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Por dentro da Suprema Corte dos EUA

Os bastidores, decisões e impactos da Suprema Corte dos EUA, com análises que conectam o direito norte-americano ao contexto jurídico brasileiro e internacional.

Rodrigo Becker, Flávio Jardim e Gustavo Favero Vaughn
Nesta coluna, tivemos a honra de entrevistar um grande advogado norte-americano, Jonathan I. Blackman, atualmente Senior Counsel do prestigioso escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP. Jon, como costuma ser chamado no escritório que integra desde 1977, atua na área de resolução de disputas, incluindo litígios internacionais e arbitragem, direito bancário e direito dos seguros. Em uma de suas raras aparições perante a Suprema Corte dos EUA, ocorrida nos idos de 2014, Jon representou a Argentina em relevante controvérsia envolvendo direito probatório, processo executivo e imunidade de Estado soberano. A entrevista a seguir focará, pois, no referido caso - Republic of Argentina v. NML Capital, 573 U.S. 134, que tem origem na crise econômica de 2001, no contexto da qual a Argentina inadimpliu pagamentos de títulos de dívida (bonds) detidos por investidores estrangeiros. A NML Capital, Ltd. (bondholder), após sagrar-se vencedora em demandas judiciais movidas contra a Argentina na Justiça Federal dos EUA, notificou duas instituições financeiras solicitando informações sobre os ativos argentinos mantidos no mundo todo, preparando o campo para executar a Argentina com o objetivo de satisfazer o crédito que decorreu das condenações judiciais impostas contra ela. A Argentina opôs-se a essa pretensão do credor, argumentando que isso afrontaria a Foreign Sovereign Immunities Act dos EUA ao exigir a divulgação de ativos que seriam imunes à cobrança por parte da NML. O pedido da NML foi deferido em primeiro grau e confirmado em segunda instância, sob o entendimento de que a legislação em questão não se aplicava à intimação (subpoena), por tratar-se de uma ordem de produção de provas (discovery) dirigida a entidades comerciais que não tinham direito à imunidade soberana. Por 7 votos a 1, vencida a saudosa Justice Ruth Bader Ginsburg, com voto vencedor do igualmente saudoso Justice Antonin Scalia (a Justice Sonia Sotomayor não votou), a Suprema Corte dos EUA decidiu que a Foreign Sovereign Immunities Act não concede imunidade a um governo estrangeiro em relação a ordens de discovery para obter informações sobre seus ativos, ainda que esses ativos estejam localizados no exterior. Com efeito, decidiu-se que a legislação em questão não cria uma "imunidade de discovery" para ativos soberanos estrangeiros. 1. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Poderia fornecer uma breve visão geral do caso que o senhor defendeu perante a Suprema Corte dos Estados Unidos em nome da Argentina? Quais eram as principais questões em disputa? Jonathan I. Blackman: O caso Republic of Argentina v. NML Capital, 573 U.S. 134 (2014), suscitava a seguinte questão: saber se a legislação intitulada Foreign Sovereign Immunities Act dos EUA, 28 U.S.C. 1601 e seguintes ("FSIA"), impunha algum limite à produção de provas (discovery) em fase posterior ao julgamento (post-judgment discovery), em auxílio à execução de sentença proferida por tribunal norte-americano contra um Estado estrangeiro. A FSIA estabelece, de forma expressa, que a execução só pode recair sobre "bens de um Estado estrangeiro situados nos Estados Unidos... utilizados em atividade comercial nos Estados Unidos" (28 U.S.C. §1610(a)), permanecendo silente quanto à possibilidade de discovery para fins de execução. A questão submetida à Suprema Corte era se o alcance substantivo da execução autorizada imporia, necessariamente, um limite correspondente - restrito aos bens do Estado estrangeiro situados nos Estados Unidos e utilizados para fins comerciais - também quanto à extensão da produção de provas em auxílio à execução, seja por implicação legislativa específica, seja em razão do princípio geral de que o escopo da discovery na Justiça Federal deve estar vinculado à pretensão ou à defesa materialmente relevante. 2. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Quais foram os argumentos que o senhor apresentou, durante sua sustentação oral, em defesa da posição da Argentina no julgamento perante a Suprema Corte? Jonathan I. Blackman: A minha linha argumentativa dividiu-se, essencialmente, em duas partes. Em primeiro lugar, eu sustentei que, embora a FSIA fosse silente quanto ao tema, e sua história legislativa registrasse expressamente que a lei não abordava questões relativas à discovery, por lógica o alcance da produção de provas em auxílio à execução não poderia exceder o alcance da própria execução. Em segundo lugar, defendi que se tratava da aplicação de um princípio mais amplo, existente desde a promulgação das Federal Rules of Civil Procedure em 1938 (sendo a FSIA promulgada quase 40 anos depois disso, em 1976), de acordo com o qual a discovery deve sempre limitar-se ao que seja relevante para a controvérsia, a fim de evitar ônus excessivo, fishing expeditions e outras formas de abuso processual. 3. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Como o senhor se preparou para realizar a sustentação oral perante a Suprema Corte e quais desafios enfrentou em um caso de tamanha complexidade e relevância? Jonathan I. Blackman: Preparei-me como em qualquer outra sustentação oral, mas com intensidade ainda maior: leitura minuciosa das peças processuais, estudo dos precedentes aplicáveis à hipótese e realização de várias sessões de julgamento simuladas (moot courts) com a minha equipe no escritório e outros colegas advogados, a fim de treinar respostas às perguntas que poderiam ser formuladas pelos Justices da Suprema Corte. O mais fundamental foi tentar antecipar as possíveis indagações a partir das inclinações filosóficas e metodológicas de cada Justice, para além de seus pronunciamentos específicos sobre imunidade soberana, que eram escassos. A partir daí, trabalhei na formulação de respostas curtas e incisivas, algo crucial em 2014, quando a Corte mantinha um limite rígido de 1 hora para sustentação oral (do qual utilizei apenas 20 minutos, pois concordei em ceder 10 minutos ao governo dos Estados Unidos, que apoiava a posição do meu cliente). Além disso, as perguntas eram feitas de forma totalmente livre, sem ordem prévia, tornando essencial ter respostas objetivos e impactantes. 4. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Qual foi a sua estratégia para lidar com as perguntas dos Justices durante a sustentação oral? Houve alguma questão particularmente desafiadora? Jonathan I. Blackman: Minha estratégia para responder às perguntas dos Justices durante a sustentação oral foi preparar respostas sucintas, mas eficazes, para as perguntas que pude antecipar. Para mim, a chave para respostas eficazes é estar preparado com "pílulas" jurídicas (legal "sound bites"), isto é, afirmações que resumissem um ponto com a clareza necessária a ponto de repercutir intelectual e retoricamente com os Justices - ser "impactante", em vez de dizer algo prolixo ou excessivamente nuançado. Desde a pandemia, estabeleceu-se na Corte a prática de aguardar um curto período de tempo antes de os Justices iniciarem seus questionamentos, no qual os advogados podem falar sem interrupções. Também desde a pandemia a fase inicial de perguntas tornou-se mais organizada, mas ainda assim é fundamental ser conciso e evitar longas digressões. Para ajudar nesse processo, utilizei uma técnica que me remete ao que o Chief Justice John Roberts certa vez escreveu quando ainda atuava como advogado em grau recursal: anotar questões centrais do julgamento em blocos de nota e depois responder cada uma delas em ordem aleatória, após embaralhar as notas, de modo que isso o preparasse para abordar esses pontos com fluidez, independentemente da ordem em que surgissem as perguntas e independentemente de quanto a linha de questionamento pudesse ter se desviado da forma como ele gostaria de apresentar o argumento. 5. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Qual foi o papel da sua equipe na preparação e execução do caso, e como você trabalhou com ela? Jonathan I. Blackman: Embora a sustentação oral seja feita individualmente, a preparação é um processo eminentemente coletivo. Meus colegas participaram ativamente em todas as etapas, sobretudo nos treinos simulados da sustentação oral. 6. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Houve algum desenvolvimento inesperado durante a sustentação oral que lhe chamou atenção? Jonathan I. Blackman: Meu adversário, que representava a parte em busca de uma ampla discovery, a nível mundial, apesar da restrição legal à execução apenas sobre bens da Argentina "nos Estados Unidos... usados para fins comerciais nos Estados Unidos", iniciou sua sustentação oral qualificando a Argentina como um "caloteiro" que se recusava a cumprir decisões judiciais norte-americanas. (Se tivesse cumprido, naturalmente não haveria controvérsia perante a Suprema Corte.) Eu já antecipava essa linha de argumento e a havia neutralizado parcialmente quando um dos Justices fez uma observação semelhante durante minha sustentação, ao que respondi destacando a necessidade de adotar princípios jurídicos neutros para definir o alcance da discovery, independentemente da identidade do réu ou dos motivos da inadimplência. Acrescentei que esperava que meu adversário insistisse nesse ponto, o que gerou risos entre os Justices. E, de fato, o advogado da parte contrária (com muito mais experiência do que eu advogando perante a Suprema Corte) iniciou sua fala com essa acusação, mas foi imediatamente interrompido pelo Chief Justice, que questionou sua relevância, reiterando depois que o argumento era irrelevante. Embora essa intervenção tenha sido positiva para a minha defesa, no final das contas a decisão foi desfavorável ao meu cliente: a Suprema Corte entendeu que a discovery não estava legalmente limitada aos bens efetivamente sujeitos à execução, ainda que, no meu sentir, o argumento do "devedor recalcitrante" possa ter influenciado de algum modo a Corte. 7. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Como os precedentes influenciaram seus argumentos e como o senhor respondeu às citações de casos passados feitas pela parte contrária? Jonathan I. Blackman: Não havia precedentes da Suprema Corte que tratassem especificamente da questão de discovery em apoio à execução de bens de Estados soberanos. Assim, amparei-me nos argumentos que descrevi anteriormente, enquanto a parte contrária invocou a menção expressa, constante da história legislativa da FSIA, de que a lei não tinha a intenção de disciplinar questões de discovery, bem como defendeu, de forma mais ampla, que, ao menos na fase de discovery, não deveria estar limitada pelo comportamento recalcitrante do devedor em fornecer informações sequer remotamente relevantes acerca de eventuais bens passíveis de execução. 8. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Qual foi a reação dos Justices durante a sustentação oral e como interpretou as perguntas e os comentários endereçados ao senhor? Jonathan I. Blackman: Além dos diálogos que já mencionei, a única questão que permanece marcante na minha memória diz respeito às Official Advisory Committee's Notes da Regra 69(a) das Federal Rules of Civil Procedure, a qual dispõe que a execução de decisão proferida pela Justiça Federal deve observar os procedimentos previstos na lei estadual do foro da execução, "salvo se houver legislação federal aplicável". As Official Advisory Committee's Notes apresentam longa lista de exemplos de leis que excluem determinados bens da execução. Defendi que não seria plausível admitir a discovery de tais bens à luz da Regra 69(b), a qual prevê que a produção de provas em apoio à execução pode ser obtida segundo os procedimentos estabelecidos pelas Federal Rules. Um dos Justices, que antes de integrar a Corte fora renomado professor de processo civil, questionou se não seria estranho permitir discovery sobre bens protegidos por essa longa lista de leis e, ao mesmo tempo, tratar de forma diversa os bens excluídos da execução pela FSIA. Ao fim e ao cabo, esse Justice foi o único a divergir no julgamento - concluído por 8 votos a 1 contra meu cliente. 9. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Após o caso, qual o senhor considera ter sido o impacto mais significativo da decisão da Suprema Corte para a Argentina e para o direito internacional? Jonathan I. Blackman: A decisão da Corte produziu impacto imediato sobre o regime de discovery em apoio à execução de sentenças norte-americanas contra Estados estrangeiros. Esse efeito tem sido particularmente relevante em casos de reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, suscitando diversas disputas nos tribunais dos EUA quanto à possibilidade de obtenção de provas em apoio à execução de tais decisões. 10. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Refletindo sobre sua experiência, que conselho o senhor daria a outros advogados que almejam sustentar perante a Suprema Corte? Jonathan I. Blackman: O fator mais importante para sustentar com êxito perante a Suprema Corte é fazê-lo o maior número de vezes possível. Há uma razão pela qual, para o bem ou para o mal, existe uma comunidade bastante restrita (e altamente autopromovida) de advogados especializados em atuação na Suprema Corte: a exposição frequente aos Justices e a familiaridade com suas preocupações jurídicas e pessoais é decisiva. Embora tais inclinações possam ser estudadas por meio da leitura de seus votos e outros escritos - ainda que não relacionados ao tema central de determinado caso -, a interação reiterada, em sustentação oral, no plenário da Corte, é extremamente valiosa. Independentemente de se integrar ou não esse círculo, a melhor preparação consiste em estudar cuidadosamente o caso em si, bem como os escritos dos Justices em geral, além de realizar sucessivas simulações de julgamento, a fim de lapidar os pontos centrais a serem defendidos e as respostas às questões mais prováveis de serem formulados.
Patrocinar um caso como advogado perante a Suprema Corte dos Estados Unidos não é tão simples. Diferentemente do Brasil, por lá é necessária uma licença especial, concedida pela própria Corte, autorizando o advogado a defender casos perante o Tribunal. Para atuar regularmente, é necessário ser admitido na "OAB" da própria Corte (chamada de BAR). Não há prova, mas são exigidos os seguintes requisitos: a) ter 3 anos de admissão na "OAB" (BAR) de alguma Suprema Corte Estadual; b) duas indicações de membros já admitidos; e c) pagar uma taxa de U$ 200. Excepcionalmente, é conferida uma autorização especial a um advogado não habilitado, analisada individualmente, para recorrer e atuar, em um caso concreto, de modo que não seja negado acesso à Corte a nenhum advogado. Chama-se de autorização pro hac vice, que, em latim, significa "para este momento". Some-se a isso, o fato de que, dos 8.000 recursos que aportam anualmente na Suprema Corte, em média apenas 1% é levado a julgamento, com a possibilidade de realização de sustentação oral e elaboração de petições e memoriais. É que a Suprema Corte, na esfera recursal, pratica o que se denomina discretionary review. O Tribunal, assim, tem ampla discricionariedade para escolher o que vai julgar e não precisa dar razões para não apreciar um determinado pedido que recebe para apreciar um recurso.  Isso torna pequeno o universo de advogados realmente atuantes na Corte, ainda que haja muitos habilitados, já que o percentual de casos, de fato, julgados é bem pequeno, dentre o universo de pedidos recebidos. Os habilitados formam, portanto, um seleto grupo de advogados conceituados, que desenvolvem expertise e, assim, se tornam "desejados" a patrocinarem as grandes causas que chegam à mais alta corte americana. Nesta coluna, tivemos a oportunidade de entrevistar um dos mais renomados advogados americanos com atuação na Corte, que nos brindou com relatos interessantíssimos sobre o dia a dia no Tribunal, o contato com os Juízes, a dinâmica de atuação, e histórias pitorescas, nesses seus anos de atuação. Carter G. Philips é um dos advogados norte-americanos mais experientes atuando perante a Suprema Corte dos EUA e perante tribunais de apelação. Como sócio do renomado escritório de advocacia Sidley Austin, Carter já arguiu oitenta e dois casos perante a Suprema Corte, mais do que qualquer outro advogado na advocacia privada. Antes de ingressar no escritório Sidley Austin, Carter atuou como Assistente do Procurador-Geral e, nessa posição, arguiu outros nove casos perante a Suprema Corte em nome do governo dos EUA. Assim, atualmente Carter tem um total de noventa e uma sustentações orais perante a Suprema Corte. Para se ter ideia da relevância do número, o atual Chief Justice John Roberts, antes de ser nomeado, tinha arguido trinta e nove casos perante a Corte e era considerado um dos mais experientes advogados perante aquele Tribunal. Ele também já sustentou oralmente mais de 150 vezes perante tribunais de apelação dos EUA. Além disso, ele foi co-diretor da Clínica da Suprema Corte na Northwestern University School of Law e professor adjunto em sua faculdade de direito por mais de 15 anos. No início de sua carreira, Carter trabalhou como assessor do Juiz Robert Sprecher no Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Sétimo Circuito e como assessor do Justice Warren E. Burger na Suprema Corte dos EUA. 1. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Com base na sua experiência como assessor de Warren E. Burger, à época Chief Justice da Suprema Corte dos EUA, entre os anos de 1978-1979, o que você diria que mais definiu o estilo de liderança dele, tanto em termos de gerenciar os Justices quanto de moldar o papel institucional da Corte? Carter G. Phillips: Em relação ao gerenciamento dos outros Justices, o Chief Justice tinha uma influência muito limitada. O Chief Justice não é mais do que o primeiro entre iguais e tem exatamente o mesmo voto que os outros oito julgadores. Se ele votava com a maioria, tinha o direito de designar quem redigiria a decisão da Corte, e levava isso a sério, mas não era exatamente uma ferramenta de gestão. O Chief Justice também criou a lista de discussão (de análise dos casos que chegam ao Tribunal) e agendou as conferências (reuniões fechadas de deliberação dos casos) da Corte. Mas cada membro tinha liberdade para adicionar processos à lista, o que geralmente faziam. Isso significa que o Chief Justice não definia realmente a agenda da Corte. As conferências duravam muito mais durante a presidência do Burger do que atualmente. Mas, novamente, não vejo isso como um esforço real de gestão dos integrantes do Tribunal. Quanto ao papel institucional da Corte, o Chief Justice Burger fundou o Administrative Office of the US Courts, medida que ajudou a colocar a Corte em pé de igualdade com os outros ramos do governo no que diz respeito à gestão do orçamento do Poder Judiciário. Também criou a Sociedade Histórica da Suprema Corte, que preserva a história do Tribunal e educa o público em geral sobre ela. Burger também iniciou o processo de fazer do edifício da Corte um lugar atraente para turistas. Antes dele, o prédio era bastante desolado e pouco convidativo. Acho que Burger, enquanto Chief Justice, renovou institucionalmente a Corte durante seu mandato. Poderia continuar dizendo mais coisas, mas termino ressaltando que ele foi muito aberto ao uso de tecnologia, introduzindo copiadoras e sistemas de processamento de textos. Ajudou a tornar a instituição mais eficiente. 2. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Os advogados têm a oportunidade de despachar com os Justices da Suprema Corte dos EUA antes das sessões de julgamento? Carter G. Phillips: Não. A única vez que os advogados podem falar sobre seus casos com os membros da Corte é durante a sustentação oral. Os advogados são proibidos de conversar com os Justices sobre casos, mesmo após a sustentação oral e antes de ser divulgada a decisão da Corte. A maioria dos advogados e Justices também não discute casos decididos. A expectativa é que as manifestações escritas e a sustentação oral sejam as únicas formas de comunicação do advogado com a Corte. 3. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Qual Justice costuma fazer as perguntas mais difíceis ou desafiadoras durante as sustentações orais? Carter G. Phillips: Não se dizer se você quer restringir ao atual tribunal ou incluir os vinte e três Justices com os quais já realizei sustentação oral. Se fosse o primeiro caso, acho que o Justice Neil Gorsuch provavelmente faz as perguntas mais difíceis, pois tem uma filosofia judicial que guia seu pensamento sobre o caso, e ela pode ou não ser totalmente consistente com precedentes existentes da Suprema Corte. Isso pode tornar mais complicado responder às perguntas dele. Dito isso, a Justice Elena Kagan e o Justice Samuel Alito fazem perguntas extremamente boas, mas, pelo menos para mim, é geralmente mais fácil responder às deles. Se fosse escolher entre todos, provavelmente seria o Justice Antonin Scalia. Ele mudou a natureza da sustentação oral ao fazer muitas perguntas de forma bastante agressiva, diferentemente de qualquer magistrado antes dele. Também era extremamente inteligente e focado em cada caso. Gostava de sustentar diante dele, mas era desafiador. Sempre achei o Justice John Paul Stevens o melhor na formulação de perguntas hipotéticas. 4. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Você sustentou mais casos diante da Suprema Corte dos EUA do que quase qualquer outro advogado na iniciativa privada. O que primeiro o atraiu para a advocacia em tribunais e como suas experiências iniciais moldaram esse caminho? Carter G. Phillips: Quando estava na faculdade de direito, fui incentivado a fazer estágio em um tribunal federal de apelações, o que fiz, e tive a sorte de ser contratado pelo juiz Robert Sprecher. O juiz Sprecher tinha sido advogado em tribunais antes de virar juiz, e passar um ano com ele fez parecer que trabalhar como advogado nesse âmbito era algo bem gratificante. Depois, trabalhei como assessor de Warren Burger, então Chief Justice da Suprema Corte, e fiquei fascinado pelo processo daquele Tribunal. Após um período como professor na Universidade de Illinois, tive a sorte de ser convidado para uma vaga no escritório do Procurador-Geral e, ainda mais, de receber a oferta. Sustentei meu primeiro caso perante a Suprema Corte aos 29 anos. Foi uma oportunidade incrível que me provou que eu podia advogar na Suprema Corte. Entrei no escritório Sidley Austin em outubro de 1984, e meu antigo chefe, Rex E. Lee, ingressou no mesmo escritório no ano seguinte. Juntos criamos uma "prática na Suprema Corte" dentro de um grande escritório de advocacia. Nenhum outro escritório no país tinha feito o que Rex e eu planejamos fazer, e diria que tivemos sucesso razoável. Uma das razões para esse sucesso foi o fato de eu ter trabalhado como assessor na Corte, o que me deu uma ideia sólida de qual seria a maneira mais eficaz de defender um caso. Além disso, o fato de eu já ter sustentado nove casos na Corte antes mesmo de começarmos a promover a prática no escritório contribuiu para esse sucesso. Obviamente, um fator crítico para o sucesso da nossa prática era que Rex Lee também tinha sido assessor na Corte e tinha sustentado cerca de 30 casos perante a Suprema Corte antes de ingressar no escritório Sidley Austin. 5. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Durante seu período como assistente do Procurador-Geral, você sustentou oralmente vários casos perante a Suprema Corte. Como esse papel influenciou sua perspectiva sobre litígios naquele Tribunal e moldou seu estilo de advocacia? Carter G. Phillips: Acho que me deixou mais confortável. As sustentações orais ficam mais fáceis a cada oportunidade que tenho. Então, ter a chance de estar no púlpito quase dez vezes antes de sair do governo me deu a confiança de que eu me sairia bem na prática privada. Meu estilo de advocacia mudou bastante ao longo do tempo. Nos anos em que trabalhei no escritório do Procurador-Geral, a Corte era relativamente silenciosa. Os Justices raramente faziam mais de dez a quinze perguntas em uma sustentação oral de trinta minutos. Antes da pandemia, os Justices já faziam mais de sessenta perguntas em uma sessão de trinta minutos. Assim, a sustentação oral tornou-se mais uma batalha de sobrevivência do que o exercício mais gentil do que quando comecei. Mas, mais importante, à medida que me senti mais à vontade com o papel e passei a conhecer melhor os Justices como pessoas, em vez de figuras abstratas, meu estilo tornou-se muito mais conversacional. 6. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Entre os muitos casos que você sustentou oralmente perante a Suprema Corte, há algum que se destaque como particularmente memorável ou significativo - seja por motivos legais ou pessoais? Carter G. Phillips: Sim, há alguns casos nesse sentido. Já representei minha cidade natal, Canton, Ohio, na Suprema Corte, e ganhei o caso. Também representei na Corte o Cleveland Indians, o time de beisebol que idolatrava na infância, embora tenha perdido essa causa. Sustentei oralmente em nome da clínica Carle, que foi o hospital onde minha filha nasceu. Os três casos tiveram um significado muito especial para mim. Outro caso memorável foi o da Fox Television, que sustentei duas vezes, envolvendo o uso de palavrões na televisão aberta e se a Federal Communications Commission poderia punir a Fox por transmitir ao vivo Cher e Nicole Richey usando linguagem proibida. Cheguei a usar as palavras supostamente proibidas ao sustentar duas vezes na corte de apelações (e ganhei as duas). Essas transmissões foram ao ar na C-Span, canal de televisão oficial nos EUA. Em certa ocasião, o secretário da Corte me ligou antecipadamente e pediu para não usar essas palavras na sustentação oral perante a Suprema Corte. Respeitei o pedido, mas acho que isso reduziu um pouco o impacto do meu discurso. 7. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Qual foi a situação mais constrangedora ou desconfortável que você já experimentou - ou ouviu falar - durante uma sustentação oral? Carter G. Phillips: Cometi o erro de responder a uma pergunta da Justice Ginsburg chamando-a de "Justice O'Connor". Ela me corrigiu. Depois disso, não há muito que dizer, salvo seguir com meus argumentos sabendo que poderia ouvir sobre isso ao voltar para casa e ler no jornal no dia seguinte. Curiosamente, na próxima vez que sustentei oralmente na Corte, a própria Justice Ginsburg me chamou de "Mr. Carter" pela primeira e única vez. Não tenho certeza se foi um deslize ou uma provocação sutil. 8. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Sua atuação perante tribunais é amplamente respeitada tanto pelos Justices quanto pelos colegas advogados. Como você se prepara para as sustentações orais, e seu método evoluiu ao longo dos anos? Carter G. Phillips: Quando comecei no escritório do Procurador-Geral, não era obrigatório nem esperado que os advogados praticassem sessões de julgamentos simulados antes de seus verdadeiros julgamentos. Isso acontecia principalmente porque o tribunal era tão tranquilo que era difícil antecipar o que os juízes poderiam perguntar. Então, criei o hábito de fazer discussões em mesa-redonda sobre o caso. Eu tentava envolver pelo menos uma pessoa e, preferencialmente, mais alguém que não tivesse trabalhado no caso, para ler os pareceres e depois conversarmos sobre a melhor maneira de apresentar o argumento e as perguntas ou preocupações mais prováveis que os juízes poderiam ter. Segui essa abordagem até após a pandemia. Começando há uns dois anos, a Corte mudou para um formato híbrido: trinta minutos de perguntas abertas (como nas sustentações orais pré-pandemia), seguidos de um tempo ilimitado para que cada Justice faça perguntas de forma sequencial. Como resposta a isso, atualmente realizo julgamentos simulados formais porque a variedade de perguntas se torna muito maior com o novo formato, e a necessidade de ficar em pé no púlpito por mais de uma hora é algo que requer prática (pelo menos para fins de resistência). O que faço para me preparar realmente não mudou. Eu leio tudo que acho relevante; penso no caso o tempo todo, por pelo menos uma semana antes do julgamento; saio andando e converso comigo mesmo como se estivesse respondendo às perguntas (fones de ouvido fazem isso parecer muito menos louco hoje em dia), e escrevo cada pergunta que acho que pode ser feita para mim, além de incentivar meus colegas e advogados parceiros nas causas a fazerem o mesmo. Tento resumir o caso em algumas proposições básicas, que anoto em um bloco de notas, e é isso que levarei para a sustentação oral. 9. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Quando se preparam para as sustentações orais, os advogados geralmente conseguem antecipar os tipos de perguntas que cada Justice provavelmente fará, com base na experiência passada? Carter G. Phillips: Na maior parte das vezes, sim. Cada novo Justice obviamente traz algo novo à Corte e leva alguns anos na Corte para conseguir prever para onde esse juiz provavelmente irá com as perguntas. Mas, geralmente, os Justices tendem a abordar os casos de formas distintas e suas perguntas seguem certos padrões, o que os torna em geral previsíveis. 10. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Você já orientou muitos advogados mais jovens ao longo da sua carreira, inclusive no seu escritório Sidley Austin. Que conselho você costuma dar para aqueles que estão se preparando para sua primeira oportunidade de sustentar oralmente perante a Suprema Corte? Carter G. Phillips: Rex Lee sempre lembrava a um advogado de primeira viagem que iria atuar na Corte: "Lembre-se sempre, esta é a coisa mais divertida que um advogado pode fazer com roupas." Antes de começar a sustentar, isso é um conselho bastante sólido. "Aproveite o momento." Mas, se você realmente quer ajudar um advogado mais jovem a se sair melhor na sustentação oral, o melhor conselho que dou é ouvir cuidadosa e completamente cada pergunta antes de responder. Entre os julgamentos simulados e a empolgação do momento, muitos advogados jovens tendem a achar que sabem para onde uma pergunta vai e começam a pensar na ótima resposta que preparam para aquela questão logo após ouvi-la na simulação. Mas, infelizmente, o magistrado muda o foco para um ponto diferente e o advogado jovem não está concentrado na mudança de foco, terminando por responder a uma pergunta que, na verdade, não foi feita. Isso é constrangedor; é frustrante para o magistrado que fez a pergunta e geralmente deixa o advogado jovem desnorteado, pois ele nem percebe o motivo da irritação do Justice, já que não chegou a ouvir de fato a pergunta. Outro conselho que dou é responder à pergunta, especialmente se ela exigir uma resposta de sim ou não. O magistrado espera legítima e claramente um sim ou não, e, se você der uma resposta, ele sempre permitirá que você explique o porquê, e, se necessário, as suposições que fez ao dar essa resposta. Se você se recusar a fornecer um sim ou não, o juiz vai forçá-lo a fazer isso, geralmente de forma que possa acabar te deixando constrangido. "Quer dizer que sua resposta é sim?" Ou "minha pergunta exigia uma resposta de sim ou não, você pode me dar uma?". Esses tipos de troca não ajudam um advogado de primeira viagem. 11. Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Como codiretor da Clínica da Suprema Corte da Northwestern University, como você vê o papel dela na formação não apenas de futuros advogados, mas também na influência de resultados reais no mais alto nível do Poder Judiciário norte-americano? Carter G. Phillips: A clínica esteve envolvida em diversos casos emblemáticos da Suprema Corte - Dickerson v. United States (reafirmando as advertências do caso Miranda); United States v. Lopez (limites ao poder constitucional do Congresso de restringir a posse de armas) e uma série de casos envolvendo as diretrizes federais para prolação de sentenças penais. Para citar alguns, a clínica geralmente trabalha com dois a cinco casos decididos com base no mérito a cada ano. Além disso, ela representa clientes reais em casos reais, e alguns desses casos envolvem questões jurídicas das mais importantes apresentadas pelo nosso sistema de justiça criminal.  No que diz respeito à formação de futuros advogados, estou confiante de que os quase duzentos estudantes que passaram pela clínica são capazes de lidar com qualquer tipo de problema que se apresenta a uma corte de apelação e estão especialmente preparados para representar um cliente na Suprema Corte. Para isso, a clínica, em seus dezenove anos de existência, viu sete de seus ex-alunos atuar como assessores de Justices da Corte Suprema e dois seguiram carreira no escritório do Procurador-Geral. Portanto, sei que alguns de nossos estudantes se tornam "advogados perante a Suprema Corte" por mérito próprio. Será que eles teriam chegado lá sem a experiência na clínica? Quem sabe?
quarta-feira, 18 de junho de 2025

Um breve histórico da Suprema Corte dos EUA

A Suprema Corte dos EUA (Supreme Court of the United States - SCOTUS) é a mais alta instância do Poder Judiciário federal norte-americano. Criada pela Constituição dos Estados Unidos, em 1787,1 a Corte foi estabelecida formalmente pelo Judiciary Act de 1789 e realizou sua primeira sessão em 1790, na cidade de Nova York, então capital dos EUA. A propósito dessa primeira sessão da Suprema Corte, convém transcrever um registro histórico feito por Steven Vladeck: "A Suprema Corte dos Estados Unidos reuniu-se pela primeira vez na segunda-feira, 1º de fevereiro de 1790, no segundo andar do Royal Exchange, na cidade de Nova York, então sede do governo federal. Ou, ao menos, deveria ter se reunido. Com apenas três dos seis juízes presentes (o número total de cadeiras criado pela Lei Judiciária de 1789), não houve quórum, e a Corte foi constrangida a se adiantar e adiar a sessão. A chegada, mais tarde naquele mesmo dia, do juiz associado John Blair, da Virgínia, permitiu que o tribunal nascente iniciasse formalmente seus trabalhos na manhã seguinte. No entanto, não havia casos na pauta para os juízes julgarem. Após nomear os oficiais da Corte, admitir vinte e seis advogados à sua Ordem, e resolver algumas outras questões administrativas, a Corte encerrou seu primeiro 'período' oito dias depois, sem se reunir novamente até agosto, quando conduziu um total de apenas dois dias de trabalho. Foi uma estreia pouco auspiciosa para a jovem Corte."2 Curiosamente, a Suprema Corte não possuía sede própria até 1935. Antes disso, funcionava em espaços improvisados no Capitólio (Congresso americano). Na verdade, olhando em retrospectiva, tem-se que após um ano em Nova York, a Suprema Corte dos EUA mudou-se para a Filadélfia, onde permaneceu por 9 (nove) anos e, após, isso, passou a localizar-se em Washington, D.C., e está lá até hoje. O edifício atual da Suprema Corte dos EUA foi projetado pelo arquiteto Cass Gilbert e é conhecido por seu frontão com o lema "Equal Justice Under Law". Com o intuito de mostrar a todos que por ali passassem a magnitude e a importância dos processos a serem julgados pela Suprema Corte, Gilbert valeu-se de degraus - 44 (quarenta e quatro) degraus, para ser preciso. Jeffrey Toobin descreveu isso com riqueza de detalhes na seguinte passagem de um de seus festejados livros: "Gilbert ampliou as alas do edifício, de modo que a fachada pública do prédio se tornasse um pórtico com uma escadaria imponente e monumental. Os visitantes não precisariam caminhar uma longa distância para entrar, mas poucos esqueceriam a experiência de subir aqueles quarenta e quatro degraus até a dupla fileira de oito colunas maciças que sustentavam o telhado. A subida da escadaria seria a experiência simbólica central da Suprema Corte, uma manifestação física da marcha americana rumo à justiça. Os degraus separavam a Corte do mundo cotidiano - e especialmente das preocupações terrenas dos políticos no Capitólio - e anunciavam que os juízes operariam, literalmente, em um plano mais elevado."3 Originalmente composta por seis juízes (Justices),4 a Suprema Corte foi gradualmente reconfigurada ao longo do tempo. Hoje, conta com nove membros: um Chief Justice (Presidente da Corte) e oito Associate Justices (Juízes Associados). Essa composição foi fixada em 1869 e permanece inalterada até os dias atuais. O atual Presidente da Suprema Corte dos EUA é John Roberts Jr., que se tornou Chief Justice5 por indicação do então Presidente do país George W. Bush, em 2005. Roberts é visto por seus colegas de tribunal como um "mestre do xadrez tridimensional que antecipa todos os possíveis movimentos que seus adversários possam fazer."6 Além dele, a Suprema Corte dos EUA é atualmente composta por cinco outros Justices considerados conservadores - Clarence Thomas (indicado por Bush), Samuel A. Alito Jr. (indicado por Bush), Neil M. Gorsuch (indicado por Donald Trump), Brett M. Kavanaugh (indicado por Trump) e Amy Coney Barrett (indicada por Trump) - e três Justices tidos como liberais - Sonia Sotomayor e Elena Kagan, ambas indicadas por Barack Obama, e Ketanji Brown Jackson, indicada por Joe Biden. Quanto à dinâmica de ingresso, a indicação dos Justices da Suprema Corte dos EUA é realizada pelo Presidente dos EUA, e submetida à aprovação do Senado. Trata-se de um cargo vitalício, o que significa que o Justice permanece no cargo até sua aposentadoria voluntária, renúncia, morte ou impeachment7. Esse modelo visa assegurar a independência judicial e proteger os magistrados de pressões políticas. Contudo, também tem gerado debates sobre a necessidade de mandatos com duração limitada ou idade máxima. Vale destacar que, de início, a Suprema Corte dos EUA tinha relevância diminuta no sistema judiciário norte-americano. Conforme lembra Wiliam H. Rehnquist, ex-Presidente da SCOTUS, a "Suprema Corte foi, portanto, desde o seu primeiro dia, essencialmente um tribunal de apelação: um tribunal que não se reúne para ouvir testemunhas e decidir fatos, mas para julgar recursos sobre questões de direito provenientes de decisões proferidas por juízes de primeira instância, estes sim responsáveis por ouvir testemunhas e estabelecer os fatos."8 Bernard Schwartz chegou a falar na "fraqueza da Suprema Corte em seus primórdios", observando que, "pelo menos no início, ocupar uma cadeira na mais alta Corte estava longe de representar o auge de uma carreira jurídica - como viria a se tornar posteriormente."9 Essa percepção, porém, não subsiste há muitos anos. Atualmente, "Suprema Corte consolidou-se como a instância máxima de interpretação e garantia dos direitos constitucionais," de modo que "o perfil do magistrado que exerce a função tem influência decisiva na formulação das políticas públicas e na proteção dos direitos fundamentais."10 Embora a Suprema Corte dos EUA "raramente revoga uma decisão anterior," sob pena de gerar insegurança jurídica e, com isso, prejudicar a estabilidade das relações jurídicas, é certo que a Corte "gradualmente modifica sua abordagem," o que é inevitável na medida em que os EUA, assim como o Brasil, "sofre transformações ao longo do tempo" e "Presidentes diferentes nomeiam juízes diferentes, com visões filosóficas distintas sobre como o direito - especialmente quando expresso em abstrações como 'liberdade' - se relaciona com os indivíduos americanos."11 Entre os marcos históricos mais relevantes da Suprema Corte dos EUA, destaca-se o célebre caso Marbury v. Madison (1803), que estabeleceu o princípio do judicial review - ou seja, a autoridade do Judiciário para declarar inconstitucionais atos do Congresso e do Executivo. Essa decisão, redigida pelo Chief Justice John Marshall, consolidou o papel da Corte como guardiã da Constituição. Nas palavras de Stephen Breyer, Justice aposentado, "Marshall fortaleceu a tese do controle judicial, exercendo pela primeira vez a autoridade da Corte para invalidar uma lei por inconstitucionalidade - e o fez de forma estrategicamente pensada para evitar o risco de que o Presidente ignorasse a decisão da Corte."12 Outros casos emblemáticos moldaram a história da Corte e da democracia norte-americana, como Dred Scott v. Sandford (1857), que negou cidadania a negros livres e escravizados, gerando críticas intensas - Breyer, com felicidade, registrou que essa deplorável decisão "há muito tempo é considerada uma das piores decisões da Corte";13 Brown v. Board of Education (1954), que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas; Roe v. Wade (1973), que reconheceu o direito ao aborto como uma liberdade constitucional - precedente revogado em 2022 no caso Dobbs v. Jackson Women's Health Organization; e Obergefell v. Hodges (2015), que garantiu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. É lícito dizer que a Suprema Corte norte-americana exerce um papel criativo na interpretação constitucional, adotando o modelo de precedentes vinculantes (stare decisis). Suas decisões têm impacto direto e imediato em todo o país, moldando políticas públicas, direitos civis e questões morais profundamente debatidas pela sociedade. A Corte também possui poder discricionário para escolher os casos que irá julgar. Através do writ of certiorari - guardadas as devidas proporções, algo como a repercussão geral da questão constitucional submetida ao STF, no Brasil -, os Justices selecionam apenas uma pequena fração dos milhares de recursos que recebem anualmente, prática essa que se desenvolveu com mais destaque a partir do caso Olmstead, em 1928.14 A um só tempo, isso confere à Suprema Corte um poder seletivo extraordinário, permitindo-lhe concentrar-se em temas de grande relevância nacional, e potencializa a atenção que se dá aos casos julgados pela Corte,15 ao que se soma a necessidade de ter uma permissão específica para advogar na SCOTUS. A Suprema Corte dos EUA tem sido, ao longo de mais de dois séculos, um pilar da estabilidade institucional e um centro de disputas ideológicas que refletem os conflitos culturais e políticos do país. É, ao mesmo tempo, objeto de reverência constitucional e alvo de críticas democráticas, especialmente quando suas decisões contrariam maiorias legislativas ou políticas dominantes. Seu papel continuará a ser debatido e observado com atenção - tanto por juristas quanto por cidadãos comuns - à medida que os Estados Unidos enfrentam novos desafios constitucionais no século XXI. Para encerrar este breve artigo - que inaugura a coluna dos subscritores, intitulada "Por dentro da Suprema Corte dos EUA", no Migalhas -, no qual se revelam fatos pontuais sobre a riquíssima e longa história da Suprema Corte dos EUA, cite-se uma instigante reflexão que bem ilustra o passado, o presente e o futuro da Corte: "Ao olhar para o longo curso da história da Suprema Corte, pode-se observar que sua presença física e institucional mudou profundamente. De instalações improvisadas, apertadas e desconfortáveis, a Corte encontrou um lar em um Palácio de Mármore. De sessões breves seguidas de exaustivas viagens pelos circuitos judiciais durante a maior parte do ano, a Corte passou a se reunir durante a maior parte do ano em Washington, D.C. De uma relativa obscuridade, tornou-se centro de ampla cobertura da mídia, de comentários de blogueiros e de análises acadêmicas. De ramo claramente mais fraco do governo, a Corte passou a rivalizar com o Congresso e o Poder Executivo no impacto de suas decisões."16 __________ 1 Artigo III, Seção 1: "The judicial Power of the United States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time to time ordain and establish." Tradução livre: "O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma Suprema Corte e nos tribunais inferiores que o Congresso, de tempos em tempos, possa criar e estabelecer." 2 Stephen Vladeck, The shadow docket: how the Supreme Court uses stealth rulings to amass power and undermine the republic. Basic Books, 2023, p. 30-31; tradução livre. 3 Jeffrey Toobin, The nine: inside the secret world of the Supreme Court. Anchor Books, 2007, p. 2; tradução livre. 4 É interessante destacar a composição inicial da Suprema Corte dos EUA: "A primeira Suprema Corte, composta por cinco juízes associados e pelo Presidente John Jay - um proeminente advogado de Nova York, oriundo de uma família distinta e coautor dos Federalist Papers - iniciou quase imediatamente seu trabalho de autodefinição. Três dos juízes associados, John Rutledge, da Carolina do Sul, James Wilson, da Pensilvânia, e John Blair Jr., da Virgínia, haviam sido delegados na Convenção Constitucional. Todos estavam profundamente conscientes do papel da Corte no desenho constitucional da separação de poderes." (Linda Greenhouse, The U.S. Supreme Court: a very short introduction, 2 ed., Oxford, 2020, p. 4-5; tradução livre). 5 Diferentemente do Brasil, nos EUA, o cargo de Presidente da Corte é escolhido pelo Presidente do país, que indica uma pessoa para exercê-lo até sua morte ou aposentadoria voluntária. 6 Joan Biskupic, The Chief: the life and turbulent times of Chief Justice John Roberts, Basic Books, 2020, p. 8. 7 Vale notar que, apesar de previsto na Constituição, nunca houve um juiz que deixou o cargo por impeachment. 8 William H. Rehnquist, The Supreme Court, Vintage Books, 2001, p. 8; tradução livre. 9 Bernard Schwartz, A history of the Supreme Court, Oxford University Press, 1923, p. 15-16; tradução livre. 10 Ted Cruz, One vote away: how a single Supreme Court seat can change history. Regnery Publishing, 2020, intro., xxiii; tradução livre. 11 Stephen Breyer, The Court and the world: American law and the new global realities. Borzoi Book, 2015, p. 11; tradução livre. 12 Stephen Breyer, The authority of the Court and the peril of politics. Harvard University Press, 2021, p. 12-13; tradução livre. 13 Stephen Breyer, Making our democracy work: a judge's view. Borzoi Book, 2010, p. 32; tradução livre. 14 "[N]o famoso caso Olmstead, de 1928, que tratava da admissibilidade de provas obtidas por escutas telefônicas, o Juiz Presidente Taft, ao redigir o voto da Corte, afirmou a autoridade do tribunal para restringir sua análise às questões constitucionais, ignorando, assim, possíveis fundamentos decisórios não constitucionais." (Edward A. Hartnett, Questioning certiorari: some reflections seventy-five years after the Judges' Bill, Columbia Law Review, vol. 100, n. 7, 2000, p. 1.706; tradução livre). 15 "À medida que a pauta da Suprema Corte se torna cada vez mais restrita e uma classe emergente de 'especialistas na Suprema Corte' conquista uma parcela crescente desses casos a cada ano, o valor atribuído a cada rara oportunidade de apresentar argumentos perante a Corte continua a aumentar. Esse valor crescente tem levado os estudiosos do direito a dedicar maior atenção ao árduo processo de persuadir a Corte a aceitar um caso por meio da revisão por certiorari." (Aaron Tang, The ethics of opposing certiorari before the Supreme Court, Harvard Journal of Law & Public Policy, vol. 35, n. 3, p. 934; tradução livre). 16 Peter Charles Hoffer, Williamjames Hull Hoffer e N.E.H. Hull, The Supreme Court: an essential history. 2 ed. University Press of Kansas, 2018, p. 407; tradução livre.