Caso Shelby County v. Holder e as proteções federais ao sufrágio nos Estados Unidos
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Atualizado às 08:30
Analisar os aspectos conceituais e práticos do caso Shelby County v. Holder exige, antes de tudo, compreender os dispositivos legais questionados e seu contexto histórico. A decisão se insere em longa trajetória de emancipação racial e tensões federativas, cuja origem remonta ao período de reconstrução, posterior à Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861 a 1865).
Após a guerra, iniciou-se um esforço civilizatório liderado pelos estados do Norte. Vitoriosos no conflito, objetivaram reconstruir as economias sulistas, assegurar o cumprimento dos termos negociados e garantir a inclusão legal e civil da população afro-americana recém-liberta. A 15ª emenda foi promulgada neste contexto, assegurando o direito de voto às populações negras e autorizando o Congresso a legislar para tornar efetivas essas garantias - a nível federal, não mais dependendo das legislações estaduais sulistas.
A Reconstrução foi encerrada em 1877, quando um acordo político levou Rutherford Hayes à presidência em troca da desmobilização das tropas nortistas no Sul. Entendia-se, à época, que a 15ª emenda, aliada aos 12 anos de reconstrução, evitaria que o direito a voto das populações negras voltasse a ser restringido nos estados do Sul. No entanto, os avanços sufragistas que haviam sido alcançados a duras penas não demoraram a ruir.
Pelos oitenta anos que se seguiram, a segregação racial pautou a estrutura social americana, especialmente nos estados do Sul. Para além das tragédias mais conhecidas, como a segregação entre crianças escolares ou no transporte público, a desigualdade racial era especialmente cruel quanto aos direitos políticos. A 15ª emenda assegurava o direito ao voto, mas as legislações eleitorais estaduais, elaboradas por uma ampla maioria branca, eram moldadas para cerceá-lo: "testes de alfabetismo" com perguntas impossíveis, bancas de avaliação formadas exclusivamente por brancos e até taxas caríssimas para registro eleitoral. Artimanhas eleitorais consagradamente estadunidenses, como o gerrymandering, também eram instrumentos para restringir que os votos negros conseguissem eleger seus representantes.
A reação a esse sistema foi impulsionada pelo Movimento dos Direitos Civis, nos anos 50 e 60, e as duas décadas seguintes foram marcadas por avanços nesse sentido. É daqui, por exemplo, que surge o julgamento mais famoso de todos os tempos: em 1954, a Suprema Corte declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas em Brown v. Board of Education. O civil rights act seguiu esse mesmo vetor, proibindo a discriminação por motivos de cor, etnia, religião ou sexo. Foi aprovado pelo Congresso em 1964 e trouxe parâmetros eleitorais importantes - em seu primeiro título, proíbe nominalmente os testes de analfabetismo e outras chicanas segregacionais. No entanto, o grande avanço daquele período para a igualdade eleitoral só veio um ano depois: o voting rights act, de 1965, trazia todas as especificidades necessárias para assegurar condições iguais de participação política às populações afro-americanas.
A legislação era marcada por redundâncias, no melhor sentido da palavra. Se uma cláusula deixasse brechas para interpretações, outras eram minuciosas e taxativas, continuando a preservar a intenção central de resguardar o sufrágio. O objetivo, claro, era evitar que a emancipação sufragista a nível federal fosse erodida pela criatividade segregacionista dos legisladores estaduais. Cabe lembrar que essa desvirtuação já havia ocorrido antes: como foi dito, a 15ª Emenda determinava a igualdade eleitoral, mas falhou em prever as artimanhas empregadas no Sul pós-reconstrução.
Esse arranjo de vigilância federalizada aparece, principalmente, nas seções 4 (subseção "b") e 5 do voting rights act. As cláusulas impunham um regime especial de supervisão Federal a condados, municípios e nove estados com histórico de discriminação eleitoral: Alabama, Geórgia, Louisiana, Mississipi, Carolina do Sul, Virgínia (todos desde a redação original), Alaska, Arizona e Texas (acrescidos após emenda de 1975). Se planejassem realizar mudanças em sua legislação eleitoral, esses territórios precisavam obter aprovação prévia do governo Federal. O voting rights act determinava também revisões periódicas dessas restrições pelo Congresso.
O caso Shelby County v. Holder, que intitula este artigo, diz respeito à constitucionalidade desses dispositivos. O condado de Shelby, localizado no Alabama, estava sujeito a esse regime - e fazia jus à classificação: em repetidas ocasiões, havia aprovado alterações eleitorais que foram subsequentemente rechaçadas pelo governo Federal. Após nova proposta rejeitada pelo governo Federal, o Condado ajuizou ação em 2011 objetivando a declaração de inconstitucionalidade das seções 4 ("b") e 5 sob o argumento de que as circunstâncias que justificaram sua criação haviam se alterado.
A Suprema Corte dos Estados Unidos concedeu certiorari para ouvir o caso no final de 2012 e, em 25/6/13, declarou inconstitucionais as seções 4(b) e 5 do voting rights act. Por uma maioria de 5 x 4, a Suprema Corte extinguiu a exigência de aprovação prévia Federal para alterações nas leis eleitorais dos territórios assinalados.
A opinião da maioria, redigida pelo chief justice John Roberts, baseou-se em três argumentos principais. Primeiro, a lista de estados não era atualizada pelo Congresso com regularidade, como a lei previa que fosse feito. Segundo, não havia mais um cenário de discriminação eleitoral comparável ao que justificou a lei, sendo a perpetuidade das seções 4 (b) e 5 incompatível com o federalismo americano. Terceiro, e por fim, a intervenção Federal nas circunstâncias eleitorais dos estados listados os colocava em posição inferior aos demais entes da Federação.
A opinião dissidente, redigida por Ruth Bader Ginsburg, foi expressa ao discordar quanto à atualidade da legislação. Destacou que o Congresso havia prorrogado recentemente a legislação, reconhecendo sua importância e, nessa toada, argumentou que a redução de práticas discriminatórias não significava a obsolescência do voting rights act, mas sim demonstrava sua eficácia.
A decisão merecidamente gerou forte debate acadêmico, social e político. Desde então, Shelby County v. Holder passou a ser lembrado como um marco na legislação eleitoral norte-americana. À época, juristas alertavam para seus possíveis efeitos sobre a proteção de direitos eleitorais, principalmente quanto à retirada de instrumentos considerados essenciais à proteção do sufrágio de minorias raciais. Hoje, com um distanciamento histórico de doze anos desde o julgado, pode-se dizer que esses alertas eram proféticos. Em relatório de março de 2024, o Brennan Center for Justice observou que a abstenção de eleitores negros nos territórios especificados pelo Voting Rights Act aumentou significativamente desde 2012.
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ROBALINHO, Ana Beatriz. Shelby County v. Holder, 2013. In: BECKER, Rodrigo (Org.). Suprema Corte dos Estados Unidos: Casos Históricos. Coimbra: Almedina, 2021. p. 988.
MORRIS, Kevin; GRANGE, Coryn. Growing Racial Disparities in Voter Turnout, 2008-2022. Brennan Center for Justice, 2 mar. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10/1025.
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UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE. About Section 5 of the Voting Rights Act. Washington, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10/10/25.
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