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Por dentro da Suprema Corte dos EUA

Os bastidores, decisões e impactos da Suprema Corte dos EUA, com análises que conectam o direito norte-americano ao contexto jurídico brasileiro e internacional.

Rodrigo Becker, Flávio Jardim e Gustavo Favero Vaughn
quarta-feira, 18 de junho de 2025

Um breve histórico da Suprema Corte dos EUA

A Suprema Corte dos EUA (Supreme Court of the United States - SCOTUS) é a mais alta instância do Poder Judiciário federal norte-americano. Criada pela Constituição dos Estados Unidos, em 1787,1 a Corte foi estabelecida formalmente pelo Judiciary Act de 1789 e realizou sua primeira sessão em 1790, na cidade de Nova York, então capital dos EUA. A propósito dessa primeira sessão da Suprema Corte, convém transcrever um registro histórico feito por Steven Vladeck: "A Suprema Corte dos Estados Unidos reuniu-se pela primeira vez na segunda-feira, 1º de fevereiro de 1790, no segundo andar do Royal Exchange, na cidade de Nova York, então sede do governo federal. Ou, ao menos, deveria ter se reunido. Com apenas três dos seis juízes presentes (o número total de cadeiras criado pela Lei Judiciária de 1789), não houve quórum, e a Corte foi constrangida a se adiantar e adiar a sessão. A chegada, mais tarde naquele mesmo dia, do juiz associado John Blair, da Virgínia, permitiu que o tribunal nascente iniciasse formalmente seus trabalhos na manhã seguinte. No entanto, não havia casos na pauta para os juízes julgarem. Após nomear os oficiais da Corte, admitir vinte e seis advogados à sua Ordem, e resolver algumas outras questões administrativas, a Corte encerrou seu primeiro 'período' oito dias depois, sem se reunir novamente até agosto, quando conduziu um total de apenas dois dias de trabalho. Foi uma estreia pouco auspiciosa para a jovem Corte."2 Curiosamente, a Suprema Corte não possuía sede própria até 1935. Antes disso, funcionava em espaços improvisados no Capitólio (Congresso americano). Na verdade, olhando em retrospectiva, tem-se que após um ano em Nova York, a Suprema Corte dos EUA mudou-se para a Filadélfia, onde permaneceu por 9 (nove) anos e, após, isso, passou a localizar-se em Washington, D.C., e está lá até hoje. O edifício atual da Suprema Corte dos EUA foi projetado pelo arquiteto Cass Gilbert e é conhecido por seu frontão com o lema "Equal Justice Under Law". Com o intuito de mostrar a todos que por ali passassem a magnitude e a importância dos processos a serem julgados pela Suprema Corte, Gilbert valeu-se de degraus - 44 (quarenta e quatro) degraus, para ser preciso. Jeffrey Toobin descreveu isso com riqueza de detalhes na seguinte passagem de um de seus festejados livros: "Gilbert ampliou as alas do edifício, de modo que a fachada pública do prédio se tornasse um pórtico com uma escadaria imponente e monumental. Os visitantes não precisariam caminhar uma longa distância para entrar, mas poucos esqueceriam a experiência de subir aqueles quarenta e quatro degraus até a dupla fileira de oito colunas maciças que sustentavam o telhado. A subida da escadaria seria a experiência simbólica central da Suprema Corte, uma manifestação física da marcha americana rumo à justiça. Os degraus separavam a Corte do mundo cotidiano - e especialmente das preocupações terrenas dos políticos no Capitólio - e anunciavam que os juízes operariam, literalmente, em um plano mais elevado."3 Originalmente composta por seis juízes (Justices),4 a Suprema Corte foi gradualmente reconfigurada ao longo do tempo. Hoje, conta com nove membros: um Chief Justice (Presidente da Corte) e oito Associate Justices (Juízes Associados). Essa composição foi fixada em 1869 e permanece inalterada até os dias atuais. O atual Presidente da Suprema Corte dos EUA é John Roberts Jr., que se tornou Chief Justice5 por indicação do então Presidente do país George W. Bush, em 2005. Roberts é visto por seus colegas de tribunal como um "mestre do xadrez tridimensional que antecipa todos os possíveis movimentos que seus adversários possam fazer."6 Além dele, a Suprema Corte dos EUA é atualmente composta por cinco outros Justices considerados conservadores - Clarence Thomas (indicado por Bush), Samuel A. Alito Jr. (indicado por Bush), Neil M. Gorsuch (indicado por Donald Trump), Brett M. Kavanaugh (indicado por Trump) e Amy Coney Barrett (indicada por Trump) - e três Justices tidos como liberais - Sonia Sotomayor e Elena Kagan, ambas indicadas por Barack Obama, e Ketanji Brown Jackson, indicada por Joe Biden. Quanto à dinâmica de ingresso, a indicação dos Justices da Suprema Corte dos EUA é realizada pelo Presidente dos EUA, e submetida à aprovação do Senado. Trata-se de um cargo vitalício, o que significa que o Justice permanece no cargo até sua aposentadoria voluntária, renúncia, morte ou impeachment7. Esse modelo visa assegurar a independência judicial e proteger os magistrados de pressões políticas. Contudo, também tem gerado debates sobre a necessidade de mandatos com duração limitada ou idade máxima. Vale destacar que, de início, a Suprema Corte dos EUA tinha relevância diminuta no sistema judiciário norte-americano. Conforme lembra Wiliam H. Rehnquist, ex-Presidente da SCOTUS, a "Suprema Corte foi, portanto, desde o seu primeiro dia, essencialmente um tribunal de apelação: um tribunal que não se reúne para ouvir testemunhas e decidir fatos, mas para julgar recursos sobre questões de direito provenientes de decisões proferidas por juízes de primeira instância, estes sim responsáveis por ouvir testemunhas e estabelecer os fatos."8 Bernard Schwartz chegou a falar na "fraqueza da Suprema Corte em seus primórdios", observando que, "pelo menos no início, ocupar uma cadeira na mais alta Corte estava longe de representar o auge de uma carreira jurídica - como viria a se tornar posteriormente."9 Essa percepção, porém, não subsiste há muitos anos. Atualmente, "Suprema Corte consolidou-se como a instância máxima de interpretação e garantia dos direitos constitucionais," de modo que "o perfil do magistrado que exerce a função tem influência decisiva na formulação das políticas públicas e na proteção dos direitos fundamentais."10 Embora a Suprema Corte dos EUA "raramente revoga uma decisão anterior," sob pena de gerar insegurança jurídica e, com isso, prejudicar a estabilidade das relações jurídicas, é certo que a Corte "gradualmente modifica sua abordagem," o que é inevitável na medida em que os EUA, assim como o Brasil, "sofre transformações ao longo do tempo" e "Presidentes diferentes nomeiam juízes diferentes, com visões filosóficas distintas sobre como o direito - especialmente quando expresso em abstrações como 'liberdade' - se relaciona com os indivíduos americanos."11 Entre os marcos históricos mais relevantes da Suprema Corte dos EUA, destaca-se o célebre caso Marbury v. Madison (1803), que estabeleceu o princípio do judicial review - ou seja, a autoridade do Judiciário para declarar inconstitucionais atos do Congresso e do Executivo. Essa decisão, redigida pelo Chief Justice John Marshall, consolidou o papel da Corte como guardiã da Constituição. Nas palavras de Stephen Breyer, Justice aposentado, "Marshall fortaleceu a tese do controle judicial, exercendo pela primeira vez a autoridade da Corte para invalidar uma lei por inconstitucionalidade - e o fez de forma estrategicamente pensada para evitar o risco de que o Presidente ignorasse a decisão da Corte."12 Outros casos emblemáticos moldaram a história da Corte e da democracia norte-americana, como Dred Scott v. Sandford (1857), que negou cidadania a negros livres e escravizados, gerando críticas intensas - Breyer, com felicidade, registrou que essa deplorável decisão "há muito tempo é considerada uma das piores decisões da Corte";13 Brown v. Board of Education (1954), que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas; Roe v. Wade (1973), que reconheceu o direito ao aborto como uma liberdade constitucional - precedente revogado em 2022 no caso Dobbs v. Jackson Women's Health Organization; e Obergefell v. Hodges (2015), que garantiu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. É lícito dizer que a Suprema Corte norte-americana exerce um papel criativo na interpretação constitucional, adotando o modelo de precedentes vinculantes (stare decisis). Suas decisões têm impacto direto e imediato em todo o país, moldando políticas públicas, direitos civis e questões morais profundamente debatidas pela sociedade. A Corte também possui poder discricionário para escolher os casos que irá julgar. Através do writ of certiorari - guardadas as devidas proporções, algo como a repercussão geral da questão constitucional submetida ao STF, no Brasil -, os Justices selecionam apenas uma pequena fração dos milhares de recursos que recebem anualmente, prática essa que se desenvolveu com mais destaque a partir do caso Olmstead, em 1928.14 A um só tempo, isso confere à Suprema Corte um poder seletivo extraordinário, permitindo-lhe concentrar-se em temas de grande relevância nacional, e potencializa a atenção que se dá aos casos julgados pela Corte,15 ao que se soma a necessidade de ter uma permissão específica para advogar na SCOTUS. A Suprema Corte dos EUA tem sido, ao longo de mais de dois séculos, um pilar da estabilidade institucional e um centro de disputas ideológicas que refletem os conflitos culturais e políticos do país. É, ao mesmo tempo, objeto de reverência constitucional e alvo de críticas democráticas, especialmente quando suas decisões contrariam maiorias legislativas ou políticas dominantes. Seu papel continuará a ser debatido e observado com atenção - tanto por juristas quanto por cidadãos comuns - à medida que os Estados Unidos enfrentam novos desafios constitucionais no século XXI. Para encerrar este breve artigo - que inaugura a coluna dos subscritores, intitulada "Por dentro da Suprema Corte dos EUA", no Migalhas -, no qual se revelam fatos pontuais sobre a riquíssima e longa história da Suprema Corte dos EUA, cite-se uma instigante reflexão que bem ilustra o passado, o presente e o futuro da Corte: "Ao olhar para o longo curso da história da Suprema Corte, pode-se observar que sua presença física e institucional mudou profundamente. De instalações improvisadas, apertadas e desconfortáveis, a Corte encontrou um lar em um Palácio de Mármore. De sessões breves seguidas de exaustivas viagens pelos circuitos judiciais durante a maior parte do ano, a Corte passou a se reunir durante a maior parte do ano em Washington, D.C. De uma relativa obscuridade, tornou-se centro de ampla cobertura da mídia, de comentários de blogueiros e de análises acadêmicas. De ramo claramente mais fraco do governo, a Corte passou a rivalizar com o Congresso e o Poder Executivo no impacto de suas decisões."16 __________ 1 Artigo III, Seção 1: "The judicial Power of the United States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time to time ordain and establish." Tradução livre: "O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma Suprema Corte e nos tribunais inferiores que o Congresso, de tempos em tempos, possa criar e estabelecer." 2 Stephen Vladeck, The shadow docket: how the Supreme Court uses stealth rulings to amass power and undermine the republic. Basic Books, 2023, p. 30-31; tradução livre. 3 Jeffrey Toobin, The nine: inside the secret world of the Supreme Court. Anchor Books, 2007, p. 2; tradução livre. 4 É interessante destacar a composição inicial da Suprema Corte dos EUA: "A primeira Suprema Corte, composta por cinco juízes associados e pelo Presidente John Jay - um proeminente advogado de Nova York, oriundo de uma família distinta e coautor dos Federalist Papers - iniciou quase imediatamente seu trabalho de autodefinição. Três dos juízes associados, John Rutledge, da Carolina do Sul, James Wilson, da Pensilvânia, e John Blair Jr., da Virgínia, haviam sido delegados na Convenção Constitucional. Todos estavam profundamente conscientes do papel da Corte no desenho constitucional da separação de poderes." (Linda Greenhouse, The U.S. Supreme Court: a very short introduction, 2 ed., Oxford, 2020, p. 4-5; tradução livre). 5 Diferentemente do Brasil, nos EUA, o cargo de Presidente da Corte é escolhido pelo Presidente do país, que indica uma pessoa para exercê-lo até sua morte ou aposentadoria voluntária. 6 Joan Biskupic, The Chief: the life and turbulent times of Chief Justice John Roberts, Basic Books, 2020, p. 8. 7 Vale notar que, apesar de previsto na Constituição, nunca houve um juiz que deixou o cargo por impeachment. 8 William H. Rehnquist, The Supreme Court, Vintage Books, 2001, p. 8; tradução livre. 9 Bernard Schwartz, A history of the Supreme Court, Oxford University Press, 1923, p. 15-16; tradução livre. 10 Ted Cruz, One vote away: how a single Supreme Court seat can change history. Regnery Publishing, 2020, intro., xxiii; tradução livre. 11 Stephen Breyer, The Court and the world: American law and the new global realities. Borzoi Book, 2015, p. 11; tradução livre. 12 Stephen Breyer, The authority of the Court and the peril of politics. Harvard University Press, 2021, p. 12-13; tradução livre. 13 Stephen Breyer, Making our democracy work: a judge's view. Borzoi Book, 2010, p. 32; tradução livre. 14 "[N]o famoso caso Olmstead, de 1928, que tratava da admissibilidade de provas obtidas por escutas telefônicas, o Juiz Presidente Taft, ao redigir o voto da Corte, afirmou a autoridade do tribunal para restringir sua análise às questões constitucionais, ignorando, assim, possíveis fundamentos decisórios não constitucionais." (Edward A. Hartnett, Questioning certiorari: some reflections seventy-five years after the Judges' Bill, Columbia Law Review, vol. 100, n. 7, 2000, p. 1.706; tradução livre). 15 "À medida que a pauta da Suprema Corte se torna cada vez mais restrita e uma classe emergente de 'especialistas na Suprema Corte' conquista uma parcela crescente desses casos a cada ano, o valor atribuído a cada rara oportunidade de apresentar argumentos perante a Corte continua a aumentar. Esse valor crescente tem levado os estudiosos do direito a dedicar maior atenção ao árduo processo de persuadir a Corte a aceitar um caso por meio da revisão por certiorari." (Aaron Tang, The ethics of opposing certiorari before the Supreme Court, Harvard Journal of Law & Public Policy, vol. 35, n. 3, p. 934; tradução livre). 16 Peter Charles Hoffer, Williamjames Hull Hoffer e N.E.H. Hull, The Supreme Court: an essential history. 2 ed. University Press of Kansas, 2018, p. 407; tradução livre.