Divórcio unilateral extrajudicial: regulamentação em discussão no Congresso Nacional
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado em 24 de junho de 2025 13:59
Como diz o antigo ditado popular, "ninguém casa pensando em separar". De fato, o intuito principal do casamento é o de constituição familiar. Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2010, p. 29) nos ensina que a família pode ser conceituada como o primeiro agente socializador do ser humano. Desde muito, deixou de ser uma célula do Estado e passou a ser uma célula da sociedade. A maior missão do Estado, em suas palavras, é o de "preservar o organismo familiar sobre o qual repousam suas bases".1
Até o início do século XX, predominavam os casamentos duradouros, unidos pelo laço sagrado da igreja, separados, unicamente, pelo falecimento de um dos cônjuges. Isso porque, prezavam-se as tradições sociais acima de tudo, inclusive do próprio bem-estar2. Contudo, a sociedade foi se transformando, moldando-se às novas nuances e realidades e, quando os relacionamentos deixam de ser viáveis, a dissolução tornou-se algo inevitável. Nas palavras de Cerveny (2002), "a separação do casal não acaba com a família, porém a transforma. Em outras palavras, a estrutura se altera com a dissolução da conjugalidade, embora a família, enquanto organização, se mantenha".3
E foi justamente nesse contexto de transformações que nos deparamos com os aprimoramentos normativos na legislação brasileira que, buscando atender aos anseios sociais, trataram sobre a dissolução do casamento, consagrando o divórcio como direito potestativo, dispensando-se qualquer justificativa ou comprovação de culpa para sua decretação. Nesse contexto, tivemos a promulgação da EC 66, de 20104, por exemplo, que é tida como o marco inicial desse movimento, que eliminou a necessidade de separação judicial prévia, reforçando a liberdade individual para extinguir o vínculo conjugal.
Apesar dos avanços normativos, a efetivação do divórcio ainda é nebulosa, particularmente em casos de violência de gênero. Nessas situações, é comum que o cônjuge resista à dissolução da sociedade conjugal. Urge, nesse contexto, com relevância a discussão sobre o divórcio unilateral, cuja regulamentação encontra eco em decisões judiciais recentes, debates no CNJ e em projetos legislativos que vislumbram operacionalizar esse instituto diretamente nas serventias extrajudiciais.
Decisões de tribunais estaduais têm admitido a decretação liminar do divórcio mesmo sem manifestação do outro cônjuge, sob o fundamento de que a vontade inequívoca de uma das partes em não permanecer casada já autoriza o magistrado a decretar o fim do matrimônio sem submeter o pedido à espera de eventual recurso ou retratação do outro titular do vínculo. Temos, como exemplo, decisão de 2020, do TJ/DF e territórios, que deferiu divórcio em caráter liminar sem a manifestação prévia do outro cônjuge, julgando que "a manifestação inequívoca de vontade de não manter mais o vínculo conjugal autoriza a antecipação da decretação do divórcio, afastando a necessidade de aguardar eventual manifestação do outro lado"5.
No âmbito do STJ, embora ainda não exista súmula específica acerca do divórcio unilateral em cartório, sua jurisprudência e comunicados tendem a reconhecer a natureza potestativa desse direito, ampliando medidas que assegurem celeridade quando restar demonstrada a vontade firme de romper o casamento, a exemplo de precedentes que admitem decretar o divórcio mesmo diante de circunstâncias excepcionais, como a morte posterior de um dos cônjuges após ajuizamento da ação6. Com esse mesmo entendimento, o STJ julgou o recurso especial 2189143-SP (2024/0355419-7) tratando que a "a dissolução do casamento passou a depender, unicamente, da válida manifestação da vontade de um dos cônjuges de não mais permanecer casado, sem ter que cumprir qualquer requisito temporal e, principalmente, sem se vincular à vontade da contraparte7".
O CNJ, por seu turno, já se posicionou acerca da vedação a regulamentações estaduais que pretendam autorizar averbação de divórcio por declaração unilateral, conforme a recomendação CNJ 36/198, que impede tribunais de criar procedimentos internos para divórcio unilateral em cartório sem previsão legal específica.
Vale-se dizer que, sobre o devido tema, no campo legislativo, tramita no Congresso Nacional proposta de inserção expressa do divórcio unilateral extrajudicial no Código Civil: o PL 3.457/199, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, que prevê a possibilidade de um dos cônjuges requerer a averbação de divórcio diretamente no cartório de registro civil, ainda que o outro não concorde com a separação. O texto disciplina a notificação pessoal ou por edital ao outro cônjuge, com possibilidade de impugnação dentro de prazo legal, sob pena de ser lavrada a escritura de divórcio unilateralmente, encerrando-se formalmente o vínculo civil.
Em paralelo, o anteprojeto10 para o novo Código Civil prevê, em seu 1.582-A11, a possibilidade de requerer, unilateralmente, o divórcio ou a dissolução da união estável diretamente no cartório de Registro Civil. O projeto, ora se inspira na premissa de que o Estado deve oferecer meios desburocratizados para que o exercício do direito de dissolver o casamento não seja obstado por morosidade ou recusa infundada de um dos cônjuges. A proposta delimita, contudo, que o pedido de averbação unilateral seja instruído com documentos que comprovem a ciência do outro cônjuge: notificação pessoal ou editalícia.
Essa via extrajudicial do divórcio unilateral assume particular importância sob a ótica de gênero: a morosidade natural do processo judicial e a dependência de anuência do outro cônjuge representam, para muitas mulheres, obstáculos que prolongam situações de violência doméstica, coação moral ou abandono de fato. Ao garantir a possibilidade de romper o vínculo formal de modo célere, o Divórcio Unilateral Extrajudicial confere dignidade e autonomia à mulher que já não convive, de fato, em comunhão com o cônjuge. A desburocratização, ao reduzir custos e evitar litígios prolongados, facilita medidas práticas subsequentes: alteração de documentos, reorganização patrimonial e planejamento de vida independente.
Esse mecanismo jurídico não impede que outras questões, como partilha de bens, guarda de filhos e alimentos, sejam tratadas em instrumentos próprios, conforme a natureza consensual ou litigiosa de cada caso. Nessas situações, o cônjuge pode contar com orientação profissional para garantir seus demais direitos, o que reforça a importância de se ampliar o acesso à informação e aos serviços jurídicos, sobretudo em contextos de maior vulnerabilidade social. A efetividade dessa modalidade, portanto, está intrinsecamente ligada à valorização da autonomia e à democratização dos meios de acesso à Justiça.
No nível das serventias extrajudiciais, a introdução do divórcio unilateral exige preparo e sensibilidade dos oficiais e equipe de cartório; é essencial que o ambiente seja acolhedor e garantidor de segurança para a parte requerente. A formalização da vontade unilateral implica formalidades específicas: notificação pessoal ou editalícia, manifestação ou ausência de manifestação do outro cônjuge no prazo estipulado, e declaração de inexistência de impedimentos para a lavratura de ato extrajudicial. Além disso, a atividade extrajudicial deve estar preparada para orientar sobre a necessidade de providências subsequentes; por exemplo, sobre onde e como ajuizar ações de alimentos ou ajustar visitas e guarda, se for o caso. A atuação integrada entre registradores, Defensoria Pública e órgãos de atendimento é essencial para garantir apoio multidisciplinar.
Sob a ótica doutrinária, diversos autores sinalizam a relevância do divórcio unilateral extrajudicial para reforçar o princípio da autonomia privada e a dignidade da pessoa humana. Maria Berenice Dias, em seu Manual de Direito das Famílias12, enfatiza que a simplificação de atos que não envolvem litígio material imediato pode descongestionar o Judiciário e, ao mesmo tempo, conferir liberdade individual, sobretudo quando há manifesta vontade de uma das partes em não permanecer vinculada ao outro. Importa ressaltar que embora o modelo extrajudicial de divórcio unilateral possa evitar litígios desnecessários, não pode ser visto como meio de elidir a proteção aos dependentes ou ao cônjuge em situação de fragilidade econômica.
Para o público feminino, em específico, o impacto potencial é grandioso: facilita o rompimento de matrimônios em que a mulher se encontra em situação de violência doméstica, abandono afetivo ou econômico; reduz o custo emocional de prolongar relações desgastadas; e retira do ex-cônjuge resistente o poder de manter o vínculo formal. Por outro lado, ressalta-se a importância de medidas complementares: acesso gratuito a advogado ou defensor público, apoio psicossocial, e orientação para que a mulher não apenas encerre o estado civil, mas também obtenha, se necessário, pensão alimentícia e arranjos de guarda que assegurem a proteção dos filhos. Políticas públicas devem ser orientadas para garantir que a mulher que se divorcia unilateralmente tenha suporte para reorganizar sua vida patrimonial e familiar, evitando que a liberdade formal resulte em vulnerabilidade material.
Com isso, o divórcio unilateral extrajudicial configura um avanço civilizatório ao privilegiar a liberdade individual e a dignidade, de pessoas que vivem em situação de dependência ou violência. A formalização célere do fim do vínculo conjugal não esgota as demandas patrimoniais e familiares, mas representa primeiro passo essencial para que a mulher retome o controle de sua vida. A conjunção de previsões legais (como no PL 3.457/19 e no anteprojeto do Código Civil, art. 1.582-A), decisões judiciais que reforcem a natureza potestativa do divórcio e atuação acolhedora dos cartórios, embora ainda careçam de uma regulamentação clara e objetiva, podem e devem ser aprimoradas, juntamente com políticas públicas de assistência jurídica e social, delineia caminho para que o divórcio deixe de ser, aos vulneráveis, obstáculo intransponível, transformando-se em mecanismo efetivo de liberdade e proteção.
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1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
2 JABLONSKI, B. Até que a vida nos separe: a crise no casamento contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1998
3 Cerveny, C. M. O. (2002). Pensando a família sistemicamente. In C. M. O. Cerveny & C. M. E. Berthoud (Eds.), Visitando a família ao longo do ciclo vital (pp. 15-28). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
5 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Juiz decreta divórcio em decisão liminar sem manifestação do outro cônjuge. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
6 Superior Tribunal de Justiça. Morte de cônjuge durante o processo não impede decretação do divórcio se houve concordância em vida. Secretaria de Comunicação Social, 04 jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
7 Disponível aqui.
8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação CNJ n.º 36, de 30 de maio de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
10 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas para a Revisão e Atualização do Código Civil. Emenda nº 52 ao Anteprojeto do Novo Código Civil - Art. 1.582-A. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
11 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas para a Revisão e Atualização do Código Civil. Emenda nº 9, de 2023 - CJDCODCIVIL. Redação proposta ao Art. 1.582-A do Texto Final do Anteprojeto. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25.
12 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025. Pág 601 e seguintes.