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Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, José Fernando Simão, Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
Até recentemente, os dispositivos com neurotecnologia estavam restritos a ambientes clínicos, sendo utilizados exclusivamente para rastreamento, diagnóstico e tratamento de doenças. Essa realidade, contudo, vem se transformando rapidamente. Tecnologias como o eletroencefalograma passaram por significativa miniaturização, permitindo sua incorporação em dispositivos vestíveis (wearables) consistentes em relógios, tiaras, óculos, capacetes amplamente acessíveis ao público. Atualmente, esses aparatos são comercializados para finalidades diversas, como entretenimento, educação, bem-estar e até aprimoramento cognitivo, sendo facilmente adquiridos através de plataformas on line, no modelo de consumo conhecido como B2C (Business-to Consumer, ou seja, venda direto da empresa para o consumidor final).  As neurotecnologias compreendem, entre outras, ferramentas que permitem tanto a medição quanto a modulação da atividade neural. Possibilitam a detecção, registro e observação de propriedades da atividade cerebral, contribuindo para diagnósticos clínicos ou para o controle de interfaces cérebro-máquina, com possibilidade de fornecer feedback em tempo real e realizar estimulação baseada em sistemas de circuito aberto.1 O acesso facilitado ao uso de neurotecnologia trouxe consigo vários desafios éticos e jurídicos especialmente no que concerne à proteção dos neurodireitos, com ênfase especial na autonomia cognitiva e na privacidade mental. Quanto mais dispositivos com essa inovação, maiores as possibilidades de violação.  A consolidação dos termos de serviço como formas contratuais predominantes nas plataformas e empresas que oferecem serviços baseados em neurotecnologia levanta sérios desafios à proteção dos neurodireitos. Estruturados sob lógica padronizada, unilateral e não negociável, esses contratos impõem ao usuário uma adesão passiva a condições contratuais frequentemente opacas, especialmente quanto à coleta, tratamento e utilização de dados neurais, sensíveis por natureza (o que está vedado expressamente no art. 2.027-O, § 2º, inciso II, do PL 4/25, que tem por objetivo a atualização do CC). Tal cenário intensifica a assimetria informacional e tecnológica entre fornecedores e usuários, comprometendo elementos estruturantes do direito contratual, como a autonomia privada, a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Ao permitir, de forma pouco transparente, práticas como a inferência de estados mentais, o condicionamento de comportamentos ou a modulação cognitiva, esses contratos colocam em risco direitos fundamentais emergentes, como a privacidade mental e a liberdade cognitiva, exigindo, assim, revisões regulatórias e doutrinárias capazes de reequilibrar a relação contratual no contexto das neurotecnologias. Neurodireitos e cláusulas abusivas em termos de serviço de neurotecnologias Neurodireitos são garantias inerentes à personalidade da pessoa natural, que não podem ser renunciadas, limitadas ou transferidas. Têm por escopo proteger - no contexto da utilização de neurotecnologia - a liberdade cognitiva (ou livre arbítrio), a privacidade mental, a integridade mental, a identidade pessoal, o acesso equitativo à ampliação ou aprimoramento cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses ou práticas discriminatórias (Art. 2027-O do PL 4/25).  Essa definição de neurodireitos inserida no projeto de atualização do CC3 abraçou as ideias de Ienca e Andorno2, que categorizaram as proteções dos neurodireitos em quatro espécies, bem como as ideias de Yuste3 et. al, que estabeleceram quatro prioridades éticas na proteção dos neurodireitos (Mental Privacy, Personal Identity, Cognitive Liberty e Equal Acess & Non-Discrimination). A intersecção entre termos de serviço, neurotecnologias e neurodireitos demanda análise ética e jurídica rigorosa, pois tais cláusulas, usualmente padronizadas e de difícil negociação, são hoje o principal instrumento de regulação do acesso e uso de neurotecnologias pelos usuários. Sob a ótica dos fundamentos éticos, impõe-se a proteção da autonomia cognitiva e da privacidade mental. Do ponto de vista jurídico, é indispensável assegurar o consentimento livre e informado, a possibilidade de revogação e o equilíbrio contratual. Deve-se evitar cláusulas abusivas que comprometam tais direitos, na perspectiva dos princípios da boa-fé, da função social do contrato e da proteção à vulnerabilidade do consumidor. A tensão entre os fundamentos clássicos do Direito Contratual (autonomia e consentimento informado) e as particularidades dos termos de serviço é evidente, e se acentua diante das neurotecnologias. Enquanto o modelo tradicional pressupõe liberdade de negociação e compreensão integral das obrigações assumidas, os termos de serviço, padronizados e impostos unilateralmente, dificultam o pleno exercício dessas garantias. Os termos de uso das empresas que oferecem produtos ou serviços de neurotecnologia frequentemente contêm cláusulas abusivas que dificultam a tutela dos direitos ligados à proteção jurídica da mente do usuário. Esse problema já se evidencia no modelo contratual: exige-se a aceitação integral das condições, sem qualquer margem de negociação, sob pena de impedir o acesso ao produto ou serviço - o que, por si só, compromete a liberdade cognitiva. A assimetria de informação e de poder é evidente, e princípios como o da autonomia e do consentimento informado - pilares do Direito Contratual e essenciais à proteção de direitos fundamentais - acabam igualmente esvaziados. Importante destacar que até mesmo quando há o tradicional consentimento para a coleta e armazenamento dos dados, isso, por si só, pode não ser suficiente. Um episódio emblemático ocorrido no Chile em 2023, conhecido como "caso Girard versus Emotiv Inc" demonstrou que, embora Girardi tenha concedido consentimento expresso inicial para o uso do dispositivo Insight e o armazenamento de seus dados cerebrais, a ação judicial e a decisão da Corte Suprema destacaram que, para dados tão sensíveis quanto os cerebrais, o consentimento é um fator importante, mas não absoluto. A preocupação com a proteção da privacidade e da integridade mental dos indivíduos, impõe requisitos mais rigorosos para o tratamento e a eliminação desses dados, mesmo que o usuário tenha inicialmente consentido com seu armazenamento. O caso sublinha que a autodeterminação informativa, entendida como o direito de controlar a própria informação pessoal, exige mecanismos eficazes para que o usuário possa, a qualquer momento, revogar seu consentimento e solicitar a eliminação de seus dados cerebrais.4 Considerando a natureza dos termos de serviço, é comum que haja cláusulas consideradas abusivas para os titulares dos neurodireitos, de modo que é preciso estabelecer estratégias que possam de pronto identificá-las. Uma grande dificuldade consiste em garantir que os usuários dos serviços lerão e compreenderão a íntegra dos termos de serviço das empresas de neurotecnologia. A maioria dos termos de serviço são extensos e com vocabulário estritamente técnico, além de serem repletos de cláusulas abusivas. Além disso, os consumidores se sentem impotentes diante dos termos, pois não há possibilidade de influenciar em seu conteúdo, e a opção que lhes resta é aceitar na íntegra, ou não utilizar o serviço ou produto. Na tentativa de auxiliar o consumidor, foi desenvolvida na Europa a ferramenta CLAUDETTE5, com capacidade de detectar, através de aprendizado de máquina e de forma automatizada, oito categorias de cláusulas potencialmente abusivas presentes nos termos de serviço6: a) escolha da arbitragem antes do ajuizamento de ações judiciais; b) alteração unilateral do contrato por parte do provedor; c) poder unilateral de remoção de conteúdo; d) escolha da jurisdição para disputas, na maioria dos casos, em país diverso da residência do consumidor; e) escolha de legislação estrangeira para reger o contrato; f) limitação de responsabilidade por danos; g) rescisão unilateral do contrato por parte do provedor, podendo suspender ou rescindir o contrato; h) contrato por uso, sem necessidade de clicar 'eu concordo".  Considerando que as empresas de neurotecnologia possuem sedes em diferentes países, o que torna inerente a transnacionalidade de seus contratos, uma ferramenta importante que pode ser utilizada nos contratos de adesão de serviços de neurotecnologia, visando a preservação dos neurodireitos dos usuários, é a incorporação dos Princípios UNIDROIT na redação de suas cláusulas contratuais.  No preâmbulo dos Princípios UNIDROIT7 consta que podem ser utilizados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme, para interpretar ou suplementar leis nacionais, e servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais. Em outras palavras, são fontes de interpretação e de inspiração de modelos regulatórios, inclusive para contratos envolvendo neurotecnologia. Entre os princípios previstos pelo UNIDROIT, destacam-se alguns de especial relevância para a tutela dos neurodireitos. O Princípio da Boa-fé (art. 1.7) impõe às partes uma atuação pautada por honestidade e lealdade, prevenindo abusos na utilização de dados neurais. O Princípio do Consentimento Livre e Informado (arts. 2.1.1 e 2.1.2) garante que o titular compreenda as implicações do contrato, conferindo validade ao consentimento relativo à coleta e ao uso de informações cerebrais. Já o Princípio do Equilíbrio Contratual (art. 3.2.7) assegura a justiça das relações obrigacionais, afastando cláusulas abusivas que possam comprometer direitos em contextos tecnológicos complexos. O Princípio da Responsabilidade e Reparação (art. 7.4.1) fixa critérios de responsabilização por danos, aspecto essencial diante de eventuais violações de neurodireitos ou falhas na proteção de dados neurais. Por fim, o Princípio da Flexibilidade (arts. 6.2.2 e 6.2.3) autoriza ajustes contratuais diante de inovações tecnológicas e novos riscos, preservando os direitos envolvidos sem engessar a inovação. Esses princípios promovem uma base jurídica sólida para contratos que envolvem neurotecnologias, assegurando proteção aos neurodireitos, ao mesmo tempo em que garantem segurança e previsibilidade para as partes contratantes. Com o objetivo de mitigar possíveis consequências negativas do avanço não regulado dessas tecnologias, GOERING, et. Al8., propuseram recomendações que, se adotadas, podem reduzir de forma significativa os riscos de danos nas relações contratuais entre usuários e empresas de produtos e serviços de neurotecnologia. Essas recomendações podem ser externadas em cláusulas nos termos de serviços. Dentre elas, é possível mencionar: a) aprimoramento do consentimento informado para neurotecnologias, com linguagem simples, clara e de fácil compreensão, com possibilidade de revisão do consentimento dado; b) criação por padrão de consentimento "opt-in" ativo para coleta e compartilhamento de dados cerebrais, com autorização explícita e ativa; c) criptografia completa de dados cerebrais em todo o seu ciclo de vida (da coleta até o dispositivo de saída); d) restrição do compartilhamento de dados cerebrais (considerando riscos de reidentificação e comercialização). Além disso, os autores defendem incentivar a responsabilidade comercial no desenvolvimento de neurotecnologias e criar uma comissão internacional ampla, transparente e de reuniões regulares, encarregada de avaliar os avanços na área e definir como a pesquisa em neurotecnologia deve ser estruturada, regulada e fomentada. Incorporadas a um marco jurídico, essas recomendações podem orientar o desenvolvimento e a aplicação das neurotecnologias de modo a maximizar benefícios, reduzir riscos éticos e sociais e assegurar a proteção da autonomia, da privacidade e da dignidade humanas. Reflexões finais Apesar de sua relevância, o tema ainda carece de regulação robusta. Para além da incorporação dos Princípios UNIDROIT na redação das cláusulas contratuais dos termos de serviços das empresas que oferecem serviços ou produtos de neurotecnologia, tendo em vista o caráter transfronteiriço dos pactos, o arcabouço regulatório deve considerar a fragmentariedade do direito9 e a coexistência de pluralidades normativas. Nesse cenário, os standards técnicos, as premissas de soft law, além de diretrizes e recomendações de organizações como OCDE, ONU, UNESCO e PARLATINO, tornam-se especialmente importantes. Também é fundamental alinhar essas normas com a legislação nacional sobre proteção de dados, direito digital e ética biomédica. No que concerne à legislação nacional, o debate ganha destaque devido à criação recente, no Senado Federal, da Comissão Temporária para analisar o PL 4/2510, que propõe atualizar o CC. Entre as propostas de revisão, há um artigo dedicado à proteção dos neurodireitos (art. 2027-O). Contudo, uma análise preliminar indica que o foco do legislador está principalmente no uso de neurotecnologias (art. 2027-O, § 1º), embora haja menção à prevenção de práticas discriminatórias baseadas em dados cerebrais, o que implica o uso de inteligência artificial. Diante disso, recomenda-se que o legislador amplie o texto proposto, incorporando termos e expressões capazes de abranger, além das neurotecnologias, "outras tecnologias emergentes" que também possam violar neurodireitos através da inferência de estados mentais. A sugestão se justifica exatamente pelo fato de que a abordagem regulatória não pode ser focada estritamente em dados neurais, devendo abranger também toda a gama de biometria cognitiva. Dados de rastreamento ocular, variabilidade de frequência cardíaca e expressões faciais podem ser processados por algoritmos para inferir estados mentais, o que viola a privacidade mental (MAGEE, P., IENCA, M., & FARAHANY, N)11. A UNESCO fez constar de seu anteprojeto de Recomendação sobre a Ética na Neurotecnologia (2025, p. 8) que é possível obter, mediante várias tecnologias, dados biométricos que informam indiretamente sobre a atividade neural, e podem inferir estados mentais. _________________________ 1 UNESCO. Recomendación sobre la Ética de la Neurotecnología. Paris: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. 2 IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, v. 13, n. 5, 2017. DOI: 10.1186/s40504-017-0050-1.  3 YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, v. 551, p. 159-163, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. 4 PINO, Francisco. El caso Girardi con Emotiv sobre "neuroderechos". Revista de Derecho de la Universidade Católica de La Santísima Concepción, Concepción, n. 45, p. 136-152, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.  5 CLAUDETTE: Machini Learning Powered Analysus of Consumes Contracts and Privacy Policies. Machini Learning Powered Analysus of Consumes Contracts and Privacy Policies. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025. http://claudette.eui.eu/tools/index.html 6 PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS. In: UNIDROIT. Princípios UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. [S. l.], 2016. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.  7 GOERING, Sara. et al. Recommendations for Responsible Development and Application of Neurotechnologies. Neuroethics, v. 14, p. 365-386, 2021. DOI: 10.1007/s12152-021-09468-6.  8 TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais: Constitucionalismo Social na Globalização, 2. Ed., São Paulo: Saraiva, 2016. 9 BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Brasília, 2025. 10 MAGEE, P., IENCA, M., & FARAHANY, N. (2024). Além dos dados neurais: Biometria cognitiva e privacidade mental. Neuron, 9(9), 1-18. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2025.
1. A doação como importante instrumento de transmissão de bens e direitos A doação é um contrato no qual o doador, exercendo a sua liberalidade de disposição patrimonial, transfere bens ou vantagens para o donatário sem receber remuneração ou pagamento em contraprestação. Pode ter por objeto bens móveis ou bens imóveis, e pode ser celebrado de maneira verbal ou escrita. Esta amplitude de utilização faz da doação um contrato extremamente democrático, e abrange desde simples doações de bens ou valores de pequena monta realizadas cotidianamente sem maiores formalidades pelos próprios doadores até a transmissão formal e solenizada de bens imóveis como parte de um planejamento patrimonial e sucessório mais complexo, aproveitando-se das modalidades e cláusulas especiais que podem ser manejadas pelos profissionais da área jurídica. Entre as modalidades especiais de doação, iremos destacar neste texto a doação conjuntiva, realizada em favor de duas ou mais pessoas simultaneamente do mesmo bem, prevista no art. 551 do Código Civil, que estabelece um regime jurídico específico para essa situação, criando uma exceção à regra geral da divisão do bem e instituindo o chamado direito de acrescer. Este artigo visa analisar o tratamento legal e jurisprudencial da matéria, bem como as propostas de modificação apresentadas no PL 4/25. 2. A doação conjuntiva prevista no Código Civil A doação conjuntiva é aquela em que a liberalidade é destinada a múltiplos beneficiários. A regra geral, estabelecida no caput do art. 551 do Código Civil, é simples: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual". A respeito da doação conjuntiva, conceitua Flávio Tartuce: A doação conjuntiva é aquela que conta com a presença de dois ou mais donatários (art. 551 do CC), presente uma obrigação divisível. Em regra, incide uma presunção relativa (iuris tantum) de divisão igualitária da coisa em quotas iguais entre os donatários. Entretanto, o instrumento contratual poderá trazer previsão em contrário. Desta forma, caso o instrumento de doação indique como donatários duas pessoas, presume-se que a cada um caberá metade do bem; se forem três donatários, um terço a cada um, e assim sucessivamente, conforme o número de beneficiados. O instrumento de doação, no entanto, poderá conter disposição diversa, indicando distribuição diferente da divisão do bem doado; a título de exemplo, poderia indicar dois donatários, e deixar a um deles dois terços do bem, e ao outro um terço. Neste caso, estamos diante do exercício da liberalidade, e a manifestação da vontade do doador pode ser exercida de acordo com a sua intenção.  A doação conjuntiva forma um condomínio sobre o bem, de forma que todos os donatários se tornam coproprietários deste. 3. O direito de acrescer na doação conjuntiva O direito de acrescer é conhecido do direito sucessório, sendo regulamentado em capítulo específico do direito sucessório, nos arts. 1.941 e seguintes do Código Civil. Além disso, o direito de acrescer também pode ser utilizado no usufruto instituído em favor de duas ou mais pessoas, desde que por disposição expressa, nos termos do art. 1.411. Da mesma forma, seria possível que nas doações efetuadas a mais de uma pessoa em conjunto seja estipulado o direito de acrescer entre os donatários, prevendo que na morte de um dos donatários, a parte deste acresceria aos demais. Assim, se configurado o direito de acrescer, a parte do bem recebido por doação conjuntiva não irá compor o acervo hereditário do coproprietário falecido, mas sim irá subsistirá ao coproprietário sobrevivo, ampliando a sua parte. É importante salientar que o direito de acrescer na doação conjuntiva de maneira convencional é reconhecido pela doutrina, ainda que possa ser alvo de debates. No entanto, dependerá de cláusula expressa neste sentido pelo doador ao realizá-la, já que o direito de acrescer não é regra geral prevista na doação, ao contrário do que acontece nas disposições testamentárias (art. 1.941). Nos dizeres de Tartuce: Por regra, não há direito de acrescer entre os donatários na doação conjuntiva. Dessa forma, falecendo um deles, sua quota será transmitida diretamente a seus sucessores e não ao outro donatário. Mas o direito de acrescer pode estar previsto no contrato (direito de acrescer convencional) ou na lei (direito de acrescer legal). (TARTUCE, 2025) Há, contudo, a previsão legal expressa de direito de acrescer caso os beneficiários da doação sejam casados entre si, constante no parágrafo único do art. 551. Este seria o direito de acrescer legal. Assim, com a morte de um dos cônjuges, a totalidade do bem doado passa a pertencer exclusivamente ao cônjuge sobrevivente. O bem não é dividido com os herdeiros do falecido nem precisa ser levado a inventário para essa finalidade. O art. 551, parágrafo único, do CC, consagra uma hipótese de direito de acrescer legal, sendo aplicada quando os donatários forem marido e mulher. Nessa hipótese, falecendo um dos cônjuges, a quota do falecido é transmitida para o seu consorte, sendo desprezadas as regras sucessórias. (TARTUCE, 2025) O direito de acrescer na doação conjuntiva entre marido e mulher vem sendo reconhecido e aplicado nos tribunais brasileiros, como se observa das decisões a seguir colacionadas que excluem bens e valores doados do inventário do cônjuge falecido:  AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DETERMINOU QUE O SALDO DO PRODUTO DE VENDA DE IMÓVEL FOSSE INVENTARIADO. BEM ADQUIRIDO PELO CASAL POR DOAÇÃO CONJUNTIVA. ALIENAÇÃO DE PARTE DELE PELOS CÔNJUGES PERFECTIBILIZADA ANTES DO ÓBITO. CUSTEAMENTO DO TRATAMENTO DE SAÚDE DO DE CUJUS. PARTE DA QUANTIA DEPOSITADA EM CONTA-CORRENTE. EXCLUSÃO DO ACERVO HEREDITÁRIO. DIREITO DO SOBREVIVENTE AO PRODUTO DE BEM DOADO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 551 DO CÓDIGO CIVIL. DECISUM REFORMADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. Nos termos do artigo 551, parágrafo único, do Código Civil, o bem doado ao casal (doação conjuntiva), diante do falecimento de um dos cônjuges, passa a pertencer, na sua totalidade, ao cônjuge sobrevivente. A interpretação que melhor se adequa aos termos da lei é a de que, não havendo dúvida de que o saldo existente em conta-corrente adveio de alienação de imóvel recebido por doação conjuntiva, o preço advindo de tal venda sub-roga-se na característica de bem doado, motivo pelo qual é excluído do acervo hereditário (TJ/SC - AI: 20110291454 Blumenau 2011.029145-4, Relator: Jairo Fernandes Gonçalves, Quinta Câmara de Direito Civil, Data de Julgamento: 8/11/12) REGISTRO DE IMÓVEIS - Doação conjuntiva em favor de marido e mulher - Bem que, em virtude do direito de acrescer estabelecido no parágrafo único do art. 551 do Código Civil, não poderia ter sido inventariado e partilhado - Desqualificação correta da escritura de inventário e partilha - Apelação não provida. (TJ/SP - Apelação Cível: 1012088-83.2016.8.26.0037 Araraquara, Relator: Pereira Calças, Conselho Superior da Magistratura, Data de Julgamento: 15/8/17) 4. Não incidência de tributação quando configurado direito de acrescer O direito de acrescer tem consequências também no âmbito tributário, uma vez que a consolidação da propriedade plena nas mãos do cônjuge sobrevivente não constitui uma nova transmissão causa mortis ou uma nova doação, mas sim de uma condição resolutiva do condomínio que existia sobre o bem. Por essa razão, os tribunais têm decidido que não incide o ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação sobre a parte que acresce ao patrimônio do cônjuge supérstite. Neste sentido: RECURSO ADMINISTRATIVO. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. EXIGÊNCIA, PARA O REGISTRO DO DIREITO DE ACRESCER, DA COMPROVAÇÃO DE RECOLHIMENTO DO ITCMD PELA CÔNJUGE SUPÉRSTITE. SENTENÇA QUE MANTEVE A EXIGÊNCIA. DOAÇÃO CONJUNTIVA. FALECIMENTO DE UM DOS DONATÁRIOS. DIREITO DE ACRESCER. ART. 551 DO CÓDIGO CIVIL. FATO GERADOR NÃO CARACTERIZADO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO NA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. PRECEDENTE DESTA CORTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ/SC - Recurso Administrativo: 0047796-79.2022, Relator: André Carvalho, Data de Julgamento: 13/10/23) REEXAME NECESSÁRIO - APELAÇÃO CÍVEL - DOAÇÃO EM FAVOR DE AMBOS OS CÔNJUGES - ART. 551, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/02 - DIREITO DE ACRESCER - INCIDÊNCIA DO ITCD - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE FATO GERADOR - SENTENÇA MANTIDA. I - Conforme disposto no parágrafo único do art. 551 do Código Civil de 2002, nos casos de doação feita indistintamente a ambos os cônjuges, com o óbito de um dos donatários, a doação subsistirá na totalidade para o cônjuge sobrevivo, sendo, portanto, caracterizado o direito de acrescer. II - Em se tratando de direito de acrescer, ante a inexistência de nova doação ou sucessão causa mortis, não ocorre o fato gerador do ITCD, pelo que não poderá ser exigido o tributo. (TJ/MG - AC: 51142987820188130024, Relator: Des.(a) Wilson Benevides, 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 20/8/19) Assim, em se tratando de direito de acrescer, ante a inexistência de nova doação ou sucessão causa mortis, não ocorre o fato gerador do ITCMD, pelo que não poderá ser exigido o tributo. Essa característica torna a doação conjuntiva a cônjuges um instrumento eficaz de planejamento patrimonial, garantindo que o bem permaneça integralmente com o sobrevivente sem os custos e a burocracia de um inventário e sem a incidência de imposto de transmissão. 5. A proposta de modificação do art. 551 no PL 4/25 O projeto de reforma do Código Civil - PL 4/25 - apresenta modificações no art. 551, com a inserção de dois parágrafos sobre o assunto, ampliando e modificando o alcance atual da norma. O primeiro ajuste sugerido pela comissão que elaborou o texto do projeto é a inclusão expressa da extensão do direito de acrescer também ao companheiro, o que é importante para trazer segurança jurídica e afastar o debate se seria aplicável ou não ao companheiro. Esta inclusão segue o sentido geral da reforma, que igualou os direitos patrimoniais da união estável e do casamento. No entanto, a redação do sugerido paragrafo primeiro foi além da mera inclusão do companheiro: vincula a existência de direito de acrescer entre cônjuges ou companheiros a estipulação expressa neste sentido, ao contrário do que está previsto no atual parágrafo único do 551. Assim, caso aprovada a reforma, ainda será  possível a existência de direito de acrescer nas doações em favor de casal, no entanto dependerá de manifestação expressa neste sentido. Assim é a redação constante do projeto: § 1º. Se os donatários, em tal caso, forem casados entre si ou viverem em união estável, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge ou convivente sobrevivos, desde que haja estipulação expressa nesse sentido. Além disso, é inserido um parágrafo segundo no art. 551 regulamentando a instituição de direito de acrescer convencional na doação conjuntiva, afastando qualquer debate doutrinário ou jurisprudencial sobre a possibilidade ou não da sua instituição. Assim, fica a redação:  § 2º. Se os doadores indicarem como donatários mais de uma pessoa, e pretenderem que, na falta de uma, os donatários remanescentes recebam a parte que ao outro cabia, devem expressamente fazer constar da escritura pública disposição fixando o direito de acrescer O parágrafo segundo traz a necessidade de cláusula expressa, porém vincula a constar na escritura pública. Talvez pudesse ser apenas exigência de que fosse na forma escrita, ainda que particular, pois ainda que se compreenda que uma cláusula expressa deva vir na forma escrita para segurança jurídica, a escritura pública não é necessária para todo e qualquer tipo de doação. 6. Considerações Finais A doação conjuntiva, especialmente a realizada entre cônjuges, é uma ferramenta jurídica de grande valor para o planejamento sucessório, uma vez que possibilita a utilização do direito de acrescer, e pode simplificar a transmissão de bens, evitando inventário na hipótese e afastando a incidência do ITCD sobre a parte acrescida. Em sua configuração atual, a doação conjuntiva do art. 551 do Código Civil representa uma ferramenta de notável valor estratégico, cuja principal virtude é o direito de acrescer legalmente presumido entre cônjuges. Essa presunção simplifica a sucessão patrimonial, blinda o bem doado do processo de inventário e, segundo o entendimento dos tribunais, afasta a onerosidade do ITCMD. Entretanto, o horizonte legislativo, delineado pelo PL 4/25, aponta para uma reconfiguração do instituto. A proposta de condicionar o direito de acrescer dos cônjuges a uma estipulação expressa, bem como de estender formalmente o direito aos companheiros, moderniza a norma, mas também lhe impõe uma nova complexidade, pois altera o seu reconhecimento da presunção da lei para a manifestação de vontade das partes. Ainda, apresenta de maneira expressa a possibilidade de instituir o direito de acrescer em qualquer doação conjuntiva.  Dessa forma, o planejamento sucessório realizado por profissional da área jurídica deve considerar também a  possibilidade de direito de acrescer nas doações, em razão das vantagens que pode oferecer. ________ BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.  BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Senado Federal. Diário do Senado Federal, Brasília, DF, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23/6/25.  BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Autoria do Senador Rodrigo Pacheco. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível aqui. Acesso em: 23/7/25.  MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 5114298-78.2018.8.13.0024. Relator: Desembargador Wilson Benevides. 7ª Câmara Cível. Belo Horizonte, 20 de agosto de 2019. Publicado no Diário de Justiça em 26 ago. 2019. SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso Administrativo nº 0047796-79.2022. Relator: Desembargador André Carvalho. Florianópolis, 13 de outubro de 2023. SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 2011.029145-4. Relator: Desembargador Jairo Fernandes Gonçalves. Quinta Câmara de Direito Civil. Florianópolis, 08 de novembro de 2012. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1012088-83.2016.8.26.0037. Relator: Desembargador Pereira Calças. Conselho Superior da Magistratura. São Paulo, 15 de agosto de 2017. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 23 ago. 2017. TARTUCE, Flávio. Direito Civil-vol. 3 - 20ª Edição 2025. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p.405. ISBN 9788530996307. Disponível aqui. Acesso em: 6/9/25
1. Introdução Não há dúvidas quanto à importância do contrato de empreitada na construção civil, setor de grande relevância para o PIB nacional. A construção civil figurou como o terceiro setor de maior crescimento no PIB em 2024, ficando atrás apenas de Serviços de Informação e Comunicação (6,2%) e Outras Atividades de Serviços (5,3%), além de ocupar posição destacada na criação de vagas formais de emprego.1 O contrato de empreitada, embora não seja o único, e tampouco se restrinja à construção civil, é, sem dúvidas, um dos principais instrumentos jurídico-econômicos que dão sustentação a essa atividade, sobretudo por se aplicar tanto às relações civis-empresariais (como nos casos em que uma construtora contrata uma empreiteira), quanto às consumeristas (quando um particular contrata um empreiteiro). O referido contrato é disciplinado pelo CC de 2002, dos arts. 610 a 626. O PL 4/25, que propõe a revisão e atualização do Código, sugere alterações em dois desses dispositivos: o art. 618 e o art. 620. O primeiro deles, o art. 618, trata da responsabilidade do empreiteiro nos contratos de empreitada de "edifícios ou outras construções consideráveis". Diante de sua relevância e das controvérsias interpretativas que o cercam, faremos, neste breve estudo, uma análise crítica comparativa entre a norma vigente e aquela proposta pelo PL 4/25. 2. O art. 618 do CC vigente: interpretação e controvérsias O art. 618 atual possui a seguinte redação: Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito. Não são poucas as controvérsias que cercam a norma. Dentre elas: a) o tipo de construção a que se refere o artigo; b) quais modalidades de empreitada são contempladas pela norma; c) qual a natureza do prazo previsto em seu "caput" e em seu parágrafo único, e se são aplicáveis aos contratos de consumo; d) e que tipo de vício desafia a sua aplicação. Analisaremos brevemente cada uma destas questões a fim de mapear o estado atual da interpretação do artigo em comento. 2.a. Empreitada de edifícios e construções consideráveis O legislador de 2002 criou um conceito aberto ao mencionar, após o paradigma "edifícios", a expressão "outras construções consideráveis". Mais do que uma referência ao tamanho da construção - seja um grande prédio de apartamentos ou uma casa de oitenta metros quadrados de área construída -, tal expressão serve para afastar construções provisórias, como sustentam Cláudio Luiz Bueno de Godoy2 e Marco Aurélio Bezerra de Melo3. 2.b. Empreitada de materiais e construções O art. 618 primariamente faz referência às empreitadas mistas, ou seja, aquelas, constantes da segunda parte do "caput", do art. 6104, em que o empreiteiro fornece a mão-de-obra e o material. Logo, o empreiteiro que  tão somente fornece a mão-de-obra, não estaria sujeito ao prazo de garantia de cinco anos, do "caput", da norma, como entende a Doutrina dominante. Embora o art. esteja inserido no Capítulo VIII, que trata exclusivamente do contrato de empreitada, é de se mencionar a possibilidade de sua aplicação ao construtor ou aos contratos de construção. Segundo Cláudio Luiz Bueno de Godoy, ao se referir à "empreitada de edifícios ou outras construções", o dispositivo visa, sobretudo, delimitar a responsabilidade do construtor, que pode atuar por empreitada, por administração ou por conta própria. Aliás, o autor vai além ao sustentar que: Seja por empreitada (inclusive a de lavor), como por administração surge uma obrigação de resultado para o construtor, de executar a obra tal como lhe foi encomendada, de forma a garantir a sua solidez.5 No sentido da aplicabilidade ao construtor, há ainda o enunciado 34 da I Jornada de Direito Comercial: Com exceção da garantia contida no art. 618 do CC, os demais artigos referentes, em especial, ao contrato de empreitada (arts. 610 a 626) aplicar-se-ão somente de forma subsidiária às condições contratuais acordadas pelas partes de contratos complexos de engenharia e construção, tais como EPC, EPC-M e Aliança. 2.c. Natureza dos prazos do art. 618 e sua aplicabilidade ao CDC Não há dissenso doutrinário ou jurisprudencial relevante quanto à natureza do prazo previsto no caput do art. 618 do CC, o qual configura verdadeira garantia legal. Já o prazo estabelecido no parágrafo único, conforme expressamente indicado, tem natureza decadencial. O termo inicial da garantia legal é a data da entrega da obra; o prazo decadencial, por sua vez, conta-se do surgimento do vício ou defeito. Assim, segundo a norma vigente, caso o vício estrutural se manifeste dentro do prazo de cinco anos da garantia legal, o prejudicado dispõe de 180 dias, contados a partir da constatação do defeito, para propor a ação cabível, seja com o intuito de redibir o negócio e rejeitar a obra, seja para pleitear sua reparação. Merece destaque a hipótese de haver pretensão ressarcitória causada pelo defeito estrutural. Neste caso, é tranquila a aplicação do enunciado 181, da  III Jornada de Direito Civil do CJF com a seguinte redação: O prazo referido no art. 618, parágrafo único, do CC refere-se unicamente à garantia prevista no caput, sem prejuízo de poder o dono da obra, com base no mau cumprimento do contrato de empreitada, demandar perdas e danos. Quanto aos prazos para o exercício de pretensão ressarcitória, quer  no caso de relações civis/empresariais, ou consumeristas, não há uniformidade na doutrina e jurisprudência. Flávio Tartuce6 e Pablo Stolze/Rodolfo Pamplona7 entendem que o prazo prescricional para as relações civis é de três anos, conforme o art. 206, § 3.º, V, do CC, e de cinco anos, se a relação for de consumo, nos termos do art. 27 do CDC. Marco Aurélio Bezerra de Melo8, porém, considera inaplicável o art. 27, do CDC. Esta posição foi prestigiada pelo STJ, que entendeu pela aplicação da súmula 194 (em interpretação adaptada), com a aplicação do prazo decenal, em contrato consumerista.9 3. A proposta do PL 4/2025: avanços e limites Pelo PL 04/25, elaborada por uma comissão de notáveis juristas brasileiros, o art. 618 passaria a ter  seguinte redação: Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras  construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução estará sujeito ao regime dos vícios ocultos, durante o prazo irredutível de cinco anos, respondendo pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. § 1º Decairá do direito à garantia assegurada no caput dono de obra que não notificar o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente, no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contados do aparecimento do vício. § 2º A decadência do direito à garantia legal prevista neste artigo não extingue a pretensão de reparação de danos em face do  empreiteiro, sujeita ao prazo geral previsto neste Código. 3.a. O "caput", do novo art. 618 A cabeça do artigo manteve a mesma redação inicial, de modo que as questões suscitadas acerca da norma em vigor não foram aclaradas. Para tanto, talvez o dispositivo pudesse mencionar expressamente os contratos de empreitada para construção de imóveis e outras construções não transitórias. Seria igualmente desejável consignar que apenas o empreiteiro nas empreitadas mistas estaria sujeito à garantia legal. A referência explícita à natureza do prazo também pode ser salutar. O acréscimo da expressão "vícios ocultos", referentes à solidez e segurança do trabalho - incluindo, como na norma atual, menção aos materiais e ao solo -, já permite identificar tratar-se de garantia legal. Ainda quanto ao prazo, aplaude-se a sua manutenção em cinco anos, bem como sua irredutibilidade, independentemente do tipo de relação contratual - simétrica ou assimétrica - que se estabeleça. Nesse aspecto, mesmo que o dono da obra tenha maior poderio econômico, a assimetria informacional em favor do empreiteiro justifica a manutenção da garantia como regra de ordem pública. O acréscimo do termo inicial - entrega da obra - poderia ter sido incluído na proposta, embora não haja controvérsia relevante sobre isso, e tal ponto possa ser dessumido da interpretação sistemática (mormente a do art. 615). Considerando a lógica da própria Comissão Revisora, que, na Parte Geral dos Contratos, fez questão de distinguir os contratos empresariais, civis e de consumo - como se vê, por exemplo, no art. 421-B -, talvez fosse o caso de se inserir no art. 618 alguma referência ao CDC, o que poderá fazer diferença nos dois parágrafos agregados pelo Projeto (infra). 3.b) Notificação do empreiteiro e prazo decadencial (§1º) O parágrafo ora proposto mantém a previsão do prazo decadencial de 180 dias, cujo termo inicial é o surgimento do vício - que, por sua vez, deve ocorrer dentro do prazo de garantia de cinco anos. A novidade está na exigência de que o dono da obra, dentro desse interregno, notifique o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente. Como se explicitou no caput da proposta que os vícios estruturais são espécie dos vícios ocultos, há de se entender, com base no art. 542, modificado pelo mesmo PL 04/25, que a notificação visa à exigência de uma das providências ali previstas: I - rejeitar a coisa, resolvendo o contrato, sem prejuízo das perdas e danos; II - reclamar o abatimento no preço; ou III - salvo pacto em contrário, exigir que o vício seja sanado, mediante o custeio dos reparos, salvo se o alienante se dispuser a realizá-los diretamente ou por terceiro. 3.c) Pretensão de reparação de danos em face do empreiteiro (§2º) A redação deste novo parágrafo é merecedora de aplausos, por explicitar que os direitos de rejeitar a coisa, pedir abatimento ou exigir a reparação são os que estão sujeitos ao prazo decadencial de 180 dias. Já nos casos em que o defeito estrutural atinja a pessoa do dono da obra ou seus outros bens (como um telhado que destrua o seu carro, por exemplo), surgirá uma pretensão ressarcitória, sujeita, como tal, a prazo prescricional, conforme a lógica do CC. Trata-se, nesse caso, da prescrição decenal, prevista no art. 205 do CC, expressamente acolhida na parte final do parágrafo em estudo e já reconhecida pelo STJ. E se se tratar de relação de consumo? Quer-nos parecer que seria salutar - e possível, pelo diálogo das fontes entre os dois diplomas legais - que se explicitasse que a norma abarca os contratos de empreitada de consumo. Afinal, isso encerraria a discussão sobre a aplicabilidade da norma em comento ou do prazo quinquenal do art. 27 do CDC. 4. Considerações finais A proposta de alteração do art. 618 do CC, trazida pelo PL 04/25, representa avanço relevante ao esclarecer aspectos importantes da responsabilidade do empreiteiro, sobretudo ao integrar expressamente o regime dos vícios ocultos e ao reconhecer, com clareza, a distinção entre decadência da garantia legal e prescrição da pretensão indenizatória. Ainda assim, algumas lacunas permanecem, notadamente quanto à delimitação do tipo de empreitada sujeita à garantia, à expressa menção ao marco inicial do prazo e à aplicabilidade da norma às relações de consumo. Com base nas reflexões desenvolvidas ao longo deste artigo, propõe-se, para reflexão e debate, a seguinte redação alternativa para o art. 618: Art. 618. Nos contratos de empreitada mista para construção de imóveis ou de outras construções não transitórias, o empreiteiro será responsável, nos termos da presente Seção, pelos vícios ocultos que comprometam a solidez e a segurança da obra, em razão dos materiais, da mão de obra ou do solo, pelo prazo irredutível de cinco anos, contados da entrega da obra. § 1º O dono da obra deverá notificar o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente, no prazo de cento e oitenta dias, a contar da constatação do vício, para exercer os direitos previstos no art. 542 deste Código. § 2º A decadência do direito à garantia legal prevista neste artigo não impede a pretensão de reparação de danos, sujeita ao prazo prescricional do art. 205, deste Código, independentemente de se tratar de contrato civil, empresarial ou de consumo. _______ Referências bibliográficas. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Agravo em Recurso Especial n.º 1.897.767 - CE. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, DF, 25 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 jul. 2025. FEICOM. Entendendo a participação da construção civil no PIB brasileiro. Disponível aqui. Acesso em: 30 jul. 2025. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. Novo curso de direito civil - v. 4 - Contratos. 8. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025. SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025. TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 20. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2025. 1 In: FEICOM: Disponível aqui. Acesso em 30/7/2025. 2 GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025, p. 618. 3 SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025. 4 Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais. 5 GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Coord. CEZAR PELUSO. 19. ed., rev. e atual. Barueri [SP]: Manole, 2025, p. 619. 6 TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 20. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2025., p. 571. 7 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. Novo curso de direito civil - v. 4 - Contratos. 8. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 408. 8 SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6. ed., rev., atual. e ampl. [3. reimp.]. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 483. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Agravo em Recurso Especial n.º 1.897.767 - CE. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, DF, 25 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30/7/2025.
1. Histórico Vicenzo Roppo observa que o contrato possui duas dimensões, a jurídica e a econômico-social. As trocas de valor econômico e de relevância social utilizam como substrato jurídico o contrato. Por isso mesmo, o autor, com base no CC italiano1, define o contrato como "a veste jurídico-formal de operações econômicas"2. Diante dessa perspectiva, a dimensão econômica é inseparável ao contrato, pois toda prestação contratual, mesmo nos contratos gratuitos, envolve conteúdo patrimonial. A gratuidade é dispensa de acréscimo patrimonial. Roppo conclui que "onde não há operação econômica, não pode haver também contrato"3. No Direito Romano, como lembra José Carlos de Moreira Alves4, nem todo acordo lícito gerava obrigações: havia contratos (contractus), que as produziam, e pactos (pactum), que em regra não criavam obrigações. A formalidade era requisito central. Hoje, por outro lado, vigora o art. 107 do CC, segundo o qual a declaração de vontade só exige forma especial quando a lei determinar. A forma é secundária nos negócios jurídicos, gênero do qual os contratos são a espécie mais relevante, e a manifestação de vontade assume o papel protagonista. Historicamente, o contrato evoluiu de rituais solenes à valorização da vontade, como nota Manoel Ignacio5. A boa-fé passou a residir no compromisso assumido, não no formalismo. A ideia de conteúdo econômico do contrato, mormente às trocas de valor econômico, é, em essência, intimamente conectada com a noção de segurança, ou confiança, no seu cumprimento, e privilegia a vontade como mote do contrato, ainda que esta seja mitigada por necessárias normas de ordem pública. Álvaro Villaça Azevedo6 expõe que a força obrigatória dos contratos é um de seus princípios informadores. Trata-se da noção de que o contrato tem força obrigatória entre as partes que dele participam. O autor ensina que os pretores romanos passaram a adotar a ideia de que os pactos devem ser cumpridos, resumida no princípio pacta sunt servanda, e, assim, incute-se o conceito de que todas as convenções são obrigatórias. Os contratos atraem verdadeira força de lei entre as partes. Na Idade Média, como destaca Otávio Luiz Rodrigues Junior7, a influência canônica relativizou a obrigatoriedade do contrato, tão rígida em tempos anteriores, favorecendo valores católicos, supremos nas sociedades feudais europeias, como o desapego às riquezas materiais e a prevalência ao afeto livre de interesses. Surge, por interpretação dos membros da Escola dos Pós-Glosadores, a cláusula rebus sic stantibus8 - os contratos valem "enquanto as coisas permanecerem assim" - que atenua o princípio do pacta sunt servanda. A Revolução Francesa, ápice do iluminismo e do liberalismo, reforçou a liberdade contratual e afastou a intervenção estatal. O contrato tornou-se símbolo dessa liberdade, reduzindo a possibilidade de revisão judicial. Paulo Lôbo9 observa, porém, que tal liberdade favoreceu os mais fortes, permitindo abusos. No início do século XX, a Primeira Guerra Mundial rompeu a estabilidade característica dos séculos anteriores. Caso emblemático foi decidido pelo Conselho de Estado francês (Conseil d'État - a instância final dos Tribunais Administrativos da França) em 1916, envolvendo a Prefeitura de Bordeaux e a Companhia de Gás da Cidade de Bordeaux (Compagnie Générale d'Eclairage): a Guerra elevou o custo do carvão, principal combustível utilizado para o transporte do gás, inviabilizando o preço fixo contratual estabelecido em tempos de paz. A empresa foi indenizada, o que inspirou a edição da lei Faillot (1918), que passou a admitir expressamente a possibilidade de revisão excepcional de contratos firmados antes do conflito e que tinham suas prestações sucessivas diferidas no tempo de guerra, sob a justificativa da imprevisibilidade do evento. A partir daí, consolidaram-se teorias revisionistas: a teoria da imprevisão (França), da mudança da base do negócio (Alemanha), da onerosidade excessiva (Itália) e a frustration of contract (Inglaterra), todas releituras da antiga cláusula medieval rebus sic stantibus. José Fernando Simão10 sintetiza que alterações relevantes entre celebração e execução podem exigir reequilíbrio das prestações ou, diante da impossibilidade de revisão, a resolução do contrato. Inocêncio Galvão Telles11 observa que as partes contratam com base nas circunstâncias conhecidas; alteração profunda dessas circunstâncias pode afastar a obrigatoriedade do pacto. Nos códigos civis oitocentistas, influenciados pelo liberalismo, não havia previsão expressa de revisão judicial. O CC brasileiro de 1916 seguiu essa linha, mas Clovis Bevilaqua12, já em 1930, admitia a necessidade de previsão legal para revisão, com uso parcimonioso, fundamentando-a na boa-fé. Assim, as transformações do século XX legitimaram a revisão contratual para restabelecer o equilíbrio pretendido inicialmente pelas partes, reconhecendo que a vontade não é imutável quando fatos supervenientes a alteram substancialmente. 2. CC de 2002 O CC vigente, aprovado em 2002, embora concebido desde 1969, foi fruto de tramitação em período de regime ditatorial, contexto que, pela ausência de liberdade de debate e presença de censura estatal, transmitia sensação de estabilidade. Talvez por isso, não previu um regime jurídico expresso para a revisão contratual, embora seja possível identificá-lo por interpretação sistemática de diversos dispositivos. A estrutura do CC (lei 10.406/02) divide-se em Parte Geral e Parte Especial. Na Parte Especial, o Direito das Obrigações, entre os arts. 421 a 817, regula os contratos civis e empresariais. A teoria geral dos contratos está nos arts. 421 a 480, seguida dos contratos em espécie. O Título V, dedicado à parte geral dos contratos, não contempla capítulo específico para revisão, restringindo-se ao Capítulo II, que versa apenas sobre a extinção do contrato. Apesar disso, doutrina e jurisprudência utilizam dispositivos como fundamento para a revisão. O art. 317 estabelece que "quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo...". Esse dispositivo, situado na seção sobre objeto do pagamento, surgiu como exceção ao nominalismo (art. 315) e à cláusula de escala móvel (art. 316), permitindo que o juiz fixasse correção monetária quando não pactuada pelas partes, de modo a assegurar o "valor real da prestação" frente à inflação. Miguel Reale13, ao apresentar os princípios que nortearam o código - operabilidade, sociabilidade e eticidade - destacou que este último orienta a aplicação de critérios éticos e a valorização da boa-fé, da justa causa e do equilíbrio nas relações jurídicas. Esse viés interpretativo possibilitou ampliar o art. 317 para além da inflação, transformando-o em cláusula geral de revisão contratual. Como afirma José Fernando Simão, "a doutrina viu no dispositivo uma cláusula geral de revisão da prestação contratual que se altera entre a formação e a execução"14. Assim, o dispositivo passou a servir para reequilibrar o sinalagma nos contratos de execução continuada, permitindo ao juiz intervir para restaurar as prestações ao estado original ajustado. Para sua aplicação, exige-se: (i) manifesta desproporção entre o valor na celebração e na execução; e (ii) origem dessa desproporção em motivo imprevisível. O contrato nasce equilibrado; o desequilíbrio surge no plano da eficácia, não havendo vícios de vontade como erro, dolo ou coação. A interpretação doutrinária, consolidada no enunciado 17 da I Jornada de Direito Civil15, admite que o requisito da imprevisibilidade inclua eventos previsíveis, mas de resultados imprevisíveis, o que amplia o alcance da teoria da imprevisão. Além do art. 317, os arts. 478 e 479, localizados no capítulo da "Resolução por Onerosidade Excessiva", preveem hipótese de revisão para evitar a resolução. O art. 478 permite a resolução de contrato de execução continuada ou diferida se a prestação se tornar excessivamente onerosa para uma parte e extremamente vantajosa para a outra, por eventos extraordinários e imprevisíveis. Anderson Schreiber16 sustenta tratar-se de espécie autônoma de extinção contratual, não vinculada ao inadimplemento, mas ao desequilíbrio durante a execução. Os requisitos são rigorosos: contrato de execução continuada ou diferida; onerosidade excessiva para uma parte; extrema vantagem para a outra; e ocorrência de eventos extraordinários e imprevisíveis. A doutrina, contudo, flexibiliza dois deles: a extrema vantagem, considerada elemento acidental (enunciado 365 da IV Jornada)17, e a noção de extraordinariedade, interpretada à luz do risco assumido pelas partes no momento da contratação. Já o art. 479 concede ao credor o direito potestativo de afastar a resolução, propondo reequilibrar a prestação. Se o devedor discordar, deve provar que a proposta não restabelece o equilíbrio. O juiz, nessa hipótese, limita-se a verificar se o sinalagma foi recomposto; se sim, revisa-se o contrato; se não, resolve-se. Schreiber18 destaca que o dispositivo confere faculdade ao credor, embora parte da doutrina veja nele abertura para revisão judicial ampla. Adota-se aqui posição restritiva: o art. 479 é exceção ao pedido de resolução do devedor; o fundamento geral para revisão está no art. 317. Em sentido contrário, Álvaro Villaça Azevedo19 defende que a revisão judicial só cabe nos casos dos arts. 478 e 479, preservando a autonomia da vontade e evitando que o juiz crie obrigações não pactuadas. O art. 620 do CC prevê modalidade especial de revisão no contrato de empreitada por preço global: se o preço do material ou da mão de obra diminuir mais de um décimo do valor convencionado, o dono da obra pode pedir revisão para assegurar a diferença. Nesse caso, preserva-se a vontade contratada, mas a lei fixa parâmetro objetivo de reequilíbrio. O art. 421-A, III, incluído pela lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), dispõe que "a revisão contratual é medida excepcional e limitada", reforçando a preservação da autonomia privada, mas reconhecendo a possibilidade de intervenção judicial quando necessário para restabelecer o equilíbrio contratual. Em síntese, o CC de 2002 admite revisão contratual por decisão judicial, desde que limitada a recompor o equilíbrio buscado pelas partes na celebração do contrato, imprescindível os requisitos legais. Quando impossível o reequilíbrio, impõe-se a extinção. 3. Código projetado Em 2024, a Comissão de Juristas convocada pelo Senado incluiu na proposta de reforma do CC dispositivos que tratam expressamente da revisão judicial. O art. 317 passaria a ter a seguinte redação: "Se, em decorrência de eventos imprevisíveis, houver alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a constituição da obrigação e que isto gere onerosidade excessiva, excedendo os riscos normais da obrigação, para qualquer das partes, poderá o juiz, a pedido do prejudicado, corrigi-la...". O parágrafo único prevê a consideração de eventos previsíveis de resultados imprevisíveis. José Fernando Simão20 observa que a alteração encerra discussão minoritária segundo a qual o art. 317 só se aplicaria à correção monetária. A reforma positivaria a interpretação já adotada pela doutrina majoritária e pela jurisprudência: trata-se de cláusula geral de revisão para qualquer desequilíbrio que gere onerosidade excessiva, desde que proveniente de eventos imprevisíveis. A proposta amplia a possibilidade de revisão pelo juiz, mas limita-a a hipóteses em que o cumprimento se torne excessivamente oneroso em razão de fatos que ultrapassem os riscos normais da contratação, respeitados os riscos típicos da modalidade negocial. O art. 478 projetado, inspirado no conceito alemão de Geschäftsgrundlage (base do negócio), prevê que, em contratos de execução continuada ou diferida, havendo alteração superveniente das circunstâncias por eventos imprevisíveis que gerem onerosidade excessiva além dos riscos normais, o devedor pode pedir revisão ou resolução. Diferentemente da matriz alemã, mantém-se o requisito da imprevisibilidade, vinculado à condição concreta do contratante, de forma a afastar riscos inerentes ao negócio. O art. 479 projetado mantém o caput atual, permitindo que o credor evite a resolução oferecendo reequilíbrio. A novidade é o parágrafo único: se o devedor requerer revisão (com base no art. 478), o credor poderá pedir a extinção, desde que prove que a manutenção prejudicaria a função social ou econômica do contrato, a boa-fé, acarretaria sacrifício excessivo ou frustraria sua finalidade. Portanto, o art. 317, parte geral das obrigações, tratará da norma geral que permite, expressamente, a revisão das obrigações por terceiros, ao passo que o art. 478, teoria do contrato, tratará da revisão contratual especificamente. Assim, o novo regime privilegia a clareza e a objetividade, positivando em lei entendimentos doutrinários consolidados, mas delimitando hipóteses de intervenção judicial para preservar a autonomia privada. A revisão contratual permanece medida excepcional, voltada a restabelecer o sinalagma quando rompido por eventos de efeitos imprevisíveis. 4. Conclusão As alterações propostas pela Comissão reforçam a segurança jurídica e a coerência do sistema, trazendo clareza aos arts. 317, 478 e 479, e alinhando a legislação à doutrina e à jurisprudência. A nova redação preserva a vontade das partes, limita a intervenção judicial e assegura que a revisão atue no plano da eficácia, restabelecendo o equilíbrio original ou, se inviável, permitindo a extinção do contrato. _______ 1 O código Civil italiano dispõe em seu artigo 1.321 que "o contrato é o acordo de duas ou mais partes a fim de constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica patrimonial entre as partes". 2 ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 7. 3 Idem. 4 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 18ª edição. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2018, p 469. 5 MENDONÇA, Manoel Ignacio Carvalho de. Contractos no Direito Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1911, p. 22. 6 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos, 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2002, p. 25. 7 RODRIGUES, Otávio Luiz Junior. Revisão Judicial dos Contratos, 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2006, p. 3. 8 A cláusula Rebus sic stantibus é proveniente da locução contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur. 9 LÔBO, Paulo. Direito Civil Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 39. 10 SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. 2020. Artigo publicado na coluna Migalhas Contratuais, p. 8. Disponível aqui, com acesso em 06 de dezembro de 2024. 11 TELLES, Inocêncio Galvão. Manual de Direito das Obrigações. Coimbra: Coimbra Editora, 1965, p. 223. 12 BEVILAQUA, Clovis. Evolução da Theoria dos Contractos em nossos dias. São Paulo: Revista da Faculdade de São Paulo, nº 34, 1938, p. 66. 13 REALE, Miguel. O Projeto do novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. 14 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de janeiro: Gen forense, 2025, p. 234. 15 Enunciado nº 17 da I Jornada de Direito Civil: "A interpretação da expressão "motivos imprevisíveis" constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não-previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis." Disponível aqui, com acesso em 06 de dezembro de 2024. 16 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de janeiro: Gen forense, 2025, p. 368. 17 Enunciado nº 365 da IV Jornada de Direito Civil: "A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena." Disponível aqui, com acesso em 06 de dezembro de 2024. 18 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de janeiro: Gen forense, 2025, p. 374. 19 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos, 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2002, p. 36. 20 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de janeiro: Gen forense, 2025, p. 244.
O contrato de empréstimo pode ser conceituado como o negócio jurídico pelo qual uma pessoa entrega uma coisa a outra, de forma gratuita, obrigando-se esta a devolver a coisa emprestada ou outra de mesma espécie e quantidade. O negócio em questão é um exemplo claro de contrato unilateral e gratuito, abrangendo duas espécies: a) o comodato, empréstimo de bem infungível e inconsumível, em que a coisa emprestada deverá ser restituída findo o contrato (empréstimo de uso); e b) o mútuo, empréstimo de bem fungível e consumível, em que a coisa é consumida e desaparece, devendo ser devolvida outra de mesma espécie e quantidade (empréstimo de consumo). Os dois contratos de empréstimo, além de serem unilaterais e gratuitos ou benéficos, em regra, são ainda negócios comutativos, informais e reais. A última característica decorre do fato de que esses contratos têm aperfeiçoamento com a entrega da coisa emprestada (tradição ou traditio). Isso desloca a tradição do plano da eficácia para o plano da validade do negócio jurídico em questão. Como já se adiantou, o objeto principal deste texto, o comodato, é um contrato unilateral, benéfico e gratuito em que alguém entrega a outra pessoa uma coisa infungível, para ser utilizada por um determinado tempo e devolvida findo o contrato. Justamente por isso, fala-se em empréstimo de uso, e, por razões óbvias, o contrato pode ter como objeto bens móveis ou imóveis, pois ambos podem ser infungíveis ou insubstituíveis. A parte que empresta a coisa é denominada comodante, enquanto a que recebe é o comodatário. O contrato é intuitu personae, baseado na fidúcia, na confiança do comodante em relação ao comodatário. Não exige sequer forma escrita, sendo contrato não solene e informal. Um dos dispositivos mais importantes na codificação privada em vigor a respeito do comodato é o seu art. 582, que atualmente tem a seguinte dicção: "o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante". O preceito consagra deveres do comodatário e consequências advindas da sua violação. Nesse contexto, a parte final do art. 582 do CC consagra penalidades nos casos em que o bem não é devolvido pelo comodatário, pois o comodatário constituído em mora persona, além de responder pela coisa emprestada, pagará, até restituí-la, o aluguel que for arbitrado pelo comodante. As consequências da mora do devedor estão previstas no art. 399 da própria codificação privada, respondendo o comodatário no caso em questão por caso fortuito e força maior, a não ser que prove a ausência de culpa ou que a perda do objeto do contrato ocorreria mesmo se não estivesse em atraso. Essas penalidades são bem delineadas pela jurisprudência, podendo ser citado e ilustrado importante acórdão do Superior Tribunal de Justiça do ano de 2022. O caso disse respeito a condomínio comum e comodato, sendo a sua tese principal a seguinte: "o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, dos proprietários que permaneceram na posse exclusiva do bem, os quais, caso não notificados extrajudicialmente, podem ser constituídos em mora por meio da citação nos autos da ação de arbitramento dos aluguéis". Vejamos trecho da sua ementa, que trata de hipótese de condomínio decorrente de casamento: "[...]. Quanto ao dever de pagar aluguéis aos comodatários, a jurisprudência do STJ orienta que 'se houve prévia estipulação do prazo do comodato, o advento do termo previsto implica, de imediato, no dever do comodatário de proceder à restituição da coisa. Não o fazendo, incorrerá o comodatário automaticamente em mora (mora ex re). Sua posse sobre o bem, anteriormente justa em razão da relação jurídica obrigacional, converte-se em injusta e caracteriza esbulho possessório. [...] De outro turno, na ausência de ajuste acerca do prazo, o comodante, após o decurso de tempo razoável para a utilização da coisa, poderá promover a resilição unilateral do contrato e requerer a restituição do bem, constituindo o comodatário em mora mediante interpelação, judicial ou extrajudicial, na forma do art. 397, parágrafo único, do CC/02 (mora ex persona). O esbulho possessório se caracterizará se o comodatário, devidamente cientificado da vontade do comodante, não promover a restituição do bem emprestado. [...] O comodatário constituído em mora, seja de forma automática no vencimento ou mediante interpelação, está submetido a dupla sanção, conforme prevê o art. 582, segunda parte, do CC. Por um lado, recairá sobre ele a responsabilidade irrestrita pelos riscos da deterioração ou perecimento do bem emprestado, ainda que decorrente de caso fortuito ou de força maior. Por outro, deverá o comodatário pagar, até a data da efetiva restituição, aluguel pela posse injusta da coisa, conforme arbitrado pelo comodante' (REsp 1.662.045/RS, Relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2017, DJe 14/9/2017). [...]. E ainda, 'o pagamento de aluguéis não envolve discussão acerca da licitude ou ilicitude da conduta do ocupante. O ressarcimento é devido por força da determinação legal segundo a qual a ninguém é dado enriquecer sem causa à custa de outrem, usufruindo de bem alheio sem contraprestação' (REsp 1.613.613/RJ, Relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/6/2018, DJe 18/6/2018). Portanto, na linha dos precedentes antes citados, cessado o comodato, por meio de notificação judicial ou extrajudicial, o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, devida pelos proprietários e comodatários que permaneceram na posse exclusiva do bem, medida necessária para evitar o enriquecimento sem causa da parte que usufrui da coisa. Sobre a forma de constituição em mora do comodatário e quanto ao termo inicial de apuração do pagamento, o entendimento desta Corte Superior, em se tratando de 'comodato precário - isto é, sem termo certo - [...] a constituição do devedor em mora reclamará, no caso, a prévia notificação judicial ou extrajudicial (mora ex persona), com a estipulação de prazo razoável para a restituição da coisa, cuja inobservância implicará a caracterização do esbulho autorizador do interdito possessório' (REsp 1.327.627/RS, Relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 1º/12/2016). No entanto, 'nos termos da jurisprudência desta Corte, a citação pode ser admitida como sucedâneo da interpelação para fins de constituição do devedor em mora' (AgRg no AREsp 652.630/SC, Relator ministro Moura Ribeiro, Terceira turma, DJe 06/11/2015). Nesse contexto, em relação ao termo inicial do arbitramento dos aluguéis, no comodato precário, em regra, 'o marco temporal para o cômputo do período a ser indenizado [...] é a data da citação para a ação judicial de arbitramento de aluguéis, ocasião em que se configura a extinção do comodato gratuito que antes vigorava' (REsp 1.375.271/SP, Relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 21/09/2017, DJe 02/10/2017)" (STJ, REsp 1.953.347/SP, 4.ª turma, Rel. min. Antonio Carlos Ferreira, por unanimidade, j. 9/8/2022). Como se pode perceber, são citados na decisão outros importantes precedentes superiores a respeito do contrato em estudo, e que servem como orientação para a sua aplicação na prática. Exatamente como se retira dos acórdãos superiores, em relação ao aluguel fixado pelo comodante, geralmente quando da notificação efetivada por ele quanto ao comodatário, tem ele caráter de penalidade, não sendo o caso de se falar em conversão do comodato em locação. Referente à fixação desse aluguel-pena, prevê o enunciado 180, aprovado na III Jornada de Direito Civil, que "a regra do parágrafo único do art. 575 do novo CC, que autoriza a limitação pelo juiz do aluguel arbitrado pelo locador, aplica-se também ao aluguel arbitrado pelo comodante, autorizado pelo art. 585, 2.ª parte, do novo CC". Pelo teor do enunciado, portanto, será facultado ao juiz reduzir o aluguel arbitrado pelo comodante se ele for excessivo, a exemplo do que ocorre com a locação regida pelo CC. Correto julgado do STJ, do ano de 2012, estabeleceu muito bem tal correlação, deduzindo o seguinte: "[...]. A natureza desse aluguel é de uma autêntica pena privada, e não de indenização pela ocupação indevida do imóvel emprestado. O objetivo central do aluguel não é transmudar o comodato em contrato de locação, mas sim coagir o comodatário a restituir o mais rapidamente possível a coisa emprestada, que indevidamente não foi devolvida no prazo legal. O arbitramento do aluguel-pena não pode ser feito de forma abusiva, devendo respeito aos princípios da boa-fé objetiva (art. 422/CC), da vedação ao enriquecimento sem causa e do repúdio ao abuso de direito (art. 187/CC). Havendo arbitramento em valor exagerado, poderá ser objeto de controle judicial, com eventual aplicação analógica da regra do parágrafo único do art. 575 do CC, que, no aluguel-pena fixado pelo locador, confere ao juiz a faculdade de redução quando o valor arbitrado se mostre manifestamente excessivo ou abusivo. Para não se caracterizar como abusivo, o montante do aluguel-pena não pode ser superior ao dobro da média do mercado, considerando que não deve servir de meio para o enriquecimento injustificado do comodante" (STJ, REsp 1.175.848/PR, Rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18/9/2012, publicado no seu Informativo 504). Como se observa, há total sintonia entre o entendimento jurisprudencial exposto e a posição majoritária da doutrina, consubstanciada no citado enunciado, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, por proposição do próprio ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que foi o relator do último acórdão e teve participação ativa em várias Jornadas de Direito Civil. No que diz respeito à primeira parte do art. 582 do CC, traz ele a regra pela qual o comodatário deve conservar a coisa emprestada como se sua fosse. O comodatário não pode, ainda, usá-la em desacordo com o que prevê o contrato ou a própria natureza da coisa, sob pena de responder, de forma integral, pelas perdas e danos que o caso concreto indicar. O dispositivo impõe ao comodatário as obrigações de guardar e conservar a coisa, uma verdadeira obrigação de fazer, bem como a obrigação de não desviar o uso da coisa, uma obrigação de não fazer. Em continuidade de análise do tema, desse dispositivo retira-se a conclusão segundo a qual o comodatário deve arcar com as despesas de conservação da coisa, caso dos impostos que sobre ela recaem e do IPTU relativo ao imóvel emprestado. Nessa linha, tem-se julgado, de forma correta, que "é dever do comodatário arcar com as despesas decorrentes do uso e gozo da coisa emprestada, assim como conservar o bem como se seu fosse, não implicando a referida responsabilidade em enriquecimento ilícito do comodante" (STJ, Ag. Int. no AREsp 1.657.468/SP, 4.ª turma, Rel. min. João Otávio de Noronha, j. 21/8/2023, DJe 23/8/2023). O desrespeito a esses deveres, além de gerar a imputação das perdas e danos, poderá motivar a rescisão contratual por inexecução voluntária do contrato, ou seja, a resolução por inadimplemento. A obrigação do comodatário é cumulativa ou conjuntiva, pois o desrespeito a qualquer um desses deveres é motivo suficiente para a resolução contratual. Como se pode notar, muitas são as consequências jurídicas que constam do conteúdo do art. 582 da Lei Geral Privada, havendo proposta no Projeto de Reforma do Código Civil elaborada pela Comissão de Juristas para que ele fique mais bem organizado, com dois novos parágrafos. Nesse contexto, de seu necessário aperfeiçoamento, o seu caput passará a prever que "o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos". A previsão a respeito da constituição em mora ex persona passará a integrar o § 1º do preceito, mencionando-se expressamente o "aluguel-pena", na linha da doutrina e da jurisprudência aqui antes expostas: "o comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel-pena pelo uso da coisa que for arbitrado pelo comodante". Por fim, o § 2º do art. 582 do CC preverá, em consonância com o enunciado 180, da III Jornada de Direito Civil e em sua correta leitura, que, "se o aluguel-pena arbitrado unilateralmente pelo comodante for manifestamente excessivo, deverá o julgador reduzi-lo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio, bem como o seu caráter de penalidade". Além da melhora de redação, como se pode perceber, coloca-se no texto da lei o entendimento hoje considerado majoritário, por doutrina e jurisprudência nacionais, trazendo maior segurança jurídica e estabilidade para as relações privadas, uma das linhas seguidas pelo PL do CC. Com outro tema relevante para o comodato, e ressaltando o caráter gratuito do contrato, o comodatário não poderá, em hipótese alguma, recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e o gozo da coisa emprestada, como está hoje expresso no art. 584 do CC. Em relação a tal comando há enorme polêmica a respeito das benfeitorias. Por ser o comodatário possuidor de boa-fé - diante da existência de um justo título (art. 1.201, parágrafo único, do CC/2002) -, em regra, terá direito à indenização e direito de retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis, conforme o art. 1.219 do próprio CC. Além disso, poderá levantar as benfeitorias voluptuárias, se isso não danificar o bem. Contudo, podem as partes, em contrato paritário, prever o contrário, sendo perfeitamente válida a cláusula nesse sentido em tais contratos plenamente discutidos. De toda a sorte, há julgados que apontam que o comodatário não tem direito a ser indenizado por tais benfeitorias, pela norma do art. 584 da codificação privada, a saber: "Reintegração de posse. Comodato verbal. Imóvel utilizado para exercício de atividade empresarial. Benfeitorias realizadas em proveito do comodatário, cuja finalidade era adequar o imóvel a atividade exercida. Inexistência do dever de indenizar. Desnecessidade de prova pericial. Inteligência do artigo 584 do Código Civil. Manutenção da sentença. Desprovimento do apelo" (TJ/RJ, Apelação 2009.001.16394, 1.ª Câmara Cível, Rel. des. Vera Maria Soares Van Hombeeck, j. 14.04.2009, DORJ 27/4/2009, p. 116). "Contrato. Comodante. Imóvel. Pretensão a indenização por benfeitorias. Inadmissibilidade, mesmo em face da revelia dos réus, que apresentaram contestação e reconvenção intempestivas. Inteligência do disposto no art. 584 do CC" (TJ/SP, Apelação Cível 7276634-2, Acórdão 3590228, 14.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. des. José Tarcisio Beraldo, j. 25/3/2009, DJE/SP 2/6/2009). Entretanto, a questão não é pacífica na própria jurisprudência, havendo julgados que reconhecem a possibilidade de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis no comodato (nesse sentido, ver: TJ/SP, Agravo de Instrumento 7301347-5, Acórdão 3628632, 20.ª Câmara de Direito Privado, Mogi Mirim, Rel. des. Cunha Garcia, j. 09.03.2009, DJE/SP 9/6/2009; TJ/MG, Apelação Cível 1.0514.07.024211-0/0011, 16.ª Câmara Cível, Pitangui, Rel. des. Nicolau Masselli, j. 22/4/2009, DJE/MG 5/6/2009). Estou há tempos filiado aos últimos julgados, mais condizentes com a proteção do possuidor de boa-fé. Em suma, o art. 1.219 do CC prevalece sobre o art. 584 da codificação privada, diante da própria principiologia adotada pela norma geral privada, sobretudo pela eticidade e contínua valorização da boa-fé. Com o fim de resolver mais um dilema prático, o PL do CC pretende inserir um parágrafo único no seu art. 584, adotando a última solução, com o seguinte texto: "o comodatário não tem direito a indenização por benfeitorias realizadas sem o expresso consentimento do comodante, salvo as que forem necessárias". Aguarda-se, portanto, a sua aprovação pelo Parlamento brasileiro, novamente para resolver pendência que existe na teoria e na prática.
A relação entre advogado e cliente é, por sua própria essência, um elo de confiança mútua. Essa premissa, fundamental para o exercício da advocacia, é o pilar que sustenta recentes decisões judiciais que rechaçam a aplicação de cláusulas penais em contratos de prestação de serviços advocatícios, mesmo quando a rescisão ocorre unilateralmente. Neste sentido, os Tribunais Estaduais estão alinhados à pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um caso concreto ilustra bem a importância da discussão. Em processo que tramitou no Paraná, os contratantes de serviços advocatícios que buscaram a declaração de validade e o pagamento de uma cláusula penal, sob a alegação de rescisão unilateral injustificada do contrato por parte dos advogados. Os réus, por sua vez, argumentaram que a rescisão se deu pelo exercício regular de um direito. A controvérsia central, portanto, girava em torno da exigibilidade de uma cláusula penal existente no contrato, em prol dos contratantes-clientes, em virtude da resilição unilateral do contrato de prestação de serviços advocatícios por parte dos causídicos. A ação foi julgada improcedente. A sentença, em consonância com o Código de Ética e Disciplina da OAB, ressaltou a natureza fiduciária e personalíssima do mandato advocatício. Isso porque, o artigo 16 do Código de Ética permite que o advogado renuncie ao patrocínio, sem a necessidade de motivar sua decisão, enquanto o artigo 17 garante ao cliente o direito de revogar o mandato. Essa liberdade de desconstituição do vínculo reflete a essencialidade da confiança recíproca. Se essa confiança é abalada, a continuidade da relação se torna inviável, independentemente de quem tome a iniciativa da rescisão. A cláusula penal, em sua essência, possui natureza acessória e é destinada a sancionar o inadimplemento contratual. No entanto, a rescisão unilateral de um contrato de honorários advocatícios, seja por renúncia do advogado ou revogação do cliente, não configura inadimplemento. Pelo contrário, trata-se do exercício de um direito potestativo, ou seja, um direito que se impõe à outra parte, que não pode se opor a ele. No caso analisado, a própria parte autora reconheceu que os advogados cumpriram com zelo os serviços contratados até o momento da rescisão. A iniciativa dos causídicos em resilir o contrato decorreu da tentativa frustrada de reequilíbrio econômico dos honorários, após quase cinco anos de duração da relação contratual. Reconheceu-se que a cláusula penal não se aplica a essas situações, pois a sua incidência afrontaria o direito de qualquer das partes em revogar ou renunciar a um contrato em que a confiança já não mais subsiste. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) corrobora esse entendimento. Precedentes relevantes, como o REsp 1.346.171/PR, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, e outros tantos (REsp 1.882.117/MS, AgInt no AREsp 1.353.898/SP), são unânimes em vedar a aplicação de cláusula penal nessas hipóteses. A tese firmada é clara: "Não é possível a estipulação de multa no contrato de honorários para as hipóteses de renúncia ou revogação unilateral do mandato do advogado, independentemente de motivação, respeitado o direito de recebimento dos honorários proporcionais1 ao serviço prestado." Isso significa que a advocacia, ao contrário de uma atividade puramente mercantil, é pautada na confiança. A ruptura do vínculo, por renúncia ou revogação, não pode gerar penalidade, sob pena de desvirtuar a própria natureza da relação. É fundamental ressaltar que a inaplicabilidade da cláusula penal não significa que o advogado não terá direito a qualquer remuneração. Pelo contrário, a jurisprudência é firme em assegurar o recebimento dos honorários proporcionais aos serviços efetivamente prestados até o momento da rescisão. Esse é o justo equilíbrio entre a liberdade de desconstituição do mandato e a remuneração pelo trabalho já realizado. Em suma, sempre é preciso reafirmar a prevalência da confiança na relação advogado-cliente sobre as estipulações de cláusula penal em casos de rescisão unilateral pelo advogado. Trata-se de um importante balizador para a segurança jurídica e para a manutenção dos princípios éticos e profissionais que regem a advocacia brasileira.
Infelizmente, fraudes contra consumidores, no Brasil, são um lugar comum. E não somente contra eles. Um país tão extenso, com uma população que supera a casa de duzentos milhões de habitantes, e com graves falhas na educação formal, o Brasil é uma espécie de buffet para a atuação de quadrilhas, ou do crime organizado, no que diz respeito a crimes cometidos através do ambiente digital. O Estado é visivelmente insuficiente na prevenção criminal, não obstante o esforço hercúleo de muitos integrantes das forças de seguranças pátrias. Com a migração da vida ao mundo eletrônico, da internet e das redes sociais, impulsionado pelos árduos tempos de isolamento do Covid-19, houve uma fragilização geral sob o aspecto da proteção digital pessoal, e, de outro lado, uma sofisticação gigantesca por parte dos meliantes cibernéticos. Consoante informa o Serasa, em 2024, metade dos brasileiros foi vítima de algum golpe, e 54% desse grupo sofreu algum prejuízo financeiro com uso indevido de cartões de crédito, pagamento de boletos falsos, transações fraudulentas via Pix, phishing, emails ou mensagens fraudulentas que induzem ao roubo de dados.1 Nesse caso, observa-se que o setor privado, não tem realizado os aportes eficientes na proteção de seus clientes de ataques hackers, de estelionatários, desde o sistema bancário até as empresas mantenedoras das redes sociais, etc.  Destaca-se a súmula 479 do STJ que dispõe que as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito das operações bancárias. E quando a lesão surge do Estado, e não por terceiros particulares? Quando o estelionato é provocado por aquele órgão que deveria cuidar da pensão de idosos, doentes, deficientes, de pessoas especialmente vulneráveis? Não obstante a busca do ressarcimento, colocando-me no lugar da vítima, é como se adentrar num mar da decepção.  Em 23/4/25, foi deflagrada pela Polícia Federal brasileira e pela CGU - Controladoria Geral da União, a operação "Sem Desconto". Mais de duzentos mandados de busca e apreensão e outros seis de prisão temporária foram cumpridos em treze Estados e no Distrito Federal. Toda essa movimentação visava atingir um esquema bilionário de fraude praticado a partir do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social. No caso, associações descontaram ilegalmente 6,3 bilhões de reais de aposentadorias e pensões entre os anos 2019 e 2024.2 Sindicatos, Associações de aposentados, ou associações geradas a partir de sindicatos, como forma de atrair membros, oferecem a intermediação para a aquisição dos chamados créditos consignados. No Brasil, embora a modalidade exista desde a década 60 para servidores públicos, o mesmo ficou popularizado em 2003, com a lei 10.820, que permitiu ao pensionista do INSS celebrar contrato de mútuo com instituição financeira, inclusive cartão de crédito, pagando as parcelas do financiamento com desconto direto em seu benefício previdenciário. Recentemente, no início de 2025, foi criado um novo modelo de crédito consignado, chamado de "Crédito do Trabalhador", e que se trata de, como indica Henrique José Parada Simão,  "uma linha de empréstimo consignado contratada diretamente por meio da Carteira de Trabalho Digital, sem necessidade de convênios entre empregadores e instituições financeiras".3 O referido contrato de mútuo funciona da seguinte forma. Primeiro, é um empréstimo como todo outro, remunerado com juros de mora, onde insere-se correção monetária, e demais encargos e até tributos. O trabalhador empregado pagará o mútuo com parte de seu salário, ou poderá utilizar parte de seu FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e a multa rescisória de 40% como garantias da operação. Vozes vão dizer que isso permite gerar um mútuo com taxas mais baixas, visto que quase inexistente o risco de inadimplência. Dizer que o crédito consignado brasileiro, feito para pessoas físicas, englobando desde servidores públicos, pensionistas e aposentados do INSS, a trabalhadores da iniciativa privada seja algo de todo o mal talvez seja um exagero, se pensarmos que a vida no capitalismo, sem acesso ao crédito, seria impossível. O isolamento do sujeito a linhas de crédito o torna uma espécie de ermitão moderno vivendo dentro da selva de pedra.  Por outro lado, é certo que o Brasil é extremamente deficitário na qualidade de ensino público, e também no privado, concernente aos anos escolares, e basicamente inexistente ou ausente no que concerne à educação financeira. Em suma, o brasileiro aprende a lidar com o crédito de forma empírica. E isso faz com que muitos "quebrem" sem nunca mais conseguir retornar ao ponto de partida, antes mesmo de terem uma real oportunidade de um uso minimamente satisfatório do crédito. A primeira experiência mutuária vira um trauma. O cenário é tão alarmante, e ao mesmo tempo cômico, que, recente levantamento do Serasa indica que 57 milhões de brasileiros  estão endividados sem saberem que o estão.4 Apoiado ainda sobre uma medida provisória não convertida em lei, em tramitação no Congresso Nacional, como registra Henrique José Parada Simão, "a utilização do FGTS como garantia de empréstimos é, na prática, uma forma de expor a poupança trabalhista a riscos típicos de operações financeiras privadas - algo que sempre foi rechaçado no desenho original do FGTS, criado como reserva de segurança em momentos de desemprego e necessidade". Na medida em que o governo de um país estimula cidadãos usarem a única salvaguarda que estes detêm contra demissões do trabalho, ou para quando se aposentarem, para pagar empréstimo bancário, isso desistimula o exercício da cidadania. O Estado deve dar o exemplo da solidariedade, valor esculpido no inciso I do art.3º da CF/1988, e não estimular a  degradação patrimonial do indivíduo. Voltando-se ao padrão credito consignado INSS, atualmente, pode-se comprometer até 45% da renda mensal do pensionista tomador de crédito, sendo 35% em forma de empréstimo, 5% em forma de saque no cartão consignado e outros 5% para cartão benefício consignado. Como vantagem, a modalidade consignada apresenta o fato de ter juros menores do que outras operações, visto que a pensão do mutuário é a garantia do pagamento. Para clientes mais idosos, normalmente é exigido e cobrado um seguro prestamista, que possa cobrir o saldo devedor do empréstimo em caso de óbito antes do término dos pagamentos.  Como é de se esperar, as facilidades de concessão de crédito consignado e a também falta de controle do INSS nessa operação, tem produzido uma horda de superendividados, que arrastam descontos longínquos sobre seus benefícios previdenciários, muitas vezes comprometendo mais da metade da renda mensal. O governo federal, ao invés de prover ao aposentado do INSS com uma aposentadoria digna, que possa suprir a demanda existencial com dignidade, vira uma espécie de assistente de instituição financeira, gerando lucro exorbitante a este, e uma conta elevada ao mutuário. Lembrando que o art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988 garante o direito de um salário mínimo ao trabalhador, que seja capaz de atender às necessidades básicas do mesmo e de sua família. Como se pode observar, eis aí um trecho da carta magna que até hoje não foi colocado em vigor. E, como o salário mínimo não será aumentando mesmo, ao patamar exigido pela CF, assim como a aposentadoria via INSS, o governo se prontifica a "ajudar" a pessoa a fazer empréstimo bancário, usando a sua aposentadoria como meio de pagamento. O INSS deveria se dedicar a sua missão institucional, de prover com pensões os cidadãos que fazem jus a elas, e garantir que essas possam suprir as necessidades básicas de vida. Mas, ao que parece, acaba dedicando parte de sua atividade à assessoria de instituições financeiras, intermediação de empréstimos bancários. Sua tarefa consiste em preparar o terreno sobre a renda do sujeito, na qual vão recair os descontos do crédito consignado celebrado. E, junto com o principal do mútuo e seus encargos, são lançados, na pensão do cidadão, os descontos de associações, os quais devem ser autorizados pelo titular do benefício. Consoante consta no site do INSS, compete ao mesmo operacionalizar:  I - O reconhecimento do direito, a manutenção e o pagamento de benefícios e os serviços previdenciários do RGPS - Regime Geral de Previdência Social, inclusive do seguro-desemprego ao pescador profissional artesanal, conforme disposto no decreto 8.424, de 31/3/15;  II - O reconhecimento do direito, a manutenção, o pagamento de benefícios assistenciais (lei 8.742, de 7/12/1993) e dos encargos previdenciários da União previstos na legislação; III - O reconhecimento do direito e a manutenção das aposentadorias e das pensões do RPPU - Regime Próprio de Previdência Social da União, no âmbito das autarquias e das fundações públicas, nos termos do disposto no decreto 10.620, de 5/2/21.5 Portanto, agir como entidade facilitadora de realização de contrato de empréstimo consignado é algo que desconfigura a natureza do INSS. É o errado, mas que acaba sendo legitimado.  E, no caso versado, o que ocorre é que o INSS apresentou falhas graves administrativas na condução e fiscalização de descontos sobre benefícios de milhares de cidadãos. O próprio instituto já admite que sejam em torno de 4,1 milhões de vítimas afetadas pela fraude da falsa associação com desconto sobre a aposentadoria/pensão.6 Estima-se, até o presente, um desfalque sobre as vítimas que chega a R$6,3 bilhões. E isso tudo considerado num período de 2019 a 2024. Uma das entidades envolvidas na fraude, num total de 11 (o Inss tem acordo de cooperação técnica com 39 entidades), a Abapen - Associação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas da Nação, chegou a promover mais de 12 mil filiações num único dia, chamando a atenção tal fato ter passado despercebido pelos servidores do INSS.    Com fulcro a evitar um desgaste maior de imagem, além de ressarcir as vítimas, o INSS estuda um plano de indenização pelas perdas materiais dos beneficiários, ao passo em que é realizado pedido de CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito, na Câmara dos Deputados, para apuração de responsabilidades em torno do esquema. A nossa exposição, no entanto, não visa os aspectos criminais e administrativos do ocorrido, mas somente o direito à indenização dos prejudicados. De qualquer maneira, até mesmo para se poder compreender o ocorrido, alguns detalhes gerais são necessários na narrativa. Sobre a responsabilidade das associações e congêneres, que lançaram cobranças de mensalidades sobre os benefícios dos cidadãos, no caso é um cenário de dolo. Atuando num espaço de consumo, porque embutidos junto com uma prática de consumo, que é o crédito consignado, atraem a configuração de fornecedor, à luz do art. 3º do CDC, lei 8.078/1990. E como diz o art. 14, respondem independentemente da prova de culpa. Contudo, no caso, dificilmente seria culpa, a associação teria que reportar algum erro e de pronto indenizar o prejudicado com juros e correção monetária, além do dano moral. Até o presente, as apurações da Polícia Federal e CCG apontam um cenário de dolo, de culpabilidade evidente, em ação dolosa continuada que perdurou, no mínimo, por cinco anos.    Caso o entendimento pretoriano optasse por outra fonte normativa, a mesma responsabilidade poderia ser apurada sob o a salvaguarda do Código Civil, no mínimo, à luz da regra geral da responsabilidade extracontratual, constante do artigo 186 do CC. Não se trata nem de aplicação da teoria do risco, sob suas diversas manifestações, uma vez que o caso não revela uma espécie de culpa presumida, mas sim de uma atividade dolosa, que,  a contar de sua apuração pela Polícia Federal, tem diversos contornos de tipicidade criminal. E, temos a situação, diga-se, lamentável, do INSS. Em certas situações, o INSS foi reputado parte legítima para responder sobre fraudes praticadas em empréstimos consignados não pactuados pelo pensionista, mas que tiveram o desconto efetivado sobre os seus ganhos. Nesse sentido, vide a ementa: EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. FRAUDE. DESCONTO EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PEDIDOS DE CONDENAÇÃO EM DANO MORAL E MATERIAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DO INSS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO PROVIDO. 1- Trata-se de agravo de instrumento interposto em face da r. decisão que, em sede de ação pelo rito comum, excluiu o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS do polo passivo da lide, remetendo os autos à Justiça Estadual.2- Na presente demanda, questiona-se a legitimidade passiva do INSS em ação na qual se discute a existência de fraude em empréstimo consignado, bem como a consequente indenização por danos morais e materiais oriundos de descontos indevidos em benefício previdenciário. 3- De acordo com a jurisprudência do C. STJ, é pacífico o entendimento de que o INSS é parte legítima nas causas que versem sobre descontos indevidos em benefício previdenciário oriundos de empréstimo consignado fraudulento. Precedentes.4- Agravo de instrumento a que se dá provimento.(TRF 3ª Região, 1ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO / SP - 5022047-62.2017.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal VALDECI DOS SANTOS, julgado em 23/10/19, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 29/10/19). Em junho de 2023, segundo informações da mídia, o ministro da Previdência Social, responsável pela escolha do presidente do INSS, hoje afastado, havia sido avisado sobre aumento de descontos não autorizados acerca das cotas de associações sobre os benefícios, e nada fora feito para barrar essa situação.7 Ou seja, da parte da administração pública, existiu conduta dolosa de servidores do INSS e outros órgãos, no sentido de liberar as falsas associações, e também omissões graves no sentido de não se apurar o ocorrido e impedir a sucessão de desfalques. Nessa linha, pode-se buscar a responsabilidade objetiva da administração pública, INSS, à luz do art. 37, par.6º da CF/1988, por atos comissivos e omissivos, bem como, usando da jurisprudência já consolidada, equiparar o INSS a fornecedor e estender a estes os ditames do CDC. Nessa última hipótese, pelo fato de tais operações estarem ligadas a atos de consumo, e que são as operações de crédito consignado, ainda que falsas. Acrescente-se que, em certos casos, o INSS dispensou a biometria como critério para comprovar o desejo do beneficiário em autorizar a cobrança mensal de associação, o que facilitou ainda mais as operações ilícitas.8 Para piorar, pessoas extremamente vulneráveis eram o alvo preferido da organização criminosa que promoveu a fraude. Relatório da Polícia Federal e da CGU apontam que moradores de zonas rurais com dificuldades de deslocamento até um posto da Previdência Social, deficientes, doentes com impossibilidade de locomoção, indígenas e analfabetos foram lesados.9 São consumidores hipervulneráveis clássicos.10 Tal cenário demanda uma reação efetiva do Poder Judiciário quanto à imposição de danos morais, no sentido de atingir um efeito terapêutico, de forma que cenários como este não sejam renovados. O INSS é parte do Estado e as pessoas precisam acreditar no Estado para ele valer a pena como forma de organização social. Um Estado promotor de injustiças, torna-se uma estrutura sem sentido, e que beneficia a poucos. Retirar trinta, quarenta reais ou mais, ao mês, durante cinco anos, de pessoas idosas, doentes, que precisam dessa verba para comer, comprar fármacos, etc, é um ato perverso, cruel, vil. É o ser humano na sua mais baixa forma de manifestação. E isso não pode ficar despercebido aos olhos do Poder Judiciário. E não pesam dúvidas, que, independentemente de quem seja o responsável pelo pagamento,  associação, INSS, ou ambos em solidariedade (art.7º do CDC), que sejam também condenados pelo grave dano moral perpetrado contra as vítimas dessa fraude calamitosa. ___________ 1 Vide: Disponível aqui. Acesso em 1/5/25. 2 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 3 Simão, Henrique José Parada. Crédito consignado privado: Um avanço necessário que ainda exige segurança jurídica. Disponível aqui. Acesso em 3/5/25. 4 Vide: Disponível aqui. Acesso em 3/5/25. 5 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 6 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 7 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 8 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 9 Vide: Disponível aqui. Acesso em 2/5/25. 10 Vide o nosso Consumidores Hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2012.
Uma das razões da fragmentação do Direito Privado em Direito Civil e Direito Comercial (hoje, Direito Empresarial) teria sido - é o que afirma boa parte da doutrina, jurídica ou econômica - decorrente da necessidade de um direito mais célere e ágil para o comerciante, um direito independente das fórmulas e das formalidades que, impostas pela legislação civil, dificultavam (e encareciam) o tráfego comercial. A necessidade de um direito com menos amarras é uma das explicações do advento do nosso Código Comercial em 1850 (quando ainda em vigor legislação portuguesa recepcionada), bem antes da entrada em vigor de nosso Código Civil em 1916. Talvez essa justificativa não mais encontre eco na realidade: a vida civil também tem urgências no exercício da autonomia privada na contratação, no exercício da propriedade e nos projetos familiares. A vida é veloz e urgente para todos em todos os seus papéis. O direito civil contemporâneo já perdeu várias amarras e desburocratizou-se bastante, mas é necessário mais. Cada vez mais. Pois "destravar" o Direito Civil foi uma das diretrizes da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. De fato, a Comissão preocupou-se em simplificar a regulação da vida pelo Código. Um bom exemplo disso é a transformação do procedimento de habiltação para o casamento em procedimento pré-nupcial. Não se trata apenas de uma questão terminológica, mas de estabelecer um regime jurídico que, sem descuidar da análise de impedimentos matrimoniais, facilite o acesso ao casamento e desburocratize o projeto parental de viver juntos. Neste sentido, extinguem-se os proclamas, aqueles editais que ninguém mais lia, e portanto se mostravam inúteis. Fica mais fácil casar. Tornar mais claro, mais fácil e mais operável o direito. Essa diretriz aparece, por exemplo, na questão da mora. Todos sabem, na feliz redação dos irmãos Luciano e Roberto Figueiredo (Manual de Direito Civil, Juspodium, 2021, p. 514), que há mora quando "o pagamento não se realiza nas condições de tempo, forma e lugar pactuados". Ou, como nos diz Flávio Tartuce (Direito Civil. Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, Forense, 2024, p.192), a "mora é o atraso, o retardamento ou a imperfeita satisfação obrigacional". Tão importante e relevante é o instituto da mora que o Código Civil a conceitua em seu artigo 394 1 Dentre as várias espécies de mora, a mais comum e cotidiana é a mora temporal do devedor. O não pagamento das dívidas no prazo é a principal espécie de inadimplemento relativo. Logo, o tema do momento do pagamento (ou do não pagamento) deve ser bem regulado. Destaco, aqui, três breves alterações - talvez fosse melhor dizer: aperfeiçoamentos - em relação ao tratamento da mora na proposta de reforma: (a) o termo inicial da mora; (b) a mora nas obrigações de não fazer e (iii) a mora nas obrigações decorrentes de ilícito. Em primeiro lugar, o início da mora. Ele está ligado à previsão (no negócio jurídico ou na lei) de termo final do pagamento. Se houver termo fixado, a mora é ex re: acontece no próprio momento do termo. Se não houver termo pré-fixado, ela é ex personae: depende de interpelação do devedor (Código Civil, art. 397 2. A reforma do Código pretende deixar mais clara a redação do dispositivo e, especialmente, atualizá-lo para os tempos presentes. Eis a redação proposta: "Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo final, constitui de pleno direito em mora o devedor. § 1º Não havendo termo final, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial. § 2º Se as partes não fixarem termo para o adimplemento, o devedor se considera em mora desde sua interpelação. § 3º As partes podem admitir, por escrito, que a interpelação possa ser feita por meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, após ciência inequívoca da mensagem pelo interpelado." Além de melhor precisão terminológica (termo final ao invés de apenas termo, no caput e no parágrafo primeiro), a redação - regulando o que já era amiúde aceito - afasta qualquer dúvida sobre o meio de interpelação que poderá ser utilizado: agora com base legal, podem ser utilizados e-mail ou aplicativo, desde que seja demonstrada ciência da mensagem. Atualiza-se verdadeiramente o Código Civil: as inovações tecnológicas devem ser incorporadas ao direito. E o fato de ser necessário estabelecer, previamente, a forma digital de notificação confirma os valores da autonomia privada e da segurança. Em segundo lugar, outro tema sobre o qual se propõe um ajustamento na redação da lei refere-se às obrigações negativas (ou de não fazer). O atual Código diz, em seu art. 390 (que se situa nas disposições gerais acerca do inadimplemento das obrigações), que "o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster". Perfeito, não fosse apenas a má localização geográfica do dispositivo, já que a mora passa a ser tratada apenas a partir do art. 394 do Código Civil. Bem por isso, com implicações na interpretação e reflexos no ensino jurídico, a reforma propõe o deslocamento da regra para o art. 394 do Código, na forma de seu parágrafo único: Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não o receber no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. Parágrafo Único. Nas obrigações negativas, o devedor incorre em mora desde o dia em que executou o ato em que devia se abster. Ainda nesse ambiente (o inadimplemento das obrigações de não fazer), há mais. Como bem se sabe, se a obrigação de fazer é de execução instantânea, seu inadimplemento será sempre absoluto: não cumprida a obrigação, ela se transforma em obrigação de dar (indenização) e não há como retornar ao estado anterior. Mas, nas obrigações de não fazer de execução continuada, é possível a purgação da mora (art. 251 do Código Civil). Com ela, preserva-se o dever de não fazer das prestações futuras. Portanto, pode haver mora nas obrigações de não fazer contínuas. Em consequência, é necessário estabelecer, para estas obrigações, o termo inicial da mora. E essa mora é ex re: não é necessária a constituição do devedor em mora; ela decorre do próprio não cumprimento da obrigação. Em terceiro lugar, um outro ajuste que parece singelo, mas é importante, especialmente do ponto de vista da sistematização do direito. Quanto às obrigações derivadas de ilícito, o Código Civil dispõe que "Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou" (art. 398). A reforma propõe o seguinte texto: "Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito extracontratual, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou."  Destaca-se que a regra refere-se à responsabilidade extracontratual (ou extranegocial). A temática remete ao recente debate acerca do prazo da prescrição da pretensão de reparação civil contratual e extracontratual (o que, agora, é resolvido pelo proposto parágrafo único do art. 205): "Art. 205. A prescrição ocorre em cinco anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor. Parágrafo único. Aplica-se o prazo geral do caput deste artigo para a pretensão de reparação civil, derivada da responsabilidade contratual ou extracontratual, e para a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa." Essas três sugestões de modificações acerca do instituto da mora parecem sem maior importância, e não trazem nenhuma revolução ao direito. Mas elas demonstram o espírito e um dos objetivos da reforma do Código Civil: melhorar, ajustar, acertar. E isso é bom. ______________   1 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. 2 Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.  Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial
Assim como em outras áreas do saber, vez por outra o mundo jurídico é invadido por tendências que "viralizam" nas redes sociais. São instrumentos ou "produtos" jurídicos divulgados com ares de novidade e de que apenas os seguidores do "influencer" terão acesso a este conhecimento tão apurado. A moda da vez, segundo os algoritmos, é a procuração em causa própria, anunciada como grande solução para transferir bens imóveis aos filhos sem a realização de inventário e o pagamento de tributos. Certamente, o conteúdo chama atenção. Afinal, quem já passou pela experiência de realizar inventário de parentes provavelmente se sentirá atraído por uma alternativa menos burocrática e mais barata. Soluções mágicas não existem. É preciso esclarecer o regime jurídico da procuração em causa própria e elucidar informações inverídicas ou ao menos incompletas sobre o modo de sua utilização. Um dos primeiros equívocos de eleger a procuração em causa própria como solucionadora universal dos planejamentos sucessórios é crer que o objetivo primordial da família é sempre a economia de custos. Não raro, a procura pela realização de um planejamento sucessório envolve aspectos muito mais profundos, tais como a prevenção de litígios entre cônjuges/companheiros e/ou herdeiros, a distribuição eficiente de bens para que continuem frutificando, a perpetuação de legados, entre outros. A redução de despesas é apenas uma faceta do prisma, geralmente a menos importante . Em segundo lugar, do ponto de vista técnico, a procuração em causa própria possui peculiaridades que precisam ser bem consideradas. Como espécie de mandato, diferencia-se do gênero pelo fato de ser irrevogável, não se extinguir com a morte das partes, dispensar prestação de contas e permitir que o mandatário transfira para seu nome bens móveis ou imóveis descritos no instrumento de procuração, respeitadas as formalidades legais. A seguir, passa-se a cotejar cada uma destas características com as suas possibilidades de uso lícito em planejamentos sucessórios. Pelo fato de ser irrevogável, a outorga da procuração com cláusula "em causa própria" precisa ser fruto de decisão amadurecida do mandante, uma vez que ele não poderá se arrepender e desfazer o ato posteriormente. Este instituto é bastante frequente no mercado imobiliário. Para evitar ter que importunar o vendedor do imóvel ou ficar na dependência de sua agenda para a assinatura de documentos, uma vez fechado o negócio de compra e venda, é outorgada procuração com cláusula em causa própria em favor do comprador, que se responsabiliza pelo registro e demais atos necessários . No âmbito do planejamento sucessório, é preciso que o outorgante compreenda que a procuração possui eficácia imediata, de modo que o filho outorgado não precisará aguardar o óbito do pai ou da mãe para realizar a transferência. Ainda que possa desvirtuar o propósito dos pais, legalmente é um direito do descendente outorgado, de modo que todos precisam estar cientes deste risco. Além disso, o filho poderá substabelecer os poderes para terceiros, os quais também poderão realizar de imediato a transferência de bens. Nesse contexto, a doação com usufruto (tanto de bens imóveis quanto de quotas de pessoa jurídica) parece ser mais oportuna por proteger os pais doadores. Sobre a não extinção com a morte das partes, ainda que o outorgante possa utilizar a procuração, em virtude do sistema brasileiro de transmissão de propriedade, será necessário lavrar uma escritura pública de doação, compra e venda, dação em pagamento, confissão de dívida ou outra que dê causa a esta transferência. Dito em outras palavras: a procuração em causa própria não possui eficácia translativa . Seu efeito prático é apenas permitir que um negócio jurídico apto a transferir bens móveis ou imóveis seja escriturado e depois registrado. Deste modo, é pouco crível que as partes serão isentas do pagamento de custas e emolumentos da escritura pública e do registro de imóvel, bem como de ITBI ou ITCMD. Além disso, terão que explicar na declaração de imposto de renda como ocorreu o ingresso e a saída de recursos de seu patrimônio, especialmente nos casos em que é exigida contraprestação. Nesse sentido, em famílias cujo patrimônio a ser inventariado é apenas um bem imóvel e/ou bens móveis, sugere-se pesquisar se há na lei estadual hipóteses de isenção no pagamento do imposto de transmissão causa mortis, o que de maneira tecnicamente correta já permitiria economia de custos . Outro alerta importante é o de que mesmo que haja transferência de todos os bens do falecido pela procuração in rem suam, ainda sim é aconselhável realizar inventário, mesmo que negativo, para poder encerrar adequadamente relações societárias, contratos, contas bancárias, dentre outros. Outra exigência da procuração em causa própria é a de que os bens objeto do mandato devem ser nela descritos. Logo, no médio prazo, se os pais tiverem interesse em se desfazer de um ou alguns dos bens listados, precisarão contar com a anuência do filho para a revogação da procuração atual e outorga de uma nova, excluindo-se desta última o bem que se pretende alienar. Ainda, se porventura, o bem que os pais pretendam vender já tiver sido objeto de outro negócio pelo filho - vez que, como visto, a eficácia da procuração é imediata - ou se o filho não anuir com o refazimento da procuração, os pais já não poderão mais decidir sobre o destino do bem. Precisa-se tomar cuidado para que um ato de aparente astúcia não gere efeitos contrários aos pretendidos. A utilização da procuração em causa própria para fraudar lei pode acarretar nulidade, nos termos do art. 166, VI do Código Civil . Seria o caso, por exemplo, de por meio da procuração ser lavrada escritura pública de compra e venda, que atrairia a incidência do ITBI, quando na realidade foi feita doação, devendo ser pago ITCMD (alíquota em geral superior). Ainda, pode ser inquinada de simulação por conter declaração/cláusula não verdadeira, conforme art. 167 do Código Civil . Em ambos os casos, vale lembrar que a nulidade não pode ser confirmada e nem convalesce com o tempo, podendo ser alegada por qualquer interessado ou pelo Ministério Público quando lhe couber intervir. Por fim, tais atos poderão ser questionados pelas receitas estadual e/ou federal, que utilizam ferramentas de inteligência artificial para coibir fraudes . Se a procuração em causa própria é um remédio que pode ser administrado no tratamento do planejamento sucessório, não se pode descurar que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. A utilização da procuração em causa própria deve ser feita com prudência, com o aconselhamento e supervisão de um advogado especializado no tema, que poderá garantir a legalidade do ato e atento aos riscos que dela poderão advir.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Coligar e simular: Uma distinção necessária

I. Introdução Recentemente, deparei-me com uma discussão jurídica interessante envolvendo transações comerciais entre empresas de um mesmo grupo econômico. Apesar de possuírem uma relação estreita, tratava-se de pessoas jurídicas distintas, cada uma com sua própria autonomia e personalidade jurídica. No caso analisado, a empresa A vendia um produto para a empresa B, que, por sua vez, revendia esse mesmo produto para a empresa C. No entanto, por razões logísticas, a entrega era realizada diretamente da empresa A para a empresa C, sem que o bem passasse fisicamente pela empresa B. Diante desse cenário, alguns alunos me questionaram se essa estrutura não configuraria um caso de simulação. Afinal, indagaram, por que a empresa A simplesmente não vendia diretamente para a empresa C? Não estaríamos diante de um negócio jurídico simulado entre A e B, considerando, especialmente, a estreita parceria entre essas empresas? A resposta é negativa. Não há, nesse caso, qualquer indício de simulação. A dúvida, contudo, evidencia a importância de explicar corretamente os conceitos de contratos coligados e simulação. II. a) Contrato O contrato é acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica (direitos e obrigações) de caráter patrimonial, nos exatos moldes do art. 1.321 do Código Civil italiano. É a manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e extinguir uma relação jurídica de caráter patrimonial. É por isso que Enzo Roppo afirma que o contrato é a veste jurídica de uma operação econômica. Contrato e patrimônio estão umbilicalmente imbricados. A relação contratual nasce do acordo, a vontade na formação (sinalagma genético) e tem nos efeitos a expressão dessa vontade (sinalagma funcional). II. b) Coligação contratual b.1) Conceito de coligação e seus exemplos A doutrina costuma classificar os contratos em simples, mistos ou coligados. Simples é o contrato que envolve um só negócio jurídico, em um único instrumento. Misto é o contrato que em um mesmo instrumento tem mais de um negócio jurídico (ex. contrato de locação e de fiança no mesmo instrumento). Ser simples ou misto não afasta outra classificação. A da tipicidade. Contrato típico é o que tem nome e formatação legal1. Atípico é o contrato que nasce do acordo de vontades, mas não tem previsão legal que permita delineamento das prestações das partes de domo a torná-lo diferente de outros acordos de vontade. É por isso que o contrato built-to-suit é atípico. Se a lei de locação o menciona, o faz de maneira tão breve que não consegue delinear o contrato.2 Coligação contratual é algo mais complexo. Não se confunde com a categoria do contrato misto3. A doutrina explica que na coligação, há duas ou mais espécies contratuais, unidas, entretanto, pela finalidade econômica unitária ou pela comunhão de uma operação unitária só. Essa distinção entre contratos, mantido algum tipo de nexo de vinculação entre eles, é o que caracteriza o fenômeno dos contratos coligados, também chamados de união de contratos. Também se pode chamar o fenômeno de cumulação de contratos. Na coligação, não se resulta um contrato unitário. Os contratos coligados mantêm-se individualizados. Cada um dos contratos coligados não perde a individualidade, aplicando-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustam. Um exemplo simples ajuda a compreender a coligação. Se temos um contrato com certa empresa de plano de saúde, essa empresa por sua vez tem contratos com os médicos credenciados, que por sua vez terão contratos com os clientes do plano de saúde que, ao utilizarem seus serviços, passam a ser também seus clientes. São três contratos que não se fundem em um único instrumento (por isso não são mistos), mas têm uma finalidade econômica unitária. Nessa coligação existe desde a prestação de serviços entre paciente e clínica, outra relação entre paciente e operadora e uma terceira entre operadora e a clínica. Ao se fazer uso do plano, as três relações são atuadas de modo unitário, instantaneamente. Esse aspecto caracteriza a coligação. Assim, por exemplo, têm sido condenadas empresas de plano de saúde por má prestação de serviços dos profissionais que credencia, nada obstante não sejam parte na relação jurídica. A própria noção de parte se dinamiza, bem como a noção de terceiro. Temos duas grandes famílias dos contratos conexos ou coligados segundo a doutrina: b.2) As regras aplicáveis a cada tipo contratual que se coligou A união de contratos apresenta-se, na classificação de Ennecerus, sob três formas: i) união meramente externa; ii) união com dependência; e iii) união alternativa. i) União meramente externa. A união externa é simplesmente instrumental. Sem que haja interdependência entre os contratos, as partes os reúnem no mesmo instrumento, concluindo-os simultaneamente. Nesse caso, não há propriamente coligação de contratos, pois não se completam nem se excluem. A doutrina dá como exemplo o fazendeiro que vende 100 cabeças de boi e no mesmo instrumento arrenda parte de suas terras. Qual a regra que aplico nessa hipótese? Aquela prevista em lei para cada tipo contratual, porque não há interdependência. ii) União com dependência. A união com dependência é a figura que mais se aproxima do contrato misto. Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante, contudo, não se fundem. Conservam a individualidade própria, por isso se distinguindo dos contratos mistos. São três as hipóteses de dependência. ii.1) União com dependência recíproca ou bilateralDois contratos completos, embora autônomos, condicionam-se reciprocamente, em sua existência e validade. Cada qual é causa do outro, formando uma unidade econômica. Enfim, a intenção das partes é que não exista um sem o outro. É a verdadeira coligação. A coligação dos contratos com dependência recíproca pode ser necessária ou voluntária. A coligação necessária, também chamada genética, é imposta pela lei, como a que existe entre contrato de transporte aéreo e o de seguro do passageiro. Quando decorre da vontade dos interessados, como se verifica ordinariamente, diz-se voluntária. Visto que nessa união de contratos há reciprocidade, os dois se extinguem ao mesmo tempo; a dissolução de um implica a do outro. Um bom exemplo é a concessão de marca com distribuição de produtos em certas hipóteses de franquia. Como os contratos permanecem, no entanto, individualizados, o condicionamento de um ao outro não constitui obstáculo à aplicação das regras peculiares a cada qual. ii.2) União com dependência unilateralA união com dependência unilateral verifica-se quando não há reciprocidade. Um só dos contratos é que depende do outro. Tal coligação requer a subordinação de um contrato a outro, na sua existência e validade. É a famosa relação de acessoriedade. Exemplos corriqueiros são o contrato de mútuo com garantia hipotecária ou a locação garantida pela fiança. Aqui a lógica se mantém, como os contratos permanecem, no entanto, individualizados, o condicionamento de um ao outro não constitui obstáculo à aplicação das regras peculiares a cada qual. iii) União alternativaA união de contratos configura-se também por forma alternativa. Dois contratos são previstos para que subsista um ou outro, realizada determinada condição. Um exclui o outro, quando a condição se verifica. Embora unidos, não se completam como na união com dependência; antes, se excluem. Na união alternativa, aplica-se o direito relativo ao contrato subsistente. O que se verifica no caso em que discutir é exatamente isso. Uma rede ou coligação contratual, na qual os dois contratos dependem, reciprocamente, um do outro para existirem. A intenção das partes é que não exista um sem o outro. III. a) Simulação Vejamos, então, de maneira técnica e conceitual, a partir da dogmática, o que é simulação. Segundo Pontes de Miranda, "Simular vem de simular, advérbio, com o sentido de fingir ser, ou de se aparentar o que não se é, ao passo que semelhar, semelhança, assimilar, derivam de similis, adjetivo. Alguém, que se assemelha a outrem, nada faz para isso: a relação entre os dois é objetiva. Quem simula, ou quem dissimula, faz por aparentar, ou por encobrir"4 Há uma grande confusão sobre o conceito de simulação quando de sua aplicação prática aos casos concretos. Tudo que dá ao intérprete uma ideia (ainda que sem base lógica ou legal) de prejuízos a uma das partes ou a terceiros acaba sendo equivocadamente considerado hipótese de simulação. A simulação como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico se encontra prevista no art. 167 do Código Civil brasileiro. É um dos chamados vícios sociais ao lado da fraude contra credores. Não se trata de vício do consentimento porque este se caracteriza quando a vontade interna não coincide com a declarada. Se alguém vende quotas sociais por força de violência psicológica do comprador, há coação. A vontade interna do vendedor é de "não vender", mas declara vender por força do medo (daí coação em latim ser metus). No vício social, os declarantes querem (vontade interna) o que declaram. Não há disparidade entre as vontades interna e declarada. Vício do consentimento Exemplos. Erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão. Disparidade entre a vontade interna e declarada. Vício social Exemplos. Fraude contra credores e simulação. Identidade entre vontade interna e declarada. O conceito de simulação é o seguinte: simulação é o vício pelo qual as partes declaram algo que não querem para enganar ou prejudicar terceiros. Há um acordo com intenção de lesar ou simplesmente enganar alguém. A vontade declarada é efetivamente querida pelas partes. Em se tratando das espécies de simulação, temos a absoluta e a relativa. A simulação absoluta é aquela em que as partes celebram um negócio jurídico que não desejam. Simplesmente as partes nada querem contratar e mesmo assim contratam. É curioso, pois declaram algo que querem com o intuito de enganar ou prejudicar terceiros. A simulação relativa tem em seu cerne dois negócios jurídicos: um não desejado que aparece para o mundo e outro efetivamente querido que está oculto. O primeiro negócio (o que aparece) chama-se simulado. O oculto se chama dissimulado. Esse é o negócio que as partes querem. É assim que Pontes de Miranda resume a questão: "Se não havia intenção de introduzir no mundo jurídico o ato, a simulação é absoluta. O Código Civil não possui regra jurídica especial, porque, se a contivesse, seria regra jurídica pré-excludente, isto é, para se dizer que o ato não é jurídico5" Vamos ao texto de lei. "Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma". Trata-se de preceito cogente. O negócio simulado deve desaparecer do mundo jurídico. Por isso é nulo. Já o dissimulado, se houver, pode subsistir, se válido for. Subsistir. Simular implica não cumprir as prestações decorrentes dos contratos. Significa combinar algo para ludibriar terceiros. Note que na coligação contratual não há ocultação dos reais compradores. A coligação contratual gera sucessivos adquirentes e só. Para se utilizar o adjetivo "reais", há pressuposição de falsidade sem que isso se coadune com a efetiva prestação realizada por todas as partes dos contratos coligados. IV. Conclusão Em um caso similar ao que analisamos, é possível que haja simulação? Sim, se, por exemplo, o negócio fosse inexistente ou feito com o intuito exclusivo de prejudicar terceiros, o que, por óbvio, exigiria prova da intenção de esse causar prejuízo. Ou, por outro lado, caso o negócio de compra e venda fosse usado para ocultar outro tipo de negócio. Não era o caso, não há indícios nesse sentido. Empresas, mesmo de um grupo econômico só, podem, enquanto sujeitos de direito diversos, contratar entre si. Uma das partes pagou o preço e outra entregou o objeto (imediato) da prestação. Não há vícios nos negócios. As partes fazem única e exclusivamente contratos coligados, ou seja, negócios jurídicos encadeados e com finalidade econômica unitária, qual seja, a venda e entrega de um produto a um destinatário final específico. Por que a empresa A e a empresa C não contratam diretamente? Isso faz parte de uma lógica própria das empresas. Não havendo vício, os negócios são lícitos. As partes podem exercer sua autonomia privada. Não se pode confundir, em casos como este, simulação com meros contratos coligados. 1 Aqui não mencionamos os contratos socialmente típicos. 2 Art. 54-A.  Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta lei. § 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.§ 2º Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação. 3 No Direito italiano e no português, a interligação funcional e econômica entre contratos estruturalmente diferenciados tem sido tratada sob a expressão contratos coligados. No Direito espanhol, privilegia-se a expressão contratos conexos. No Direito francês, grupos de contratos. No Direito anglo-saxão, contratos ligados (linked contracts ou linked transaction), ou networks contratuais e, por fim, no Direito argentino, a expressão redes contratuais. 4 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 4ª ed. São Paulo: Borsoi, 1970. t. IV, 374. 5 TEIXEIRA DE FREITAS em seu esboço, art. 524 assim informa: "Se a simulação for absoluta, sem que tenha havido intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposições da lei, e assim se provar a requerimento de algum dos contraentes: julgar-se-á que nenhum ato existira".
I. A regra e a exceção Obrigações. Segundo a definição romana clássica, escrita nas Institutas de Justiniano1, Obligatio est juris vinculum quo necessitate adstringimur alicujus solvendae rei secundum nostrae civitatis2. Demogue define o instituto também de forma perspicaz. Segundo o autor francês,3 l'obligation est la situation juridique ayant pour but une action ou abstention de valeur économique ou morale dont certaines personnes doivent assurer la réalisation.4 Em síntese, obrigação é o liame jurídico que une credor(es) e devedor(es) e tem por objeto uma prestação (dar, fazer ou não fazer). No entanto, essa definição não é suficiente para a análise do artigo presente. De forma complementar às definições apresentadas acima, Clóvis do Couto e Silva, em seu livro Obrigação como Processo, inspirado pela doutrina germânica, conceitua a obrigação como um processo, ou seja, uma série de atos voltados para um só fim: O adimplemento. Nas palavras do professor gaúcho, a obrigação é um processo, vale dizer, dirige-se ao adimplemento, para satisfazer o interesse do credor.5 Desde o período romano6, a lei preocupa-se com a busca pelo fim natural da obrigação, qual seja o adimplemento. Tal busca faz nascer um dos princípios fundamentais da Teoria Geral das Obrigações: o favor debitoris. Ele consiste na ideia de que a legislação deve ser criada e interpretada, sempre quando possível, para desonerar o devedor e, dessa maneira, facilitar o adimplemento da obrigação. Ou seja, favorece-se a posição do devedor, dando-lhe vantagem para que, consequentemente, seja mais fácil o cumprimento da obrigação, o que beneficia também o credor. Trago exemplos desse princípio que é quase absoluto em nossa codificação civil. Nas obrigações de dar coisa incerta e nas obrigações alternativas, a escolha do objeto específico que será entregue (concentração da prestação) caberá ao devedor, se não houver estipulação em contrário (art. 244 e art. 252). Além disso, enquanto a mora do devedor exige a existência de culpa (lato sensu) - art. 395, a mora creditoris prescinde da existência de culpa (embora a lei não diga isso expressamente, é a posição da doutrina majoritária).7 A razão das regras? Facilitar e promover o adimplemento das obrigações desonerando o devedor. Existe, no entanto, uma exceção marcante a este princípio na Teoria Geral das Obrigações brasileira que se apresenta no parágrafo único do art. 327. O disposto no parágrafo único do art. 327 chama a atenção por ter regra absolutamente pró-credor. Vejamos a regra: Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias. Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre eles.  O caput vai ao encontro do princípio do favor debitoris. A regra é a obrigação quesível, ou seja, aquela cujo pagamento é feito no domicílio do devedor. No entanto, o parágrafo único traz regra oposta: Favor creditoris. Havendo vários lugares para o pagamento, a escolha cabe ao credor. Em regra, em negócios jurídicos, escolhe-se um e apenas um local para a realização do pagamento. Se dois ou mais lugares forem convencionados, normalmente, há regras expressas para a determinação do local. Casos de alternatividade pura e simples de local de pagamento que exigem a escolha do credor são raros. O artigo é pouco aplicado. No entanto, investigá-lo é fundamental para a adequada compreensão do princípio do favor debitoris e suas exceções. Qual é a ratio da norma? Qual é sua origem? É isso que este singelo artigo tentará responder.  II. As posições da doutrina O parágrafo único é muito pouco explorado pela doutrina moderna. A maior parte dos civilistas pouco ou nada fala sobre o tema. A regra, no entanto, gera perplexidade aos poucos doutrinadores que sobre ela escrevem. Washington de Barros Monteiro afirma que a solução é muitas vezes injusta podendo assim prejudicar o devedor, com escolha de lugar mais oneroso para a solução do débito8. José Fernando Simão destaca também o parágrafo único como a grande exceção ao favor debitoris no Direito Obrigacional brasileiro.9 Carvalho Santos faz longo e pertinente comentário sobre o tema. Além de criticar o dispositivo, o doutrinador afirma que ele se afasta da regra romana. Não nos parece certa solução legal quando dá ao credor o direito de opção, por isso que é do systema do Codigo, em materia de pagamento, beneficiar o devedor, facilitando-lhe tudo para liberação. Ora, si esse é o ponto de vista que norteou os seus dispositivos, a ponto de presumir o pagamento dever ser feito no logar do domicilio do devedor, como regra ha flagrante contradição em conceder ao credor, na hypothese que estudamos, o direito de opção. O Código, ao dispor por essa forma, afasta-se da doutrina que nos legou o Direito Romano, a qual é ainda a preferida pelos melhores e mais autorizados tratadistas, quasi sem exceção.10 Embora concorde que a regra se afaste das normas do Direito Romano, Orozimbo Nonato é voz (quase) solitária na defesa do dispositivo. O raciocínio do civilista é que o interesse em receber pontual e inteiramente a prestação é do credor. Portanto, o Código concede a ele o direito de escolha em situações de alternatividade. Consolida-se, no caso, o princípio iura magis inclinant ad liberandum quam ad obligandum.11 Antes de analisar a justiça ou injustiça da norma, é necessário analisar sua origem. III.  A origem do dispositivo  a) Um breve histórico do dispositivo na codificação brasileira As Ordenações Afonsinas foram a primeira coletânea de leis a vigorar no Brasil. A vigência pouco durou. Em 1513, foi revogada e sucedida pelas Ordenações Manuelinas, as quais, por sua vez, foram substituídas, em 1603, pelas Ordenações Filipinas. Havia, já nas Ordenações Filipinas, disposição sobre local do pagamento no Livro Segundo, título LII, §3º. É curioso notar que não havia regra para casos em que se convencionava dois lugares distintos para o pagamento. Dispunha-se apenas, ao encontro do princípio do favor debitoris, que o domicílio do devedor seria o local do pagamento. Vejamos: E os devedores não serão constrangidos a pagar o que deverem, senão nos lugares em que são moradores, e os Sacadores, ou Porteiros não os obrigarão a levarem o que deverem aos lugares, onde vem os Almoxarifes, ou Recebedores: Salvo se se obrigaram levar lá os pagamentos, ou forem obrigados por razão dos Offlcios, que tem de arrecadar e receber o dinheiro, e leval-o aos Almoxarifes, ou Recebedores ou por razão das rendas, que tem dos Almoxarifados, quando nos lugares, onde vivem, não há Recebedor. As Ordenações vigoraram em matéria civil até 1916. A Constituição do Império, todavia, de 25/3/1824, já declarava: Organizar-se-á, quanto antes, um Código Civil e um Criminal, fundado nas solidas bases da justiça e da equidade. Apenas 92 anos depois, todavia, um CC foi promulgado. No quase centenário hiato muitos projetos de Código existiram. É impossível estudar a história do Direito Civil no Brasil sem que sobre eles nos debrucemos.  Em janeiro de 1859, Nabuco de Araujo, então ministro da Justiça, contratou Teixeira de Freitas para, a partir das leis compiladas por este civilista, apresentar um projeto de CC. O projeto (esboço) desenvolvido não agradou o Governo Imperial que, em 1872, resiliu o contrato com Teixeira de Freitas. O esboço, mesmo rejeitado, teve grande influência no Brasil e na América Latina12. Surge nos trabalhos de Teixeira norma praticamente idêntica à moderna: Art. 1.055. O pagamento deve ser feito: 1º No lugar designado pelo título creditório, ou por outro posterior. 2º Se houver designação de mais de um lugar, naquele, dentre os designados, em que o credor exigir o pagamento. 3º Se não houver designação de lugar, no que tiver sido da intenção das partes, segundo a natureza do pagamento, ou qualidade e fim do negócio. 4º. Não sendo possível determinar o lugar do pagamento, entender-se-á que deve ser feito no lugar do domicílio do devedor ao tempo do cumprimento da obrigação. Há no §4º um favor debitoris: Não sendo possível determinar o local do pagamento, a obrigação deverá ser paga no domicílio do devedor. Surge aqui, no entanto, a moderna regra de que, na alternatividade simples, ou seja, sem regra expressa para futura determinação do local do pagamento, adota-se um favor creditoris: A escolha do pertence ao credor (§2º). Curiosamente, a solução não foi seguida pelos outros projetos. Após um breve trabalho de Nabuco de Araujo, que assumiu o projeto iniciado por Teixeira de Freitas, mas morreu pouco tempo depois em 1878, Felício dos Santos recebeu a incumbência de elaborar um CC para o Brasil. Em 1881, apresentou os seus Apontamentos para o governo, os quais traziam a seguinte regra sobre o local do pagamento: Art. 506. O pagamento deve ser feito no logar designado no título da obrigação ou subentendido pela natureza da mesma. Si não houver logar designado ou sub-entendido, tratando-se de cousa certa e determinada, deve o pagamento se feito no logar em que existia a cousa ao tempo da obrigação. Nos mais casos deve o pagamento ser feito no logar do domicilio do devedor ao tempo em que for exigido o mesmo pagamento. Cria-se uma série de regras para a determinação do local. Primeiro, a convenção. Segundo, o local em que a coisa existia. Não sendo possível a determinação a partir dos critérios anteriores, aplica-se o favor debitoris: O pagamento deve ser feito no domicílio do devedor. Casos em que dois lugares são convencionados? A proposta não segue o caminho de Teixeira e é silente neste ponto. Pouco tempo depois, em 1896, Coelho Rodrigues apresenta seu projeto, após ter sido contratado para o desiderato já na República, comandada, então, por Campos Salles. A regra é similar à do projeto anterior: Art. 523 .O pagamento deve ser feito no logar declarado pelo contrato; no silencio deste, no logar da respectiva execução, segundo a intenção presumida das partes ou, havendo duvidas sobre esta, no logar onde o devedor receber o equivalente da divida, ou no seu domicilio, como fôro geral do mesmo devedor. De novo, a mesma lógica. Em primeiro lugar, convenção. Em segundo, no local de execução da obrigação. Em terceiro, onde o devedor recebe o equivalente. Por fim, em quarto, como regra geral, o domicílio do devedor. Favor debitoris. Por fim, em 25 de janeiro de 1899, Clóvis Beviláqua foi convidado para elaborar um projeto de Código. Nas palavras de Bevilaqua, recebi o honroso convite para elaborar um novo Projeto, aproveitando, tanto quanto possível, sem prejuízo das minhas ideias, o do Dr. Coelho Rodrigues, cujos méritos se deixam perceber, depois que passara a onda subversiva da critica inclemente e, até certo ponto, incompetente, que o declarara imprestavel.13 O autor retoma o projeto de Teixeira de Freitas. A regra pró-credor, reescrita por Beviláqua, apareceu no art. 1.094 do anteprojeto e no art. 951 do Projeto Câmara. Com a aprovação pelo Senado, torna-se o art. 950 do CC/16 com redação praticamente idêntica à moderna: Art. 950. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário dispuserem as circunstâncias, a natureza da obrigação ou a lei. Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor entre eles a escolha.  b) A origem romana do dispositivo Na história da codificação brasileira nos parece que a regra surgiu com o projeto Texeira de Freitas. Seria a inspiração romana? O Digesto trata do local do pagamento em dois pontos principais: No parágrafo segundo do fragmento dois do título quarto do livro décimo terceiro e no fragmento nove do mesmo título e livro. Vejamos os dispositivos traduzidos por Alan Watson para o inglês: D.13, 4, fr.2, §2º. If someone sues upon a stipulation that ten shall be given at Ephesus or else a slave at Capua, his pleading must not omit one or other place lest the defendant be deprived of a geographical advantage.14 D.13, 4, fr.9. ULPIAN, Sabinus, book 47: One who promises to give at a certain place cannot perform at any other than the promised place without the consent of the stipulator.15 16 A regra romana, tal qual a moderna, valorizava a autonomia da vontade: As partes podem estabelecer o local do pagamento e, se assim acontecer, não podem entregar em local diverso. Mas e no caso de dois lugares terem sido estabelecidos? Diferentemente da maior parte dos projetos de Código no Brasil, o Direito Romano trazia regra específica para esse tipo de caso. O devedor pode entregar onde entender mais conveniente, ou seja, a escolha cabe ao devedor. De novo, favor debitoris.  Conclusões. Mudar é preciso? O parágrafo único do art. 327 do CC atual, que confere o direito de escolha ao credor se dois lugares forem convencionados, é fruto da mente de Teixeira de Freitas. O art. 1.055 do esboço do gênio que inspirou o Código Argentino foi praticamente copiado por Beviláqua no art. 1.094 de seu Anteprojeto. Aceita pela Câmara e pelo Senado, a regra virou o parágrafo único do art. 950 do CC/16 e, posteriormente, o parágrafo único do art. 327 do CC/02. Efetivamente é um artigo com pouca aplicabilidade. E sempre foi. Prova disso é que os outros projetos de Código nem traziam regra para solucionar a questão da alternatividade de lugares de pagamento. Em quantos casos se convenciona dois lugares para a entrega e não se determina critérios para a escolha? Pouquíssimos. Discordo, com todas as vênias, de Orozimbo Nonato. Efetivamente o interesse de receber a prestação é do credor. No entanto, o Código escolhe, em regra, beneficiar o devedor, tornando a prestação mais facilmente adimplível, o que, por consequência, beneficia o credor. Se a lógica de Orozimbo correta estivesse, a regra da Teoria Geral das Obrigações seria a do favor creditoris. Carvalho Santos acerta. A norma rompe com a tradição romana e com a lógica do Código. Não possui razão de ser. Há contradição e quebra sistêmica na regra que foi pensada por Teixeira de Freitas. Melhor seria se o Código continuasse seguindo o favor debitoris e, assim, facilitasse o fim das obrigações: O adimplemento. Duas questões coloco por fim: i) Qual a razão para Teixeira de Freitas criar a regra? Não encontrei uma resposta. Formulo, portanto, uma hipótese. Talvez Teixeira de Freitas não tenha querido criar uma regra de favor creditoris. Visava a apenas equilibrar o dispositivo. Ou seja, quando nenhuma regra determinasse o local do pagamento, seria ele o domicílio do devedor. Favor debitoris. Na remota hipótese de dois lugares serem convencionados, a escolha cabe ao credor. Diante da raridade da situação, seria uma forma de haver um pequeno equilíbrio frente a um significativo favor debitoris criado no mesmo artigo. Note que o Código faz algo parecido em outro dispositivo. O art. 329 dispõe: Art. 329. Ocorrendo motivo grave para que se não efetue o pagamento no lugar determinado, poderá o devedor fazê-lo em outro, sem prejuízo para o credor. Há uma aparência de favor creditoris. E realmente há um pequeno favor creditoris, mas, na prática, o favor debitoris é mais importante. Em casos de motivo grave para que não efetue o pagamento no local determinado, pode o devedor consignar, independentemente de culpa do credor para o acontecimento grave em questão, à custa do credor. Favor debitoris. ii) Deve a comissão de reforma do CC alterar o dispositivo? A derradeira pergunta do artigo é interessante. Toda mudança legislativa traz risco e insegurança jurídica. O dispositivo não trouxe problema algum nos seus mais de 100 anos de existência. Nesses casos, por menor que seja o risco trazido com a mudança, é melhor que não o assumamos. O artigo é estranho e traz quebra lógica, mas não traz problemas práticos. 1 Institutas, 3, 13. 2 Em tradução livre, obrigação é o vínculo jurídico pelo qual adstritos à necessidade de solver uma coisa, em conformidade com as normas de nossa cidade. 3 DEMOGUE, René. Traité des obligations en général. Tome I. Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1926, p. 16. 4 Em tradução livre, a obrigação é a situação jurídica que visa a uma ação ou abstenção de valor econômico ou moral que certas pessoas devem assegurar a sua realização. 5 COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 167. 6 Já no Direito Romano, por exemplo, a escolha do objeto exato que seria entregue em obrigações genéricas cabia ao devedor. Nas palavras de Moreira Alves, "No Direito Romano, a escolha da qualidade cabe ao devedor, salvo acordo em contrário. Por outro lado, no Direito clássico, quem escolhe pode dar (ou exigir, se for o credor) coisa da melhor ou da pior qualidade, a seu alvitre. Já no Direito justinianeu, a coisa deve ser de qualidade média (mediae aestimationis)." (ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. V.2. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 13). 7 Por todos, ALVIM, Agostinho. Inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949. 8 BARROS, Washington de. Manual de Direito Civil: Direito das Obrigações - Volume I. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 258. 9 SIMÃO, José Fernando. Comentários ao art. 327. In: TARTUCE, Flávio et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 10 CARVALHO SANTOS, João Monteiro de. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. v. 12, p.281. 11 NONATO, Orozimbo. Direito das obrigações. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1960, p. 240/241. 12 Nas palavras do ex-ministro Nelson Marques: "Seu esboço de Código Civil, não aproveitado no Brasil, serviu de base para o Código Civil da República Argentina. Quanto à Consolidação, seu mérito histórico é realçado pela visão da visceral repulsa ao escravismo manifestada pelo autor" (FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. 2 v. (Coleção História do Direito Brasileiro. Direito Civil), p. 9). 13 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil: comentado. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1953, p.17/18. Deste livro também foram retiradas as informações sobre a história da codificação, que é contada em detalhes por Beviláqua na parte inicial da seu Código Comentado.. 14 Em tradução livre: "Se alguém processar com base em uma estipulação de que dez sejam entregues em Éfeso ou, alternativamente, um escravo em Cápua, a petição não deve omitir nenhum dos locais, para que o réu não seja privado de uma vantagem geográfica." 15 Em tradução livre: "ULPIANO, Sabino, livro 47: Aquele que promete entregar algo em um determinado local não pode realizar a entrega em outro local, diferente do prometido, sem o consentimento do estipulante." 16 JUSTINIANO. Digestos. Tradução de Alan Watson. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1985. 1 v, D.13, 4, fr.2, §2º e D.13, 4, fr.9.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Panorama do direito contratual brasileiro em 2024

O ano de 2024 nos legou muitas mudanças na seara do direito contratual brasileiro, a saber: a) em 17 de abril de 2024, a Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão e pelo Ministro Marco Aurélio Belizze entregaram ao Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, o Anteprojeto de Código Civil. b) em 01 de julho de 2024 foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei n.º 14.905/2024 que mudou os arts. 389, 395, 404, 406, 418, 591, 772, 1.336, § 1º, do Código Civil, bem como alterou o Decreto n.º 22.626/1933. c) em 10 de dezembro de 2024 foi publicada no DOU a Lei n.º 15.040/2024, que dispõe sobre "normas de seguro privado; e revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966", revogando, segundo o art. 133 da citada Lei o "inciso II do § 1º do art. 206 e os arts. 757 a 802 da lei 10.406/02 (Código Civil), bem como os arts. 9º a 14 do decreto-lei 73, de 21 de novembro de 1966." O art. 134 da Lei n.º 15.040/2024 aponta que ela passará a vigorar em um ano após a publicação oficial, ou seja, em 10 de dezembro de 2025. O Anteprojeto de Reforma do Código Civil teve o objetivo de revisar e de atualizar a referida codificação, a fim de que se mantivesse sua unidade sistemática. A subcomissão de Contratos foi composta por expoentes do Direito Contratual brasileiro, como membros do IBDCONT, como as Professoras Angélica Carlini, Claudia Lima Marques, o Professor Carlos Eduardo Elias e o Professor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, cuja relatoria geral ficou submetida à Professora Rosa Nery e ao Professor Flávio Tartuce, este tendo sido o 1º Presidente do IBDCONT Nacional. No Relatório da subcomissão de contratos extrai-se que o texto proposto "buscou alinhar o Livro de Contratos do Código Civil às transformações sociais, econômicas e culturais desses últimos tempos. Cuidou-se de seguir a tradição do Direito Civil, em prestigiar os institutos milenarmente amadurecidos, sem, porém, fechar as portas para novos arranjos e comportamentos contratuais da sociedade. Também a Subcomissão velou para decantar, no texto legal, aquilo que a jurisprudência, a doutrina e a prática quotidiana vêm ostentando",1 sem olvidar a pesquisa da experiência jurídica estrangeira. A verificação da experiência jurídica estrangeira perpassou pela "jurisprudência, em Códigos Civis, em instrumentos de soft law (como os princípio Unidroit, o Draft Common Frame of Reference (DCFR), leis modelos do Uncitral) e em normas da União Europeia, com inclusão do Digital Services Act, que alterou a Diretiva Europeia sobre comércio eletrônico (Diretiva 200/31/EC)".2 Desse modo, no aludido relatório da subcomissão de contratos destacam-se as principais alterações pensadas para o Código Civil brasileiro: A autonomia privada é prestigiada como um dos faróis do Direito Contratual, por espelhar o direito dos cidadãos em se autodeterminarem. Todavia, notadamente nos casos de contratos não paritários, o Código Civil intervém para evitar abusos de direito. Nesse sentido, em diversas ocasiões, o texto do Código faz a distinção entre os contratos paritários e os não paritários, com o objetivo de evitar abusos nestes últimos (ut arts. 421-C; 421-D; 423; 532; 599, § 2º; 603, parágrafo único; 620, parágrafo único; 629, parágrafo único; 725, § 1º; 734, parágrafo único; 757-A; 762; 766, § 2º; 768, § 2º; 771, § 5º; 771-C; 786, §§ 2º e 3º; e 946-A). Também é reconhecido que a autonomia privada não pode ser exercida em agressão à função social, sob pena de censura do ordenamento, inclusive, quando for o caso, por meio da nulidade (art. 421, § 2º). Atenta à complexidade das relações interpessoais e de mercado, a Comissão reconhece as diferentes funções a que os contratos podem se prestar, além de atentar para as redes contratuais altamente sofisticadas. Sob essa ótica, o texto sugerido respeita os regimes jurídicos das leis especiais para determinadas relações contratuais, inclusive o regime mais livre e menos intervencionista dos contratos empresariais (arts. 421-A, 421-B, 421- E e 421-F). Também se abrem maiores espaços para o exercício da liberdade contratual, com permissão expressa a fideicomissos por ato entre vivos, sempre, porém, respeitados os limites das normas de ordem pública (art. 426- A). A boa-fé mantém seu papel de destaque no direito contratual, com eficácia pré-contratual, contratual e pós-contratual a guiar as partes e a credenciar determinadas reações do Direito, como as provenientes do inadimplemento (arts. 422 e 422-A). A aderência das regras contratuais às atuais tendências culturais e sociais foi um alvo constante dos trabalhos da Comissão. Disso resultou, por exemplo, a permissão expressa para que os nubentes possam traduzir sua vontade com maior liberdade nos pactos pré-nupciais ou pós-nupciais, inclusive com eventual renúncia recíproca e antecipada a direitos hereditários. Há, porém, limites, sempre em razão da preocupação com a parte mais vulnerável em relações contratuais não paritárias, a exemplo da presunção relativa de que a renúncia à herança não alcança o direito real de habitação ao viúvo (art. 426, §§ 1º a 5º). Não se ignora a digitalização do quotidiano das pessoas, com o aumento exponencial da formalização dos contratos de modo remoto. Além das bases jurídicas lançadas no Livro de Direito Digital, o Livro de Contratos também respalda juridicamente essa tendência desmaterializada de contratar. Dá-se respaldo jurídico, inclusive, aos smart contracts (contratos inteligentes), aos contratos de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, bem como aos meios de interação digital (arts. 428, § 1º; 435-A; 609-A a 609-G; 744; 759; 785; e 817-A). O tratamento jurídico para abalos supervenientes das bases contratuais também foi aprimorado. A resolução e a revisão contratual atravessam questões, como a avaliação dos riscos normais da contratação (art. 478), a frustração do fim do contrato (art. 480-A), o respeito a eventual cláusula de hardship (art. 480), a quebra antecipada do contrato (art. 477-A), a exceção de inseguridade (art. 477) e outras questões. O inadimplemento contratual alinha-se às tendências mais modernas, com desjudicialização na comprovação de cláusula resolutiva expressa (art. 474) e com o adimplemento substancial (art. 475-A). Contratos típicos de elevada aplicação prática são atualizados à luz das transformações sociais. Por exemplo, na doação conjuntiva feita a pessoas casadas, o direito de acrescer não será mais automático; dependerá de previsão expressa; tudo em respeito à realidade atual de famílias reconstituídas (art. 551). A fiança é robustecida em seu regime jurídico. Garante-se expressamente o direito do fiador em agir como substituto processual e suprir a morosidade do credor na excussão dos bens que ainda subsistem em nome do devedor (art. 836-B). Obriga-se o credor a manter o fiador atualizado acerca de inadimplementos do devedor, tudo com o objetivo de não frustrar a esperança do fiador em ainda encontrar bens penhoráveis do devedor (art. 836-A). Disciplina-se o Contrato de Distribuição Empresarial (art. 721- A) como um contrato típico autônomo, em atenção à sua elevada importância na prática empresarial. Em suma, os trabalhos da Comissão de Atualização do Código Civil foram baseados em juízos de prudência e cautela, em um espírito de continuidade das produções jurisprudenciais e doutrinárias que vêm acudindo os novos reclamos sociais. A sociedade e o mercado encontrarão, na Reforma do Livro de Contratos, mais segurança jurídica para a formalização jurídica da vontade dos cidadãos e dos agentes de mercado, em total sintonia com os primados do Estado de Direito.3 Concorda-se com Carlos Pianovski que a reforma visa atualizar o Código Civil e evitar a sua obsolescência, sem que com isso críticas leais e construtivas possam servir para o aprimoramento do Anteprojeto de Reforma do Código Civil.4 A lei 14.905/24 alterou os arts. 389, 395, 404, 406, 418, 591, 772, 1.336, § 1º, do Código Civil, assim como mudou o Decreto n.º 22.626/1933 e retomou o debate sobre os juros moratórios nas relações negociais. Há controvérsia quanto ao tema, o art. 406 do Código Civil agora tem a seguinte redação: Art. 406.  Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal § 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código. § 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil. § 3º  Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência.  Há controvérsias sobre uma eventual limitação posta aos juros moratórios a partir do texto do art. 406 do Código Civil e isso repercute nos demais artigos do Código Civil que envolvam o tema, como os arts. 389, 591, a Lei da Usura, etc. Existe doutrinador que entende pela revisitação do tema após a mudança do art. 406 do Código Civil: Com o advento da Lei nº 14.905/2024, contudo, torna-se necessário revisitar o tema. O afastamento da incidência da Lei da Usura para contratos entre pessoas jurídicas, ainda que fora do âmbito dos mercados financeiro de capitais ou de valores mobiliários (e, consequentemente, a extensão do regime do Código Civil a esses contratos), associado à incerteza quanto às externalidades da nova taxa legal adotada (por exemplo, o incentivo ao inadimplemento caso a diferença entre a Selic e o IPCA/IBGE resulte em taxa inferior à que poderia ser obtida em investimentos seguros e com liquidez) são alguns dos fatores que recomendam a reflexão sobre os limites à autonomia privada na definição da taxa de juros moratórios. Concluindo-se pela inexistência de um limite predefinido na legislação para as relações obrigacionais não submetidas à Lei da Usura, pode-se cogitar da superação do Enunciado nº 379 da Súmula do STJ e da concepção de critérios de limitação associados à função dos juros de mora no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, se os juros de mora visam a compensar o credor pelo tempo em que permaneceu privado do capital que lhe era devido, o estabelecimento de critérios de limitação vinculados, por exemplo, ao custo de captação de recursos no mercado pelo credor inadimplido, a exemplo do que dispõe o artigo 249 do Código Civil relativamente às obrigações de fazer, pode se revelar funcionalmente mais adequado que o limite de 1% ao mês.5 Não obstante isso, o Banco Central publicou a Resolução CMN nº 5.171, em 29 de agosto de 2024, que dispõe sobre a forma de cômputo da "taxa legal" e traz a fórmula a ser adotada para a operacionalização dos cálculos (Disponível aqui. Acesso em 13dez2024 ). O STJ ao julgar o Recurso Especial 1.795.982, cuja relatoria para acórdão foi do ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, publicado em 23.10.2024, decidiu: CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 406 DO CÓDIGO CIVIL. RELAÇÕES CIVIS. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. APLICAÇÃO DA SELIC. RECURSO PROVIDO. 1. O art. 406 do Código Civil de 2002 deve ser interpretado no sentido de que é a SELIC a taxa de juros de mora aplicável às dívidas de natureza civil, por ser esta a taxa "em vigor para a atualização monetária e a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". 2. A SELIC é taxa que vigora para a mora dos impostos federais, sendo também o principal índice oficial macroeconômico, definido e prestigiado pela Constituição Federal, pelas Leis de Direito Econômico e Tributário e pelas autoridades competentes. Esse indexador vigora para todo o sistema financeiro-tributário pátrio. Assim, todos os credores e devedores de obrigações civis comuns devem, também, submeter-se ao referido índice, por força do art. 406 do CC. 3. O art. 13 da Lei 9.065/95, ao alterar o teor do art. 84, I, da Lei 8.981/95, determinou que, a partir de 1º de abril de 1995, os juros moratórios "serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente". 4. Após o advento da Emenda Constitucional 113, de 8 de dezembro de 2021, a SELIC é, agora também constitucionalmente, prevista como única taxa em vigor para a atualização monetária e compensação da mora em todas as demandas que envolvem a Fazenda Pública. Desse modo, está ainda mais ressaltada e obrigatória a incidência da taxa SELIC na correção monetária e na mora, conjuntamente, sobre o pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, sendo, pois, inconteste sua aplicação ao disposto no art. 406 do Código Civil de 2002. 5. O Poder Judiciário brasileiro não pode ficar desatento aos cuidados com uma economia estabilizada a duras penas, após longo período de inflação galopante, prestigiando as concepções do sistema antigo de índices próprios e independentes de correção monetária e de juros moratórios, justificável para uma economia de elevadas espirais inflacionárias, o que já não é mais o caso do Brasil, pois, desde a implantação do padrão monetário do Real, vive-se um cenário de inflação relativamente bem controlada. 6. É inaplicável às dívidas civis a taxa de juros moratórios prevista no art. 161, § 1º, do CTN, porquanto este dispositivo trata do inadimplemento do crédito tributário em geral. Diferentemente, a norma do art. 406 do CC determina mais especificamente a fixação dos juros pela taxa aplicável à mora de pagamento dos impostos federais, espécie do gênero tributo. 7. Tal entendimento já havia sido afirmado por esta Corte Especial, por ocasião do julgamento do EREsp 727.842/SP, no qual se deu provimento àqueles embargos de divergência justamente para alinhar a jurisprudência dos Órgãos Colegiados internos, no sentido de que "a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais" (Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 8/9/2008 e publicado no DJe de 20/11/2008). Deve-se reafirmar esta jurisprudência, mantendo-a estável e coerente com o sistema normativo em vigor. 8. Recurso especial provido. Percebe-se uma diferença entre o texto legal após a lei 14.905/24, cuja referência da taxa de juros é a SELIC e a correção pelo IPCA, o julgado do STJ entendeu que "os efeitos da mora sejam calculados pela taxa Selic, que combina atualização monetária e juros compensatórios".6 A lei 15.040/24 é reconhecida como novo marco teórico dos seguros tendo detalhado a formação, vigência, cessão e liquidação de contratos de seguro, podendo-se destacar: Somente podem pactuar contratos de seguro entidades que se encontrem devidamente autorizadas na forma da lei. Para evitar insegurança jurídica nos contratos, os riscos e os interesses excluídos da cobertura devem ser descritos de forma clara e de forma que não deixe dúvidas. Se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado. O contrato não poderá conter cláusula que permita sua extinção unilateral pela seguradora ou que, por qualquer modo, subtraia sua eficácia além das situações previstas em lei. Caso haja redução relevante do risco, o valor do prêmio será reduzido proporcionalmente, descontadas, na mesma proporção, as despesas realizadas com a contratação. Sob pena de perder a garantia, o segurado não deve agravar intencionalmente e de forma relevante o risco objeto do contrato de seguro, devendo o segurado comunicar à seguradora em caso de relevante agravamento do risco tão logo dele tome conhecimento. Ciente do agravamento, a seguradora poderá, no prazo de 20 (vinte) dias, cobrar a diferença de prêmio ou, se não for tecnicamente possível garantir o novo risco, resolver o contrato, hipótese em que este perderá efeito em 30 (trinta) dias contados do recebimento da notificação de resolução. Nos seguros sobre a vida e a integridade física, mesmo em caso de relevante agravamento do risco, a seguradora somente poderá cobrar a diferença de prêmio. Recebida a proposta, a seguradora terá o prazo máximo de 25 (vinte e cinco) dias para cientificar sua recusa ao proponente, ao final do qual será considerada aceita. Além disso, considera-se igualmente aceita a proposta pela prática de atos inequívocos, tais como o recebimento total ou parcial do prêmio ou sua cobrança pela seguradora. A seguradora poderá solicitar esclarecimentos ou produção de exames periciais, e o prazo para a recusa terá novo início, a partir do atendimento da solicitação ou da conclusão do exame pericial. Para a validade da recusa, em qualquer hipótese, a seguradora deverá comunicar sua justificativa ao proponente. Via de regra, o contrato presume-se celebrado para vigorar pelo prazo de 1 (um) ano, salvo quando outro prazo decorrer de sua natureza, do interesse, do risco ou da vontade das partes. A seguradora é obrigada a entregar ao contratante, no prazo de até 30 (trinta) dias, contado da aceitação, documento probatório do contrato. O contrato de seguro deve ser interpretado e executado segundo a boa-fé. Se da interpretação de quaisquer documentos elaborados pela seguradora, tais como peças publicitárias, impressos, instrumentos contratuais ou pré-contratuais, resultarem dúvidas, contradições, obscuridades ou equivocidades, elas serão resolvidas no sentido mais favorável ao segurado, ao beneficiário ou ao terceiro prejudicado. É válido o pagamento feito diretamente pela resseguradora ao segurado, quando a seguradora se encontrar insolvente. Ao tomar ciência do sinistro ou da iminência de seu acontecimento, com o objetivo de evitar prejuízos à seguradora, o segurado (ou o beneficiário, no que couber) é obrigado a: I - tomar as providências necessárias e úteis para evitar ou minorar seus efeitos; II - avisar prontamente a seguradora, por qualquer meio idôneo, e seguir suas instruções para a contenção ou o salvamento; III - prestar todas as informações de que disponha sobre o sinistro, suas causas e consequências, sempre que questionado a respeito pela seguradora. Em caso de sinistro, a seguradora terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias para manifestar-se sobre a cobertura, sob pena de decair do direito de recusá-la, contado da data de apresentação da reclamação ou do aviso de sinistro pelo interessado, acompanhados de todos os elementos necessários à decisão a respeito da existência de cobertura. A seguradora ou o regulador do sinistro poderão solicitar documentos complementares, de forma justificada, ao interessado, desde que lhe seja possível produzi-los. Solicitados documentos complementares dentro do prazo estabelecido, o prazo para a manifestação sobre a cobertura suspende-se por no máximo 2 (duas) vezes, recomeçando a correr no primeiro dia útil subsequente àquele em que for atendida a solicitação. O prazo somente pode ser suspenso 1 (uma) vez nos sinistros relacionados a seguros de veículos automotores e em todos os demais seguros em que a importância segurada não exceda o correspondente a 500 (quinhentas) vezes o salário mínimo vigente. A autoridade fiscalizadora poderá fixar prazo superior a 30 (trinta) dias para tipos de seguro em que a verificação da existência de cobertura implique maior complexidade na apuração, respeitado o limite máximo de 120 (cento e vinte) dias. Nos casos de seguros sobre a vida e a integridade física, se a seguradora, ciente do sinistro, não identificar beneficiário ou dependente do segurado para subsistência no prazo prescricional da respectiva pretensão, o capital segurado será tido por abandonado e será aportado no Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap). O beneficiário não terá direito ao recebimento do capital segurado quando o suicídio voluntário do segurado ocorrer antes de completados 2 (dois) anos de vigência do seguro de vida. Com relação à prescrição, prescrevem: I - em 1 (um) ano, contado da ciência do respectivo fato gerador: a) a pretensão da seguradora para a cobrança do prêmio ou qualquer outra pretensão contra o segurado e o estipulante do seguro; b) a pretensão dos intervenientes corretores de seguro, agentes ou representantes de seguro e estipulantes para a cobrança de suas remunerações; c) as pretensões das cosseguradoras entre si; d) as pretensões entre seguradoras, resseguradoras e retrocessionárias; II - em 1 (um) ano, contado da ciência da recepção da recusa expressa e motivada da seguradora, a pretensão do segurado para exigir indenização, capital, reserva matemática, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias e restituição de prêmio em seu favor; III - em 3 (três) anos, contados da ciência do respectivo fato gerador, a pretensão dos beneficiários ou terceiros prejudicados para exigir da seguradora indenização, capital, reserva matemática e prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias. O foro competente para as ações de seguro é o do domicílio do segurado ou do beneficiário, salvo se eles ajuizarem a ação optando por qualquer domicílio da seguradora ou de agente dela. A Lei entrará em vigor 1 ano após sua publicação.7   O marco legal do seguro deverá passar por uma depurada análise da doutrina e dos Tribunais, sendo certo que a lei contém polêmicas. A título de exemplo, o prazo prescricional de três anos posto no inciso III do art. 126 da Lei n.º 15.040/2024, bem como o art. 127 da mesma lei contrariam o Enunciado 229 da Súmula do STJ: "O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão". Parece que a proposição do Anteprojeto de Reforma do Código Civil, talvez, tenha sido mais precisa na modificação do tema dos seguros em comparação com a lei 15.040/24, porém este assunto poderá ser abordado em outro texto, pois este é um texto anunciando as principais modificações legislativas no Direito dos Contratos no Brasil em 2024. Desejo às pessoas boas festas e um esplêndido 2025. _____ 1 Texto do Anteprojeto está disponível aqui. Acesso em 12dez2024. 2 Texto do Anteprojeto está disponível aqui. Acesso em 12dez2024. 3 Texto do Anteprojeto está disponível aqui. Acesso em 12dez2024. 4 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. O Direito Contratual no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 13.dez.2024. 5 VIÉGAS, Francisco de Assis. Lei nº 14.905: limites à autonomia privada na pactuação dos juros de mora. Disponível aqui. Acesso em 13dez.2024. 6 A doutrina aponta: "Fato é que, portanto, a partir de 30/8/24, prevalece o estabelecido na lei 14.905/24 acima mencionado, conforme a nova redação dos arts. 389 e 406 do CC, e a resolução 5171/247. Importante mencionar que, caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência. A mudança legislativa, portanto, visa a proporcionar uma base normativa mais sólida, com uma maior segurança jurídica e previsibilidade às relações de direito privado. Essa reforma legislativa reflete um esforço para alinhar o ordenamento jurídico às demandas atuais, trazendo maior clareza quanto à aplicação de correção monetária e juros moratórios, o que simboliza um importante avanço para a estabilidade das relações civis e comerciais no país. Lembre-se que essa norma tem caráter supletivo, sendo aplicada apenas na ausência de previsão contratual que estabeleça um índice de atualização ou taxa de juros distintos". Figueiredo, Elisa Junqueira;  Soranz, Victória. Update sobre os efeitos da mora. Disponível aqui. Acesso em 13.dez.2024. 7 Lei do Contrato de Seguro é publicada. Disponível aqui. Acesso em 13.dez2024.
1. Introdução Em meados de abril de 2024, foi apresentado ao Senado Federal o anteprojeto de revisão e atualização do CC de 2002. A Comissão responsável pela sua elaboração foi formada por 38 juristas, mulheres e homens provenientes de várias regiões do Brasil e representando diferentes profissões jurídicas1.  Coerente com a época atual, em que se percebe a polarização inflamada de diversos assuntos cotidianos, o anteprojeto de reforma do CC não passou incólume pelas dicotomizações que empobrecem os debates e pelas fake news. Para alguns imperioso, para outros indesejado, é papel da doutrina se debruçar sobre o novo texto legal enunciado, a fim de apontar suas virtudes e insuficiências, apresentando, quando possível, sugestões de aprimoramento. Eis que, dentre as propostas de alteração do código, há uma instigante reconfiguração do instituto do fideicomisso, figura hodiernamente em desuso, mas que poderá reemergir oferecendo inúmeras possibilidades de utilizações práticas, como, por exemplo, em planejamentos patrimoniais e sucessórios. O presente artigo visa tecer primeiras considerações sobre as propostas de alteração do regime legal do fideicomisso. Inicialmente, é abordado sinteticamente o regramento atual do instituto no CC de 2002 e as descontinuidades com o CC de 1916, que lhe conferia um campo de aplicação mais amplo. Em prosseguimento, são examinadas as principais mudanças propostas no anteprojeto sobre o fideicomisso. Por fim, são apresentadas sugestões e ponderações no ensejo de contribuir, ainda que singelamente e no limite deste breve ensaio, sobre o "novo fideicomisso". 2. O fideicomisso no CC de 2002 Embora hoje em dia seu uso seja infrequente e, por essa razão, tenha sido relegado ao esquecimento, o fideicomisso já foi mais valorizado pela lei e doutrina brasileiras em épocas passadas, tendo sido objeto de estudo de juristas de escol2. O código de 2002 recebeu uma seção específica para tratar da substituição fideicomissária3, determinação realizada via testamento de transmissão de herança ou legado em favor de um fiduciário para que, ocorrendo a morte desse ou ocorrendo determinado termo ou condição, tais bens sejam transmitidos em caráter definitivo a um terceiro, o fideicomissário. Logo, a substituição fideicomissária possui uma estrutura tripartite: em primeiro lugar, o fideicomitente, que é o testador, o qual decide instituir o fideicomisso; em segundo lugar, há o fiduciário, que no momento da morte do fideicomitente receberá em caráter resolúvel os bens objeto do fideicomisso. Seus deveres são os de conservar tais bens e ocorrendo o termo ou a condição estabelecida pelo fideicomitente, transmiti-los ao fideicomissário, de modo que sua propriedade será resolúvel. O fideicomissário será o titular em caráter permanente dos bens. O fideicomisso pode ser universal, recaindo sobre todos os bens deixados em herança, ou particular, incidindo apenas sobre bens determinados. A substituição fideicomissária promove uma única sucessão, mas com ordens sucessivas. Por esta razão, consoante afirmou Pontes de Miranda, o fideicomisso não configura verdadeira substituição testamentária, pois o fiduciário não é simplesmente trocado pelo fideicomissário4. A beleza do fideicomisso está justamente em permitir que o mesmo bem seja fruído por mais de um sujeito, porém em momentos diferentes, apresentando, em tese, inúmeras potencialidades. Uma importante ruptura separa o CC de 1916 do CC de 2002 no que tange ao fideicomisso: O fato de o atual art. 1.952 determinar que a substituição fideicomissária "somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador"5, isto é, a prole eventual6. A opção do codificador de 2002 de reduzir drasticamente o número de situações passíveis de instituição de fideicomisso tornou o instituto de pouca serventia e aplicação prática escassa na atualidade. Além disso, para a doutrina majoritária, a instituição de fideicomisso só pode ocorrer em testamento, sendo vedada a sua inserção em cláusula contratual, pois representaria afronta à vedação do pacta corvina, previsto no art. 426 do CC7. Nesse sentido, prevê o enunciado 529 da V jornada de Direito Civil do CJF: "O fideicomisso, previsto no art. 1.951 do CC, somente pode ser instituído por testamento". Logo, o fideicomisso no tempo presente está sendo uma figura de parca utilização. Todavia, pela semelhança de sua estrutura tríplice com os trusts e as inúmeras funções que poderia desempenhar, tem sido mencionado em projetos de lei que visam lhe atribuir nova roupagem, potencializando a sua aplicação8. 3. O fideicomisso no anteprojeto de reforma do CC Diferente de muitas das propostas de alteração do CC, a reconfiguração do fideicomisso não representa a cristalização da jurisprudência. Em realidade, parte do acolhimento das críticas de seu estado atual de desuso e do cotejo com o direito comparado, o que já motivou a propositura de projetos de lei que permitam uso alargado do fideicomisso, tornando-o uma espécie de trust à brasileira9. No anteprojeto, para que se viabilize o "novo fideicomisso", foram realizadas alterações em vários dispositivos. Passa-se ao exame de tais formulações, principiando, por ordem topográfica, pela parte geral. Ainda que não haja remissão direta ao fideicomisso, a proposição de nova redação ao art. 91 do código pode impactar no seu bom funcionamento, uma vez que corresponde ao que se entende por patrimônio. Em um primeiro olhar, pode-se pensar que a sugestão de mudança contemplaria a teoria contemporânea do patrimônio, a qual concebe que uma mesma pessoa possa ser titular de mais do que um patrimônio, permitindo a criação de patrimônios de afetação. Isso seria positivo para reforçar a ideia que os bens submetidos ao fideicomisso constituiriam um patrimônio afetado, o que poderia representar maior segurança, sobretudo para os fideicomissos inter vivos. Contudo, a proposta contempla a expressão "experimentadas por uma ou mais pessoas, conforme assim se tenha estabelecido", que ficou pouco compreensível e não captou a essência das teorias contemporâneas. Neste ponto, modestamente, se aconselha uma emenda e como norte indica-se o art. 2º da Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. No livro de Contratos, o anteprojeto introduz o art. 426-A, por meio do qual "é admitido o fideicomisso por ato entre vivos, desde que não viole normas cogentes e de ordem pública". Esta modificação representará uma verdadeira revolução para o fideicomisso, que poderá, então, ser utilizado amplamente em negócios jurídicos, tais como compra e venda, doação, pactos societários, dentre outros. Importante a cautela do legislador ao reforçar a necessária observância das normas de ordem pública, para que esta proposta tão promissora, não seja desvirtuada e empregada no cometimento de fraudes. No livro de Sucessões, foram feitas diversas mudanças no regramento da substituição fideicomissária. Inicialmente, o enunciado proposto para o art. 1.951 repara a limitação desacertada operada na passagem do código Beviláqua para o de 2002. Na proposição consta que o fideicomissário poderá ser "pessoa jurídica ou natural, já nascida ou concebida, ou ainda pessoas não concebidas, determinadas ou determináveis", expandindo consideravelmente o alcance do instituto. No dispositivo subsequente, descreve-se como um fideicomisso poderá ser estruturado com a participação de um fiduciário que seja gestor profissional dos bens a ele transferidos, de modo extremamente semelhante ao que ocorre nos trusts, em que é frequente a utilização de trustees profissionais. Neste ponto, cabe destacar que esta maneira de planejamento patrimonial poderá beneficiar sujeitos vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, além de permitir a sucessão hereditária por etapas10. Todavia, é preciso cautela para que não haja a deturpação de sua vocação para finalidades merecedoras de tutela, mormente em nosso país, em que as instituições financeiras e assemelhadas gozam de privilégios que nem sempre são coerentes com a proteção dos cidadãos. O anteprojeto também deixa claro que poderão fazer parte da instituição do fideicomisso "quaisquer bens e direitos, incluindo os bens digitais" (art. 1.952-A) e no art. 1.952-B estão arrolados os elementos mínimos que devem constar na cláusula testamentária que cria o fideicomisso, contribuindo para que sua instituição seja inequívoca e assertiva. Do mesmo modo, ratifica as responsabilidades e deveres do fiduciário, prestigiando a vontade do testador. Digna de registro é a redação prevista no art. 1.953-A, segundo a qual: "(p)ode ser fideicomissa'rio qualquer sujeito de direito, ente juri'dico despersonalizado ou pessoa determinável, ainda que não concebida no momento da instituição do fideicomisso". Deste modo, o fideicomisso realmente poderá ser útil em diversas situações de planejamento patrimonial ou sucessório, sem prejuízo de ser coligado a outras figuras. Pelo exposto, percebe-se que, em aprovada a reforma, o fideicomisso terá maior campo de aplicabilidade, podendo desempenhar papel de maior protagonismo no ordenamento jurídico brasileiro. O conhecimento de sua forma de funcionamento será fundamental para todos os profissionais da área jurídica. Alguns dos leitores podem se sentir tentados a aguardar o andamento do anteprojeto para iniciarem seus estudos. Todavia, a lei que rege a sucessão é a vigente ao tempo de sua abertura11. Isso significa que, para a boa prática profissional, as consultas jurídicas realizadas pela advocacia devem ao menos considerar a hipótese de que quando futuramente houver o falecimento do cliente, a lei poderá ter sido alterada. 4. Considerações finais As propostas de remodelação do fideicomisso são alvissareiras. Exigiram um trabalho coordenado das subcomissões (em especial de contratos e sucessões), que resultou em uma proposta de alteração legislativa corajosa e arrojada. Certamente é uma das 'joias' escondidas do anteprojeto. A opção por resgatar e aprimorar institutos com os quais já temos familiaridade é muito mais produtiva. Espera-se que o futuro reserve ao fideicomisso maior aplicação prática e versatilidade para colmatar lacunas e oferecer soluções adequadas, sem descuidar das cautelas necessárias para que não tenha seu uso desvirtuado.   ________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 05/11/24. 2 Dentre diversos escritos sobre o tema, destacam-se os pareceres proferidos por Alfredo Bernardes, Carlos Maximiliano, Clovis Beviláqua, Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato, que constam na obra a seguir: VALLADÃO, Haroldo. Enfim... Fideicomisso!. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942. 3 Vide artigos 1.951 a 1.960 do CC de 2002. 4 "Num só capítulo, o CC (1916) juntou dois institutos de natureza diversa, e só semelhantes na aparência: a substituição vulgar e o fideicomisso. Naquela há, realmente, uma substituição, - uma pessoa fica no lugar que tocava a outra; nesse, não: uma foi, ou é, até certo tempo, ou até certo fato, e depois outra lhe sucede na herança. Não a substitui, vem-lhe depois. Os juristas constroem-na como instituição condicional; sem que isso lhe obste poder ser ela mesma condicional nos casos em que o pode ser a instituição do herdeiro ou legatário". (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Direito das sucessões: sucessão testamentária, disposições testamentárias e formas ordinárias de testamento. Atual. por Giselda Hironaka e Paulo Lôbo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. Coleção tratado de direito privado: parte especial, 58, p. 145). 5 Art. 1.952 do CC de 2002: "A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário". 6 O código Beviláqua previa a possibilidade de a prole eventual herdar via testamento, desde que expressamente determinado pelo testador e que quando do falecimento desse a prole eventual fosse existente. No CC de 2002, ao contrário, não é necessário estar concebido ou nascido no momento da morte do testador. Exige-se apenas que em até dois anos contados da abertura da sucessão esteja concebido. 7 Art. 426 do CC de 2002: "Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". 8 A título de ilustração, mencionam-se os projetos de lei do Senado 487/13 e 4.758/20. 9 Sobre as semelhanças e dessemelhanças entre fideicomisso e trust, toma-se a liberdade de remeter a trabalho mais aprofundado da autora: XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 143 e ss.   10 Desenvolve-se com mais detalhes essas ideias em: XAVIER, Luciana Pedroso. O trust e suas potencialidades no planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 509-525. Tomo III. 11 Art. 1.787 do CC de 2002: "Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela".
I. Introdução O texto procura fornecer um panorama geral do tema da racionalidade limitada aplicada aos contratos, apresentando o essencial sobre o tema, algumas das discussões mais relevantes e possíveis implicações no ordenamento jurídico brasileiro.  O ponto de partida escolhido foi a lei da liberdade econômica, embora a questão da racionalidade limitada seja muito tratada e dispense qualquer arcabouço positivo, eis que verificada por farta doutrina e por experimentos empíricos que confirmam a hipótese de sua incidência no campo contratual.  Também é proposta uma intersecção entre Direito, economia e psicologia através da apresentação da AED - Análise Econômica do Direito e da Economia Comportamental, e como elas podem ser utilizadas no âmbito do direito contratual.  A lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) alterou o art. 113, do CC, que regula o tema da interpretação dos negócios jurídicos, interessando para o presente texto o disposto no parágrafo primeiro, inciso V, que estabelece:  "A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração". Tendo o dispositivo acima como ponto de partida, passa-se à exposição dos argumentos. II. Law and economics e behavioral law and economics O dispositivo introduziu no direito brasileiro o tema da racionalidade econômica, reconhecendo em grande parte a influência e importância da economia para o Direito, especialmente para os contratos. Destaca-se a corrente conhecida por L&E - Law and Economics e a sua mais recente variação, conhecida por BL&E - Behavioral Law and Economics, popularizadas mundialmente por obras de autores como Coase, Becker, Posner, Taller, Sunstein e Kahnemann1. Tais obras sustentam, em apertada síntese, que Direito e economia caminham juntas em diversas áreas e que podem colaborar reciprocamente para a solução de questões jurídico-econômicas.  Assim, embora não seja estranho ou desconhecida a tese de que o sistema jurídico influencia a produção de riquezas em uma sociedade, a análise econômica do direito vai além e busca explicar como o indivíduo reage às normas jurídicas valendo-se, para tanto, do instrumental da economia. Sinteticamente, a L&E busca avaliar as consequências e os motivos das escolhas humanas, permitindo uma nova compreensão do cenário jurídico, inclusive para situações futuras.   Essa perspectiva é possível uma vez que a ciência econômica é acima de tudo uma ciência comportamental, pois, para os economistas, a relação das pessoas com o mundo é explicada por elas agirem e serem governadas por regras que atingem diretamente a racionalidade humana. Sob a perspectiva da Teoria da Escolha Racional2, os agentes econômicos são seres absolutamente estraordinários, porque são capazes de possuir preferências definidas e estáveis; conseguem processar todas as informações para calcular e comparar dentre as diversas escolhas possíveis qual é a melhor e tomam decisões sempre ótimas, que maximizam perfeitamente a utilidade esperada.  Como é possível observar, o padrão comportamental da Teoria da Escolha Racional parte da ideia hipotética de que todo indivíduo tem acesso e compreensão de todas as informações relevantes para a tomada de decisão. Entretanto, a realidade contradiz essa premissa, tanto que Herbert Simon apresentou uma crítica contundente ao modelo quando enunciou e até demonstrou que os indivíduos possuem limitações cognitivas que comprometem a sua racionalidade plena, razão pela qual exprime a ideia de racionalidade limitada a partir da verificação objetiva de que existem limitações cognitivas que comprometem a visão de racionalidade plena, inaugurando a chamada Economia Comportamental.3 Essa corrente questiona os postulados da economia clássica que defendia a existência do "homo economicus", um ser completamente racional, mas que somente existia nos livros. Assim, o indivíduo da racionalidade limitada é mais factível, porque substitui "o objetivo da maximização pelo da satisfação, substitui a exigência do ótimo pela do meramente suficiente, daquilo que basta para se poder agir".4 Aprofundando o tema, pesquisas de Richard Thaler5, Daniel Kahneman e Amos Tversky6 7-  demonstraram a existência de uma multiplicidade de fatores capazes de influenciar o processo de tomada de decisão, pois os indivíduos utilizam heurísticas, ou atalhos mentais que facilitam a tomada de decisões ditas complexas. Essas heurísticas, por sua vez, podem ser contaminadas por vieses cognitivos, ou seja, distorções no processo de julgamento das informações disponíveis, causando erros previsíveis nas decisões. Deste modo, ao tomar decisões, as pessoas cometem erros previsíveis por se apoiarem em heurísticas que resultam em vieses comportamentais. Assim, estudos em conjunto de psicólogos e economistas verificaram que a maximização da utilidade não é o único fator que motiva o comportamento humano, existindo outros fatores que devem ser considerados, inclusive subjetivos, como bem-estar e justiça, além, é claro, da sujeição à diversas heurísticas e vieses que podem levar a erros na tomada de decisão. A transposição dessas lições para a área contratual é inerente. O indivíduo que celebra contratos possui racionalidade limitada condicionada por heurísticas e vieses que acabam por influenciar a decisão final. Esse fator passa a ser objeto de considerações e deve ser acolhida pela literatura jurídica, na medida em que não é possível dissociar o plano do contrato da decisão que leva até ele.  III. Racionalidade limitada e contratos incompletos A racionalidade econômica dos indivíduos é limitada e isso impacta a forma de compreensão do contrato. A carga cognitiva necessária para compreender o contrato é variável, porque envolve considerar muitas contingências que podem não ser retratadas no contrato celebrado entre as partes. É muito complexo estabelecer um conjunto de cláusulas que abarque a totalidade de variáveis envolvidas numa determinada relação, motivo pelo qual as partes costumam empregar mecanismos cognitivos de simplificação, as heurísticas e vieses.  Heurísticas são espécies de atalhos mentais que o indivíduo emprega no processo de tomada de decisão, para evitar ter que processar e separar toda informação disponível a respeito do negócio que se pretende firmar e ver retratado em um contrato. Vieses, por sua vez, são padrões de distorção que empregamos no processo de tomada de decisão, desvios lógicos que levam a decisões irracionais. Como os indivíduos costumam utilizar informações ao nível satisfatório e não ótimo ou completo, valem-se de heurísticas e vieses cognitivos para encurtar esse processo de tomada de decisão, o que pode levar a erros ou decisões irracionais que acabam por macular o objetivo do contrato.  Isso leva ao tema dos contratos incompletos. Em geral é muito caro produzir um contrato completo, por diversos motivos. A alocação de tempo, as contingências necessárias para todas as variáveis de potencial descumprimento, os custos de oportunidade envolvidas, dentre outros elementos necessários para buscar um contrato completo podem ser tão expressivos que os custos de transação se tornam proibitivos para celebrar o contrato, e não é esse o objetivo das partes. Elas querem e desejam celebrar o contrato e por isso contentam-se com um nível satisfatório de informações que levam a cláusulas e condições contratuais incompletas. A incompletude, portanto, tem um certo grau de intencionalidade das partes que precisa ser ponderada no momento de se interpretar o contrato. Em certa medida as partes escolhem no contrato um nível de "ignorância racional"8 para tomar a decisão de celebrar este ou aquele contrato, por incluir ou não incluir esta ou aquela cláusula e assim sucessivamente. Por exemplo, não é incomum verificar contratos de longa duração de fornecimento de insumos elaborados de forma relativamente simples, porque as partes depositaram na confiança e na reputação boa parte das expectativas em torno da solução de futuros estados de mundo, eis que, por ser um contrato de longa duração, seria impossível prever todas as contingências possíveis sem incorrer em elevados custos de transação que poderiam levar à não celebração do contrato. O grau de confiança e a reputação são fatores importantes e geralmente considerados na celebração de contratos, e que fazem as partes escolherem uma à outra. Por outro lado, isso por si não é uma garantia inequívoca de que o contrato será totalmente cumprido e que condutas oportunistas não poderão surgir ao longo da vida do contrato, todavia, continuam sendo um indicador para juízos de ponderação para a tomada de decisão a respeito de contratar ou não contratar.  A liberdade de contratar tem custos que as partes precisam incorrer, por isso a opção, muitas vezes, pelos contratos incompletos. Comecemos pela definição de um contrato completo, que é aquele em que as partes conseguem prever, ex ante, todas as contingências contratuais futuras, constituindo um modelo ideal que leva em consideração fatores que facilmente se constatam como inexistentes. São eles: custos de transação zero, racionalidade ilimitada dos contratantes e informações perfeitas e simétricas. Esse cenário é geralmente irreal.  A visão mais realista aponta para os contratos incompletos, que garantem uma estrutura de governo ativa e funcional, endógena e exógena capaz de disciplinar e oferecer soluções eficientes para situações futuras e incertas que afetem os resultados pretendidos pelas partes quando da formação dos contratos.9 A racionalidade econômica limitada facilmente nos leva à opção das partes por deixar pontos vagos ou imprecisos no contrato para reduzir os custos de transação na fase de negociação. Portanto, é nesta fase que a incompletude se revela, mas que se materializa no contrato. Por esse motivo, algumas vezes não é possível encontrar na fase de negociação nenhuma tratativa a respeito de um determinado evento futuro e incerto simplesmente porque as partes optaram por isso, uma espécie de "ignorância racional'. IV. A racionalidade limitada dos tribunais Partes insatisfeitas com um contrato costumam recorrer aos tribunais. Nesse momento elas adicionam uma terceira "parte" que também possui racionalidade limitada e que, por isso, terá dificuldades em preencher as lacunas contratuais que foram, em certa medida, intencional e deliberadamente deixadas pelas partes contratantes. Assim, os tribunais são chamados a concluir contratos que foram deixados incompletos pelos próprios contratantes. O contrato é capaz de descrever direitos e obrigações das partes em estados alternativos do mundo que não existiam no momento da celebração. Assim, na formação do contrato são levadas em consideração fatos do passado e do presente, mas o contrato serve para regular situações hipotéticas futuras inexistentes naquele momento, as quais podem ou não se verificar objetivamente. Os contratantes, portanto, muitas vezes optam por não atribuir obrigações em estados futuros possíveis porque isso pode ser muito custoso.   Logo, a tendência é de que, por serem limitadamente racionais, os indivíduos precificarão um número limitado de hipóteses futuras como parte de sua decisão de contratar, o que pode levar a que os termos escolhidos para formar o contrato não sejam eficientes o suficiente para resolver potenciais desacordos no momento do cumprimento do contrato.  Basicamente seriam dois os mecanismos disponíveis para solucionar essa lacuna. Os contratantes estabelecem no próprio contrato formas de suprir futuros estados do mundo através de uma renegociação, estabelecendo o modo e a forma como ela poderá ocorrer; ou então, buscam uma decisão adjudicatória junto ao tribunal.  O tribunal, por sua vez, precisa estabelecer mecanismos, a partir da sua própria racionalidade limitada, para tomar a decisão adjudicatória necessária para suprir a incompletude contratual deixada pelas partes. Nessa situação, o tribunal costuma estar assimetricamente informado, e verdadeira desvantagem em relação às partes que firmaram o contrato, porque cada uma delas possui um conjunto de informações que pode ou não trazer à discussão e apreciação do tribunal. Cabe ao tribunal buscar suprir essa lacuna informacional adotando mecanismos probatórios suficientemente abrangentes e aponto de reduzir ao menos em parte a assimetria de informação que paira sobre ele no momento de tomar a decisão.  Para essa tarefa, existe o art. 113, parágrafo primeiro, inciso V, do CC, que estabeleceu uma espécie de "equação" para essa tarefa, um modelo interpretativo aplicável aos contratos, como será adiante apresentado.  V. A racionalidade econômica do art. 113 do CC A primeira parte da equação prevista no art. 113, do CC, envolve compreender o que seria a razoável negociação das partes para o contrato. A segunda parte propõe inferir- deduzir, tirar por conclusão - o que seria razoável das (i) demais disposições contratuais e (ii) da racionalidade econômica das partes, para, dessa forma, obter a melhor interpretação para o contrato incompleto.  Finalmente, a legislação reconhece que na equação a assimetria de informações deve ser considerada levando em conta o momento em que o contrato é celebrado. Sendo assim, embora o contrato trate de futuros estados de mundo, tomará por base as informações que as partes dispunham quando celebraram o contrato.  A primeira parte da equação afirma que a interpretação "deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida". Portanto, envolve conhecer as condições sobre as quais as partes negociaram as cláusulas do contrato. O momento que antecede a formação de um contrato envolve esforços consideráveis das partes para suprir a natural assimetria de informação presente. Cada parte vai avaliar o nível de informação de que dispõe e que pretende ainda obter visando a celebração do contrato, pois, para obter a informação, são despendidos custos consideráveis de tempo. Adicionalmente, algumas informações são públicas e, portanto, facilmente acessíveis a custos relativamente baixos. Entretanto, outras informações são do tipo privadas e obtê-las envolve custos que as partes podem não querer incorrer. Essa fase também envolve analisar a informação obtida, processando-a para poder extrair o conteúdo necessário para reduzir ou eliminar uma dada assimetria informacional. Embora seja uma fase muito importante, as partes são orientadas segundo a sua racionalidade limitada e podem contentar-se, não com um nível ótimo de informações, mas com um nível suficiente e não necessariamente exauriente, dados os custos envolvidos.                    Obtida e processada a informação, as partes partem para a negociação que precisa ser razoável. Mas o que é razoável? Essa avaliação depende de uma série de circunstâncias próprias de cada contrato e das partes envolvidas. Em algumas oportunidades a "razoável negociação" para uma das partes envolve custos de transação relevantes e a inserção de cláusulas indesejáveis que podem inviabilizar a celebração do contrato. As partes envolvidas também podem ter posições jurídico-econômicas diferentes, de tal sorte que a "razoável negociação" não é algo uniforme, variando para cada uma das partes envolvidas em grau e extensão. Razoável não significa equilibrada. E razoável remete à razão, a racional. Portanto, é preciso avaliar a "razoável negociação" a partir da racionalidade limitada dos agentes envolvidos no contrato.  Em seguida, o artigo estabelece que essa "razoável negociação" deve ser inferida das demais disposições do negócio. O termo "inferida" remete a deduzir, o que se faz raciocinando e, portanto, novamente à luz da racionalidade limitada própria dos indivíduos quando se colocam a interpretar o contrato. Essa inferência se dá sobre as disposições do negócio, portanto, o ponto de partida é a própria literalidade das cláusulas contratadas entre as partes porque é pressuposto que elas reflitam a negociação que levou à sua formação. Entretanto, é natural que as partes levem em consideração seu auto interesse no momento de redigir as cláusulas, consolidando posições conquistadas ao longo da negociação segundo a sua capacidade de barganha. Portanto, a literalidade das cláusulas fornece pistas, mas não necessariamente a solução para resolver problemas interpretativos no contrato. Elaborar contratos com cláusulas que abranjam uma grande quantidade de futuros estados de mundo é custoso e as partes podem optar por não as incluir de imediato no contrato, optando por estabelecer mecanismos de solução para essas contingências contratuais futuras. Assim, podem ser estabelecidas cláusulas de renegociação prevendo uma forma de ajustar as condições contratuais, em que as próprias partes buscarão ajustar os seus interesses para o caso do surgimento de circunstâncias que justifiquem a modificação do que foi estabelecido inicialmente no contrato. A segunda alternativa é não estabelecer nenhuma cláusula neste sentido e confiar no paternalismo, conferindo aos tribunais a tarefa de ajustar esses interesses. Deixando, portanto, para o Estado a tarefa de interpretar o contrato para o qual ele não concorreu na fase de negociação, execução e descumprimento. O problema é que os tribunais também estão assimetricamente informados e dependem do que as partes informarão no curso do processo para tentar reduzir a sua própria assimetria.  E os tribunais podem incorrer, por esse motivo, em algumas situações desagradáveis porque as partes podem comportar-se de forma oportunista para obter vantagens extraordinárias e superiores àquelas que obteriam caso o contrato fosse cumprido tal como celebrado. É o caso das informações ocultas por uma das partes ou ambas, a assunção de riscos por uma parte fora do controle da outra parte, impossibilidade de perceber que a informação era detida pela parte que movimentou o tribunal. Parte-se para algumas exemplificações, a começar pelo contrato de sociedade. No momento da formação do contrato optam-se por cláusulas genéricas, ainda que se possa aprofundar mais um ou outro ponto, a regra é a generalidade. Isso ocorre porque, ao se formalizar o contrato social, não é possível antecipar todas as situações futuras e incertas que poderão ocorrer ao longo daquela relação que tende a ser de longo prazo. Assim, durante a relação contratual as partes, neste caso os sócios, vão estabelecendo sistemas próprios de solução das lacunas contratuais através dos quais preenchem no âmbito estritamente privado a incompletude que foi originalmente deixada por eles próprios. Podem fazê-lo informalmente mediante negociação; ou prever o modelo por deliberações em que a maioria societária tomará uma decisão que pode estar antagonizando alguns sócios no âmbito interno da sociedade.  Nos contratos de longa duração envolvendo o fornecimento de insumos essenciais para uma determinada indústria, as partes não conseguem prever todas as contingências da relação ao longo de períodos de cinco ou dez anos, motivo pelo qual costuma-se optar por contratos incompletos e aceitar a racionalidade limitada envolvida, fixando regras abertas de renegociação das bases contratuais à medida que a relação contratual for evoluindo no tempo.  Finalmente, a equação fica completa quando se observa que devem ser "consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração". Neste ponto é preciso posicionar o contrato no tempo em que foi celebrado e aferir quais informações estavam disponíveis às partes, como elas as utilizaram e se o acesso a uma determinada informação seria capaz de alterar o processo decisório que levou ao contrato. As partes negociaram sob a égide de certas informações que estavam disponíveis - as tais informações públicas e privadas - ou de informações que trocaram entre si. Desde logo é preciso salientar que não é necessário disponibilizar todas as informações para a outra parte interessada na contratação, o que é preciso averiguar é se a informação seria determinante na decisão final ou não e qual das partes detinha essa informação. Certos aspectos da negociação envolvem naturalmente informações sigilosas detidas pelas partes quando começam a discutir um determinado negócio e a contratação. É natural a existência de assimetrias informacionais nestas fases. Todavia, isso envolve um conjunto de deveres anexos de informar, de transparência e de lealdade, à luz da boa-fé enunciada pelo art. 113 em seu caput.  A título de exemplo, na transmissão de estabelecimento empresarial é corriqueira a existência de discussões a respeito de contingências e obrigações que não foram informadas ao comprador. Neste tipo de caso, os tribunais reconhecem que cabe ao transmitente informar adequadamente o comprador para sanar a assimetria informacional, porque o comprador somente pode ter acesso a tais informações se for informado pelo vendedor. O quadro, porém, pode sofrer mudanças se as informações forem públicas e de fácil acesso, pois também não se pode albergar o amadorismo empresarial, ou ainda, se tais informações foram disponibilizadas e mesmo assim o comprador resolveu assumir o risco do negócio.  Portanto, é importante levantar quais eram as informações disponíveis e de quem era o dever de informar ou de manter-se informado.  VI. Conclusões O texto não tem o objetivo de exaurir o tema, longe disso, visa unicamente apresentar umas primeiras linhas para reflexão a respeito de um tema que vem sendo desenvolvido fortemente na literatura contratual moderna, especialmente estrangeira.  A racionalidade econômica é limitada e isso impacta os contratos. Por isso é preciso compreender se a equação prevista no art. 113, parágrafo 1º, inciso V, do CC, é suficiente ou não para fazer frente a esse problema, uma vez que ele próprio enuncia a necessidade de observar a racionalidade econômica das partes.  Somando-se a isso, há a própria racionalidade limitada dos tribunais, que também precisa ser levada em consideração para a análise do problema.  Como esse texto é uma primeira reflexão, neste momento contenta-se em apresentar algumas bases para a compreensão do problema.  __________ 1 Recomendamos a leitura das seguintes obras: POSNER, Richard. Economic analysis of contract law after three decades: success or failure? The Yale Law Journal. Vol. 112, No. 4 (Jan., 2003); POSNER, Richard A. El análisis económico del derecho. 2ª ed. Tradução de Eduardo L. Suarez. México: FCE, 2007; BECKER, Gary. The economic approach to human behavior. Chicago: Chicago University Press, 1990 [1976]; COASE, Ronald. O problema do custo social, The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies: Vol. 3: No. 1, Article 9, 2008; KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012; THALER, Richard e SUNSTEIN, Cass. Nudge: o empurrão para a escolha certa. Elsevier, 2008. 2 Ver a respeito: KOROBKIN, Russell B.; ULEN, Thomas S. Law and behavioral science: removing the rationality assumption from law and economics. California Law Review, v. 88, n. 4, p. 1.060, July 2000. Disponível aqui; GREEN, Donald P.; SHAPIRO, Ian. Pathologies of rational choice theory: a critique of applications in political Science. New Haven: Yale University Press, 1961. 3 SIMON, Herbert A. A behavioral model of rational agent. Quarterly Journal of Economics, v. 69, n. 1, p. 99-188, Feb. 1955.  4 ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 4ª Edição. I. Introdução e Microeconomia. 2021. AAFDL - Imprensa FDUL. Lisboa, p. 62 5 Vide: THALER, Richard. Fairness and the assumptions of economics. Journal of Business, v. 59, n. 4, pt. 2, p. 285, 1986. 6 Vide: TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgement under uncertainty: heuristics and biases. Sciences, New Series, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, sep. 1974. 7 Vide: KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values, and frames. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 8 ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 4ª Edição. I. Introdução e Microeconomia. 2021. AAFDL - Imprensa FDUL. Lisboa, p. 63. 9 ARAÚJO, Fernando. Teoria econômica do contrato. Coimbra: Almedina, 2005.
A prestação de serviços é atualmente um dos mais importantes contratos da contemporaneidade, constituindo a figura típica e especial que mais prevalece na prática em todo o mundo. Trata-se do negócio jurídico pelo qual alguém - o prestador - compromete-se a realizar uma determinada atividade com conteúdo lícito, no interesse de outrem - o tomador -, mediante certa e determinada remuneração. Tem-se, em sua natureza jurídica, um contrato bilateral, pela presença do sinalagma obrigacional, eis que as partes são credoras e devedoras entre si. O tomador é ao mesmo tempo credor do serviço e devedor da remuneração, presentes direitos e deveres para ambas as partes, de forma proporcional. O prestador é credor da remuneração e devedor do serviço. O contrato é oneroso, pois envolve sacrifício patrimonial de ambas as partes, estando presente uma remuneração denominada preço, honorários ou salário civil. Trata-se de um contrato consensual, que tem aperfeiçoamento com a mera manifestação de vontade das partes. Constitui um contrato comutativo, pois o tomador e o prestador sabem de antemão quais são as suas prestações, qual o objeto do negócio. O contrato é informal ou não solene, não sendo exigida sequer forma escrita para sua formalização, muito menos escritura pública. Na grande maioria das vezes incide sobre a prestação de serviços a lei 8.078/90, sendo certo que o seu art. 3.º enuncia que serviço de consumo é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Essa norma específica é aplicada a contratos de prestação de serviços em que há um destinatário final, fático e econômico desses últimos, presente a assimetria entre as partes. De todo modo, tornou-se cada vez mais comum a contratação da prestação de serviços por meio de pessoas jurídicas e empresas, nas prestações de serviços entre partes iguais e simétricas, fazendo com que seja necessária a modificação do Código Civil, cuja essência das previsões normativas em vigor é tratar da prestação de serviços por pessoas naturais. Por isso é fundamental e essencial alterar e atualizar alguns dispositivos relativos a esse importante contrato em espécie, o que está sendo proposto no anteprojeto de reforma do Código Civil, apresentado por Comissão de Juristas ao Congresso Nacional em abril deste ano de 2024. Não se olvide, ademais, a influência da recente lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), que informa algumas das propostas, em prol de uma menor intervenção nos contratos civis e empresariais de prestação de serviços. Como primeira proposta a ser citada, o art. 595 da codificação privada confirma atualmente se tratar de um contrato informal e não solene, pois, nos termos da norma, quando qualquer uma das partes não souber ler nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo - a seu pedido - e subscrito por duas testemunhas. A previsão pretende dar maior segurança ao negócio celebrado na situação descrita, sendo certo que diminuiu o número de testemunhas para provar o contrato, que era de quatro, conforme o art. 1.217 do Código Civil de 1916. Não se trata, assim, de regra que diga respeito à validade do negócio, mas apenas de questão relativa à sua prova, de sua eficácia perante terceiros. De todo modo, é preciso fazer alguns ajustes no comando, deixando o seu caput mais técnico e efetivo, para mencionar que a regra se aplica apenas às pessoas naturais: "no contrato de prestação de serviço entre pessoas naturais, quando qualquer das partes não souber ler nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas, tendo que ser lido e explicado à pessoa analfabeta, antes da referida assinatura". Em prol do dever de informação inerente à boa-fé objetiva, como se nota, é pertinente incluir regra sobre o esclarecimento do conteúdo à pessoa analfabeta. Além disso, sugere-se a introdução de um parágrafo único nesse art. 595 do Código Civil, tendo em vista a proteção da pessoa com deficiência e o que está previsto no seu estatuto próprio, a lei 13.146/15, a saber: "de forma semelhante, quando qualquer das partes for pessoa com deficiência, a outra deve encetar esforços para lhe informar o conteúdo do contrato". Como se pode perceber, as proposições são necessárias para a determinação do alcance das regras ora vigentes e a sua atualização frente às normas atuais, sobretudo o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Como outra necessária e urgente mudança, sabe-se que o Código Civil de 2002 continua limitando o prazo da prestação de serviços em quatro anos (art. 598), o que é a consagração da velha regra romana de que o negócio em questão não pode ser perpétuo (nemo potest locare opus in perpetuum). Ademais, a norma tem justificativa social na proibição do trabalho escravo, cabendo a sua transcrição: "Art. 598. A prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de quatro anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida de quem o presta, ou se destine à execução de certa e determinada obra. Neste caso, decorridos quatro anos, dar-se-á por findo o contrato, ainda que não concluída a obra". O entendimento majoritário é no sentido de que, havendo fixação de prazo superior, o contrato deve ser reputado extinto em relação ao excesso, ocorrendo redução temporal, hipótese de ineficácia parcial. Diante do princípio da conservação dos contratos, esse entendimento deve ainda ser aplicado, buscando a preservação da autonomia privada. Como é notório, há tempos existe entendimento segundo o qual a norma não se aplica às pessoas jurídicas, eis que a hipótese foge dos fins sociais que justificaram a proibição. A esse propósito, vejamos dois acórdãos do Tribunal Paulista, para ilustrar: "APELAÇÃO. Ação Ordinária para Resolução Contratual. Parcial procedência. Recurso da autora. Art. 598 do Código Civil. Inaplicabilidade à prestação de serviços de pessoas jurídicas. Renovação automática. Possibilidade. Ferramenta que possibilita maior previsibilidade das contratações. Multa. Abusividade não constatada. Contratante que é empresa de grande porte, apta a entender os termos contratuais e a ponderar os fatores preço-prazo-multa, decidindo contratar quando verifica que tais lhe são favoráveis. Sentença mantida. Recurso não provido" (TJ/SP, Apelação n. 1013340-29.2016.8.26.0100, Acórdão n. 10614216, São Paulo, Trigésima Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Spencer Almeida Ferreira, julgado em 20/07/2017, DJESP 25/07/2017, p. 1666). "Prestação de serviços. Cominatória. Indenizatória. Cerceamento de defesa. Ausência. Contrato de prestação de serviços. Desinteresse na renovação. Prazo contratual desobedecido. Artigo 598, do Código Civil. Inaplicabilidade a contratantes pessoas jurídicas. Vigência e validade. Fornecimento de energia elétrica. Obrigação contratual. Multa devida. Procedência mantida. Assistência Judiciária Gratuita. Pessoa jurídica. Filantropia. Assistência social. Benefício concedido. Preliminar rejeitada. Recurso parcialmente provido" (TJSP, Apelação n. 9081895-20.2006.8.26.0000, Acórdão n. 5138991, São José dos Campos, Vigésima Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ferraz Felisardo, julgado em 18/05/2011, DJESP 07/06/2011). Esse entendimento, porém, encontra barreiras na afirmação de ser a regra do art. 598 do Código Civil uma norma cogente ou de ordem pública, não podendo ser contrariado por convenção entre as partes, não importando quem elas sejam. Esse sério entrave já justifica a alteração urgente da norma, até porque as contratações geralmente são feitas com prazo de cinco anos, no mínimo, sobretudo nas relações entre pessoas jurídicas e entre empresas, em que a alocação dos riscos é um dos seus fatores essenciais. Reforçando essa última afirmação, na I Jornada de Direito Comercial, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal em outubro de 2012, aprovou-se enunciado doutrinário segundo o qual "nos contratos de prestação de serviços nos quais as partes contratantes forem empresários, e a função econômica do contrato estiver relacionada à exploração de atividade empresarial, as partes poderão pactuar prazo superior aos citados quatro anos" (Enunciado 32). Seguindo essa linha, em prol de maior segurança jurídica e estabilidade para os contratos civis empresariais, a Comissão de Juristas sugere que o art. 598 apenas mencione os contratos em que o prestador for pessoa natural, aumentando-se, ainda, por regras de tráfego hoje consolidadas o prazo máximo para cinco anos. Assim, o caput do comando passará a enunciar o seguinte: "quando o prestador for pessoa natural, a prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de cinco anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida de quem o presta, ou se destine à execução de certa e determinada obra; dar-se-á por ineficaz o contrato, decorridos cinco anos, ainda que não concluída a obra". Seguem-se, ainda, as premissas da lei da liberdade econômica, de valorização da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda) e de uma menor intervenção estatal nos negócios jurídicos privados em geral. Além disso, insere-se no art. 598 do Código Civil um parágrafo único, prevendo que, se os serviços prestados não foram suficientes para pagar a dívida ou para que a obra seja concluída, o tomador de serviços terá direito a cobrar o saldo da dívida ou a exigir perdas e danos pela inexecução da obra. O objetivo, assim, é deixar evidentes regras relativas ao inadimplemento do que foi contratado entre as partes. Outra norma que precisa de ajustes urgentes é o art. 599 da codificação privada, um dos principais comandos relativos à extinção do contrato de prestação de serviço. Por esse preceito, em sua redação atual, sendo o referido negócio celebrado sem prazo, não podendo o elemento temporal ser retirado da sua natureza ou do costume do lugar, "poderá qualquer uma das partes, a seu arbítrio e mediante prévio aviso, resolver o contrato". Como se pode notar, há claro equívoco na norma ao mencionar a "resolução" - extinção por descumprimento -, ao invés da "resilição" - extinção por exercício de um direito potestativo, no caso por denúncia unilateral de uma das partes. De todo modo, na interpretação correta da norma, não havendo prazo especificado, a prestação de serviço deve ser considerada como celebrada por prazo indeterminado. Dito de outra forma, não havendo prazo previsto pelas partes, reputa-se o negócio como de prazo indeterminado, cabendo o citado direito à extinção por resilição unilateral ou denúncia, como assegura o caput do art. 473 da lei geral privada. Em complemento, o parágrafo único do art. 599 da codificação material, na sua redação atual, consagra prazos específicos para a denúncia do contrato e sua posterior extinção, ou seja, prazos para o aviso prévio, a saber: Com antecedência de oito dias, se a retribuição se houver fixado pelo tempo de um mês, ou mais; Com antecipação de quatro dias, se a retribuição se tiver ajustado por semana, ou quinzena; De véspera, quando se tenha contratado por menos de sete dias. Além do grave problema técnico no caput da norma, percebe-se que os incisos do seu parágrafo único têm redação confusa, distante dos comuns prazos que hoje são aplicados na prática contratual, de quinze ou trinta dias. Ademais, é evidente que a norma foi criada para a tutela dos serviços prestados por pessoas naturais, sendo urgente a sua reforma e atualização diante da realidade contemporânea de contratos de prestação de serviços firmados entre pessoas jurídicas e empresas. Por todos esses problemas, a Comissão de Juristas sugere no anteprojeto que o comando passe a mencionar a resilição em seu caput, com a possibilidade de notificação judicial ou extrajudicial da parte contrária: "Art. 599. Não havendo prazo estipulado para o contrato nem se podendo inferi-lo da sua natureza ou dos usos e costumes do lugar, qualquer das partes, a seu arbítrio, mediante prévio aviso, pode resilir unilateralmente o contrato, mediante notificação judicial ou extrajudicial". Ademais, o § 1º do preceito passará a mencionar um prazo único de quinze dias para o aviso prévio, com a possibilidade de se convencionar o contrário: "nos casos deste artigo, não havendo prazo fixado para o contrato, dar-se-á o aviso para a resilição unilateral com antecedência de quinze dias". Além disso, inclui-se, em boa hora, um § 2º no art. 599 do CC/02, para que seja possível em contratos amplamente negociados entre as partes (paritários) a cláusula de resilição unilateral, mesmo quando o contrato seja fixado sem tempo determinado. Como é notório, há grande divergência doutrinária a respeito da validade dessa previsão, pois o art. 473 menciona a resilição unilateral apenas nos casos em que a lei expressa ou implicitamente a admita, sem qualquer previsão a respeito da viabilidade jurídica de a autonomia privada criar o direito potestativo à extinção. Seguindo, há necessidade também urgente de reparar os arts. 602 e 603 do Código Civil, que trazem regras específicas a respeito da rescisão do contrato de prestação de serviço, mencionando a "justa causa", em previsões mais uma vez criadas para a proteção do prestador de serviços pessoa natural, muito distantes da realidade dos contratos entre pessoas jurídicas e entre empresas. Nos termos do primeiro comando, o prestador de serviço contratado por tempo certo ou por obra determinada não pode se ausentar ou se despedir, sem justa causa, antes de preenchido o tempo, ou concluída a obra. Se o prestador se despedir sem justa causa, terá direito à retribuição vencida, mas deverá pagar perdas e danos ao tomador de serviços (art. 602 do CC/02). A mesma premissa é aplicável se o prestador for despedido por justa causa. Por outra via, se o prestador de serviço for despedido sem justa causa, a outra parte será obrigada a pagar-lhe por inteiro a retribuição vencida, e por metade a que lhe tocaria de então até o termo legal do contrato (art. 603 do CC/2002). O valor correspondente à metade da prestação de serviços serve como antecipação das perdas e danos materiais, tendo natureza de penalidade. No tocante aos danos morais ou extrapatrimoniais, lembre-se que podem ser pleiteados independentemente do que consta do dispositivo, eis que os danos imateriais não admitem qualquer tipo de tarifação ou tabelamento. Mais uma vez, na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal e STJ, realizada em 2012, aprovou-se correta proposta doutrinária, segundo a qual, nos contratos de prestação de serviços entre empresários, é lícito às partes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato, multas superiores àquela prevista no art. 603 do Código Civil (Enunciado 33). De toda sorte, vale lembrar que o limite dessa multa é o valor da obrigação principal (art. 412 do CC); e, se ela for exagerada, caberá a sua redução equitativa consagrada pelo art. 413 da própria codificação privada. Portanto, na linha do enunciado doutrinário aprovado, onde se lê nos dispositivos em vigor a expressão "com justa causa", pode-se entender "denúncia motivada". Por outra via, o termo "sem justa causa" equivale a "denúncia imotivada", o que pode ocasionar a resolução do contrato por inadimplemento ou descumprimento do contrato. Essas já são interpretações dos dois comandos verificadas nas páginas da melhor doutrina. Por todo o exposto, urge alterar os comandos, como está sendo proposto no anteprojeto de reforma do Código Civil. Assim, o art. 602 da codificação privada passará a prever o seguinte: "o prestador de serviço contratado por tempo certo ou para obra determinada, não se pode ausentar ou denunciar imotivadamente o contrato, antes de preenchido o tempo ou concluída a obra". E, nos termos do seu parágrafo único ora projetado, com uma melhor organização ao que hoje está previsto, de forma até confusa: "vigente o prazo do contrato, se o prestador denunciar imotivamente o contrato, terá direito à retribuição vencida, mas responderá por perdas e danos, ocorrendo o mesmo se denunciado motivadamente, pela outra parte". Também pelo que está sendo sugerido pela Comissão de Juristas, o art. 603 do Código Civil passará a enunciar que, "se denunciado imotivadamente o contrato pelo tomador, este será obrigado a pagar ao prestador do serviço por inteiro a retribuição vencida, e por metade a que lhe tocaria ao termo legal do contrato". E mais, "em se tratando de contrato de prestação de serviços, paritário e simétrico, é lícito às partes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato, penalidades superiores àquelas previstas no caput" (parágrafo único). Como se pode notar, as propostas em nada inovam no sistema jurídico quanto à correta interpretação das normas civis, apenas atualizando os comandos para as necessidades do mundo contemporâneo, na linha da melhor doutrina. O Código Civil deve tratar em sentido genérico as citadas categorias jurídicas, a englobar também as contratações por pessoas jurídicas ou por empresas. Exatamente nessa mesma linha, seguindo proposições da professora Claudia Lima Marques, almeja-se inserir no Código Civil um tratamento típico sobre a prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, o que é mais do que necessário no mundo contemporâneo (arts. 609-A a 609-F). Na definição proposta pela jurista, e aceita amplamente na nossa Comissão, nos termos do primeiro comando a ser incluído na Norma Geral Privada, "a prestação digital de serviço ou de acesso a seus conteúdos digitais é composta por um conjunto de prestações de fazer, economicamente relevantes, que permitam ao usuário criar, tratar, armazenar ou ter acesso a dados em formato digital, assim como partilhar, efetivar mudanças ou qualquer outra interação com dados em formato digital e no ambiente virtual". Tratarei especificamente dessa figura em outro texto, a ser oportunamente publicado neste mesmo canal, em continuidade ao presente.
Em nossa coluna de fevereiro, iniciamos o raciocínio sobre a reforma do CC em matéria de vício redibitório (arts. 441 a 446 do CC), tema que trabalhei em minha dissertação de mestrado nos anos de 1997-2002. Temos, agora, o anteprojeto entregue ao Senado Federal. A entrega se deu em 17/3/24. Cabe, então, concluir nossas reflexões com o resultado final, ou seja, qual foi a proposta que constou do anteprojeto. a) Art. 441 A seção V passa a se chamar "Dos vícios ocultos". Melhor que vícios redibitórios (apesar da tradição), porque: (i) uniformiza a linguagem com a adotada pelo CDC; e (ii) redibição - desfazimento do contrato - é apenas um efeito do vício, já que se permite, também, o abatimento (redução do preço). Trocar "enjeitar" por "rejeitar" é atualizar a linguagem apenas. Os verbos são sinônimos. Dá mais clareza "rejeitar". Há um novo parágrafo acrescido ao art. 441 que assim dispõe: "§ 2º Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser ao menos existentes ao tempo da aquisição da coisa, não sendo necessário que estejam manifestados nessa ocasião." Leia-se: Não podendo ter se manifestado antes da entrega. Se já se manifestou antes da entrega, o visto passa a ser aparente e logo cabe ao adquirente rejeitar de imediato a coisa. Se a aceita, aceita o vício e dele não pode reclamar. b) Art. 441 - A Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o adquirente sabia ou não podia ignorar a sua existência, considerados as circunstâncias do negócio e os usos e os costumes do lugar da sua celebração. Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios. O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo, o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).  O termo "adquirente" substitui "comprador", que constava da proposta original da subcomissão.  Novamente, o parágrafo mostra que o standard do "homem médio" não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.  Não se trata mais de um adquirente "em abstrato", mas sim em concreto.  c) Art. 442 Art. 442. Caracterizado o vício oculto, o adquirente pode, à sua escolha:  I - rejeitar a coisa, resolvendo o contrato, sem prejuízo das perdas e danos;  II - reclamar o abatimento no preço ou; III - salvo pacto em contrário, exigir seja sanado o vício da coisa, mediante o custeio de reparos, salvo se o alienante dispuser- se a realizá-los diretamente ou por terceiro. Parágrafo único. Quando os reparos ficarem a cargo do alienante e não forem realizados no prazo de até trinta dias ou prazo superior que tenha sido pactuado pelas partes, o adquirente poderá optar pela resolução do contrato ou pelo abatimento no preço. Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), o anteprojeto dispõe que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na parte geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).  Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.  Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado art. 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.  O adquirente, que pela redação atual do CC tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.  É o inciso I que mudou radicalmente se compararmos o relatório da subcomissão e o relatório final: Temos não mais "redibir", mas sim resolver. Correto e melhor. Conforme analisei quando fiz minha dissertação de mestrado em 20011: Seguindo o raciocínio de Orlando Gomes, a redibição dos contratos comutativos em virtude de vício oculto seria uma modalidade especial de resolução do contrato, pois tem como causa a inexecução parcial em forma específica, ou seja, a entrega de coisa que não tem as qualidades comuns às demais de sua espécie. Faltam à coisa qualidades próprias devido à existência do vício.2 Temos ainda menção às perdas e danos. As perdas e danos exigem má-fé do alienante (art. 443 do CC3). Em leitura sistemática, o art. 442 não aboliu o requisito do art. 443. Um artigo deve ser lido pelo outro. Se o alienante não conhecia o vício (boa-fé subjetiva), não cabem perdas e danos. Por fim, o anteprojeto não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o art. 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória). d) Art. 445. Prazos. Art. 445. Os prazos de garantia legal contra vícios ocultos, contados da data da entrega efetiva do bem, são de:  I - sessenta dias, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor inferior a dez salários mínimos; II - um ano, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor igual ou superior a dez salários mínimos;  III - dois anos, se a coisa for imóvel.  § 1º Se o adquirente já estava na posse da coisa, os prazos de garantia contam-se da data do contrato e serão reduzidos à metade.  § 2º Transcorridos os prazos previstos neste artigo, cessa a garantia legal por vícios ocultos. § 3º O adquirente tem o prazo decadencial de sessenta dias, tratando-se de bem móvel, e de um ano, tratando-se de bem imóvel, para o exercício dos direitos previstos no art. 442, contado da data final do prazo de garantia, desde que o vício tenha aparecido antes de findo esse prazo.  O anteprojeto conjuga duas qualidades ao definir o prazo para se aparecer, manifestar o vício oculto (direitos previstos no art. 442 do CC): Mobilidade e valor da coisa. Se de maior valor, maior o prazo. Se imóvel (e aí não importa o valor), maior ainda a o prazo. Seguindo regra atual do Código Civil, em ocorrendo traditio brevi manu4 (aquele que possui em nome alheio passa a possuir em nome próprio - locador que compra o carro locado, comodatário que compra a casa emprestada), o prazo para aparecer, se manifestar se reduz pela metade (I - 30 dias, II - 180 dias e III - 1 ano). Claro que o início do prazo para o vício aparecer, se manifestar não pode mais ser a entrega da coisa, pois o adquirente já tem a posse direta. Assim, o prazo passa a ser o da celebração do contrato. Se o vício aparece após tais prazos, nenhum direito tem o adquirente, salvo existência de garantia contratual. A pergunta que surge é: se o vício aparece nos prazos previstos nos incisos I, II ou III do art. 445 (eventualmente reduzidos pela metade por força do §1º), qual o prazo teria o adquirente para exercer os direitos que lhe confere o art. 442? O prazo não se inicia com o surgimento do vício, mas com o fim da garantia legal. Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 60 dias da entrega da coisa ao adquirente. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois;  Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 1 ano da entrega da coisa ao adquirente; Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 2 anos da entrega da coisa ao adquirente; E se o adquirente já estiver na posse do bem? É o caso do locatário que compra o bem locado. Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 30 dias da celebração do contrato. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois.  Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 180 dias da celebração do contrato. Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 1 ano da celebração do contrato. Estes comentários vão ao encontro da justificativa apresentada pela Subcomissão de Contratos. Vejamos: Os prazos decadenciais para o exercício dos direitos previstos no art. 442, quanto aos vícios manifestados durante o prazo de garantia, somente são contados a partir do término do prazo de garantia. Ou seja: Os direitos podem ser exercidos durante todo o prazo de garantia, e em até 60 dias, no caso de bens móveis, e 1 ano, no caso de imóveis, após o término daquele prazo. A ideia é fixar o marco legal na data da ciência seria problemático tanto por aumentar a litigiosidade quanto por prejudicar o adquirente que - por vezes - demora a ter certeza de que a inconsistência do bem adquirido é realmente um vício, e não uma mero transtorno tolerável. e) Art. 446. Garantia contratual. Art. 446. A garantia contratual é complementar à garantia legal e será conferida mediante termo escrito.  § 1º Esse termo deve esclarecer, de maneira adequada e clara, em que consiste a garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do adquirente. § 2º Não correrão os prazos de garantia legal por vícios ocultos na constância de cláusula de garantia, mas o adquirente deve denunciar o vício ao alienante no prazo de trinta dias, sob pena de perda da garantia contratual.  § 3º Cessada a garantia contratual, nos termos do parágrafo anterior, inicia-se o prazo de decadência da garantia legal, nos termos do art. 445. Vejamos a redação atual do art. 446 e aquela do anteprojeto. Utilizando-se a expressão "não correrão os prazos do artigo antecedente", o atual art. 446 prevê o fenômeno do impedimento da decadência5, pois o prazo sequer se inicia. Não se trata de suspensão nem de interrupção do prazo. Nas hipóteses de suspensão, o prazo que já se iniciou para de fluir por determinado período de tempo e, depois, volta a fluir do dia em que parou. No caso de interrupção, o prazo se reinicia desconsiderando-se o prazo fluído anteriormente ao evento interruptivo.6 Com o CC de 2002, a existência de uma garantia contratual significa que os prazos decadenciais não se iniciam. Ora, como causa impeditiva da decadência que o é, o adquirente terá grande vantagem, pois poderá contar com prazos certamente superiores àqueles previstos no art. 445 para exercer seu direito. Apenas depois de esgotada a garantia teria início o prazo para redibição, abatimento etc. Qual a questão que surge atualmente e o anteprojeto resolve? Embora haja previsão de uma causa impeditiva de fluência do prazo decadencial, há também um dever imposto ao adquirente: informar ao alienante a existência do defeito em até trinta dias após seu descobrimento. O legislador cria uma decadência intercorrente, pois dá ao adquirente prazo exíguo de 30 dias para que informe ao alienante, sob pena de perder a garantia contratual ou também a garantia legal? Defendi em minha dissertação de mestrado que "caso o adquirente não cumpra o dever legal de informação no prazo de 30 dias, sofrerá a sanção de decair em seu direito".7 Haveria perda de ambas as garantias. O anteprojeto esclarece que não. A perda é somente da garantia contratual e, portanto, se não denunciado o vício em 30 dias, começam de imediato a correr os prazos da garantia legal (art. 445). Com isso, acabamos a análise de todas as regras relativas aos vícios ocultos (arts. 441 a 446) contidas no anteprojeto de reforma do CC. _________ 1 À época, concluir que melhor seria usar o termo "rescindir". Claro equívoco da juventude. "Resolver" está correto. 2 Orlando GOMES, idem, p. 172. 3 Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato. 4 Constituto possessório é o oposto: alguém que possui em nome próprio passa a possuir em nome alheio (proprietário vende a casa e celebra com comprador contrato de locação). 5 Permitida excepcionalmente pela regra do artigo 207 do Código Civil. 6 A questão é desenvolvida com maior profundidade quando da análise do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor. 7 O dever de denúncia dos vícios previstos neste artigo está restrito exclusivamente às hipóteses em que há uma garantia estabelecida. Contrariamente, o Código Civil português (artigo 916) e o italiano (artigo 1.495) exigem a denúncia em toda e qualquer hipótese de vício oculto.
Em que pese o conteúdo principal de um contrato seja a autodeterminação de vontades, atualmente deve-se reconhecer que este instrumento é integrado por outras fontes advindas da política interventiva do Estado. Por se tratar de um dos maiores motores propulsores do desenvolvimento econômico e social, as normas voltadas ao contrato reconhecem que ele instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, e, por isso, devem ajustar-se a parâmetros que consideram a dimensão coletiva dos conflitos sociais que a eles se incorporam.1 Os contratos, ainda que gratuitos ou benéficos, possuem como objeto coisa que representem valor, e, por isso, estão intrinsecamente relacionados com a economia. O valor daquilo que é o objeto contratual de uma compra e venda, troca ou prestação de serviço, é representado por uma moeda, que é, ao mesmo tempo, tanto uma medida de valor como um meio de pagamento. Ocorre que a moeda como medida de valor está sujeita a alteração decorrente de fatos alheios à vontade dos contraentes, como ocorre com a inflação, conceituada pelo Banco Central do Brasil de forma bastante simples como o aumento dos preços de bens e serviços no tempo. Ainda que muito seja relevante a discussão dos motivos causadores da inflação, este estudo limitar-se-á a investigação de seus efeitos jurídicos, afinal, em razão da inflação aquela original bilateralidade contratual transforma-se numa relação triangular cujos partícipes passam a ser credor, devedor e o Estado, este último na qualidade de criador do risco decorrente da depreciação monetária.2 São variados os índices que sirvem para medir a perda do poder de compra da moeda brasileira3, no entanto, o Banco Central do Brasil adotou como principal medida da inflação o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O IPCA foi criado pelo IBGE e é calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística, indicando a variação de preços mensalmente de treze áreas urbanas do país4, obtendo, aproximadamente, 430 mil preços em 30 mil diferentes locais.5 A redação original do Código Civil de 2002 considerou em seu art. 389 que o inadimplemento de determinada obrigação culminava na imposição do devedor pagar aquele valor original acrescido perdas e danos, juros e correção monetária "segundos índices oficiais regularmente estabelecidos". Ainda que tivesse em conta o fato da recomposição do valor da moeda, a redação original trazia insegurança jurídica porque diferentes interpretações e diversos índices poderiam ser utilizados para calcular uma mesma obrigação inadimplida ou protraída no tempo. Não fosse suficiente, sequer o montante de juros se conseguia extrair de forma indubitável da original redação do Código Civil de 2002, mesmo que se levasse em conta o complemento descrito no art. 406 do mesmo dispositivo legal. Como se pode observar, ainda que exista previsão legal em relação a necessidade de correção monetária e juros moratórios em decorrência de inadimplemento contratual, há insegurança jurídica acerca do índice que deverá ou poderá ser utilizado para valorar a depreciação da moeda e o montante mínimo e máximo para remunerá-la com juros no curso do tempo. O tema é parcialmente objeto do Recurso Especial n. 1.795.982/SP, que em 06/03/2024 teve proclamação de julgamento6 no sentido de, por 6 votos a 5, dar-se provimento ao recurso especial para determinar que nas dívidas civis sejam os juros de mora e correção monetária calculados pela taxa SELIC. É bem verdade que o Recurso Especial trata apenas de casos judicializados e sem previsão contratual acerca do índice de correção monetária utilizado ou juros pactuados. No entanto, o apertado placar na Corte da Cidadania deixa clara a divisão jurisprudencial na interpretação daquilo que originalmente disposto no Código Civil de 2002. Talvez não por outra razão o relatório final da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil já prevê e propõe a alteração de artigos na lei a fim de trazer maior segurança jurídica e mais claros limites aos contratantes em relação aos juros que podem pactuar. De toda sorte, enquanto a substancial e ampla alteração do Código Civil não é finalizada, cuidou o Poder Legislativo, apressado ou não pelo julgamento daquele Recurso Especial acima mencionado, de trazer alterações à legislação civil voltada ao cálculo e limites de pactos contratuais no que se refere à correção monetária e à incidência de juros moratórios e remuneratórios. Dentre as alterações trazidas e que passarão a ser plenamente válidas a partir de 1º setembro de 2024 está utilização do IPCA como índice subsidiário de atualização monetária quando não previsto outro em contrato ou lei específica7 e a definição da taxa legal, que passa a ser definida como SELIC menos o IPCA e que será utilizada subsidiariamente quando não houver pacto em sentido diverso ou não determinados por lei8. Desta forma, bem ou mal vê-se que a Lei 14.905/2024, ao mesmo tempo que fortalece a autonomia de vontade ao expressamente reconhecer a possibilidade de pactuação de índice e taxa de juros pelas partes, cuidou de trazer critérios objetivos e balizadores para o cálculo da desvalorização da moeda e índice de juros moratórios e remuneratórios para os casos em que silente as partes quanto à forma de atualizar-se o valor da obrigação avençada. Em linhas gerais, o que se percebe é que com o advento das alterações trazidas pela Lei 14.905/24, quando não pactuados de forma diversa, juros e correção monetária, juntos, serão calculados pela SELIC. Isto é, como a correção monetária será o IPCA e os juros a SELIC diminuída do IPCA, ambos, somados, resumem-se à SELIC integral. Também dispõe a nova redação do Código Civil naquilo que aqui se propõe a estudar que caberá ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a metodologia para o cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação, e, ainda, que caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para o período de referência. Necessário destacar que a Lei 14.905/24 trouxe alterações na Lei da Usura (DL 22.626/1933) que é aquela que limita a convenção de taxa de juros ao dobro da taxa legal, contudo, este ponto e aquele que se refere a aplicação da Lei 14.905/24 em relação a contratos firmados, demandas formadas e decisões transitados em julgado anteriormente à vigência da lei, são digressões que remanescem para um posterior estudo acerca do tema.  Desta forma, mesmo que a alteração legislativa pudesse ser mais simples o operacional na forma de correção e remuneração de valores, verdade que trouxe mais segurança jurídica para as relações contratuais, e, com isso, certamente ganha a cidadão. Para concluir, serve este estudo para alertar os leitores que a partir de setembro de 2024, para que não fiquem sujeitos a uma taxa de juros e de correção monetária limitada à SELIC, necessário será que pactuem de forma expressa o índice e a a taxa de juros compensatórios e moratórios que julgue aquela mais adequada à contratação realizada a fim de não causar onerosidade excessiva para credor ou devedor. __________ 1 GOMES, Orlando. Contratos. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 2 WALD, Arnoldo. A correção monetária no direito privado. In Doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (orgs). Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 3 Como o IGP-M, INPC, Taxa SELIC, dentre outros. 4 Belém(PA), Belo Horizonte(MG), Curitiba(PR), Distrito Federal(DF), Fortaleza(CE), Goiânia(GO), Porto Alegre(RS), Recife(PE), Rio de Janeiro(RJ), São Paulo(SP) e Vitória(ES). 5 IBGE. Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Disponível aqui. Acesso em 04 de agosto de 2024. 6 Sem trânsito em julgado. 7 Nova redação do art. 389, parágrafo único. 8 Nova redação do art. 406, caput e 406, parágrafo primeiro.
A ampliação da liberdade de pactuar nas relações familiares conjugais e convivenciais é uma demanda crescente no cenário jurídico e social, e é impulsionada pela conquista jurídica da liberdade de escolha do modelo familiar. É importante, inicialmente, romper a barreira do discurso contrário à contratualização das relações familiares conjugais e convivenciais, como se a realização de um pacto ou ajuste a respeito dos efeitos patrimoniais do relacionamento fosse um indicativo de ausência de afeto. Todos os relacionamentos conjugais ou convivenciais geram efeitos patrimoniais contratados. Ao celebrar um casamento ou iniciar uma união estável, os cônjuges ou conviventes estão contratando o regime de bens de comunhão parcial de bens, que está previsto de maneira supletiva nos artigos 1.640 e 1.725 do Código Civil, ainda que não elaborem um pacto ou contrato escrito ou específico. Por esta razão, inclusive, a figura do contrato de namoro vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência, a fim de evitar o reconhecimento de união estável contrário a vontade das partes, e presumir a existência de uma contratação de regime de bens1. O que estamos a defender, acima de tudo, é a ampliação da liberdade de pactuar um modelo patrimonial adequado à cada relacionamento. A elaboração de pactos conjugais e convivenciais tornam possível que cada casal formate os efeitos patrimoniais do seu relacionamento de acordo com as individualidades existentes em sua relação. Cada relação conjugal ou convivencial é única, e a escolha do modelo patrimonial mais adequado passa pela análise de diversos fatores pessoais, familiares e patrimoniais únicos.  A escolha de um regime de separação total de bens, por exemplo, tem diferentes consequências pessoais e patrimoniais a depender da situação pessoal, patrimonial e familiar de cada um dos cônjuges. O casamento entre duas pessoas jovens, sem filhos, e que estão iniciando a vida profissional e aquisição de patrimônio, bem como planejando ter filhos durante a relação, por exemplo, merece um olhar mais cuidadoso sobre a distribuição e cuidados financeiros, já que nesta fase da vida é mais comum que as mulheres abdiquem de crescimento profissional e financeiro em razão do cuidados dos filhos que serão gerados na constância da união, de forma que a escolha de um regime simples de separação total de bens, por exemplo, poderá trazer desequilíbrio econômico e insegurança na relação.  Por outro lado, o casamento entre  pessoas com filhos adultos, e que já tem patrimônio e vida profissional definido, pode ter um bom resultado com o regime de separação total de bens, garantindo a independência patrimonial e financeira de cada um. E seguindo nos exemplos, o casamento entre duas pessoas em situações pessoais e patrimoniais diferentes também precisa de um olhar único. Pode existir uma grande diferença econômica e familiar entre os cônjuges na hipótese em que um deles seja detentor de patrimônio e já tenha filhos, e o outro cônjuge não tenha patrimônio e filhos.   É certo que não conseguimos esgotar os exemplos, já que as dinâmicas familiares são muito mais complexas e individualizadas. E justamente por isso que não podemos supor que todas as relações familiares devem se submeter às mesmas regras tipificadas de regime de bens.  A individualização do modelo patrimonial é muito mais do que escolher um dos regimes de bens previsto no código, como a comunhão parcial, a comunhão universal ou a separação total de bens. Pensar desta forma é limitar por demais as possibilidades jurídicas de enriquecer os arranjos individuais de cada casal. As regras gerais são importantes em todas as relações contratuais pois definem os contornos jurídicos dos institutos, simplificando a sua aplicabilidade, em especial para aqueles que não desejam elaborar um contrato mais complexo. A autonomia das partes na realização de pactos e contratos conjugais e convivenciais, no entanto, pode ir além da utilização dos modelos previstos em lei. O contrato de compra e venda é um bom exemplo da importância de regras gerais, sem excluir as individualizações em cada situação concreta. A grande maioria dos contratos de compra e venda realizados diariamente é feito por meio de contratos simples, e muitas vezes até verbais. Isso, no entanto, não limita a realização de contratos com cláusulas específicas, individualizando cada situação, respeitando por evidente as normas de ordem pública. O anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil2 caminha exatamente nesta direção, mantendo as regras de regime de bens de maneira supletiva, permitindo aqueles que iniciarão um casamento ou união estável apenas aderirem aos regimes de bens existentes. Inclusive, o texto aprovado pela comissão de juristas aprimora os regimes de bens existentes a fim de facilitar a sua compreensão e aplicabilidade. No regime de comunhão parcial, por exemplo, o rol de comunicabilidades é atualizado (art. 1.659 e 1.660), inserindo expressamente temas que há anos são objeto de embates doutrinários e jurisprudenciais, como a comunicabilidade do FGTS, de participação em previdência privada, bem como a controvertida questão da participação do cônjuge nas quotas sociais do outro,  na valorização destas quotas e nos lucros gerados. Também o regime de separação total de bens tem importante modificação, inserindo dois parágrafos no art. 1.688 prevendo a possibilidade de partilha de bens adquiridos com contribuição econômica direta de ambos bem como prevendo compensação pelo trabalho na residência da família e cuidado da prole. E ainda, o texto do anteprojeto tem disposições específicas revogando as normas que  o regime de participação final nos aquestos e o da separação obrigatória de bens. E mais do que isso, o texto do anteprojeto consolida e amplia de maneira expressa a liberdade de pactuar nas relações conjugais e convivenciais para aqueles que assim o quiserem. Muito além de optar por um dos regimes previstos no Código Civil, o anteprojeto traz, no art. 1.640, § 2º, a previsão de possibilidade expressa das partes em pactuarem um regime misto ou atípico, tendo por limite as normas cogentes ou de ordem pública. Assim poderiam escolher, por exemplo, a separação total para participações societárias, e adotar a comunhão parcial para bens imóveis adquiridos na constância da união. Considerando que as relações conjugais e convivências podem se modificar com o tempo, o art. 1.639, § 2º do anteprojeto prevê a facilitação da mudança de regime de bens, possibilitando que o seja de maneira extrajudicial.  Desta forma, um casal que, no início do casamento ou da união entendeu que determinado regime era mais adequado, pode com mais facilidade modificar esse regime de bens na constância do casamento, tornando mais dinâmica a relação patrimonial. Como novidade, foi inserida pelo art. 1.653-B do anteprojeto a previsão expressa de possibilidade de cláusula prevendo a modificação automática do regime de bens, conhecida como sunset clause.  E a dinamicidade do momento de elaboração dos pactos conjugais ou convivenciais segue reforçada pela previsão art. 1.656-A., que prevê expressamente que os pactos poderão ser firmados antes ou depois de celebrado o matrimônio ou constituída união estável. Esta liberdade de modificar ou pactuar os regimes de bens na constância do casamento ou da união estável é limitada pela irretroatividade desta mudança, o que deve ser observado pelos contratantes. Não pretendemos com este texto esgotar as situações que consolidam a ampliação da liberdade de pactuar, uma vez que foram diversos ponto no anteprojeto que a reforçam, ultrapassando os limites do direito familiar. A título de exemplo, a previsão de inserir a liberdade de contratar sobre a herança no pactos conjugais ou convivenciais, com a inserção de parágrafos no art. 426 do Código Civil, que expressamente trata sobre a renuncia antecipada da condição de herdeiro; também há no anteprojeto previsão de ajustes no direito empresarial, por exemplo nos artigos 1.027 e 1.028, na questões relativas a participação do cônjuge ou herdeiro do sócio em relação à sociedade , entre outras previsões de modificações no Código Civil que direta ou indiretamente ampliam a liberdade do casal. A ampliação da liberdade de ajustes patrimoniais entre os cônjuges e conviventes é uma conquista, mas que não deve vir desacompanhada do olhar criterioso quando presente desequilíbrio econômico, social ou pessoal entre os cônjuges. A liberdade contratual somente se faz presente, efetivamente, em um cenário de igualdade entre as partes. Devemos atentar que muitas vezes, em relações conjugais e convivenciais, há uma vulnerabilidade social e econômica da mulher contratante, o que não se ignorar ao se interpretar o pacto na situação específica quando presente a desigualdade. A ampliação da liberdade de pactuar também aumenta a responsabilidade das partes nas suas escolhas ao explicitar antecipadamente as decisões  daquele casal para reger a sua vida patrimonial, e portanto amplia a necessidade de comunicação, evidenciando os pilares que fundamentam o seu relacionamento. Desta forma, é o possível a redução de conflitos pela maior previsibilidade dos efeitos patrimoniais.  _______________ 1 Sobre este assunto, recomendamos a leitura da coluna do mês anterior, escrita pela prof. Marilia Xavier  https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/408949/contrato-de-namoro-tem-validade-confirmada-pelo-tj-pr 2 Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da  ou https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630
A figura jurídica do contrato de namoro, recentemente, foi examinada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A decisão, de maneira unânime, afastou a incidência de união estável e confirmou a validade do contrato de namoro que havia sido firmado entre as partes. O acórdão em questão foi proferido nos autos de apelação cível n. 0002492-04.2019.8.16.0187, pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sob a relatoria do Des. Sigurd Roberto Bengtsson. Este texto não fará qualquer menção às iniciais das partes e demais detalhes patrimoniais do deslinde da causa com o objetivo de colaborar com a preservação do segredo de justiça.1 O referido acórdão negou o pedido de reconhecimento de união estável do relacionamento entre as partes mantido de julho de 2016 a junho de 2018. O principal argumento que permitiu ao Tribunal afastar as provas testemunhais produzidas nos autos e outros documentos juntados pela parte autora foi a existência do contrato de namoro. Diversos fundamentos contribuíram para a decisão neste sentido. Em primeiro lugar, o TJPR afastou a necessidade de o contrato de namoro ser celebrado por instrumento público. Consignou, ainda, que isso só é necessário para que o contrato tenha validade em relação a terceiros. Citou, para tanto, entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, no REsp n. 1.988.228, no sentido de que "o contrato particular de união estável com separação total de bens não impede a penhora de patrimônio de um dos conviventes para o pagamento da dívida de outro, pois somente tem efeito entre as partes, não produzindo efeitos em relação a terceiros quando não há registro público". Em seguida, o tribunal enfrentou a validade do pacto. A parte ré/apelante defendia a tese de que o contrato de namoro era válido, porque realizado sem vício de consentimento e com acompanhamento de advogados. Já a parte autora/apelada defendia tese mais complexa: dizia ela que o documento não era válido por conta de sua vulnerabilidade. A tese da vulnerabilidade foi afastada pelos julgadores porque o contrato particular foi firmado por agentes capazes, com reconhecimento de firma e mediante assinatura de advogados. O tribunal desconsiderou, ainda, o argumento da parte autora de que haveria disparidade entre as formações profissionais entre o casal: enquanto a parte autora seria da área da enfermagem, a parte ré seria da medicina. Este argumento não foi capaz de configurar por si só a alegada vulnerabilidade, pois além de ambas as partes terem concluído o ensino superior, o acórdão destaca que exerciam atividade empresária e que a parte autora havia sido aprovada em concurso público. O acórdão ressalta, em seguida, a ausência completa de provas acerca de eventual vício de consentimento na assinatura do contrato de namoro. Assim, estaria configurada a assinatura do documento por agentes capazes e que conheciam seu conteúdo e consequências jurídicas. Seguindo, a decisão concluiu que o requisito legal da relação duradoura também não estava demonstrado nos autos. Isso porque o casal teve períodos de rompimento ao longo do tempo, com afastamentos e retomadas. O acórdão também não constatou a presença do requisito de objetivo de constituir família. Para o TJPR esse elemento "depende da prova de interesse volitivo de ambas as partes em constituir família, uma vez que a affectio maritalis é o requisito que mais se assemelha à figura do casamento, elemento que identifica se o relacionamento se configura como um namoro ou já conviviam como se casados fossem". Para o tribunal, as provas testemunhais e documentais trazidas pela parte autora não superam a estipulação contratual. A corte reitera que o contrato foi livremente pactuado pelas partes e que não há nenhuma prova que o invalide. Por isso, deve ser considerado válido naquilo que não afronte a lei. O acórdão também destaca que "os depoimentos testemunhais devem ser sopesados com os demais elementos constantes nos autos, tendo em vista que namorados também frequentam festas juntos, visitam as casas de amigos, realizam viagens, compartilham a vida com o filho do outro (...)". Ao invés de comprovar a união estável, entendeu o TJPR que a prova testemunhal nada mais fez do que comprovar que havia uma relação de namoro qualificado. Com esses fundamentos, o tribunal deu provimento ao recurso de apelação, afastando a união estável. A decisão do TJPR é absolutamente adequada e acertada. Felizmente, os julgadores forem sensíveis e bem separaram o joio do trigo. É certo que o contrato de namoro emerge na contemporaneidade como importante instrumento de planejamento patrimonial e sucessório. Além de fornecer segurança jurídica, é uma forma idônea de garantir que as partes exerçam a sua autonomia privada e possam desenhar os exatos termos e efeitos de seus relacionamentos afetivos. No momento atual, o conceito de união estável captado pelo artigo 1.723 do Código Civil tem gerado muitos embates e decisões conflitantes que demandam uma postura ativa dos casais no sentido de se valer de instrumentos preventivos para aclarar suas reais vontades e anseios, em especial consolidar se o relacionamento tem ou não o objetivo de constituir família. É fundamental recordar que o momento presente é pródigo, em termos doutrinários e jurisprudenciais, em conferir cada vez mais direitos para a união estável. Dessa forma, resta clara a importância em afastar preventivamente a aplicação de suas normas quando as partes estiverem diante de um namoro ou de um namoro qualificado. __________ 1 O artigo aborda apenas a questão da validade do contrato de namoro, sem expor outros pedidos e temas julgados na decisão. Essas análises poderão ser objeto de estudos futuros.
O contrato de doação, instrumento principal das liberalidades, é um dos mais instigantes do ponto de vista de sua construção e regulação. Justamente por veicular atribuição patrimonial sem contraprestação, as possibilidades de utilização da doação no exercício da autonomia privada (no gerenciamento dos interesses econômicos e solidários) são variadíssimas. O amplo espectro de boa e má utilização do contrato de doação, chama regulações específicas, tendo em vista a sua causa, o seu conteúdo ou as partes do contrato. Bem por isso o legislador se preocupa com diversas modalidades de doação, como, por exemplo, a doação com cláusula de reversão, a doação universal, a possibilidade de revogação da doação por ingratidão do donatário, a doação como instrumento de adiantamento da herança, a doação inoficiosa etc.  Proíbem-se, total ou parcialmente, diversas modalidades de doação, considerando-as inválidas ou ineficazes. Uma destas hipóteses chama a atenção, por razões sensíveis (envolve as relações afetivas) mas também por sua construção jurídica. Trata-se da antes chamada "doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice", tida como inválida pelo artigo 550 do Código Civil. Em poucas palavras, a lei diz que não vale a doação de pessoa casada, para alguém com quem teve relação adulterina.  A preocupação do legislador em proteger patrimonialmente a família constituída legalmente diante de relações espúrias já era prevista no artigo 1.177 do Código Civil de 1916, cuja redação foi praticamente repetida no art. 550 do Código Civil de 2002:  "Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal."  O dispositivo, tanto em 1916 como em 2022 (melhor seria dizer em 1975, quando o projeto do Código Civil foi encaminhado ao Poder Legislativo) tinha alvo firme: para o bem da família, ainda que o cônjuge tivesse pleno poder de disposição (basta pensar num bem móvel de propriedade exclusiva de um cônjuge) ele não podia fazer doação para aquele com quem tivesse praticado - ou praticasse - adultério.  A norma revela uma determinada concepção da família (no caso, a família matrimonial), uma preocupação de gênero (ainda que se aplicasse para o adultério da mulher, evidentemente mirava o adultério do marido), e a criminalização da infidelidade (adultério já foi considerado crime). A quaestio envolvida na proibição de doação em tal circunstância era complexa. Bem por isso dizia SERPA LOPES, em 1991, que "Este dispositivo envolve uma parte do problema das liberalidades entre amantes, o que por si só já justifica uma monografia a respeito"1.  O dispositivo, tal qual escrito (diga-se: reproduzido do Código anterior), prestava-se a uma série de dúvidas interpretativas, decorrentes dos avanços sociais e da necessidade de aplicá-lo na atualidade. Três exemplos de dúvidas que surgem na sua aplicação: - a invalidade aplica-se apenas ao casamento (a lei fala em "cônjuge") ou também à união estável? - o que se considera adultério (exige relação sexual com terceiro ou apenas relação  afetiva? Aplica-se ao "adultério virtual?) - o art. 550 prevalece sobre o artigo 1.642, V do Código (que fala da faculdade de o cônjuge reivindicar bens doado ao concubino)?  Além de ser de uma constitucionalidade duvidosa2 a redação do artigo 550 do Código Civil merece críticas. Como disse Flávio TARTUCE,  "Na verdade, o art. 550 do CC é polêmico, parecendo-me a sua redação um verdadeiro descuido do legislador, um grave cochilo".  Pois firme no propósito de atualizar e tornar mais operável a legislação civil, o reformador propõe alteração no dispositivo. A sugestão de redação é:  "Art. 550. A doação de pessoa casada ou em união estável a terceiro com quem mantenha relação na forma do art. 1.564-D pode ser anulada pelo outro cônjuge ou convivente, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal ou a união estável."  Vê-se bem que a lógica da vedação e suas linhas mestras continuam. A doação será inválida, o prazo decadencial para pleitear a anulação é de 2 anos e os legitimados são o cônjuge e os herdeiros necessários.  Mas, agora, o dispositivo (a) refere a união estável (a proibição, acertadamente, não se dirige apenas à família matrimonial), (b) afasta-se do adultério como tipo civil e (c) concatena-se com o tratamento dado ao antigo concubinato (expressão que deve ser defenestrada da ordem jurídica, mas é aqui utilizada por razão didática). O artigo 1.564 projetado cuida da união estável3 e a sua letra D dispõe: "Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família. Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886."  O reformador então, enfrenta o problema das uniões paralelas, para reconhecer que elas não constituem família, que podem gerar demandas patrimoniais, as quais serão atingidas pelas regras do enriquecimento sem causa.  Por fim, a nova redação do dispositivo afasta-se do adultério como um tipo civil, facilitando sua aplicação, na medida em que a conceituação do art. 1.564 é mais objetiva.  Fatalmente situações fáticas imprevistas acontecerão, obrigando o julgador a adequar a normativa a cada caso concreto, em verdadeira criação da norma pela interpretação. Ademais, há que se aguardar o resultado do processo legislativo. De qualquer maneira, o tema, muito sensível como foi dito acima, foi objeto de atenção do reformador, e mostra a preocupação em destravar o direito sem descurar de sua sistematização. __________ 1 Miguel Maria de SERPA LOPES. Curso de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos: 1991, p. 374-375. 2 Paulo LOBO. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraivajur, 2021, p. 301. 3 Art. 1.564-A. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.
1. Terceiro cúmplice na relação contratual e a exceção ao princípio da relatividade dos efeitos contratuais Um dos princípios1 individuais dos contratos é o da relatividade dos efeitos contratuais2 (res inter alios3), ou seja, o contrato produz efeitos entre as partes. O terceiro é aquele "que não participa do negócio jurídico, para quem a relação é absolutamente alheia".4 Noutros termos, a "posição jurídica do terceiro assenta-se em um alheamento material e formal a determinada e particular relação jurídica".5 Desse modo, em regra, o contrato firmado entre dois contratantes não afeta aquela pessoa que não contratou. Existem hipóteses nas quais há uma maior proximidade de um não contratante daquele contrato no qual não faz parte, como exemplifica Otávio Luiz Rodrigues Júnior: O sucessor, o credor quirografário, o accipiens hipotecário diante do devedor que aliena a coisa dada em garantia, o terceiro a favor de quem se constituiu estipulação, o locador em face do locatário que subloca o imóvel, o fiador superveniente, o cedido na cessão de crédito, o devedor ante o terceiro sub-rogado e, por derradeiro, o gestor de negócios são exemplos de pessoas que normalmente figurariam como terceiros, muitos até recebem essa denominação, entretanto ostentam um tal nexo com a relação jurídica específica que mais se assemelham a satélites em derredor aos planetas: não se encontram na atmosfera destes, mas gravitam com tal proximidade a sua órbita, que não podem deixar de influir ou de ser influenciados por aquela.6 Além disso, existem hipóteses legais em que o terceiro é atingido diretamente pelo contrato que não é parte: (i) a responsabilidade dos(as) herdeiros(as) do(a)contratante (Código Civil - CC, art. 1.792); (ii) a promessa de fato de terceiro (CC, arts. 439-440), como na promessa do produtor de um show para que um terceiro (cantor) realize o show, o contrato de transmissão de jogos de futebol,7 entre outros; (iii) a estipulação em favor de terceiros (CC, arts. 436-438), por exemplo, o contrato de seguro de vida, no qual o terceiro consta como beneficiário e o contrato é firmado entre a seguradora e o segurado;8 (iv) contrato com pessoa a declarar (CC, .arts. 467-471), como o contrato preliminar;9 (v) a ideia de consumidor por equiparação ou bystander posta nos arts. 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, como se vê no Enunciado 47910 da Súmula do STJ; (vi) a função social do contrato (CC, arts. 421 e 421-A), como aponta o Enunciado 21 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF): "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito".11 A função social do contrato como fundamento da tutela externa do crédito é controversa na literatura jurídica brasileira,12 como se exporá em outro tópico deste artigo; (vii) com a boa-fé objetiva;13 (viii) da responsabilidade por ato ilícito ou abusivo (STJ - RESP 2.023.942/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2022, DJe 28.10.2022); (ix) publicidade de registros notariais, documentais ou de títulos;14 (x) fraude contra credores e demanda revocatória falimentar. O contrato pode ter efeito sobre terceiros, mesmo que não haja a intenção de prejudicar terceiros, como aponta Otavio Luiz Rodrigues Júnior: Muita vez, os efeitos reflexos ocorrem sem que os contraentes os desejem ou os tenham previsto, porém suas conseqüências sobre o terceiro apresentam-se de modo inevitável, revelando que sua relatividade será mais ampla que o próprio desejo dos declarantes. 57 Posteriormente, com o desenvolvimento das relações contratuais de massa e do direito do consumidor, passou-se a admitir a figura do contrato em prejuízo de terceiro, assim entendido o que produz prejuízo reflexo a terceiros, mesmo sem ser essa a intenção dos declarantes. 58 São exemplos dessa espécie a formação de cartéis entre fornecedores para impedir a redução de preços ou para controlar sua majoração, bem assim contratos destinados a repartir faixas de mercado, limitar a concorrência e prejudicar o interesse dos consumidores, que se colocam como terceiros em face de tais pactos. 59 Segundo Vincenzo Roppo (2001:565), a nulidade desses contratos em dano a terceiro não depende de uma violação do princípio res inter alios acta, mas da ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.15 Esclarece-se que o CDC, nos arts 3º, 7º, 12, 14 e 25, estabelece uma "solidariedade legal entre agentes econômicos diversos, cujos efeitos dimanam sobre a responsabilidade pelo produto ou serviço, em regra, de caráter objetivo (arts. 12, 14 e 25 do CDC".16 Delimitado os pontos sobre a eficácia perante terceiros de contratos nos quais não são partes, passa-se ao tópico seguinte a abordar da tutela externa do crédito, a fim de aferir, no último tópico, se o art. 608 do CC e o art. 28 da lei 9.615/98 (Lei Pelé) são exemplos de tal instituto e se podem ser aplicados cumulativamente pela entidade desportiva contra o atleta profissional e contra a entidade desportiva que o auxiliou na quebra do contrato antes do tempo combinado. Há , também, a hipótese de tutela externa do crédito prevista no art. de 209 da lei 9.279/96 (concorrência desleal em negócios jurídicos de comércio alusivos à propriedade industrial),17 que não será objeto de análise neste artigo. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Entende-se que os princípios são deontológicos, parâmetros interpretativos que fundam as normas jurídicas (resultado da interpretação do texto no contexto de aplicação) e operam no código jurídico/antijurídico, pois significam a incorporação jurídica do mundo prático ao Direito, sendo instituidor da regra jurídica. "Uma regra só pode ser aplicada a partir de um ou mais princípios, e um princípio sempre será aplicado por meio de uma regra (...) Se a regra não fosse porosa, bastaria sempre a subsunção. Por isso, sempre será necessária a presença de um ou mais princípios para a sua interpretação. Mesmo nas situações (ou nas que são consideradas) mais claras, pelas quais uma regra pode abarcar determinada situação fática, ainda assim haverá a interferência de um princípio. Nesses termos, princípios (constitucionais) devem ser compreendidos a partir do que chamo de "tese de descontinuidade": eles instituem o mundo prático no Direito, possibilitando, a partir de sua normatividade, o fechamento interpretativo no Direito. ". STRECK, Lenio. Diferença entre regras e princípios. In: STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 67-70, p. 69-70. 2 Lôbo, Paulo Luiz Neto. Direito Civil: Contratos. 10. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 82. 3 Tartuce, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 129. 4 Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil - Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 485. 5 Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Revista dos Tribunais | vol. 821/2004 | p. 80 - 98 | Mar / 2004, edição eletrônica. 6 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 7 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu: "Contratos. Televisão. Jogos. A confederação que engloba os times de certa atividade desportiva firmou contrato com a empresa de televisão a cabo, pelo qual lhe cedia, com exclusividade, os direitos de transmissão ao vivo dos jogos em todo o território nacional, referentes a determinada temporada. Sucede que 16 times, em conjunto com a associação que formaram, e outra empresa de televisão também firmaram contratos com o mesmo objetivo. Daí a interposição dos recursos especiais. Pela análise do contexto, conclui-se que, apesar de figurar no primeiro contrato como cedente e detentora dos direitos em questão, a confederação firmou, em verdade, promessa de fato de terceiro: a prestação de fato a ser cumprido por outra pessoa (no caso, os times), cabendo ao devedor (confederação) obter a anuência dela quanto a isso, tratando-se, pois, de uma obrigação de resultado. Pela lei vigente à época (art. 24 da Lei n. 8.672/1993), somente os times detinham o direito de autorizar a transmissão de seus jogos. Assim, visto que a confederação não detém o direito de transmissão, cumpriria a ela obter a anuência dos times ao contrato que firmou, obrigação que constava de cláusula contratual expressa. O esvaziamento desse intento, tal como atesta notificação posta nos autos realizada pela própria confederação, de que não conseguiu a anuência dos clubes, enseja a resolução (extinção) desse contrato e sua responsabilização por perdas e danos (art. 929 do CC/1916, hoje art. 439 do CC/2002). Contudo, não se fala em nulidade ou ineficácia, pois, houve, sim, a inexecução (inadimplemento) de contrato válido, tal como concluiu o tribunal a quo. Tampouco há falar em responsabilidade solidária dos times porque, em relação ao contrato firmado pela confederação, são terceiros estranhos à relação jurídica, pois só se vinculariam a ele se cumprida a aludida obrigação que incumbia ao promitente, o que, como dito, não se realizou. Já a associação, mesmo que tenha anuído a esse contrato, não pode ser responsabilizada juntamente com a confederação: não há previsão contratual nesse sentido e pesa o fato de que a obrigação de obter a aceitação incumbia apenas à confederação, quanto mais se a execução dependia unicamente dos times, que têm personalidades jurídicas distintas da associação que participam e são os verdadeiros titulares do direito. Com esse e outros fundamentos, a Turma negou provimento aos especiais" (STJ, REsp 249.008/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJRS), j. 24.08.2010). 8 Tartuce, Flávio, 2024, p. 129. 9 Tartuce, Flávio, 2024, p. 131. 10 Enunciado 479 da Súmula do STJ: "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". 11 Tartuce, Flávio, 2024, p. 132. 12 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela externa da obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11abr2024. 13 Tartuce, Flávio, 2024, p. 519-520; Greco Bandeira, Paula. Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 30, ano 8, abr./jun., 2007, p. 79-128. 14 Otávio aponta: "Trata-se de questão inerente à eficácia e não à validade do ato. 33 São exemplos: a) a carta de fretamento, desde que escriturada por corretor de navios ou tabelião, com duas testemunhas, terá eficácia de instrumento público, caso contrário "obrigará as próprias partes, mas não dará direito contra terceiro" (art. 569 da Lei Imperial 556, de 25.06.1850, do Código Comercial brasileiro); b) o contrato de câmbio marítimo deverá ter forma de instrumento público ou, se particular, entre outras formalidades, reconhecido e visado por "cônsul do Império", sob pena de ficar "este subsistindo entre as próprias partes, mas não estabelecerá direitos contra terceiro" (art. 633 do CCo (LGL\1850\1) brasileiro 34); c) "o instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público" (art. 221 do CC/2002 (LGL\2002\400)35); d) é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não se celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades legais (art. 288 do CC/2002 (LGL\2002\400)36); e) "o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial" (art. 1.144 do CC/2002 (LGL\2002\400)37); f) "para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis" (art. 1.333, parágrafo único, do CC/2002 (LGL\2002\400)38); g) "as convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges" (art. 1.657 do CC/2002 (LGL\2002\400). 39); h) nos contratos de locação predial urbana, com cláusula de vigência em caso de alienação devidamente averbada junto à matrícula do imóvel, o adquirente - terceiro em relação ao locador e ao locatário - não poderá denunciar o vínculo locatício, devendo aguardar o termo final da avença primitiva (artigo 8.º da Lei 8.245 de 18.10.1991, com norma similar no art. 576 do CC/2002 (LGL\2002\400)40)". Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 15 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 16 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 17 Lei 9.279/2006: "Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. § 1º Poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória. § 2º Nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada".
Introdução A Victor Hugo, um dos mais importantes escritores do século XIX, é atribuída a frase "nada é mais poderoso do que uma ideia que chegou no tempo certo", que tem características românticas e políticas como o próprio autor que além de escritor foi deputado e, combateu duramente a pena de morte em seu país.  A Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil instalada pelo presidente do Senado da República em agosto de 2023, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, e que tem como relatores dois dos maiores juristas contemporâneos, prof. dra. Rosa Maria de Andrade Nery e prof. dr. Flávio Tartuce, é com toda certeza uma ideia que chegou no tempo certo. Desde a entrada em vigor do CC/02, em janeiro de 2003, surgiram projetos, comentários, propostas, sempre com objetivo de atualizar o texto de lei e, revisar equívocos involuntariamente cometidos no processo de discussão e aprovação. É possível afirmar que havia consenso entre os civilistas brasileiros de que o projeto aprovado em 2002 nasceu com ares de meados do século XX, insuficiente, por isso mesmo, para dar conta das grandes transformações que as diferentes sociedades têm vivido no século XXI, em especial, nas áreas econômica e social. Assim, a constituição de uma Comissão de Juristas para revisar e atualizar os diferentes capítulos do Código Civil foi uma ideia no tempo certo, porque ao desejo de mudança que já existia desde 2002 se somou a experiência acumulada nesses 21 anos de vigência da lei civil com as decisões dos tribunais estaduais, dos tribunais superiores, dos instigantes debates das Jornadas do Conselho Federal de Justiça, do CNJ, e pelo trabalho dos doutrinadores que exaustivamente pesquisaram, escreveram, atualizaram, compararam com o direito civil de outros países, e publicaram livros e artigos ao longo de todos esses anos. É preciso ponderar, no entanto, que um código precisa ter linha lógica, fios condutores que permitam organicidade, interpretação sistemática e coerente. E, nesse sentido, a Comissão de Juristas tomou a decisão de manter integralmente os princípios que orientaram o Código de Miguel Reale: a sociabilidade, eticidade e operabilidade, que ao longo dos últimos 21 anos se mostraram de enorme relevância no trato com a interpretação e aplicação do direito aos casos concretos oriundos da hipercomplexidade que, na atualidade, caracteriza a sociedade em que vivemos.  Não se trata de uma reforma do Código Civil, de uma lei nova, mas sim de um criterioso e cuidadoso processo de revisão e atualização, sem desprezar as diretrizes que orientaram o trabalho dos juristas que nos antecederam. 1. Contratos de seguro no Código Civil O tratamento do CC/02 aos contratos de seguro teve aspectos inovadores. O contrato foi definido como instrumento para garantir ao segurado mediante o pagamento do prêmio seu interesse legítimo sobre pessoas ou coisas, contra riscos predeterminados. No Código Civil de 1916 a definição caracterizava o contrato como instrumento que obrigava o segurador a indenizar, herança do Código Civil italiano de 1942, porém, inadequada para definir corretamente a principal obrigação que o segurador assume nesse contrato bilateral, além de inaplicável para os contratos de seguro de pessoas. A responsabilidade de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados que possam atingir bens ou pessoas, reforça a ideia do mutualismo como elemento essencial que alicerça os contratos de seguro. Afinal, para garantir é preciso organizar e administrar e esse é, exatamente, o principal papel do segurador na constituição do fundo mutual de onde sairão os recursos necessários para o pagamento das indenizações quando e se necessárias. Apesar dessa inovação e de algumas outras pontuais, o CC/02 não abordou temas que àquela época já eram relevantes para segurados e seguradores. Por essa razão, a Comissão de Juristas buscou revisar artigo por artigo do capítulo XV à luz da construção jurisprudencial e, a partir da contribuição dos enunciados das jornadas e do trabalho dos doutrinadores. Além disso, há um minucioso trabalho de integração e adequação do Capítulo XV, dos Contratos de Seguro, às normas da Parte Geral do Código Civil, da Parte Geral dos Contratos e, em especial, ao novo capítulo sobre Direito Digital que integrará o Código Civil cujo projeto está sendo construído.  O novo capítulo XV cuida, ainda, de ressaltar sempre que necessário, a prevalência da lei especial federal de proteção do consumidor, a lei 8.078/90, o CDC, na aplicação aos contratos de seguro denominados como massificados, ou seja, aqueles em que há um consumidor na condição de contratante ou, mais especificamente, de aderente às condições prefixadas pelo segurador. Confira aqui a íntegra da coluna.
I - Uma possível introdução  Um dos versos mais declamados em língua portuguesa, inclusive por quem não é afeto à leitura de poemas, "navegar é preciso, viver não é preciso", faz parte de um dos muitos sonetos do genial Fernando Pessoa.  Nascido em Lisboa no ano de 1888, no Largo do Teatro de São Carlos, Pessoa se é sem dúvida um dos mais aclamados poetas do mundo lusófono. Notabilizou-se por seus heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis etc e até hoje é leitura obrigatória nas escolas não só pela beleza e qualidade de seus versos, mas pela riqueza de detalhes históricos que sua obra contém.  Para sermos honesto, a frase não é de autoria de Fernando Pessoa. Plutarco, que viveu no Século I antes de Cristo, atribui a frase ao general romano Gnaeus Pompeius Magnus1 (navigare necesse, vivere non est necesse) que a teria proferido a frase quando embarcava para Roma com grãos essenciais à alimentação do povo e uma tormenta se abateu sobre a frota.  Evidentemente, diante da situação em que a frase é mencionada, "preciso" só pode ter um significado, que é necessário. Navegar é necessário para que os grãos cheguem ao povo romano.  Por mais encantadora que seja uma outra possível leitura pela qual os portugueses, conhecedores exímios dos mares (assim como eram os romanos com relação ao mar Mediterrâneo que chamavam de mare nostrum) achariam a navegação precisa por ser certa, exata, sem erros, sem surpresas; enquanto a vida, ao contrário, é sempre imprevisível e cheia de intempéries, não é esse o sentido do adjetivo na poesia de Pessoa.  O poeta afirma que "Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande". Logo, a ideia não era de precisão, de certeza. Não se tratava de precisão matemática e sim de uma necessidade.  Reformar o Código Civil é preciso, necessário, por força das inúmeras mudanças que o mundo e em especial o Direito passou nesses últimos 20 anos. A necessidade de incorporação das mudanças que o direito pessoal de família sofreu é realmente óbvia. Se lermos o direito pessoal de família e a intepretação dos Tribunais, vê-se que a lei não está, nem de perto, refletida na leitura jurisprudencial.  A questão das novas tecnologias e seus efeitos para o direito das obrigações não poderiam deixar de ser incorporadas aos sistemas. Aliás, a tão falada herança digital é tema que compete ao Código Civil tratar.  Agora, se sobra necessidade, problema temos com a precisão no sentido de exatidão. O desafio da Comissão, da qual honrosamente faço parte, é se desincumbir do ônus de alterar a lei espetacularmente pensada por Juristas simplesmente geniais, com precisão, exatidão, para que o sistema seja aprimorado.  II - Os vícios redibitórios na reforma do CC  Vejamos o texto atual e o sugerido pela subcomissão de contratos.  a) Art. 441 do CC {EMBED_IFRAME_3977} O primeiro ponto que se nota é que o projeto opta por utilizar "vício oculto" no texto da lei e não "redibitório" como está no título da Seção V. Faz bem. Redibição é um efeito do vício oculto, mas não o único já que, ao invés de se devolver a coisa (recebendo o valor eventualmente pago de volta), o adquirente pode optar pelo abatimento do preço (ação estimatória ou quanti minoris).  Suprime-se a palavra defeito, pois era redundante. Se há defeito, há vício e se há vício é porque há defeito. Utiliza-se a expressão "obrigação de garantia" e esta menção não gera nenhum efeito prático. Nada muda por ser uma obrigação de garantia. Contudo, também não prejudica em nada a lógica do sistema.  Há uma alteração de alcance da norma, pois o Código Civil determina sua aplicação às doações onerosas sendo que a reforma restringe às doações com encargo. Mas há outras doações onerosas que não a doação com encargo? Sim, as doações remuneratórias, as doações em contemplação do merecimento do donatário (art. 540 do CC), por exemplo, são onerosas, mas não contém encargo.  O parágrafo 2º assim menciona: "A transferência do bem pode referir-se à posse". A regra é também não é imprescindível, mas não prejudica o sistema. Dá clareza para contratos comutativos como a locação em que somente a posse é transferida.  O parágrafo § 3º determina que "Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser existentes, mas não manifestados ao tempo da aquisição". Perfeita a regra. Decorre da própria definição de vício oculto e de sua distinção para vício aparente. Se o vício se manifestou, oculto não é.  a) Art. 441 - A  O artigo é uma inovação. Tem a seguinte redação:  "Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o comprador sabia ou não podia ignorar a sua existência, consideradas as circunstâncias do negócio no momento da aquisição.  Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios".  O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).  O termo adquirente é preferível a comprador.  Novamente, o parágrafo mostra que o standard do "homem médio" não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.  Não se trata mais de um adquirente "em abstrato", mas sim em concreto.  b) Art. 442  Vamos novamente comparar a redação atual e a sugerida. {EMBED_IFRAME_3978} Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), a subcomissão sugere que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha, de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na Parte Geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).  Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.  Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado artigo 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.  O adquirente, que pela redação atual do Código Civil tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.  Por fim, a subcomissão não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o artigo 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória). __________ 1 Aquele que ao lado de Crasso e Julio Cesar foi triúnviro, posteriormente inimigo capital de Cesar e que acaba sendo morto no Egito por ordens do Faraó Ptolomeu XIII.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Pacto sucessório e a reforma do Código Civil

Como amplamente divulgado, a presidência do Senado Federal institui - sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e relatoria dos professores Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce - Comissão de Juristas à qual foi atribuída a missão de atualizar e reformar o Código Civil brasileiro. A Comissão tem dado aos seus trabalhos amplíssima divulgação. A presidência da Comissão oficiou inúmeras instituições dedicadas ao Direito em geral e ao Direito Civil em especial para que apresentassem suas sugestões de aprimoramento do Código Civil. A Comissão vem organizando diversas audiências públicas para ouvir professores, advogados, juízes, defensores etc. Ademais, tornou pública a compilação dos pareceres das diversas subcomissões, de modo que qualquer interessado pode acessar o site do Senado Federal, ler os pareceres e apresentar considerações dirigidas aos membros da Comissão ou mesmo publicar artigos e ministrar aulas e palestras com sugestões de aprimoramento do texto atualmente vigente ou daqueles - ainda provisórios, insisto - constantes dos pareceres.   A comunidade jurídica tem a oportunidade e, permito-me dizer, o dever moral de apresentar suas contribuições para que tenhamos o melhor Código Civil possível. Se é verdade que criticar as alterações depois de elas entraram em vigor é um direito, fazê-lo sem ter apresentado sugestões de aprimoramento enquanto isso é possível é despundonor. Dito isso, na qualidade de membro-consultor da Comissão de Juristas, quero aproveitar o espaço gentilmente concedido pelo Migalhas para tratar dos chamados pactos sucessórios, designadamente para apresentar à comunidade jurídica minha opinião sobre qual seja o Livro mais adequado do Código Civil para constarem eventuais exceções à proibição dos pacta corvina e para apontar algumas objeções à proposta apresentada pela subcomissão quanto ao tema. Um código de leis, qualquer um, é "uma ordem conjetural de problemas", como precisamente definiu Miguel Reale em seu "O Direito como Experiência", obra que reputo das mais importantes sobre teoria do Direito. O encadeamento adequado das disposições normativas é, portanto, condição necessária para que um conjunto de artigos, incisos, parágrafos e alíneas forme um Código. Durante o estágio de pós-doutoramento que o professor Flávio Tartuce e eu cursamos sob a supervisão do professor José Fernando Simão, tivemos, os três, ocasião de estudar com profundidade o tema dos pactos sucessórios e entendemos por bem apresentar ao Senador Rodrigo Pacheco proposta de alteração do Código Civil. A proposta que apresentamos acrescentava seis parágrafos ao artigo 426 do Código Civil; foram elas: Art. 426. (...). § 1º. Os cônjuges podem, por meio de pacto antenupcial, e os companheiros, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou companheiro. § 2º. A renúncia pode ser condicionada às hipóteses de concorrência com descendentes ou com ascendentes. § 3º. A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do artigo 1.829, não sendo necessário que a condição seja recíproca. § 4º. A renúncia não implicará perda do direito real de habitação previsto no artigo 1831, salvo expressa previsão dos cônjuges ou companheiros. § 5º. Quaisquer outras disposições sucessórias que não as previstas nos parágrafos anteriores, sejam unilaterais ou bilaterais, ocorrendo em pacto antenupcial, instrumento público ou particular firmados por cônjuges ou companheiros, são nulas. § 6º. A renúncia será ineficaz se no momento da morte do cônjuge ou companheiro o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária. As justificativas - cuja íntegra omito pelo bem da brevidade - concentraram-se na possibilidade de os cônjuges e companheiros disporem de autonomia privada para planejarem sua sucessão, sem prejuízo da proteção ao importantíssimo direito real de habitação. As exceções ao artigo 426 foram postas no próprio artigo, por meio do acréscimo de parágrafos, seguindo o que dispõe a Lei Complementar n. 95/98 em seu artigo 11, III, alínea c, verbis: Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (omissis) III - para a obtenção de ordem lógica: (omissis) c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida. A subcomissão responsável pela revisão e reforma do Livro V do Código Civil (direito das sucessões) sugeriu que a disciplina dos pactos sucessórios constasse do Livro V da Parte Especial e criou regime jurídico muitíssimo inovador. Apresento, a seguir, a proposta da subcomissão em itálico e, a cada dispositivo, minhas considerações. Art. 1.790-A. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva ou dispõe sobre a sua própria sucessão. A expressão sucessão contratual tem já um significado preciso que é o decorrente da transmissão da posição contratual de uma parte a algum terceiro. Por exemplo, a cessão da posição de locatário ao adquirente do ponto comercial. O que a subcomissão pretendeu fazer foi criar um contrato que possa tratar amplamente da sucessão de pessoa viva, e não apenas da renúncia à qualidade de herdeiro. Quando o dispositivo inclui a frase ou dispõe sobre a sua própria sucessão parece permitir que haja algo como um "contrato testamentário", numa importação, a meu ver, imprópria do § 1941 do BGB (Código Civil alemão); imprópria na medida em que absolutamente estranha à tradição jurídica nacional e, ainda, incompatível com o regime jurídico da sucessão testamentária. Para apontar apenas uma das inconveniências da sugestão, basta dizer que a existência de uma sucessão contratual (o melhor seria contrato de sucessão ou contrato sucessório), por coerência lógica, teria de implicar a revogação de testamento anterior incompatível com o contrato e a ineficácia de testamento posterior que o contrariasse. § 1º. É válida a doação, com eficácia submetida ao termo morte. O dispositivo consagra algo que a melhor doutrina já admite e, portanto, é de se louvar. Não obstante, o seu local adequado é entre os dispositivos que formam o regime jurídico do contrato de doação, até porque a doação sob termo morte - ou à causa de morte - é contrato de doação, e não pacto sucessório. § 2º. A transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou, na omissão deste, nos contratos celebrados entre titulares e usuários e as respectivas plataformas. Atualmente, salvo equívoco de minha parte, não há dúvidas de já ser permitido o que o dispositivo visa a permitir. Evidentemente que a explicitação é muito bem-vinda, mas me parece que deveria constar de parágrafo ao artigo 1.857 do Código Civil. Algo como: Art. 1.857.... § ...º. Sem prejuízo do disposto nos contratos celebrados entre usuários e as plataformas, a transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento. § 3º. A reconstrução de voz e imagem após a morte se submete à mesma proteção dos direitos morais de autor. O dispositivo é salutar, mas deveria constar da Parte Geral do Código Civil, designadamente entre os artigos que disciplinam os direitos da personalidade. § 4º. A sucessão em participações societárias, ou na administração da sociedade, pode ser regulada nos instrumentos societários das sociedades em geral, sem prejuízo à legítima dos herdeiros necessários. Esse talvez seja um dos mais louváveis e importantes dispositivos sugeridos. Embora o inciso I do artigo 1.028 do Código Civil já contemple a possibilidade, a explicitação seria de todo benéfica. Penso, no entanto, que deveria constar do Livro II da Parte Especial, e não no seu livro V § 5º. Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o valor da participação societária será avaliada com base em balanço patrimonial especialmente levantado na data da abertura da sucessão, avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma. § 6º Se o valor a que se refere o parágrafo anterior superar ao do quinhão atribuído em partilha ao sucessor contratual designado, este deverá repor ao monte o valor do excesso, em dinheiro. § 7º A sucessão contratual dos sócios ou administradores, quando expressamente regulada nos instrumentos societários ou pactos parassociais, se fará automaticamente após a abertura da sucessão, independentemente de autorização judicial. § 8º Em caso de morte de sócio ou administrador único, o Juiz poderá designar um administrador provisório até que se conclua a sucessão na sociedade. Os parágrafos 5º a 8º são matéria puramente de direito societário e, portanto, devem ser tratadas no livro próprio, para o bem da unidade sistêmica do Código Civil.   §9º Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no artigo 426. Em sendo superadas as objeções que levantei, penso que a melhor redação para esse parágrafo seria: Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, nos termos do disposto no artigo 426. Não há risco de "prejuízo" se o dispositivo sugerido vai ao encontro do artigo 426. Em síntese, a mim parece adequado que haja exceções ao artigo 426. Defendo que, para a manutenção da ordem sistemática, fundamental a qualquer código, as exceções constem como parágrafos do artigo 426, e não no Livro V da Parte Especial. Ademais, pelas razões - superficialmente - apontadas e outras que o tempo me impediu de expor, defendo que não seja positivada a categoria do "contrato sucessório". Concluo este brevíssimo texto enaltecendo o trabalho primoroso da Comissão de Jurista - não veja aqui o leitor um autoelogio porque funciono como mero consultor - e parabenizando especialmente os membros da subcomissão de direito das sucessões, todos juristas que considero meus professores.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Panorama do Direito Contratual brasileiro em 2023

O ano de 2023 foi significativo para o Direito Contratual Brasileiro, uma vez que mudanças ocorreram e modificações no Código Civil se avizinham. Isso porque, do ponto de vista legislativo, três importantes leis foram promulgadas, quais sejam: lei 14.620/2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida), lei 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias) e regulatório com o Código Nacional de Normas e Regulamentação da Adjudicação Compulsória Extrajudicial pelo CNJ (Provimento CNJ n.º 150/2023). A lei 14.620/2023 trata do Programa Minha Casa, Minha Vida e alterou critérios postos no programa Casa Verde e Amarela, com o intuito de ""promover o direito à cidade e à moradia de famílias residentes em áreas urbanas e rurais", na forma do art. 1º da lei 14.620/2023. Saliente-se que "além de promover o direito e ampliar a oferta à moradia para famílias com determinadas rendas preestabelecidas, seu objetivo também é promover o desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural, de forma sustentável, mitigando vulnerabilidades e prevenindo riscos de desastres, gerando trabalho e renda, elevando padrões de habitabilidade, de segurança socioambiental e de qualidade de vida da população".1 Do ponto de vista contratual, para além da utilização dos contratos para promover os objetivos legislativos postos nos arts. 2º, 3º e 4º da lei 14.620/2023, tal lei permite: (i) que a União doe ou aliene, de forma gratuita ou onerosa, bens imóveis (lei 14.620/23, art. 6º XII); (ii) majoração do direito de construir (lei 14.620/23, arts. 4º e 6º, § 13, XII), mediante contratos de prestação de serviços e (ou) empreitada; (iii) fortalecimento do contrato de financiamento obtido com recursos do FGTS ou "em condições equivalentes às do Sistema Financeiro da Habitação, em qualquer parte do País" (lei 14.620/2023, art. 9º, I); (iv) prioridade aos "contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) (lei 14.620/2023, art. 10); (v) estabelecimento de direito resolutório da relação contratual em caso de descumprimento pela família beneficiária (lei 14.620/2023, arts. 12 e 32); (vi) respeito e tutela aos contratos firmados entre o Estado e as concessionárias de energia elétrica (lei 14.620/2023, art. 13); (vi) previsão de condições gerais contratuais obrigatórias (lei 14.620/2023, art. 13); (vii) respeito à função social do contrato, via tutela do direito à moradia, respeito às mulheres, as pessoas com deficiência e em situação de vulnerabilidade (lei 14.620/2023, arts. 8º, 16, 33 e 40) e da função ambiental do contrato pelo fomento à edificações sustentáveis ambientalmente, inclusive com subsídios públicos (lei 14.620/2023, arts. 13, 16, 32 e 33); (viii) fomento da locação em área urbana e do arrendamento em área agrária "de parcela do imóvel não prevista para uso habitacional, bem como a alienação de unidades imobiliárias, desde que o resultado auferido com a exploração da atividade econômica reverta-se em benefício do empreendimento" (lei 14.620/2023, art. 14); (ix) fomento do contrato de seguro obrigatório para os empreendedores na "produção de unidades imobiliárias novas em áreas urbanas" (lei 14.620/2023, art. 15); (x) facilitação para financiamento para os projetos de interesse social "nas áreas de habitação popular, inclusive regularização fundiária e melhoria habitacional, sendo permitido o financiamento nas áreas de saneamento e infraestrutura, desde que vinculadas aos programas de habitação, bem como de equipamentos comunitários" (lei 14.620/23, art. 26); e (xi) facilitação à utilização dos imóveis produzidos com "recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) poderão ser destinados por cessão, doação, locação, comodato, arrendamento ou venda, em contrato subsidiado ou não, total ou parcialmente, para pessoa física ou jurídica, conforme regulamentação do Ministério das Cidades, sem prejuízo de outros negócios jurídicos compatíveis" (Lei n.º 14.620/23, art. 29). Outros pontos positivos como os relacionados à desapropriação ultrapassam o escopo deste texto. A lei 14.711/2023 cuidou do aprimoramento das garantias e outros temas, sendo relevante destacar que o IBDCONT apresentou Nota Técnica,2 que teve grande impacto para a elaboração da lei, como as críticas ao instituto das instituições gestoras de garantia (IGG) e aquela relacionada a mais uma hipótese de penhorabilidade do bem de família, entre outros pontos, tendo sido mantido o contrato de gestão de garantias, sendo relevante refletir sobre o tema a partir da construção da literatura jurídica, como, por exemplo: 1. É cabível subalienações fiduciárias em garantia, também chamadas de alienações fiduciárias sucessivas (art. 22 da lei 9.514/1997). 2. Nas subalienações fiduciárias em garantia, os credores fiduciários de segundo ou mais graus serão titulares de um direito real de propriedade sujeito a duas condições: (i) a condição resolutiva consistente no adimplemento da respectiva dívida garantida; e (ii) a condição suspensiva consistente na extinção da propriedade fiduciária de grau inferior (capítulo IV.1.1.). 3. Apesar do silêncio da Lei das Garantias, entendemos que as subalienações fiduciárias em garantia de bens móveis são plenamente admissíveis, porque a alienação de coisa futura é permitida pelo nosso ordenamento, especialmente pelo art. 483 do CC. O outro caminho que chegaria a resultado prático similar é a realização de cessão fiduciária (que pode ser sucessiva) do direito real de aquisição pelo devedor fiduciante (capítulo IV.1.2.). 4. Na subalienação fiduciária em garantia, a cláusula cross default precisa estar consignado no instrumento constitutivo e não se opera automaticamente: depende de manifestação do credor na intimação do procedimento executivo extrajudicial (capítulo IV.1.3.). 5. Penhoras e alienações (fora da alienação fiduciária) não devem recair sobre a propriedade superveniente, e sim sobre o direito real de aquisição do devedor fiduciante: é a solução que enxergamos diante da opção não adequada do legislador em ter preferido focar a propriedade superveniente ao disciplinar a garantia fiduciária sucessiva (capítulo IV.1.5.). 6. O recarregamento, também chamado de extensão, compartilhamento ou refil, da hipoteca ou da alienação fiduciária em garantia de imóveis é admitido como o objetivo de facilitar, do ponto de vista cartorário, a conexão de novas obrigações a uma anterior garantia real imobiliária: basta ato de averbação na matrícula. Não se confunde com hipóteses de meros aditivos contratuais (capítulos IV.2.1., IV.2.3. e IV.2.7.). 7. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia de imóveis só pode ser realizado por instituição financeira ou por empresas simples de crédito em qualquer tipo de negócio, ao contrário do recarregamento de hipoteca (livre a qualquer sujeito) (capítulo IV.2.2.). 8. Vigora, no recarregamento das garantias reais imobiliárias, a regra da unicidade do credor, admitida, porém, no caso de hipotecas recarregadas, que fato superveniente enseje a diversidade de credores. A preferência creditória seguirá o princípio da prioridade registral, resumido no brocardo prior in tempore potio in iure (capítulo IV.2.4. e capítulo IV.2.5.). 9. Terceiros com direitos contraditórios na matrícula previamente ao recarregamento da garantia real não perdem a preferência creditória (capítulo IV.2.6.). 10. Quanto ao cabimento do recarregamento da garantia imobiliária na hipótese de preexistir direito tabular em favor de terceiros, há solução diferente a depender do tipo de garantia: é vedado o recarregamento apenas quando se tratar de alienação fiduciária em garantia (capítulo IV. 2.6.). 11. O recarregamento da garantia real há de respeitar o prazo e o valor previstos no registro para a dívida originária (capítulo IV.2.8.). 12. No recarregamento da garantia real, a cláusula cross default é admissível, mas tem de ser consignada no instrumento. Sua ativação, porém, depende de manifestação do credor na notificação expedida no curso do rito executivo extrajudicial. Essa regra vale mesmo para o caso de hipoteca, apesar do silêncio legal (capítulo IV.2.9.). 13. A boa técnica de redação registral recomenda que, ao averbar o recarregamento da garantia, o registrador deve consignar expressamente os efeitos jurídicos potencialmente lesivos a terceiros, como a existência da cláusula cross default, o respeito a direitos contraditórios e as informações essenciais sobre os dados dos sujeitos e do valor da dívida (capítulo VI.2.10.). 14. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia sobre imóvel pode ser formalizado por instrumento particular, sem necessidade de reconhecimento de firma. Já o recarregamento da hipoteca depende de escritura pública, salvo se o imóvel for de valor inferior a 30 salários mínimos (capítulo IV.2.11.). 15. Há autonomia do devedor em quitar antecipadamente qualquer uma das obrigações penduradas na mesma garantia real recarregada (capítulo IV.2.12.). 16. A regra do no negative equity guarantee restringe-se à alienação fiduciária em garantia envolvendo financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial e fora do sistema dos consórcios (capítulo IV.3.). 17. Mesmo para casos de cobranças judiciais, a regra acima é válida e eficaz (capítulo IV.3.2.). 18. É cabível a aplicação do duty to mitigate the loss contra o credor fiduciário no caso de demora desarrazoada em iniciar a execução da dívida, com a consequente perda do direito sobre os encargos moratórios incidentes a partir da caracterização da inércia (capítulo IV.3.3.). 19. O próprio devedor tem legitimidade para iniciar o rito executivo extrajudicial da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis, desde que tenha sido frustrada a tentativa de solução amigável com o credor (capítulo IV.3.4.). 20. No segundo leilão envolvendo alienação fiduciária em garantia em casos de financiamentos de imóveis residenciais, o piso é o valor da dívida, ainda que seja inferior a 50% do valor do imóvel (capítulo IV.4.1.). 21. No segundo leilão nos demais casos de alienação fiduciária em garantia, há dois pisos: o principal (valor da dívida) e o piso subsidiário (metade do valor do imóvel). O piso subsidiário depende do exclusivo arbítrio do credor fiduciário e, por isso, não pode implicar o aumento do eventual saldo devedor remanescente a ser arcado pelo devedor no caso de negative equity. Além disso, na hipótese de o valor da dívida ser inferior ao do piso do segundo leilão, caberá ao credor pagar, em pecúnia, a diferença para o devedor (capítulo IV.4.2.). 22. Registro é para atos jurídicos destinados a instituição de direito real sobre imóvel ou a transmissão da propriedade, independentemente do tipo de ato jurídico escolhido pela parte (capítulo IV.5.). 23. RCPN pode colher prova de vida e de domicílio da pessoa natural para instituições interessadas (capítulo V). 24. Desjudicializou-se a busca e apreensão de bens móveis alienados fiduciariamente, fixando um rito perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos e facultando, no caso de veículos, o rito ocorrer perante o respectivo Detran (capítulo V). 25. Positiva-se a busca de soluções negociais no Cartório de Protestos (capítulo V). 26. Desburocratizou-se o procedimento de comunicação no procedimento de protesto (capítulo V). 27. Aprimoraram-se regras de emolumentos e de serviços da central nacional de serviços eletrônicos compartilhados no caso dos Cartórios de Protestos (capítulo V). 28. Disciplina-se a atuação dos cartórios de notas em cessões de precatórios (capítulo V). 29. Autoriza-se os notários a atuarem como árbitro, mediador e conciliador, além de certificarem a ocorrência de condições ou de outros elementos negociais, ademais de outras questões (capítulo V). 30. Tratou-se de legitimados a apresentarem extratos eletrônicos relativos a bens móveis no âmbito do SERP (capítulo V). 31. Desjudicializou-se a execução do crédito hipotecário (capítulo V). 32. Disciplina-se o procedimento nos ritos executivos extrajudiciais de crédito hipotecário ou fiduciário quando há mais de um crédito sobre o mesmo imóvel (capítulo V). 33. Autoriza-se que, em loteamentos, o mesmo imóvel sirva como garantia ao Município ou ao Distrito Federal na execução das obras de infraestrutura e a créditos constituídos em favor de credor em operações de financiamento a produção do lote urbanizado (capítulo V). 34. Admite-se, como título executivo extrajudicial, o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores (capítulo V). 35. Disciplinou-se o contrato de administração fiduciária de garantias (capítulo V). 36. Ajustara,-se regras de hipoteca (capítulo V). 37. Prevê-se multa de 0,5% ao mês contra o credor fiduciário no caso de atraso na entrega do termo de quitação (art. 25, § 1º-A, da lei 9.514/1997). 38. Realizaram-se outros ajustes na lei 9.514/1997 (arts. 24; 26; 26-A, § 2º; 27, §§ 2º-A, 2º-B, 3º, 11 e 12; 27-A; 30; 37; 39) (capítulo V).3 O Provimento CNJ n. 150/2023 trata da regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial, "prevista no artigo 216-B da Lei n.º 6.015/1973, na redação determinada pela recente lei 14.382/2022". Esta é entendida como "quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta, bem como as relativas cessões ou promessas de cessão, contanto que não haja direito de arrependimento exercitável" (Provimento CNJ n.º 150/2023, art. 1º). Como síntese dos pontos positivos do Provimento CNJ n.º 150/2023: 1. Esclareceu o Provimento 150/2023 do CNJ que o inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade previsto no art. 216-B, §1º, III, da lei 6.015/73 não é aquela que consta no inciso II e que deve ser realizada pelo registro imobiliário. 2. Diz-se isso porque ao se observar o que dispõe o art. 440-G, IV, do mencionado Provimento, vê-se que o inadimplemento que deve constar na ata notarial é aquela voltada às providências que deveriam ter sido tomadas pelo requerido do procedimento para a transmissão da propriedade e foram inadimplidas. 3. Assim, tem-se que já por esta razão de extrema utilidade o Provimento porque explica e demonstra a diferença entre o inadimplemento previsto no art. 216-B, §1º, II daquele previsto no art. 216-B, §1º, III, ambos da lei 6.015/1973. 4. Por sua vez, para a segunda situação tida como de possível controversa, possível observar que foi muito feliz o Provimento n. 150/2023, em seu art. 440-G, §6º, incisos I a VII, ao trazer itens exemplificativos daquilo que pode servir como prova da quitação do preço. 5. Dentre estes exemplos trazidos pelo Provimento, chamam atenção os incisos II e VII, que afirmam que poderia ser utilizado como prova de quitação tanto mensagens eletrônicas em que se reconheça que o pagamento foi efetuado, como a notificação extrajudicial destinada à constituição em mora da parte contrária. 6. Trata-se de relevante e moderna possibilidade conferida às partes envolvidas na promessa de compra e venda porque, salvo melhor juízo, viabiliza a comprovação quitação de forma célere e simplificada quando, por exemplo, um contratante notifica o outro para que aquele lhe outorgue a quitação e permanece a parte contrária inerte. 7. Em linhas gerais, de forma expressa o Provimento 150/2023 do CNJ relembra que a manifestação de vontade pode ser exarada de variadas maneiras, inclusive o silêncio, e que não exige forma ou formato específico. 8. Com estes exemplos de quitação entregues à comunidade jurídica, o CNJ alinha-se aos caros princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato. O primeiro porque induz um comportamento leal e diligente de ambas as partes; já o segundo porque faz com que o contrato seja capaz de transmitir a propriedade e com isso produza todos aqueles efeitos para o qual foi formalizado. 9. Desta forma, possível concluir que a adjudicação compulsória extrajudicial, editada pela lei 14.382/22 muito contribui tanto para a celeridade e efetivação dos contratos de promessa de compra e venda, como para a desobstrução do Poder Judiciário, já que viabiliza a solução de questões não litigiosas pela via extrajudicial. 10. Ao mesmo tempo, necessário registrar que além de ser de grande valia por fornecer um caminho padronizado dentro do direito notarial e registral para a adjudicação compulsória extrajudicial, o Provimento 150 de 11 de setembro de 2023 do CNJ presenteia o direito civil com uma espécie de releitura dos princípios contratuais da boa-fé e da função social ao incutir de forma expressa formas de interpretação de atos jurídicos praticados pelos contratantes.4 Do ponto de vista judicativo podemos destacar, entre outros, alguns entendimentos estáveis do Superior Tribunal de Justiça que envolvem o Direito dos Contratos, a seguir destacados: 1. "A inexistência de registro imobiliário da transação (contratos de gaveta) não impede a caracterização do fato gerador do laudêmio, sob pena de incentivar a realização de negócios jurídicos à margem da lei somente para evitar o pagamento dessa obrigação pecuniária (Tese julgada sob o rito do art. 1.036 do CPC/2015 - TEMA 1.142)".5 2. "É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família (Súmula n. 486/STJ)."6 3. "É possível a penhora do bem de família, quando a dívida exequenda for decorrente de contrato de compra e venda ou de promessa de compra e venda do próprio imóvel".7 4. "É possível a penhora do bem de família de fiador de contrato de locação, inclusive quando pactuado antes da vigência da lei 8.245/1991, que acrescentou o inciso VII ao art. 3º da lei 8.009/1990".8 5. "As seguradoras integrantes do consórcio do seguro obrigatório (DPVAT) são solidariamente responsáveis pelo pagamento das indenizações securitárias".9 6. "O fato gerador da cobertura do seguro obrigatório (DPVAT) é o acidente causador de dano pessoal provocado por veículo automotor terrestre ou por sua carga, em movimento ou não".10 7. "As instituições financeiras devem utilizar o Sistema Braille nas contratações bancárias (contratos bancários de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo) estabelecidas com a pessoa com deficiência visual, a fim de atender ao direito de informação do consumidor, indispensável à validade da contratação, e, em maior extensão, ao princípio da dignidade da pessoa humana".11 8. "É direito do devedor fiduciante a retirada dos aparelhos de adaptação de veículo automotor (pertenças) para direção por deficiente físico, se anexados ao bem principal em momento posterior à celebração do contrato fiduciário, quando houver o descumprimento do pacto e a consequente busca e apreensão do bem, entendimento que se coaduna, também, com a solidariedade social verificada na Constituição Federal e na lei 13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência".12 Do ponto de vista doutrinário, muitos livros foram atualizados e artigos publicados em revistas especializadas, sendo importante destacar a Revista Brasileira de Direito Contratual (IBDCONT) que chegou ao seu 17 número em 2023. Como se vê, desafios emergem para quem se dedica ao direito contratual no ano de 2024, sendo relevante que a comunidade jurídica se faça presente para encará-los, mormente com a possibilidade de reforma do Código Civil iniciada pelo Senado Federal13, com a formação de uma Comissão de Juristas para propor modificações que afetarão o Direito Civil e, por consequência, o direito contratual brasileiro. Desejo às pessoas boas festas e um excepcional 2024. __________ 1 QUINTANA, Bruna. Nova lei do Minha Casa Minha Vida aponta retrofit como solução inteligente. Acesso em 12dez2023. 2 Nota Técnica IBDCONT disponível aqui. Acesso em 12dez23. 3 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Disponível aqui. Acesso em 12dez2023. 4 WERNER, Felipe Probst. Os avanços da adjudicação compulsória extrajudicial após o provimento 150/23 do CNJ. Migalhas contratuais. Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 5 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 6 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 7 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 8 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 9 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 10 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 11 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 12 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 13 Disponível aqui. Acesso 12dez23.
Tema que invariavelmente gera dúvidas e às vezes apreensão é o da contratação pela internet, em especial por conta das dificuldades de compreender a estrutura lógica do negócio virtual digital, seus riscos e os elementos ocultos que estão por trás de uma transação eletrônica. Não se tem como duvidar, no entanto, que tais negócios já fazem parte do cotidiano e que já não é mais possível evitar a participação em negócios pela rede mundial de computadores. Contratos de consumo ou contratos em geral movimentam um sem-número de negócios todos os dias, com compras e vendas, locações, contratação de serviços, inclusive com novas formas de celebrar contratos tradicionais por meio eletrônico, com assinatura digital e a facilitação inclusive de atos públicos pela recente Lei dos Cartórios (lei 14.382/2022) que se tem denominado de Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP). Nesse contexto, sabe-se que muitas dessas negociações não têm em ambos os polos pessoas naturais "assinando" as manifestações de vontade, mas, sim, um robô dotado de conhecimento e de informações sobre a vida e os dados do outro contratante. Este é um dos muitos motivos pelos quais surgiu o PL 2.338/2023, de iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco, que no art. 1º descreve sua finalidade, de estabelecer "[...] normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de Inteligência Artificial (IA) no Brasil, visando proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico". O importante Projeto de Lei nasce privilegiado em qualidade e técnica, visto que advém do Ato n.º 4/2022 do Presidente do Senado Federal, que em 17 de fevereiro deste ano incumbiu uma Comissão de notáveis Juristas para subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo para os PLs 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021, com objetivo de regular o desenvolvimento e a aplicação da Inteligência Artificial no Brasil. A Comissão de Juristas, sob a presidência do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da professora Laura Schertel Mendes, contou os seguintes membros: Ana Frazão, Bruno Bioni, Danilo Doneda, Fabrício da Mota, Miriam Wimmer, Wederson Siqueira, Cláudia Lima Marques, Juliano Maranhão, Thiago Sombra, Georges Abboud, Frederico D'Almeida, Victor Marcel, Estela Aranha, Clara Iglesias Keller, Mariana Valente e Filipe Medon. Dentre os muitos temas importantes que o Projeto contempla, no presente texto, pretende-se tratar brevemente dos art. 7º e 8º, que compõem a Seção II, sob o título "Dos direitos associados a informação e compreensão das decisões tomadas por sistemas de Inteligência Artificial". O interesse existe porque é voz corrente a dificuldade que o leigo tem de conhecer e entender como a Inteligência Artificial toma decisões e/ou adota determinado comportamento nas relações entre o humano e a máquina. Dessa realidade, surge o direito de o contratante receber, previamente à contratação ou à utilização de sistemas, informações claras e adequadas quanto a sete situações, descritas nos incisos do aludido artigo da futura Lei. São eles: I - caráter automatizado da interação e da decisão em processos ou produtos que afetem a pessoa; II - descrição geral do sistema, tipos de decisões, recomendações ou previsões que se destina a fazer e consequências de sua utilização para a pessoa; III - identificação dos operadores do sistema de inteligência artificial e medidas de governança adotadas no desenvolvimento e emprego do sistema pela organização; IV - papel do sistema de inteligência artificial e dos humanos envolvidos no processo de tomada de decisão, previsão ou recomendação; V - categorias de dados pessoais utilizados no contexto do funcionamento do sistema de inteligência artificial; VI - medidas de segurança, de não-discriminação e de confiabilidade adotadas, incluindo acurácia, precisão e cobertura; e VII - outras informações definidas em regulamento. O § 1º ainda determina que, para além do fornecimento de informações de maneira completa em meio físico ou digital aberto ao público, quando a informação a ser obtida for a pertinente ao inc. I, ou seja, sobre o caráter automatizado da interação e da decisão em processos ou produtos que afetem a pessoa, deverá ser fornecida, quando possível, "com o uso de ícones ou símbolos facilmente reconhecíveis". Em outras palavras, o que se pretende é que a pessoa tenha condições de compreender sobre com quem está lidando e qual o poder que a máquina alcança na relação "interpessoal" em desenvolvimento. Mencione-se, ainda, que o conteúdo do § 2º determina que pessoas expostas a sistemas de reconhecimento de emoções ou a sistemas de categorização biométrica deverão ser claramente informadas sobre a utilização e o funcionamento do sistema no ambiente em que ocorrer a exposição. Caso se trate de pessoas vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, os sistemas de IA serão desenvolvidos para que estas pessoas consigam entender o seu funcionamento e seus direitos em face dos agentes de Inteligência Artificial. Tudo isso, para tornar realidade os princípios que o Projeto de Lei pretende estabelecer sobre o desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de Inteligência Artificial no Brasil, descritos no art. 3º, em especial o constante do inc. VI, da transparência, explicabilidade, intelegibilidade e auditabilidade. A tutela desse direito à compreensão dos sistemas de IA, encontra-se em sintonia com o direito de acesso consagrado no art. 9º da LGPD, uma vez que igualmente garante ao titular de dados obter informações relevantes sobre as operações de tratamento de seus dados pessoais. As mencionadas informações devem ser disponibilizadas de forma clara e satisfatória, acerca de, entre outros aspectos, a finalidade específica do tratamento, sua forma e duração. Como se vê da "Análise Preliminar do PL 2338/2023", publicada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, o tema é de grande relevância: Os recentes casos de investigação de aplicações baseadas em IA generativa (por exemplo, os grandes modelos de linguagem - large language models, como o ChatGPT) por autoridades de proteção de dados como a italiana, a espanhola e a canadense, já evidenciam a importância de se assegurar acesso a informações adequadas para o exercício de direitos do titular cujos dados pessoais são objeto de tratamento por tais sistemas de IA. A Rede Iberoamericana de Proteção de Dados também iniciou, em maio deste ano, uma ação coordenada para garantir a proteção de direitos e liberdades de indivíduos afetados pelo ChatGPT8.1 No sentido da análise da ANPD, o relatório final da Comissão de Juristas indica a importância de facultar o acesso do contratante aos meandros dos sistemas de IA, com vistas a transparência, mas que a explicabilidade não é tema simples, pois o direito a ser explicado para determinado funcionamento não é de todo simples, necessitando-se atentar para o segredo empresarial e as dificuldades de explicação técnica para leigos. Nas audiências públicas que aconteceram no âmbito dos trabalhos da Comissão de Juristas, destacam algumas manifestações sobre o tema da explicabilidade. Ana Paula Bialer, defende que: "[...] explicabilidade não é necessariamente entender absolutamente todos os caminhos feitos pelo algoritmo"2. Parece pertinente este raciocínio, uma vez que a mera curiosidade não faz nascer o direito à explicabilidade, mas o prejuízo da pessoa que somente possa ser reparado mediante explicação3. Nina da Hora expôs que a explicabilidade não pode ser dirigida apenas a pessoas bem engajadas nas discussões de IA, mas que deve se voltar para a sociedade. Concorda-se, neste sentido, que a explicação deve ser acessível a todos o que dela precisem, não apenas aos que tem facilidade de compreensão em TI4. Ao mesmo tempo, parece impactante a manifestação de Paulo Rená, ao sugerir que: "[...] se você não consegue explicar porque é que a sua ferramenta comete uma discriminação, ela não pode ser oferecida para o público"5. Por fim, o presente autor concorda com Gabrielle Sarlet que se manifesta no sentido de que o devido processo informacional seria uma ressignificação da ampla defesa e contraditório, de forma que a transparência seria um direito fundamental. Destacou, ainda, da necessidade de "medidas concretas" de explicabilidade, de interpretabilidade e de contestabilidade6. Uma saída interessante - e resumida - para a questão, talvez possa ser a sugestão de Virgílio Almeida que sugere "[...] estabelecer práticas para auditoria e regras para tornar os sistemas mais transparentes"7. Fácil perceber que não será tarefa fácil a concretização da disposição legal relativa à transparência por meio da explicabilidade, em especial porque a própria natureza dos sistemas de IA revelam grande complexidade algorítmica dificilmente compreensível pela pessoa leiga. Parece, no entanto, que não se fala tão somente em explicar, mas, sim, como o próprio art. 3º, VI, determina, a informação deverá ser transparente, porque explicável, intelegível e auditável. Assim, aquele que se sentir prejudicado, fundamentadamente, nas situações do art. 7º e 8º do PL ora em discussão, terá a seu favor a possibilidade de exigir explicações, para a informação ser compreendida (inteligibilidade) e isso somente será possível se o sistema for auditável. Tudo isso constrói a ideia de transparência.   Sobre o problema que se tem levantado de que "abrir, expor, o sistema" por meio da explicabilidade geraria risco de segurança à empresa responsável pela IA ou revelaria seus segredos empresariais, trata-se de empreendimento que no próprio contexto do desenvolvimento e dos riscos do negócio. Em outras palavras, se a empresa deseja se valer de ferramentas de Inteligência Artificial para alcançar seus objetivos de lucro, deve prever o resultado do uso e fazer acontecer a prevenção, pois o que prevalece no contexto do mercado e da sociedade são os direitos fundamentais das pessoas com quem se relaciona. O ter não pode existir em detrimento do ser. A atividade empresarial não pode ser favorecida em detrimento das pessoas e de seus dados pessoais que, repise-se, são direitos fundamentais descritos no art. 5º, inc. LXXIX, da Constituição Federal. Decorrência lógica da proteção dos direitos associados à informação e à compreensão das decisões tomadas pela IA (art. 7º e 8º do PL 2338/2023), ou, se preferir, sua concretização e procedimentalização, estão nas Seções III e IV, dos art. 9º a 12, sob o título: "Do direito de contestar decisões e de solicitar intervenção humana" e, também, "Do direito à não-discriminação e à correção de vieses discriminatórios diretos, indiretos, ilegais ou abusivos. Em todo esse contexto, pergunta que se reitera em diversos espaços, jurídicos ou não, sobre se a Inteligência Artificial deve ser objeto de regulação estatal ou se deve o mercado se autorregular, o presente autor entende que sim, tal regulação é indispensável, como forma de realização e efetivação de direitos fundamentais. Concorda-se, para responder a tal indagação, com os termos utilizados no Relatório Final da Comissão: Assim, o peso da regulação é dinamicamente calibrado de acordo com os potenciais riscos do contexto de aplicação da tecnologia. Foram estabelecidas, de forma simétrica aos direitos, determinadas medidas gerais e específicas de governança para, respectivamente, sistemas de inteligência artificial com qualquer grau de risco e para os categorizados como de alto risco8. E tudo isso ficará mais fácil de ser implementado pelos entes regulados se houver conscientização da necessidade de se efetivamente - e não somente no papel - tratar de forma adequada os dados pessoais, em todas as relações, inclusive nas contratuais. Metodologias facilitadoras - e porque não dizer obrigatórias - podem ser encontradas, por exemplo, nos programas de Governança e de Compliance9, que serão adequados a auxiliar na estruturação de procedimentos de categorização de riscos descrita nos art. 13 a 18 do ora discutido PL, assim como de Governança elencados nos art. 19 a 21 e no art. 30. Diga-se, também, da necessidade de avaliação de impacto algorítmico, previsto nos art. 22 a 26, também do PL.  Por fim, considerando-se que o Código Civil é lei geral no que seja pertinente aos contratos, e que está em andamento os trabalhos da Comissão de Juristas incumbida de construir Projeto de Lei para sua revisão e atualização10, parece razoável que os princípios aqui discutidos, em especial o da explicabilidade, possam ser nele inseridos, para fortalecer o conteúdo de confiabilidade e transparência dos contratos efetivados por meio eletrônico11, em especial aqueles que tenham auxílio de sistemas de Inteligência Artificial. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 27/10/2023. 2 Disponível aqui. Acesso em: 28/10/2023. 3 Op. cit. p. 109. 4 Op. cit. p. 113. 5 Op. cit. p. 115. 6 Op. cit. p. 115. 7 Op. cit. p. 115. 8 Disponível aqui, p. 11. 9 Sobre compliance digital em proteção de dados pessoais, leia mais em: SILVA, Alexandre Barbosa da; FRANÇA, Phillip Gil. Compliance digital em proteção de dados pessoais: a necessidade de humanização da regulação de dados nas instituições. In: Direito civil e tecnologia. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 353-370. 10 Disponível aqui. 11 Para ler mais sobre Contratos Eletrônicos, por todos, indica-se: MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 4. ed. Barueri: Atlas, 2023.
No Direito brasileiro a assinatura de um contrato, por si só, não é capaz de transferir a propriedade de uma coisa. No caso de imóveis, para que a propriedade seja transferida será necessário o registro de determinado título junto à matrícula do bem para que, então, seja reconhecida pelo direito a transmissão da propriedade. Dentro do rol de contratos relativos ao direito imobiliário, assume proeminência aquele da promessa de compra e venda, no qual uma das partes se obriga a pagar o preço e, outra, a outorgar escritura definitiva de compra e venda daquele imóvel objeto do negócio quando a obrigação da parte contrária estiver satisfeita. Voluntariamente ou não, nem sempre as partes cumprem com suas obrigações. Assim como o promitente adquirente pode não vir a realizar todos os pagamentos, pode ocorrer do promitente vendedor deixar de outorgar a escritura de compra e venda definitiva do imóvel. O foco deste breve estudo será a segunda parte da frase acima exposta, isto é, a eventual não outorga da escritura de compra e venda do imóvel objeto daquele contrato preliminar de promessa de compra e venda. A consequência mais comum a este inadimplemento, que na maioria dos casos decorre da parte que está a prometer a venda do bem, é a necessidade de uma adjudicação1 compulsória. A adjudicação compulsória é um instrumento originalmente utilizado pelo direito com o objetivo de transferir, via decisão judicial, um bem de um proprietário a quem de direito, independente da vontade daquele primeiro. Neste sentido, dispõe o art. 1.418 do Código Civil de 2002 que uma vez existindo registro de uma promessa de compra e venda, estando quitado o preço e cumpridas as obrigações pelo promitente adquirente, lhe cabe, em caso de recusa do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva de compra e venda, o direito à adjudicação compulsória do imóvel. Muito já se debateu acerca do art. 1.418 do Código Civil de 2002 e a imprescindibilidade de se ter uma promessa de compra e venda registrada junto à matrícula do imóvel para que se pudesse obter o direito à adjudicação compulsória. Tal tema, contudo, esgotou-se com a edição da Súmula 239 do STJ, posteriormente ratificada pelo Enunciado 95 da I Jornada de Direito Civil que assim dispôs: "O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis". A matéria assumiu novos contornos quando a lei 14.382/2022 criou o instituto da adjudicação compulsória extrajudicial e incluiu o art. 216-B na Lei 6.015/73.  Com isso foi criada a possibilidade de realizar-se a transferência forçada da propriedade, após quitado o preço da promessa de compra e venda, sem a necessidade de ser a promessa de compra e venda registrada junto à matrícula imobiliária ou mesmo de recorrer-se ao Poder Judiciário. Como todo procedimento extrajudicial, para que se possa a adjudicação ser feita fora do âmbito judicial dispôs a Lei 14.382/2002 que, em primeiro lugar, não poderá existir litígio sobre o direito perseguido pelo promitente comprador. Além disso, exigiu o legislador que para a adjudicação compulsória fossem trazidos: i) instrumento da promessa de compra e venda, de cessão ou sucessão; ii) prova do inadimplemento do promitente vendedor que não celebra a escritura de compra e venda após ser notificado pelo cartório de registro de imóveis dentro de 15 dias; iii) ata notarial celebrada por tabelião que conste a identificação do imóvel, dados do promitente comprador, prova do pagamento do preço e caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar a escritura pública de compra e venda; iv) certidões que demonstrem que inexiste litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda objeto da adjudicação; e v) comprovante de pagamento do ITBI. É bem verdade que a nova modalidade de adjudicação compulsória criado pela lei 14.382/2022 tem como escopo facilitar a transmissão da propriedade de bens imóveis para aqueles adquirentes adimplentes que, por qualquer razão, não conseguiram viabilizar a formalização de uma escritura de compra e venda para si. Ocorre que após a edição da supramencionada lei federal verificou-se alguns pontos que poderiam ser interpretados de forma divergente entre registros imobiliários e tabelionatos. Dentre os principais, cito a notificação para constituição do promitente vendedor em mora e a prova do efetivo pagamento do preço por parte do promitente comprador. A título exemplificativo, considerada apenas a regra insculpida no art. 216-B da lei 6.015/73 seria possível compreender que para realizar-se o procedimento precisava o promitente comprador: i) solicitar que o registro de imóveis realizasse a prévia notificação do promitente comprador; ii) certificada a mora pelo registrador, comparecer ao tabelionato para a lavratura da ata notarial; iii) com a ata notarial, retornar ao registro de imóveis para finalizar aquele procedimento outrora iniciado. Para sanar estas divergências de interpretação e impor uma conduta unificada nacional, o CNJ editou o Provimento 150, de 11 de setembro de 2023 que visa padronizar o procedimento da adjudicação compulsória extrajudicial no país. Muito bem elaborado, o Provimento estabelece uma ordem para a realização do procedimento e organiza uma série de questões intrínsecas ao direito notarial e registral. Dentro deste trabalho, verifica-se que foi dada atenção e apresentada solução para aqueles dois pontos principais que poderiam ser interpretados de forma divergente pelos registros imobiliários e tabelionatos: notificação para constituição do promitente vendedor em mora e a prova do efetivo pagamento do preço por parte do promitente comprador. Para o primeira situação, esclareceu o Provimento 150/2023 do CNJ que o inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade previsto no art. 216-B, §1º, III, da lei 6.015/73 não é aquela que consta no inciso II e que deve ser realizada pelo registro imobiliário. Diz-se isso porque ao se observar o que dispõe o art. 440-G, IV, do mencionado Provimento, vê-se que o inadimplemento que deve constar na ata notarial é aquela voltada às providências que deveriam ter sido tomadas pelo requerido do procedimento para a transmissão da propriedade e foram inadimplidas. Assim, tem-se que já por esta razão de extrema utilidade o Provimento porque explica e demonstra a diferença entre o inadimplemento previsto no art. 216-B, §1º, II daquele previsto no art. 216-B, §1º, III, ambos da lei 6.015/73. Por sua vez, para a segunda situação tida como de possível controversa, possível observar que foi muito feliz o Provimento 150/2023, em seu art. 440-G, §6º, incisos I a VII, ao trazer itens exemplificativos daquilo que pode servir como prova da quitação do preço. Dentre estes exemplos trazidos pelo Provimento, chamam atenção os incisos II e VII, que afirmam que poderia ser utilizado como prova de quitação tanto mensagens eletrônicas em que se reconheça que o pagamento foi efetuado, como a notificação extrajudicial destinada à constituição em mora da parte contrária. Trata-se de relevante e moderna possibilidade conferida às partes envolvidas na promessa de compra e venda porque, salvo melhor juízo, viabiliza a comprovação quitação de forma célere e simplificada quando, por exemplo, um contratante notifica o outro para que aquele lhe outorgue a quitação e permanece a parte contrária inerte. Em linhas gerais, de forma expressa o Provimento 150/2023 do CNJ relembra que a manifestação de vontade pode ser exarada de variadas maneiras, inclusive o silêncio, e que não exige forma ou formato específico. Com estes exemplos de quitação entregues à comunidade jurídica, o CNJ alinha-se aos caros princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato. O primeiro porque induz um comportamento leal e diligente de ambas as partes; já o segundo porque faz com que o contrato seja capaz de transmitir a propriedade e com isso produza todos aqueles efeitos para o qual foi formalizado. Desta forma, possível concluir que a adjudicação compulsória extrajudicial, editada pela Lei 14.382/22 muito contribui tanto para a celeridade e efetivação dos contratos de promessa de compra e venda, como para a desobstrução do Poder Judiciário, já que viabiliza a solução de questões não litigiosas pela via extrajudicial. Ao mesmo tempo, necessário registrar que além de ser de grande valia por fornecer um caminho padronizado dentro do direito notarial e registral para a adjudicação compulsória extrajudicial, o Provimento 150 de 11 de setembro de 2023 do CNJ presenteia o direito civil com uma espécie de releitura dos princípios contratuais da boa-fé e da função social ao incutir de forma expressa formas de interpretação de atos jurídicos praticados pelos contratantes. __________ 1 Adjudicar é palavra de origem latina formada pelo prefixo ad, cujo sentido é de "trazer para si", e a palavra judicare, que traz a lógica de haver uma decisão ou envolvimento judicial. Possível seria dizer, portanto, que adjudicar é trazer algo para si por meio de uma decisão judicial. 
Introdução É de conhecimento geral no mundo jurídico que o inadimplemento obrigacional pode se dar tanto totalmente quanto parcialmente, sendo que a diferença entre ambos é, essencialmente, a utilidade da obrigação para o credor - se não há mais interesse do credor no cumprimento da obrigação, trata-se de inadimplemento total (ou absoluto), enquanto que, se ainda há interesse por parte do credor, o inadimplemento é considerado parcial. A aparente dualidade entre o inadimplemento total e o inadimplemento parcial, no entanto, não alcança todas as situações de não cumprimento das obrigações. Uma delas é o inadimplemento eficiente, que será abordado neste breve trabalho.  O ponto de partida  Juliana Krueger Pela define inadimplemento eficiente (efficient breach) como a situação em que os custos que o devedor tem para cumprir uma prestação excedem o benefício do credor em ter a prestação adimplida. Assim, sempre que isso acontecesse, o não cumprimento da obrigação seria economicamente eficiente e o inadimplemento deliberado estaria autorizado. Em seu trabalho "Inadimplemento Eficiente (Efficient Breach) nos Contratos Empresariais", Juliana Kruger Pela (i) expõe alguns casos concretos em que se verifica o problema do inadimplemento eficiente, (ii) demonstra possíveis soluções jurídicas para tal situação, (iii) aborda os obstáculos legais à sua aplicabilidade no Brasil e, por fim, (iv) critica a unificação do direito contratual positivo brasileiro, que teria feito com que esses obstáculos legais incidissem indistintamente sobre os contratos cíveis e empresariais. Entendemos que a crítica feita à unificação é merecida. E, para que isso fique claro, convém analisar se os obstáculos legais à aplicação da teoria do inadimplemento eficiente no Brasil subsistem à análise teleológica de dois princípios basilares da teoria geral dos contratos: o princípio da boa-fé e o princípio da função social. A boa-fé como garantia de um contrato empresarial eficiente  Dentre os obstáculos à utilização do conceito de inadimplemento eficiente no Brasil, o primeiro que chama atenção é a cláusula geral da boa-fé (Art. 422 do Código Civil). A ideia é que a boa-fé não se harmonizaria com o inadimplemento deliberado, uma vez que esta impõe às partes contratantes o dever anexo de cooperar para a execução do contrato. Ocorre que outro dever anexo ínsito à boa-fé é o de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio, "[...] esclarecendo os fatos relevantes e as situações atinentes à contratação, procurando razoavelmente equilibrar as prestações [...]" (AZEVEDO, p. 29, 2019), e, nesse ponto, a crítica à unificação do direito contratual positivo brasileiro começa a fazer sentido. Se o intérprete considerasse as diferenças entre os contratos cíveis e empresariais, especialmente no que tange à alocação de riscos e objetivos, chegaria à conclusão de que, nos contratos empresariais, o dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio auxilia na avaliação que ela fará sobre os riscos desse negócio e sobre seus impactos no mercado. Isso, sem dúvida, é cooperar na execução do contrato, até porque a boa-fé objetiva "exige que as partes atuem de modo a garantir obtenção, por ambas, do resultado útil programado" (PEREIRA, p. 21, 2020). Nesse contexto, portanto, um inadimplemento eficiente pode se tornar vantajoso para uma das partes, ou para ambas, sem violar a boa-fé objetiva. Basta, para isso, que o cálculo feito pela parte contratante para saber o que fica mais caro (cumprir ou não cumprir o contrato) parta das informações sobre o conteúdo do contrato prestadas pela outra. Função social e inadimplemento eficiente como instrumentos para a preservação de direitos coletivos Se a cláusula da boa-fé não é obstáculo à aplicabilidade do inadimplemento eficiente no Brasil, menos ainda o é a cláusula da função social (Art. 421 do Código Civil). A premissa é a de que, quando exercida nos limites da função social, a liberdade de contratar deixa de focar apenas nas pretensões individuais dos contratantes e se torna um instrumento de preservação de interesses coletivos, já que "o contrato não pode ser mais concebido como uma bolha que envolve as partes [...]" (TARTUCE, p. 100, 2017). Como dito anteriormente, antes de celebrar um contrato empresarial, as partes contratantes avaliam os riscos e os impactos do contrato no mercado. Se elas fazem essa avaliação, o que está em jogo não é apenas uma pretensão subjetiva entre os contratantes, mas também uma disputa entre ambos os contratantes e os demais agentes econômicos do mercado. Ao interpretar o contrato dessa maneira, o intérprete faz uso da cláusula da função social, pois este princípio "[...] funciona como uma agulha, forte e contundente, que fura a bolha [...]" (TARTUCE, p. 101, 2017). Portanto, escolher inadimplir deliberadamente um contrato empresarial, nesse contexto, pode ir além de proporcionar vantagens para os agentes econômicos contratantes. Essa escolha pode proporcionar vantagens a consumidores, por exemplo, na medida em que inadimplir pode fazer com que um agente econômico fuja da onerosidade excessiva e, com isso, consiga se posicionar melhor no mercado diante de outro agente econômico. A rapidez, a agilidade e o dinamismo característicos dos contratos empresariais, aliás, têm o objetivo de evitar a onerosidade e a lesividade (MARTINS, p. 447, 2015). Além disso, no direito empresarial, a esperteza e a sagacidade dos agentes econômicos são presumidas (FORGIONI, p. 119, 2016). Logo, a pergunta que fica é: não é ágil e sagaz o devedor que escolhe não cumprir um contrato por perceber que o custo para o seu cumprimento é superior à vantagem que ele proporcionará para o credor, economiza com isso, e consegue concorrer com outros agentes econômicos, baixando os preços de determinado produto ou serviço? Entendemos que sim. E entendemos também que essa sagacidade atende muito bem à função social dos contratos empresariais, justificando novamente a crítica feita por Juliana Kruger Pela à unificação do direito contratual positivo brasileiro. Afinal de contas, são nos contratos empresariais que os interesses concorrenciais se manifestam e "se um dos fundamentos do bem-estar do consumidor é sua liberdade de escolha entre várias opções diferenciadas [...] não há como considerar uma regra aplicada explicitamente com o objetivo de proteger a competição 'ineficiente' do ponto de vista do consumidor" (SALOMÃO FILHO, p. 76, 2013). Considerações finais Como se pôde demonstrar aqui, o inadimplemento eficiente das obrigações, como um terceiro gênero de inadimplemento obrigacional, não deve ser considerado incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos não por uma suposta incompatibilidade com as cláusulas gerais da boa-fé (Art. 422 do Código Civil) e da função social dos contratos (Art. 421 do Código Civil). Ao contrário, embora possam haver restrições à aplicação desse instituto aos contratos de natureza civil, não se vislumbra qualquer tipo de incompatibilidade quando se foca nos contratos de natureza empresarial, que possuem características próprias e exigem habilidades diferentes das partes. Essas breves objeções à suposta inaplicabilidade jurídica do inadimplemento eficiente no Brasil demonstram que a dualidade entre inadimplemento total e inadimplemento parcial é aparente, pois o interesse do devedor no cumprimento da obrigação também pode definir o tipo de inadimplemento. Essa discussão, longe de ser estritamente acadêmica, é extremamente relevante do ponto de vista prático, pois são nessas áreas cinzentas que os conflitos aparecem e se justifica o trabalho do jurista.  Referências AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos. ed. 4. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: Teoria Geral e Aplicação. ed. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2016. MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. ed. 38. Rio de Janeiro: Forense, 2015. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. ed. 24. Rio de Janeiro: Forense, 2020. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2013. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. ed. 12. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
As mudanças tecnológicas agem como um relevante vetor de alteração da dinâmica social e que, junto a outros fatores, posicionam as sociedades contemporâneas em uma outra fase. Assim sendo, não se pode deixar de considerar o impacto que a tecnologia tem causado nas mais diversas áreas. A propagação no uso das tecnologias de comunicação e informação tem aferido mudanças nas relações sociais, nos processos comerciais e organizacionais, nos sistemas de gestão, na educação, e não seria diferente com a área jurídica, notadamente, as relações negociais. No contexto atual, são inúmeros os contratos utilizados para aquisição de produtos e serviços que podem ser realizados por meio de diversas ferramentas tecnológicas. Vivencia-se a denominada Quarta Revolução Industrial, sendo inegáveis as transformações, quase que instantâneas, trazidas pela utilização da tecnologia. Expressões como "Tecnologia 4.0", 'Industria 4.0", "Direito 4.0" e "Artificial General Intelligence - AGI" são utilizadas para caracterizar essa nova fase. Assim, os dispositivos tecnológicos estão sendo desenvolvidos para se tornarem capazes de operar utilizando uma lógica semelhante ao raciocínio humano, conferindo-lhes certa aptidão para analisar dados, entender e solucionar problemas e, em alguns casos, direcionar a tomada de decisão. Na década de 1950, o conceito de inteligência artificial foi criado por John McCarthy, cientista da computação, que a definiu como sendo a projeção de uma rede computacional desenvolvida para executar um conjunto definido de ações. Nessa mesma década, Alan Turing apresentou produções científicas individuais que indicavam poder ser a máquina programada para aprender por meio da imitação da inteligência humana. Assim, a inteligência artificial é um termo amplo que abrange tecnologias desenvolvidas para que as máquinas (ou algoritmos) possam, partindo de dados obtidos, construir raciocínios mais assertivos e rápidos, levando a predições que subsidiam a tomada de decisão. Em algumas situações, observa-se que o nível de sofisticação da tecnologia permite inclusive que a máquina "analise" uma situação e conduza a uma "solução", mais célere e assertiva, a partir do cruzamento de dados. A evolução tecnológica disponibiliza dispositivos dotados de sistematização de informações que se assemelham a atividades humanas como "pensar", "interpretar", "raciocinar". Com as informações recebidas, os sistemas que integram a I.A podem, fazendo um caminho semelhante ao utilizado pelo cérebro humano, através de uma rede neural formada por  "neurônios artificiais", escrever um texto científico, redigir um contrato, influenciar pessoas para realizarem compras de um determinado produto ou contratarem um serviço. Em paralelo, discute-se sobre a proteção de dados pessoais e como é necessária a regulamentação quanto ao uso da I.A. A tecnologia vem sendo utilizada, por exemplo, para avaliar, a partir de dados coletados em diversas bases, a vida financeira de um indivíduo. A partir dessa avaliação, decide-se se determinado indivíduo deve receber um empréstimo de instituição financeira ou não, inclusive com taxas de juros personalizadas. Ou seja, a avaliação de risco de inadimplência deixa de ser de um ser humano, no caso, o gerente da instituição, e passa a ser de um sistema. As transformações trazidas pela I.A. exigem que seja realizada uma análise apurada por parte do direito contratual, do direito consumerista e da responsabilidade civil. As suas consequências ainda estão sendo observadas e não podem ser previstas com precisão, apesar de haver normas jurídicas que podem ser utilizadas na proteção do consumidor vulnerável. A modernização traz consigo o risco da ocorrência de danos pouco conhecidos ou totalmente desconhecidos. De acordo com Miragem (2019, p. 15) é "... comum às atividades associadas à tecnologia da informação e sua multifacetada e crescente utilização para uma série de finalidades, a identificação de novos riscos". O direito civil constitucional possui uma substancial base principiológica, utilizando-se dos valores e princípios constitucionais, como os da liberdade, igualdade, boa-fé, informação, precaução, reparação integral dos danos, entre outros, para orientar as relações no âmbito privado. A importância da constitucionalização do direito civil dá-se pela implementação da denominada sociedade de risco. O contrato eletrônico de consumo é um tipo de contrato elaborado e executado por um sistema de software. A inteligência artificial faz uso de técnicas de reconhecimento de padrões e correlações significativas para alavancar o comércio. Afirma Lee (2019, p.251) que "quando a força criativa e destruidora da IA está sendo sentida ao mesmo tempo no mundo todo, precisamos olhar uns para os outros em busca de apoio e inspiração". Ou seja, todos precisam aprender como lidar com essa nova realidade e as suas consequências, o que inclui a existência de danos.  No direito consumerista há princípios que garantem a proteção do consumidor e, eventualmente, de terceiros que não estejam diretamente envolvidos na relação contratual contra os riscos que porventura possam existir. As relações negociais podem e devem se valer dos princípios e regras contidos no Código Civil quando assim for necessário, Portanto, os princípios comuns a ambos os regimes, em razão da vocação normativa que cada um ostenta, sofrem a calibração das exigências valorativas, cujo resultado é a variação de intensidade de sua aplicação e nas regras que criam à hipótese fática. ... O ponto de toque entre o direito civil e o direito do consumidor é a seara contratual, ou melhor dizendo, as relações negociais. (Pieroni, 2021, p. 52) O consumidor, parte vulnerável da relação, não tem a exata compreensão dos riscos advindos desta era digital, que transformou a forma como os contratos são realizados. Esta modificação acarreta a necessidade de uma interpretação das normas jurídicas já existentes, como o Código de Defesa do Consumidor, adequando a realidade transacional tecnológica. De acordo com Divino (2021, p.660) Da amplitude e da efetividade das garantias asseguradas pelo CDC aos vulneráveis, a possibilidade de que a sociedade da informação se desenvolva para com os entes inteligentes artificialmente é uma tarefa a ser pautada e evidenciada pelos juristas. Nesse momento, deve-se percorrer ao exame das principais atribuições que envolvem os ganhos e riscos para a utilização dessas tecnologias. Deve-se refletir, conscientemente, sobre os interesses e verificar em quais casos poderá o CDC atuar para a defesa dos direitos lesados. Várias relações contratuais são realizadas entre o homem e a máquina. Mas será que o consumidor possui conhecimento de que está negociando com uma inteligência artificial programada para dar lucro, baseada em dados antes extraídos? Não se pode partir do pressuposto de que todo e qualquer consumidor sabe que há a utilização de uma tecnologia programada a favor do fornecedor. Um dos deveres previstos no CDC é o da informação clara e precisa. As instituições bancárias, por exemplo, estão substituindo as agências físicas por aplicativos e por "chatsbots", ou seja, por um programa que leva as pessoas a terem a sensação de que estão interagindo com outra pessoa e não com uma ferramenta tecnológica. Os chatbots tentam simular a conversação como se esta estivesse acontecendo como outro ser humano e não com uma máquina. A depender, por exemplo, do grau de escolaridade ou do grau de compreensão do consumidor, poderá haver inexatidão nas informações fornecidas por este a máquina; e, até mesmo, a incompreensão dos termos utilizados pela inteligência artificial, o que pode acarretar imprecisões na tomada de decisão. Divino (2021) considera ser a dificuldade na compreensão semântica de termos uma das causas de possíveis danos decorrentes de um pedido incorreto ou de um aconselhamento  desfavorável ao consumidor. A inteligência artificial utiliza-se das informações e do cruzamento destas para influenciar e induzir o consumidor. Assim, é dever do fornecedor, que utiliza a inteligência artificial e a obtenção e cruzamento de dados, arcar com os riscos da sua atividade, sendo este um risco inerente. Desta forma, a responsabilidade pelos danos conhecidos ou que ainda virão a ser observados, é objetiva. Princípios como o da boa-fé, o da precaução e da prevenção devem ser entendidos como pilares da responsabilização objetiva do fornecedor pelo uso da inteligência artificial nas relações de consumo. Nem sempre o Direito, como ciência e como agente regulador das relações, conseguirá prever ou evitar os danos causados pela modernização e transformação da sociedade. O princípio da prevenção será aplicado quando o risco do dano for atual, concreto e real. Trata-se do perigo, que é o risco conhecido, como, por exemplo, o limite de velocidade nas estradas ou os exames médicos que antecedem uma intervenção cirúrgica. Já o princípio da precaução deve ser aplicado no caso de riscos potenciais ou hipotéticos, abstratos e que possam levar aos chamados danos graves e irreversíveis. É o "risco do risco". (Rosenvald, 2017, p. 120)   A modernização da sociedade por meio da tecnologia traz embutido o risco. De acordo com Rosenvald (2017, p. 22), "... O risco é uma característica definidora de nossa era. Tudo se processa 'reflexivamente' em uma civilização que ameaça a si própria". As ações do homem, no campo da inteligência artificial, trazem consequências imprevisíveis. As escolhas realizadas podem gerar danos não almejados. E quem responderá por estes? No caso da relação consumerista, o fornecedor, logicamente. O reconhecimento e o fortalecimento de procedimentos que conforme padrões de integridade dos envolvidos na atividade digital, sobretudo naquelas voltadas as relações obrigacionais, são medidas que se impõem, como forma de prevenção de riscos de prejuízos e de agressões a direitos subjetivos (SILVA, FRANÇA, 2021 p. 522) A I.A. é empregada para gerar ganhos de produtividade, o que necessariamente leva a ganhos financeiros para os fornecedores. No entanto, os benefícios financeiros, como por meio do aumento na contratação de um determinado serviço, pela utilização de algoritmos ou outros sistemas, deve observar as regras contratuais como a do dever de informação,a da boa-fé objetiva e da segurança. Há limites jurídicos que devem ser observados quando da contratação por meio da inteligência artificial, sendo estes os mesmos aplicados para os contratos que não as utilizam, devendo haver um cuidado maior na observação das regras de direito contratual e consumerista quando se está diante da tecnologia. O fornecedor, pessoa natural ou jurídica, responde em face do consumidor pelo dano que lhe for causado. O que se pretende entender é se o uso desses algoritmos ou dispositivos são efetivamente benéficos para o consumidor. Ou, se são projetados para que o fornecedor sempre obtenha vantagem, causando danos. São muitas as indagações para as quais ainda não se tem a resposta de forma consolidada. E o Poder Judiciário brasileiro precisa se preparar para as demandas e questionamentos que virão, bem como para o reconhecimento de outros danos que podem surgir além dos já reconhecidos. O Poder Judiciário deve ficar atento para não indeferir demandas que venham a trazer indagações sobre uma decisão tomada pelo consumidor quando da aplicação de sistemas automatizados, baseando-se na autonomia da vontade, favorecendo, assim, o fornecedor causador do dano. A vulnerabilidade do consumidor fica mais evidente quando se está diante de contratações por meio de inteligência artificial. A legislação brasileira já possui regras de proteção ao consumidor que podem ser aplicadas em casos de danos causados pela utilização da inteligência artificial. Ao direito cabe a regulamentação e o equilíbrio das relações sociais através da adequação às mudanças advindas da modernização, em especial quando se tem a contratação por meio da utilização de inteligência artificial. Se o Poder Judiciário se abster de aplicar os princípios e regras jurídicas já existentes que protegem o consumidor, estará contribuindo para o aumento dos danos, inclusive, através da violação de direitos da personalidade do consumidor, além dos danos materiais efetivos. A segurança jurídica precisa ser garantida! Referências bibliográficas DIVINO, Sthéfano Bruno Santosa. Desafios e benefícios da inteligência artificial para o direito do consumidor. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p.654-688, 2021. LEE, Kai-Fu. Inteligência artificial [recurso eletrônico] : como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos / Kai-Fu Lee ; tradução Marcelo Barbão. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. MIRAGEM, Bruno. A lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018) e o direito do consumidor. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 1009, p.1-41, 2019. Disponível aqui. Acesso em 27 jul 2023. PIERONI, Aline Martinez. Princípios gerais e princípios contratuais: Código Civil X Código de defesa do consumidor. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 28, p. 43-75, abr./jun. 2021. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. SILVA, Alexandre Barbosa da; FRANÇA, Phillip Gil. Novas Tecnologias e o futuro das relações obrigacionais privadas na era da inteligência artificial: a preponderância do "fator humano". In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos. CATALAN, Marcos. MALHEIROS, Pablo (Coord). Direito Civil e tecnologia. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
1. Da ausência de regime legal do cartão de crédito no Brasil De acordo com o último censo de 2022 divulgado pelo IBGE, a população total, no Brasil, atingiu a marca de 203 milhões de habitantes. Segundo os registros do Banco Central, existiam, emitidos e válidos, no último trimestre de 2022, um total de 208 milhões de cartões de crédito vinculados aos bancos brasileiros.1 Assim, em princípio, todo habitante do país é possuidor de um cartão de crédito, apesar de que só podem ser contratantes desses instrumentos de crédito pessoas maiores e capazes. Estamos diante, portanto, de um fenômeno que deve ser considerado como geral ou quase universal na sociedade brasileira: salvo raras exceções, todo cidadão capaz é contratante de cartão de crédito, hoje instalado no próprio aparelho celular. Apesar da destacada relevância do cartão de crédito como um dos mais utilizados e importantes instrumentos de pagamento e de assunção de obrigações creditícias na civilização contemporânea, substituindo o dinheiro e os ancestrais títulos de crédito cartulares, em papel, até hoje o cartão de crédito, o novo dinheiro plástico, não foi objeto ou merecedor de regulação legal específica no direito brasileiro. Não existe nenhuma lei tipificando e disciplinando as operações físicas e eletrônicas, na internet, com cartões de crédito, com exceção da recente lei 14.181/21, que alterou o Código de Defesa do Consumidor. Em qualquer país desenvolvido no mundo, as operações com cartões de crédito e débito são reguladas por lei. Na União Europeia, diversas diretivas do Parlamento e do Conselho estabelecem normas específicas para a regulação dos meios de pagamento com o uso de cartão de crédito (Diretiva 2007/64/CE, Diretiva 2008/48/CE, Diretiva 2011/83/EU e Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu). No direito contratual europeu, operação com cartão de crédito é a "operação de pagamento baseada em cartão cujo montante é debitado total ou parcialmente ao ordenante em data mensal específica previamente acordada, de acordo com uma facilidade de crédito preestabelecida, com ou sem juros".2 A partir dessa definição, diversas regras amplas e detalhadas disciplinam os procedimentos e as obrigações das empresas operadoras e administradoras de cartões de crédito na sua relação com as empresas e com os consumidores e clientes dos bancos emissores. Na legislação portuguesa, o cartão de crédito é operação financeira representada por um contrato de crédito, "pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante" (Decreto-lei 133/09).3 A regulação de Portugal dispõe sobre outras questões relevantes nas relações de crédito, como o fornecimento de informações pré-contratuais, assistência ao consumidor, dever de avaliar a solvabilidade do devedor, requisitos do contrato de crédito, renegociação do contrato, direito de livre revogação pelo consumidor, ultrapassagem de crédito, taxa anual de encargos efetiva global (TAEG) e proibição de aplicação de juros elevados, sob pena de usura. Nos Estados Unidos da América, herdeiro fiel da tradição do capitalismo liberal de Adam Smith, as operações com cartão de crédito encontram-se reguladas, de modo específico e detalhado, no "Credit Card Accountability Responsibility and Disclosure Act of 2009''. Dentre as normas de proteção dos titulares de cartões de crédito, a lei americana obriga os bancos e empresas operadoras de cartões de crédito, no caso de aumento na taxa de juros aplicada, "fornecer aviso por escrito de aumento na taxa percentual anual, no prazo de 45 dias antes da data efetiva do aumento".4 No Brasil, ao contrário, não existe obrigação de comunicação prévia ao titular de cartão quanto ao aumento das taxas anuais nos juros praticados, apesar desses juros serem os mais elevados do mundo, da ordem de 14,5% ao mês ou 447% ao ano, segundo o último dado constante dos registros do Banco Central.5 Não obstante tal exagero na fixação variável dos juros nas operações com cartões de crédito, a jurisprudência dominante não considera essas taxas abusivas, a partir do entendimento consolidado na Súmula 283 do Superior Tribunal de Justiça: "As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura". Existem em tramitação no Congresso Nacional não apenas dezenas, mas centenas de projetos de lei, todos com a finalidade de regular as operações com cartões de crédito. Desde 1975, quando aqui se iniciava a utilização dos primeiros cartões de crédito, sob as bandeiras Diners e Credicard, o Instituto dos Advogados do Brasil, com a relatoria do jurista J.M. Othon Sidou, elaborou proposta de projeto de lei para a regulamentação dessas operações em nosso país. Em sua exposição de motivos, justificava a importância de proteção dos consumidores, advertindo que "já é tempo de dar-se um ponto final no crédito de confiança que as autoridades monetárias abriram às empresas responsáveis pelos cartões de crédito", diante da "conhecida instabilidade no atinente aos cartões de crédito no Brasil", e em face da necessidade de "proteger as empresas, aliviando-lhes dos custos e diminuindo-lhes os riscos, sempre às custas dos usuários".6 Atualmente, segundo o próprio Banco Central do Brasil, a regulamentação dos cartões de crédito "se mostra importante em um contexto de uso crescente dos meios de pagamentos eletrônicos no país".7 Todavia, tal regulação é estritamente infralegal, estando hoje em vigor a Resolução BCB 96/21, em que as operações com cartões de crédito encontram-se abrangidas nas disposições relativas à abertura, manutenção e encerramento de contas de pagamento bancárias. Nessa resolução, o cartão de crédito é denominado, tecnicamente, como "conta de pagamento pós-paga", sendo aquela "destinada à execução de transações de pagamento que independem do aporte prévio de recursos" (Resolução BCB 96/2021, art. 3º, II). Ou seja, a disciplina do cartão de crédito no Brasil resume-se à relação entre o banco emissor e o cliente titular do cartão, não envolvendo a sistemática e os procedimentos da rede credenciada de fornecedores e da utilização do cartão de crédito nessa rede, tanto em operações físicas como eletrônicas. Esse regulamento, portanto, limita-se a estabelecer requisitos de informação a serem prestadas nos demonstrativos e faturas das contas de pagamento pós-paga e a definir critérios para a fixação dos limites de crédito do titular. Essa regulação do cartão de crédito como mera conta de pagamento pós-paga, alinha-se com os conceitos e disposições da lei 12.865/13, que estabelece normas de funcionamento do Sistema de Pagamentos Brasileiro - SPB, em que o cartão de crédito é classificado como "instrumento de pagamento", o qual significa, restritamente, "dispositivo ou conjunto de procedimentos acordado entre o usuário final e seu prestador de serviço de pagamento utilizado para iniciar uma transação de pagamento" (art. 6º, V). 2. Natureza jurídica do cartão de crédito A doutrina brasileira, salvo raras exceções, como Nelson Abrão, Fran Martins e Waldirio Bulgarelli, não se aprofundou em estudos sobre a sistemática e procedimentos adotados nas operações com cartões de crédito. Nos manuais e cursos de direito empresarial da atualidade, as operações com cartões de crédito sequer são referidas, apesar de sua relevância nos dias de hoje, em especial nas compras on-line na internet. No conceito clássico de Patrick Chebrier, "cartão de crédito é o documento de identificação que individualiza o beneficiário de um serviço e garante que seu portador disponha de um crédito aberto pelo emissor".8 A sua natureza seria, assim, mais próxima dos títulos de crédito. Fran Martins segue o mesmo entendimento e define o cartão de crédito como "documento de identificação do portador e ao mesmo tempo instrumento de pagamento em relação ao fornecedor".9 Na realidade, o cartão de crédito abrange e compreende várias relações jurídicas, representadas, do modo bem assinalado por Nelson Abrão, como um feixe de contratos entre (i) o banco emissor e o titular; (ii) entre o emissor e o fornecedor; e (iii) entre o titular do cartão e o fornecedor.10 Nessa evolução descritiva, diante do aumento da complexidade de suas operações, o cartão de crédito assume nítida natureza contratual, como espécie de contrato financeiro ou bancário, mas que tem por utilidade principal servir como meio de pagamento na rede de fornecedores de produtos e serviços credenciada pelas principais empresas internacionais de serviços financeiros, das bandeiras Visa, Mastercard, Elo e American Express. Para Waldirio Bulgarelli, o cartão de crédito representa "operação polifacética", ou seja, compreende um negócio jurídico com várias facetas, integrado por "vários contratos que se desdobram entre os componentes do negócio, e unifica-se pela finalidade proposta: permitir que o consumidor adquira, de imediato, em determinados estabelecimentos, os bens e serviços que necessita".11 Na opinião de Gerson Carlos Branco "o cartão de crédito constitui "típica relação contratual de massa, que substitui os padrões tradicionais da compra e venda por prestação de serviços no processo de aquisição de bens de consumo".12 Podemos assim concluir, com esteio na lição de Eduardo Salomão Neto, que tal relação jurídica "resulta de um contrato, frequentemente de adesão, e seus principais elementos são a obrigação do emissor de manter-se filiado a sistema de cartão que possua rede de fornecedores credenciados e reembolsá-los de despesas feitas pelos usuários".13 No contrato de adesão celebrado com instituição financeira, o titular do cartão de crédito está vinculado aos direitos e obrigações estipulados unilateralmente pelo emissor, o banco operador e credor. Todavia, como o usuário final e titular do cartão enquadra-se no conceito de consumidor, como assim definido pelo art. 2º da lei 8.078/90, aplica-se a toda e qualquer operação com cartão de crédito o enunciado da súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". 3. Riscos nas operações com cartão de crédito e responsabilidade objetiva do banco emissor Na ausência de regulamentação legal aplicável às operações com cartão de crédito, a jurisprudência dos nossos tribunais vem assumindo, de modo impróprio, a função legislativa de definir o conceito, conteúdo e efeitos desse contrato atípico. Sem embargo, demonstra-se totalmente incompreensível e injustificável que não exista regulação em uma das modalidades contratuais, como o cartão de crédito, que mais demandam contestações, controvérsias e litígios nos órgãos de proteção de consumidor, na condição de líder absoluta, com 26,4% das reclamações formalizadas na Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça.14 Também no Poder Judiciário, o número de ações envolvendo bancos operadores de cartões de crédito predominam nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça.15 Ocupando esse hiato normativo, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 479 da sua jurisprudência, ao estabelecer que, na análise de casos de fraude, "[a]s instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". Na análise prática dos riscos gerados pelas operações com cartão de crédito, especialmente através da internet, Ênio Zuliani observou, com propriedade, que o cliente que teve o seu cartão de crédito clonado por um hacker que realizou compras fraudulentas, esse correntista "não poderá sofrer o desfalque da liberação dos créditos e que surgem no extrato de sua fatura". Isso porque "o cliente não utilizou o cartão para compras ou pagamentos, tendo sido vítima de um criminoso que, com sua habilidade, fraudou o sistema de segurança bancário e deu golpes". O banco responderá objetivamente, na forma da súmula 479, por ser esse caso típico de fortuito interno, ou seja, decorrente da própria atividade que cabia ao banco evitar".16 Com anos de atraso, a lei 14.181/21, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, regulou, em boa hora, regime protetivo de prevenção e resolução do sério problema do superendividamento que hoje atinge, segundo levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) cerca de 40% da população, no expressivo número de mais de 60 milhões de brasileiros, a grande maioria em virtude de dívidas de cartão de crédito.17 As operações com cartão de crédito passaram a ser reconhecidas e consideradas, por força dessa nova lei, como negócio jurídico conexo, coligado ou interdependente do contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e com os contratos acessórios de crédito garantidores do financiamento bancário (art. 54-F). Mais importante: a lei 14.181/21 proíbe o banco emissor do cartão de crédito de realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com o cartão, enquanto não for solucionada a controvérsia, cabendo ao titular notificar a administradora do cartão com antecedência de 10 dias do vencimento da fatura, vedada a repetição da cobrança na fatura seguinte (art. 54-G, I). Além de descrever e tipificar a excludente de responsabilidade do titular do cartão de crédito no caso de fraude praticada mediante ardil, clonagem ou uso indevido do cartão, a nova lei consagrou, em definitivo, o entendimento jurisprudencial atributivo de responsabilidade objetiva da instituição financeira emissora do cartão de crédito pelas fraudes praticadas com o uso não autorizado do instrumento de pagamento por terceiros. Ao considerar o titular do cartão de crédito como consumidor, a jurisprudência dominante do STJ, na lição do Ministro Luís Felipe Salomão, consolidou o entendimento de que "[o] código consumerista introduziu novidade no ordenamento jurídico brasileiro, ao adotar a concepção objetiva do abuso do direito, que se traduz em uma cláusula geral de proteção da lealdade e da confiança nas relações jurídicas, prescindindo da verificação da intenção do agente - dolo ou culpa - para caracterização de uma conduta como abusiva (...) Não há que se perquirir sobre a existência de dolo ou culpa do fornecedor, mas, objetivamente, verificar se o engano/equívoco/erro na cobrança era ou não justificável".18 Em conclusão, a lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismo protetivo em favor do titular do cartão de crédito diante de ações fraudulentas, especialmente as praticadas on-line, na internet, consagrou e positivou as teses dominantes no Superior Tribunal de Justiça, de atribuição e assunção do risco objetivo pelos bancos emissores e instituições financeiras. Isso porque essas organizações são dotadas de maior e da mais especializada condição para prevenir e coibir, com seus recursos tecnológicos, acessos indevidos aos sistemas informatizados depositários dos dados dos cartões de crédito por ela administrados. Ocorrendo o vazamento dessas informações ou sua captura por terceiros não autorizados, devem as instituições financeiras emissoras responder e assumir, objetiva e integralmente, os riscos e prejuízos incidentes. ____________ 1 Banco Central do Brasil. Estatísticas do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/spbadendos; Acesso em 05 jul 2023. 2 EUROLEX. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32015R0751&from=CS; Acesso em 06 Jul 2023. 3 PORTUGAL. Decreto-Lei 133/2009. Disponível em: https://www.bportugal.pt/legislacao/ decreto-lei-no-1332009-de-2-de-junho; Acesso em 06 Jul 2023. 4 USA. 123 Statute 1734 Public Law 111-24-May 22, 2009 Public Law 111-24 111th Congress. Disponível em: https://uscode.house.gov/statutes/pl/111/24.pdf; Acesso em 06 Jul 2023. 5 Banco Central do Brasil. Estatísticas. Taxas de Juros. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/ estatisticas/txjuros. Acesso em 06 Jul 2023. 6 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 1998, p. 659. 7 Banco Central do Brasil. BC aprimora normas para os cartões de crédito. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/546/noticia; Acesso em 06 Jul 2023. 8 CHABRIER, Patrick Grayll. Les cartes de crédit. Paris: Librairies Techniques, 1968, p. 108. 9 MARTINS, Fran. Cartões de crédito: Natureza Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 75-76. 10 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 152-154. 11 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis, cit., p. 671. 12 BRANCO, Gerson Carlos. O sistema contratual do cartão de crédito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 59. 13 SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 317-318. 14 Governo Federal. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional do Consumidor. Boletim Consumidor 2022, p. 7. 15 Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Relatório Justiça em números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf; Acesso em 07 Jul 2023. 16 ZULIANI. Ênio Santarelli. Responsabilidade dos bancos diante da súmula 479 do STJ. Revista Eletrônica Migalhas. Disponível em: www.migalhas.com.br/depeso/161926/responsabilidade-dos-bancos-diante-da-sumula-479-do-stj; Acesso em 07 Jul 2023. 17 Senado Federal. Tribuna do Consumidor: superendividamento dos brasileiros. Disponível em https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2023/03/02/tribuna-do-consumidor-superendividamento-dos-brasileiros; Acesso em 07 Jul 2023. 18 STJ. Corte Especial. EAREsp 600.663/RS. Relator para acórdão Herman Benjamin. DJe 30/03/2021. ____________ *Ivanildo Figueiredo é doutor em Direito Privado (UFPE). Pós-Doutor (USP). Professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Tabelião. Associado fundador do IBDCont.