público brasileiro é de homens (70%) brancos (76%), oriundos de classes sociais altas, composição que, segundo a análise, exerce influência na priorização de determinadas atribuições do órgão, em detrimento de outras, a exemplo da defesa de direitos de gênero e de minorias étnicas, que, de acordo com o levantamento, somente 4% dos entrevistados destacou como prioridades institucionais. O mesmo perfil foi constatado na composição dos recém-aprovados no último concurso da magistratura trabalhista. Em recente levantamento (2019) - publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em parceria com a Escola Nacional de Aperfeiçoamento e Formação de Magistrados do Trabalho (ENAMAT) -, identificou-se o seguinte perfil majoritário das/os candidatas/os aprovadas/os no primeiro concurso nacional unificado da magistratura do trabalho: "residente do Sul/Sudeste, com idade entre 27 e 31 anos, não negro, solteiro, sem deficiência, oriundo de um estrato social mais elevado e com título de pós-graduação lato sensu (especialização)".3 No setor da advocacia não é diferente. Divulgado em março de 2019, o Censo Jurídico 20184 - pesquisa realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial e a FGV Direito SP - detectou que advogadas/os negras/os representam menos de 1% do corpo jurídico de grandes escritórios do País, o que evidencia a ausência de diversidade racial também na advocacia privada brasileira. Na academia essa ausência construída não é diferente. Também faltam dados sobre o número de pessoas negras tanto na discência como na docência dos cursos de mestrado e doutorado do Brasil, mas, como se sabe, a quantidade de negras/os é ínfima. Esse fator acaba também por condicionar o tipo de saber que é produzido pela academia, ou seja, um saber divorciado de uma epistemologia racialmente plural. Com efeito, ampliar na academia a representação de pessoas negras, indígenas, mulheres, LGBTQIA+ etc., é imprescindível para uma postura acadêmica e epistemológica que contemple as "novas pluralidades"5. E, de fato, a produção do saber não pode ser monopólio de uma representação  eurocêntrica abrasileirada, até porque,  do ponto de vista histórico, como disse  Aimé Césarie6, "a civilização chamada europeia, a civilização ocidental, tal como foi moldada por dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas que a sua existência  originou: o problema do proletariado e o problema colonial". Em se tratando da presença de mulheres negras, órgãos do sistema de justiça têm ignorado a questão interseccional das desigualdades de gênero e raça em seus quadros, ou ainda a tratam apenas sob o viés do gênero, sem abordar os dilemas produzidos pelo racismo. O último Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros7, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, em setembro de 2018, representa uma exceção. As informações sobre a distribuição das/os magistradas/os por cor ou raça de acordo com o sexo demonstram que as mulheres negras representam: 19% na Justiça do Trabalho, 16% na Justiça Estadual, 12% na Justiça Federal, e 26% em outros segmentos do Poder Judiciário. Considerando o universo da magistratura brasileira, tem-se 18,1% de pessoas negras - sendo 16,5% pardas e apenas 1,6% pretas - e somente 6% de mulheres negras8. A partir da pesquisa também é possível traçar o perfil do magistrado brasileiro: homem, branco e cristão. No livro "Cadê a Juíza?, a magistrada Raíza Feitosa retrata a situação de estranheza de se ver uma mulher negra nessa posição9.  O "não parecer" juiz/a - o que vale também para as demais carreiras de defensor/a, promotor/a -, aliado à ideia de "não pertencimento", é ainda um reflexo do colonialismo que povoa o imaginário de quem se espera encontrar, em todos os segmentos judiciais: um homem branco.10 A colonialidade do poder e do saber11 que habita as mentes e as instituições - agravada pela sub-representação negra no sistema de justiça - traz profundas marcas que resultam na negação da condição de sujeito de direitos a pessoas negras, cujo (não) lugar habitual e socialmente aceito, sem inquietações, é o outro polo do sistema de justiça, como corpos descartáveis, encarceráveis, inimigos ficcionais condenados aos mais diversos mecanismos da necropolítica estatal, que tem o sistema penal como ferramenta de sua execução. Esse mesmo sistema de justiça - cujos agentes representam a própria encarnação da concepção excludente de sujeito universal - de um lado, garante impunidade para os crimes de racismo12; de outro, atua de modo racialmente seletivo para encarcerar em massa pessoas negras, notadamente por meio da dita política antidrogas, sem contar a conivente omissão no que tange ao genocídio da juventude negra. A ausência de diversidade étnico-racial e de gênero no sistema de justiça tem como efeito a construção de uma Justiça carente de pluralidade de visões, repleta de pontos convenientemente monoculares, que priorizam determinados sujeitos de direitos como representações homogeneizantes de uma universalidade que não atende a todas as pessoas. Apesar da disseminada concepção de que o concurso público é um meio de acesso igualitário e imparcial a determinadas carreiras, dados revelam que fatores socioeconômicos, cujos reflexos estão diretamente interligados às opressões históricas de raça e de gênero, impedem o pleno acesso de pessoas negras a cargos no âmbito do sistema de justiça. É preciso refletir até que ponto o formato dos concursos públicos para ingresso nessas carreiras não obedece a uma lógica meritocrática brancocêntrica, que termina por privilegiar sempre os mesmos estratos sociorraciais, aliando-se a um processo histórico de manutenção do status quo. Não há dúvidas de que a seleção baseada no mérito tende a comunicar a ideia de ser mais justa do que aquela fundada no nepotismo ou na discriminação arbitrária. No entanto, a distribuição puramente meritocrática não é capaz de assegurar a satisfação de imperativos de justiça social e étnico-racial, mormente se a aquisição, a manutenção e a valorização de aptidões não são acessíveis a todas as pessoas de forma equitativa. Dito de outro modo, os méritos não podem ser compreendidos como atributos estritamente individuais e estáticos, uma vez que são, em grande medida, produzidos, transmitidos e atribuídos socialmente.13 Assim, também o princípio meritocrático deve ser aplicado de maneira contextualizada. Caso contrário, na prática, continuarão sendo desconsideradas as desigualdades geradas pelos contextos vulnerabilizantes, o que, em última análise, corresponde a aferir o mérito conforme os privilégios. Sob essa ótica, serão merecedoras/es - com poucas variações - apenas aquelas/es cuja autonomia não enfrenta obstáculos significativos, em um processo vicioso de restrição da igual liberdade de todas/os, em prol da máxima liberdade de poucas/os. Nessa perspectiva, as ações afirmativas consistem na necessária flexibilização contextualizada do princípio meritocrático, operando-se sua correção, de modo a proporcionar a expansão da autonomia individual - para além da pertença a raças hegemônicas -, nos nichos em que há acumulação racializada de oportunidades atribuíveis ao mérito.14 Daí a importância de medidas concretas para acelerar o incremento da presença negra no sistema de justiça, como aquelas elencadas no Relatório do Conselho Nacional de Justiça - publicado em outubro de 2020 -, após detectar que apenas em 2044 o Poder Judiciário brasileiro alcançaria o marco de 22% de pessoas negras na magistratura, mesmo com a instituição de cotas raciais em seus concursos, desde 201515. Agregar perspectiva de gênero, raça e classe social e estender as pesquisas a outros ramos da Justiça - aqui incluídas todas as carreiras indispensáveis à sua realização, tais como autoridades policiais, advocacia, Defensoria Pública, Ministério Público e a todos os órgãos do Poder Judiciário - é indispensável para que se adotem perspectivas e soluções reais.  Aliás, a perspectiva de diversidade deve ser pensada não somente para as carreiras de Estado em si, mas também para servidoras/es que desenvolvem atividades-meio que viabilizam o concreto acesso à justiça. É uma questão que interroga sobre a vontade institucional, seja qual for a instituição, em acolher e realizar a pluriversalidade. Quem atua no sistema de justiça sabe que, semanalmente, gente humilde madruga, nas portas de entrada das varas criminais e cíveis da cidade, para tentar reivindicar mínimos direitos, que, paradoxalmente, a parte abastada da sociedade se acostumou a desperdiçar. Deve-se lembrar, nas navegantes palavras da poetisa Conceição Evaristo, que há pessoas que:  Ao escrever a fome com as palmas das mãos vazias quando o buraco-estômago expele famélicos desejos há neste demente movimento o sonho esperança de alguma migalha alimento.16 No contexto aqui abordado, a coluna "Olhares Interseccionais" é um convite ao deslocamento, à inquietação e a um mergulho em correntes jurídicas contra-hegemônicas, à luz de perspectivas atentas às opressões interseccionais de raça, gênero e classe social, fazendo reverberar a potência transformadora de vozes indesejáveis.  Por isso, é importante assumir as palavras de Grada Kilomba e dizer que nossos escritos "podem ser incorporados de emoção e subjetividade, pois, contrariando o academicismo tradicional, as/os intelectuais negras/os se nomeiam, bem como seus locais de fala e de escrita, criando um novo discurso com uma nova linguagem"17. A heterogeneidade dos ramos de atuação das/os colunistas - Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública - não é acidental, antes pretende alcançar a necessária pluralidade de visões, a partir de suas trajetórias pessoais e profissionais, conectadas pelo despertar do "tornar-se negra/o". __________ 1 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silva. EDUFBA: 2008. p. 26.2 LEMGRUBER, Julita e RIBEIRO, Ludmila (coord.). "Ministério Público: guardião da democracia?", Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), Universidade Cândido Mendes, julho 2016. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.3 IPEA - ENAMAT. Perfil dos Candidatos Aprovados no Primeiro Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020. 4 CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES. Aliança Jurídica pela Igualdade Racial., "Censo Jurídico 2018", publicado em março de 2019. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020. 5 GODI, Antonio Jorge Victor dos Santos.  Por uma epistemologia plural: O negro enquanto "objeto" de pesquisa. CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 13 (02): 2602.1-6, 2015.6 Césarie, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Anísio Garcez Homem. Letras contemporâneas: 2010. p. 15.7 PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça, "Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018", CNJ, setembro de 2018. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.8 Pode-se dizer que tais dados são sintomáticos da própria divisão da sociedade brasileira, que, em sua maioria, é composta por pessoas negras, mas preserva na distribuição de bens, recursos, status e direitos os efeitos perversos da divisão sexual e racial do trabalho, inerentes ao  colonialismo patriarcal, até mesmo no âmbito do sistema de justiça  . Ver PEREIRA, Flávia Máximo; MURADAS, Daniela. Decolonialidade do saber e Direito do Trabalho brasileiro: sujeições interseccionais contemporâneas. Revista Direito e Práxis, v. 9, p. 37, 2018. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.9 Em outro recente e abrangente estudo promovido pela ENAMAT, alguns dados chamam atenção no que toca à discriminação de raça e gênero sofrida por magistradas negras, o que revela que alcançar altos postos dentro do segmento da Justiça não as isenta de tais mazelas. ENAMAT. Dificuldade na carreira da magistrada. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.10 GOMES, Raíza Feitosa. "Cadê a Juíza?". Travessias de magistradas negras no Judiciário brasileiro. São Paulo: Lumen Juris, 2020.11 Cfr. MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade, império e colonialidade, p. 355. In SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. CES. Almedina: Coimbra, 2009, pp. 337-382.12 Recorde-se o caso Simone Diniz, no qual, retratando o modo como os órgãos do sistema de justiça tratam os crimes de racismo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apontou o racismo institucional como inerente ao sistema de justiça brasileiro. CIDH - OEA, relatório 66/06, caso 12.001, mérito, Simone André Diniz, Brasil, 21 de outubro de 2006. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.13 THARAUD, Delphine e PLANCKE, Véronique van der, Imposer des «discrimination positives» dans l'emploi: vers un conflit de dignités?, p. 204. In GABORIAU, Simone; PAULIAT, Hélène (dir.). Justice, éthique et dignité. Actes du coloque organisé à Limonges les 19 et 20 novembre 2004. Limonge: Presses Universitaires de Limonges, 2006.14 A expressão é de GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil, p. 203. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.15 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório de atividade Igualdade Racial no Judiciário - Grupo de Trabalho Políticas Judiciárias sobre Igualdade Racial no âmbito do Poder Judiciário. Disponível aqui. Acesso: 5 nov. 2020.16 Trecho inicial do poema Ao escrever...  In. EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e Outros Movimentos.  Malê: Rio de Janeiro, 2017. p. 90.17 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2019, p. 58.