A seletividade do sistema penal brasileiro não é novidade. Jovens, pretos e pobres sempre foram desproporcionalmente visados pela persecução penal e formam a esmagadora maioria da população carcerária. Essa distorção revela um padrão estrutural que transforma desigualdades sociais em critérios implícitos de criminalização.
Quando o réu é mulher, a seletividade opera com uma camada adicional. A criminalização feminina carrega consigo o julgamento de papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao gênero. A mulher que chega ao banco dos réus é, frequentemente, também acusada por não ter sido a mãe protetora, a esposa devotada, a cuidadora atenta. Seu processo penal carrega o peso simbólico da "falha moral", da "violação de expectativas sociais", e não apenas a análise jurídica da tipicidade, ilicitude e culpabilidade do fato.
Assim, a seletividade penal que atinge as mulheres é qualitativa: mais do que punir o ato, visa corrigir a mulher, reeducá-la e enquadrá-la em normas de comportamento que reproduzem a lógica patriarcal. Compreender a atuação do sistema de justiça em relação às mulheres requer mais do que contabilizar números - exige a análise interseccional que leve em conta como gênero, raça e classe moldam a resposta punitiva do Estado.
Entre as imputações mais recorrentes contra mulheres, destacam-se os casos de aborto, omissão materna, tráfico de pequenas quantidades de drogas e legítima defesa em contexto de violência doméstica. Em todos esses exemplos, a resposta penal ignora contextos de violência, coação, pobreza e desigualdade, revelando que a pretensa neutralidade do Direito Penal funciona, na prática, como uma engrenagem de reprodução de exclusões sociais e de gênero.
No caso do aborto, embora estimativas apontem mais de 500 mil procedimentos clandestinos anuais no Brasil, a persecução penal recai quase exclusivamente sobre mulheres pobres, pretas e atendidas pelo SUS. Estudo da UFPR analisou 43 decisões judiciais e verificou que em 37,2% dos casos a denúncia partiu de profissionais de saúde da rede pública, em violação ao dever legal de sigilo (art. 154, CP) e à proteção constitucional da intimidade (art. 5º, X, CF). Apesar dessas ilegalidades, são raras as decisões que reconhecem a nulidade do processo ou acolhem excludentes como o estado de necessidade (art. 24, CP) ou a inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, CP).
Outro estudo, realizado pela USP em parceria com a Columbia Law School, demonstrou empiricamente que a criminalização do aborto é seletiva e atravessada por discursos moralizantes. Juízes e promotores costumeiramente recorrem a expressões como "frieza", "torpeza" ou "desumanidade" para descrever o ato de aborto e qualificam a mulher como "prostituta" e "insensível", desqualificando-a não apenas como agente do fato típico, mas como mulher. A imputação penal converte-se em punição moral, sustentada em estereótipos de maternidade compulsória e papéis sociais idealizados.
Esse julgamento moral também se manifesta nas acusações por omissão em crimes praticados por terceiros contra seus filhos - muitas vezes por companheiros violentos. Impõe-se às mães um padrão de vigilância onipresente. Ao invés de reconhecer a coação física e moral que elas mesmas sofrem, a dependência emocional, a ausência de rede de apoio e os riscos reais de reação, o Judiciário ignora a exigibilidade de conduta diversa e aplica de forma inadequada a teoria do garantidor (art. 13, §2º, CP).
A omissão materna, longe de representar ato doloso, decorre de condicionamentos severos que comprometem substancialmente a autodeterminação da mulher. A responsabilização penal, por isso, não pode se basear em padrões abstratos de cuidado materno ou em expectativas idealizadas de vigilância.
Estudo empírico que analisou 130 acórdãos do TJ/SP revelou que o tratamento judicial conferido às mães difere substancialmente daquele aplicado aos pais. Das mulheres, espera-se presença constante, dedicação afetiva e superação das barreiras estruturais. Dos homens, pouco ou nada se exige. Enquanto a omissão paterna é naturalizada - tratada como desinteresse, ou simples ausência -, a omissão materna, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, é qualificada como falha grave, moralmente censurável e juridicamente relevante. O resultado é a assimetria estrutural no parâmetro de exigibilidade: a mesma conduta - como a ausência no cuidado direto e dedicado dos filhos - gera consequências distintas. Para as mães, pode levar à responsabilização penal e à perda do poder familiar; para os pais, raramente sequer entra em debate. Em síntese, a mulher é responsabilizada por cada falha e o homem perdoado por toda ausência.
Quando o processo penal se volta às mulheres acusadas de tráfico, a seletividade ganha contornos ainda mais evidentes. Segundo o Infopen Mulheres (DEPEN, 2018), 62% das mulheres privadas de liberdade estão encarceradas por esse tipo penal. A maioria exerce funções coadjuvantes - especialmente como "mulas" - e vive em contextos marcados por precariedade social, dependência emocional e exclusão econômica. Levantamento da Defensoria Pública do Tocantins apontou que 77% ingressaram no crime por influência de companheiros. Ainda assim, o sistema tende a tratá-las como plenamente autônomas, ignorando os condicionamentos que atravessam suas trajetórias.
A resolução 492/23 do CNJ, de aplicação obrigatória, impõe justamente o abandono dessa neutralidade aparente. Seu protocolo para julgamento com perspectiva de gênero orienta os magistrados a reconhecer o papel subalterno que muitas dessas mulheres ocupam no tráfico, frequentemente vinculado a relações de afeto, coação ou dependência. Essa posição estruturalmente desfavorecida - decorrente de fatores socioeconômicos e relacionais - deve ser considerada elemento central na análise da culpabilidade.
É nesse cenário que se insere a noção de culpabilidade por vulnerabilidade, proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni. Em ruptura com a dogmática penal tradicional, a teoria desloca o juízo de culpabilidade para uma análise que considera a seletividade penal e os marcadores sociais de subordinação. Ao propor a integração da vulnerabilidade social, não se elimina a responsabilidade penal, mas se exige sua modulação à luz do esforço real da agente para resistir à criminalização.
Por fim, nos casos em que mulheres reagem após anos de violência doméstica, o sistema penal brasileiro tem se mostrado refratário ao reconhecimento da legítima defesa (art. 25, CP). A jurisprudência desconsidera o contexto de opressão contínua, aplicando de forma rígida os parâmetros clássicos de atualidade e proporcionalidade. Ignoram-se os ciclos de violência e a escalada psicológica presentes nas relações abusivas.
A doutrina penal tradicional parte de uma lógica binária do conflito. No entanto, na violência doméstica crônica, em que a mulher vive sob constante ameaça, a percepção de risco não pode ser avaliada por moldes clássicos. Por isso, necessária a ampliação do conceito de legítima defesa para abarcar tais contextos, reconhecendo a reação como resposta ao histórico de abusos reiterados.
Vale lembrar que a Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo decreto 1.973/1996, impõe aos Estados o dever de adotar medidas de proteção às mulheres. A jurisprudência interamericana, como no caso Maria da Penha v. Brasil, reforça a responsabilidade internacional por falhas na prevenção e punição da violência doméstica.
O sistema de justiça não é neutro. Penaliza não apenas condutas, mas condições sociais. No caso das mulheres, a punição opera com base em expectativas de gênero e na invisibilização da exclusão. No aborto, pune-se a autonomia; na omissão, pune-se a impotência; no tráfico, pune-se a pobreza e a submissão. Urge, portanto, repensar as respostas penais. É imprescindível fortalecer as Defensorias Públicas, capacitar magistrados e membros do Ministério Público para atuação com perspectiva de gênero e aplicar os princípios da insignificância, da justiça restaurativa e da culpabilidade por vulnerabilidade. O banco dos réus não pode seguir sendo o palco onde o Estado perpetua as violências que deveria combater.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará.
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PLASTINO, Luisa Mozetic. Mães inaptas, pais incapazes: prisão e pobreza nas narrativas do Tribunal de Justiça de São Paulo para destituir o poder familiar. São Paulo: FGV Direito SP, 2022. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
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