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Justiça Federal anula política de cotas para pessoas trans na FURG

Magistrado entendeu que a política violou os princípios da legalidade, impessoalidade e isonomia por ausência de motivação adequada, dados verificáveis e critérios objetivos de seleção.

4/8/2025

A Justiça Federal do Rio Grande do Sul anulou a política de cotas voltadas a pessoas transgênero criada pela FURG - Universidade Federal do Rio Grande. Em sentença proferida em 25 de julho, o juiz Federal substituto Gessiel Pinheiro de Paiva, da 2ª vara Federal de Rio Grande, declarou a nulidade da resolução CONSUN/FURG 11/22 e dos editais dos processos seletivos de 2023, 2024 e 2025. 

Segundo o magistrado, embora ações afirmativas destinadas à população trans sejam juridicamente possíveis, a política adotada pela FURG foi considerada inválida por carecer de fundamentação adequada, basear-se em dados não verificáveis, não apresentar vínculo claro com o problema que se propunha enfrentar e adotar critérios de seleção subjetivos. Esses elementos, segundo a decisão, afrontam os princípios da legalidade, impessoalidade, isonomia e capacidade.

Justiça Federal anula política de cotas para pessoas trans na FURG.(Imagem: Altemir Vianna/FURG)

A ação popular foi ajuizada por dois advogados que questionaram a legalidade da política adotada pela FURG para reservar vagas a pessoas trans nos cursos de graduação e pós-graduação.

Alegaram ausência de respaldo legal, falta de correlação entre a medida e a desigualdade enfrentada por esse grupo, e afirmaram que a universidade não teria competência normativa para criar esse tipo de ação afirmativa.

Motivação insuficiente e critérios subjetivos

O juiz considerou a motivação apresentada pela FURG inadequada, especialmente por não demonstrar relação direta entre o benefício concedido e os problemas efetivamente enfrentados pela população trans. Embora reconheça a dificuldade de obtenção de dados públicos sobre esse grupo, o magistrado enfatizou que tal ausência não autoriza conclusões generalizadas ou decisões administrativas sem lastro empírico:

“É verdade que a falta de dados públicos oficiais dificulta a instituição de políticas afirmativas em favor dos transexuais e travestis, mas justamente a ausência de dados oficiais não pode levar à conclusão de que tal população é desfavorecida em relação à média da população no que diz respeito à possibilidade de ingressar na universidade, através dos concursos regulares.”

Com base nos próprios dados apresentados pela universidade, o juiz destacou que cerca de 90% da população trans estaria contemplada pelas cotas sociais atualmente vigentes e mais de 50% pelas cotas raciais. Apenas 28% teria escolaridade compatível com o ingresso no ensino superior, o que restringiria significativamente o alcance efetivo da política criada.

Portanto, afirmou que "as cotas raciais e sociais já abrangeriam uma grande parte da população trans, não havendo justificativa aparente para que venham a ser ainda mais favorecidos ou favorecidos de forma diversa do que tais grupos.”

Além disso, a sentença reprovou o uso de dados sobre violência, exclusão social e marginalização para justificar o ingresso em política de cotas universitárias. Embora reconheça a gravidade desses fenômenos, o juiz pontuou que tais fatores não guardam nexo direto com o acesso ao ensino superior:

“Questões como falta de acesso a políticas públicas de saúde, evasão escolar nos ensinos fundamental e básico, violência doméstica e outros tipos de violência de gênero, etc., embora alarmantes, graves e que devem ser objeto de atenção pelo Estado, não possuem correlação lógica com o acesso à universidade, e não podem servir de motivação para a criação de políticas afirmativas nesse sentido.”

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Dados 

A decisão também criticou distorções nos dados utilizados para embasar a política, como a tentativa de qualificar a região Sul como mais violenta para pessoas trans com base em um percentual isolado de assassinatos. O juiz refutou essa leitura, apontando que a população da região representa cerca de 14,7% da população brasileira, o que invalida a conclusão de que seria proporcionalmente mais perigosa.

“O que se percebe na motivação apresentada pelo proponente é um aglomerado de dados sem maior correspondência correlacional com a política afirmativa adotada pela FURG com base nessa motivação, e ainda, a distorção e uso de tais dados sem uma necessária valoração lógica e sistêmica.”

O magistrado alertou que pesquisas que embasam políticas públicas devem seguir metodologia rigorosa, com busca de imparcialidade e fundamentação técnica, e advertiu contra o uso seletivo de estatísticas.

“Dados recortados podem ser utilizados para validar o que se quiser, basta se trazer à tona os dados que respaldem o que se quer defender e se omitir aqueles que não respaldam. Toda pesquisa destinada a embasar políticas públicas deve possuir uma metodologia baseada na busca da objetividade e na imparcialidade em seus resultados.”

Por fim, alertou sobre o viés cognitivo, que pode direcionar as conclusões de um estudo, mesmo que de forma inconsciente, pelas preferências pessoais, crenças e experiências prévias do pesquisador. 

"Decisões judiciais, elaboração de leis e políticas públicas frequentemente se apoiam em pesquisas científicas, (...) Se essas pesquisas forem intrinsecamente enviesadas pelas preferências dos pesquisadores (veja-se que no presente caso todas as pesquisas que embasam a ação afirmativa foram produzidaspor entidades manifestamente interessadas em determinados resultados), a validade das conclusões e, consequentemente, a justiça e a eficácia das medidas adotadas podem ser comprometidas."

Avaliação subjetiva e falta de base normativa

Outro ponto criticado foi o modelo de seleção adotado nos editais, que atribuía 40% da nota a um memorial descritivo com base em vivências pessoais, restando apenas a redação como critério objetivo. Para o juiz, essa forma de avaliação viola os princípios da impessoalidade e da capacidade, comprometendo a isonomia do processo seletivo.

A universidade também invocou tratados internacionais e princípios constitucionais para justificar a política, mas, segundo o magistrado, não foi demonstrada a conexão normativa entre esses instrumentos e a criação de vagas exclusivas com critérios distintos:

“Apesar demencionar diversos tratados internacionais e outras normas infralegais, não especificou em qual parte específica decada tratado ou norma justificaria a criação de vagas exclusivas para pessoas trans e travestis na universidadefederal, com meio de acesso diverso dos demais candidatos, e que não observa o princípio da impessoalidade naavaliação, nem o princípio da capacidade no acesso, como exige a Constituição."

O juiz associou essa exigência à regra do art. 489, §1º, do CPC, que exige que qualquer fundamentação — judicial ou administrativa — esteja vinculada à realidade concreta e não se limite à simples citação de normas.

Conclusão

Com base nesses elementos, o juiz declarou a nulidade da resolução CONSUN/FURG 11/22 e dos editais dos anos de 2023 a 2025. A política foi considerada inválida por falta de motivação adequada, ausência de correlação com o problema alegado e utilização de dados não verificáveis.

O vício foi classificado como hipótese de ilegalidade nos termos do art. 2º, parágrafo único, “d”, da lei da ação popular.

A decisão afastou a aplicação da teoria do fato consumado, por considerar que os cursos ainda estão em andamento e que a política estava sob questionamento desde sua origem. Os alunos já matriculados poderão concluir as disciplinas em que estão inscritos, e os créditos obtidos poderão ser aproveitados em eventual reingresso por via regular.

Por fim, foi concedida tutela de urgência para impedir a realização de novos processos seletivos com base na política anulada. O juiz ressaltou, contudo, que a universidade poderá propor nova ação afirmativa voltada à população trans, desde que esteja amparada em dados oficiais, com critérios objetivos e correlação comprovada com a realidade enfrentada pelo grupo beneficiado.

Leia a decisão.

Veja a versão completa

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