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UMA Migalhas

Os mais variados ramos e temas do Direito, sempre escritos por mulheres.

Clarissa Höfling, Claudia Bernasconi e Danyelle Galvão
Amplamente utilizada em diversos países, a investigação defensiva foi regulamentada no Brasil pela Ordem dos Advogados do Brasil em 2018. O provimento 188 do Conselho Federal da OAB estabelece esta técnica como uma prerrogativa profissional do advogado e a define como "o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, (...) visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte"1. Mesmo sendo relativamente recente na prática brasileira, o STJ já reconheceu a sua legitimidade como meio de constituição de acervo probatório, inclusive ressaltando a sua relação com "a cláusula constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV), no que esta busca garantir a paridade de armas entre os interesses probatórios do órgão acusatório e da defesa técnica da parte ré, ambos almejando certificar a veracidade de suas versões"2.  A doutrina pátria, por sua vez, valida a aplicação da investigação defensiva não apenas para os investigados e acusados em geral, podendo também "ser realizada em favor de outros sujeitos processuais, a exemplo da vítima nas suas mais variadas posições (querelante e assistente de acusação)"3. Ainda assim, nota-se que o seu uso é limitado e muitas vezes encontra resistência, seja pelo pouco conhecimento que se tem do assunto, seja porque a investigação defensiva é comumente vista como um grande dispêndio para o cliente contratante. Nesse contexto, acaba sendo considerada como algo desnecessário dentro da estratégia de atuação traçada pelo advogado. No entanto, tal raciocínio não leva em consideração os efeitos benéficos da realização de uma investigação defensiva, que pode trazer inúmeras vantagens para a condução do caso, seja quanto à obtenção do resultado que se pretende com o trabalho do advogado, seja quanto ao tempo e aos gastos que serão empregados para essa finalidade. A investigação defensiva pode ter impacto positivo em investigações e processos voltados à apuração de quaisquer modalidades de crimes, mas é nas fraudes cometidas no âmbito empresarial que o seu potencial se mostra especialmente valioso. Esta ferramenta pode otimizar consideravelmente as apurações de fraudes e facilitar em muito a identificação dos responsáveis e a tutela de direitos daqueles que forem lesados.  Fraudes corporativas, cometidas interna ou externamente, são delitos que, em geral, demoram a ser identificados e investigados por órgãos oficiais, principalmente quando envolvem grandes corporações. Em estruturas empresariais complexas, que contam com mecanismos de controle descentralizados, a obtenção de evidências de práticas criminosas pode se mostrar muito difícil. Em muitos casos, quando a prática fraudulenta se torna conhecida pelas autoridades, os envolvidos e testemunhas já não estão mais ligados às empresas e já se desfizeram das possíveis provas dos atos que serão investigados. Além disso, para que os órgãos oficiais de investigação (Polícia e Ministério Público) possam acessar documentos pertencentes às empresas, principalmente os de caráter financeiro e fiscal, é necessária, em muitos casos, a obtenção de ordem judicial.  Diante deste cenário, uma investigação defensiva bem conduzida aumenta consideravelmente as chances de sucesso na obtenção e na preservação das provas necessárias para a correta apuração destes ilícitos, proporcionando, ao final, resultados mais eficientes. A realização da investigação possibilita: Levantar evidências que demonstrem a existência (ou não) de práticas fraudulentas; Obter elementos que indiquem quem são os envolvidos nas práticas identificadas; Estabelecer conexões entre os envolvidos e os benefícios obtidos ilicitamente; e Estimar a extensão dos prejuízos. Ao viabilizar a obtenção de todas estas evidências, uma investigação defensiva pode facilitar em muito que aquele que se encontra de alguma forma afetado pela fraude corporativa adote ações corretivas, principalmente aquelas que visam à responsabilização dos envolvidos perante as esferas administrativas eventualmente competentes e o Poder Judiciário, com a indenização dos prejuízos apurados.  Além disso, a investigação defensiva proporciona elementos para que sejam, igualmente, adotadas medidas preventivas, com o escopo de apresentar providências concretas e eficazes para corrigir eventuais falhas identificadas, prevenir a ocorrência de situações similares no futuro e fortalecer os controles internos. Note-se que a investigação defensiva pode ser realizada a qualquer tempo, ou seja, em qualquer fase da persecução penal ou mesmo em procedimento de outra natureza, em qualquer grau de jurisdição. Para tanto, compete ao advogado a realização das diligências investigatórias pertinentes para o esclarecimento dos fatos, "em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados"4, além da requisição de laudos e exames periciais, podendo, para tanto, valer-se de profissionais com expertise (detetives particulares, peritos etc.). Há de se registrar que, no exercício da prerrogativa que lhe garante o provimento 188/18, o advogado está limitado pela reserva de jurisdição5 e, ainda, pela voluntariedade no fornecimento de informações e documentos de fontes privadas.  Sem prejuízo desta ressalva, a própria empresa que se vê envolvida em um caso de fraude corporativa e opta por realizar uma investigação defensiva é uma fonte essencial de provas, podendo munir o advogado com inúmeras evidências (relatos, documentos, comunicações, registros etc.) que, se não corretamente obtidas e preservadas, dificilmente chegarão ao conhecimento de autoridades por meio de investigações oficiais. Como visto, as possibilidades de obtenção de acervo probatório lícito por meio da investigação defensiva são amplas e podem ser determinantes para o sucesso das apurações de fraudes corporativas. Incluir tais possibilidades na definição da estratégia do advogado contratado vai além de uma análise de custos, exigindo a consideração dos diversos benefícios que podem decorrer de sua utilização. Do contrário, "o barato pode sair caro", como ensina o ditado popular. _________________________ 1 Cf. art. 1º do Provimento 188/2018 da OAB. 2 STJ, MS n. 26.627/DF, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 9/3/2022, DJe de 27/4/2022. 3 SILVA, Franklyn Roger Alves. A investigação criminal direta pela defesa - instrumento de qualificação do debate probatório na relação processual penal. Disponível aqui. Acessado em 28/08/2025. 4 Cf. art. 1º do Provimento 188/2018 da OAB. 5 Cf. art. 4º do Provimento 188/2018 da OAB.
Nos últimos meses, temos acompanhado um (novo) aumento na divulgação de operações policiais que apuram casos de corrupção, crimes financeiros e outros desvios envolvendo empresas de diversos ramos de atuação, em conluio com agentes públicos1. O enfrentamento à corrupção, assunto que dominou o debate político no Brasil em anos recentes, permanece como um dos temas mais relevantes na política e economia nacionais. A esse respeito, a Transparência Internacional divulgou que o Brasil atingiu em 2024 sua pior colocação no Índice de Percepção da Corrupção desde o início da pesquisa em 20122, a reforçar que ainda temos muito a caminhar no enfrentamento a esse problema. Nesse contexto, o compliance se destaca como uma das soluções disponíveis ao poder público na estrutura de combate à corrupção, além de medidas repressivas. Programas de integridade, como são chamados desde a lei 12.846/13 (lei anticorrupção ou empresa limpa), são mecanismos que ajudam a empresa a conhecer e compreender seus riscos concretos de incorrer em violações de normas e regulamentos, estabelecer controles para preveni-los e mitigá-los, e fortalecer uma cultura ética na qual todos compreendam como devem agir3. A norma estabeleceu a responsabilidade objetiva das empresas que se envolvem em situações de corrupção, isto é, independente da comprovação de conhecimento ou intenção de seus dirigentes4. Muito além dos códigos e políticas internas, a lei determina que as empresas se responsabilizem ativamente pela difusão da integridade5, inclusive perante seus funcionários, gestores, consumidores, fornecedores e parceiros. Logo, não basta coletar assinaturas em um código que ninguém conhece ou manter um canal de denúncias que ninguém utiliza. É preciso um compromisso real e perceptível adequado ao setor, tamanho e momento da empresa. Em contrapartida, a organização que estrutura um bom programa de integridade recebe diversos benefícios, como incremento no valor da empresa, redução de volatilidades, auxílio na tomada de decisão, proteção de gestores e aumento da eficiência6. A existência de análise de risco e de mecanismos de controle apropriados reduz a possibilidade de prejuízos decorrentes de fraudes e desvios, além de danos trabalhistas e ambientais. Além disso, o fortalecimento de uma cultura ética baseada em valores claros, refletidos desde a alta administração, tem impacto direto na produtividade e na retenção de talentos, reduzindo o turnover7. Enfim, quando alguma ilegalidade de fato acontece, a empresa que demonstra possuir compliance efetivo pode ter redução substancial na multa (a qual pode chegar a até 20% do faturamento anual)8. Desse modo, os programas de compliance assumem um papel de auxiliar todo o campo empresarial e produtivo brasileiro a alcançar um patamar de maior maturidade corporativa, convidando todos os setores a ocuparem um lugar de maior responsabilidade socioeconômica, conforme as expectativas dos stakeholders. Mais do que uma imposição legal, os programas de integridade oferecem caminhos possíveis para aumentar a confiança entre particulares e, de fato, podem ser uma ferramenta potente na repactuação civilizatória democrática que a sociedade tanto almeja. Isso porque o compliance é baseado em metodologias de avaliação de riscos de integridade, auxiliando as empresas que realmente querem se comprometer com valores como transparência, integridade e sustentabilidade - ou seja, que já compreendem seu papel social diante de uma economia dinâmica, complexa e arriscada - a se aproximarem de outras com o mesmo compromisso e dedicação. Assim, quem apenas simula aderência à legalidade e à integridade para dissimular práticas ilegais terá cada vez menos espaço no mercado, já que o compliance demanda um olhar mais aprofundado sobre os processos internos e a cadeia produtiva. Desse modo, quando devidamente aplicados, os programas de integridade podem servir até mesmo para aumentar a segurança e confiança entre pessoas e empresas. Por seu grande potencial transformador, o conceito de integridade vem sendo ampliado e, atualmente, vai além do combate a corrupção, fraudes e irregularidades financeiras. Pelos parâmetros da Controladoria-Geral da União, integridade inclui também preocupações com questões de sustentabilidade e condições de trabalho, em sintonia com a agenda ESG9. Outros temas vêm recebendo cada vez mais destaque por seu potencial de riscos legais e reputacionais, como assédio moral e sexual, e discriminações por motivo de raça, gênero, orientação sexual e deficiência. Esses recortes impactam diretamente na saúde mental do trabalhador e nos riscos psicossociais, cuja avaliação será obrigatória para a partir de 202610. Importante destacar que esses temas não aparecem dentro da legislação e dos programas de integridade por conta de opiniões ou posições ideológicas. Trata-se de um movimento global que ressalta a responsabilidade das empresas sobre a sociedade na qual se inserem11, e destaca melhores práticas de governança baseadas em evidências, as quais demonstram que todos esses fatores mencionados atravessam, enfim, a produtividade e lucratividade das empresas. Um ambiente ético, saudável e íntegro atrai e retém talentos, interessa aos consumidores, fortalece parcerias comerciais e promove as empresas a um patamar de crescimento mais seguro e longevo. Portanto, os programas de integridade se tornaram um instrumento social para caminhar em direção à garantia de direitos humanos12. Evidentemente, as relações sociais permanecem tão conflituosas quanto sempre foram, e o cenário geopolítico global atual impõe desafios complexos e altamente dinâmicos. Enquanto sociedade, estaremos diante de questionamentos para os quais não temos respostas fáceis, e seremos cada vez mais cobrados para apresentar soluções criativas, inovadoras e efetivas. É justamente nesse contexto que recursos complexos e estruturados como os programas de integridade demonstram um potencial transformador que não deve ser ignorado. Além disso, os programas de integridade também têm se tornado importantes aliados para a otimização dos gastos públicos, uma vez que passaram a incorporar as soluções da nova lei de licitações (lei 14.133/22), que coloca esses programas como exigência no caso de contratações de grande vulto, como critério para desempate e para reabilitação. Aliás, o decreto 12.304/24, que regulamenta essa lei e define os critérios de avaliação dos programas, estabelece que um de seus objetivos é "mitigar os riscos sociais e ambientais decorrentes das atividades da organização, de modo a zelar pela proteção dos direitos humanos", reforçando o ponto anterior. No mesmo sentido, diversos estados e municípios já promulgaram suas normas locais estabelecendo a obrigatoriedade desses programas para hipóteses semelhantes ou até ampliadas em relação à lei federal. É o caso, por exemplo, de Rio de Janeiro, Distrito Federal e Porto Alegre, que possuem legislações importantes e avaliação rigorosa sobre os programas de integridade de empresas fornecedoras de bens e serviços13. Esses avanços sinalizam a tendência de que o compliance venha a ser utilizado como ferramenta de governança para construção de consensos sociais, efetivação de políticas públicas e avaliação de compromissos. Outro indício nesse sentido vem de discussões acerca do anteprojeto do CC, em que alguns autores14 defendem a atualização do significado da responsabilidade civil para alcançar também funções como preventiva e promocional15. Nesse contexto, práticas de governança e compliance com foco em direitos fundamentais poderiam funcionar como parâmetro para redução de indenizações, buscando formas mais eficazes de reparação de danos. É certo que a existência de programas de integridade, ainda que efetivos e robustos, não impedem por completo o risco de ocorrer um pagamento de propina, uma fraude, um conflito de interesse, ou um caso de assédio, más condições de trabalho ou destruição ambiental. Porém, quando esses fatos acontecem dentro de um sistema de gestão de riscos devidamente gerenciado, torna-se possível entender onde a falha aconteceu e rapidamente corrigi-la. Por isso, o compliance funciona a partir da lógica de melhoria contínua, por meio de ciclos de planejamento, ação, checagem e revisão constante. Enquanto sociedade, é importante conhecer e fazer uso dessas ferramentas como forma de proteger o erário público, reduzir desperdícios, identificar falhas e prevenir fraudes16. O árduo caminho para um país com relações sociais mais harmônicas, direcionado para o compromisso democrático de redução das desigualdades e defesa dos direitos fundamentais, que defenda a inovação e o desenvolvimento sustentável, pode ser beneficiar significativamente do olhar voltado para a gestão de riscos trazido pelos programas de integridade. _______ 1 Alguns casos recentes: Disponível aqui e aqui. 2 Relatório disponível aqui. 3 Art. 56 do Decreto 11.129/22, que regulamenta a Lei 12.486/13. 4 Brandt, Felipe e Rocha, Renata. Os elementos da responsabilidade objetiva prevista na lei anticorrupção. Revista da CGU, 2022. Disponível aqui. 5 Para um aprofundamento nos conceitos de integridade e ética no contexto da administração pública, ver: Bergue, Sandro. Integridade e ética: problematizando os conceitos no contexto da administração pública federal brasileira. Revista da CGU, 2024. Disponível aqui. 6 Webley, Simon e More, Elise. Does Business Ethics Pay? Ethics and Financial Performance. IBE, 2003. E artigos: Corporate Performance Is Closely Linked To Strong Ethical Commitment, disponível aqui, e; Are ethical companies more profitable? disponível aqui. 7 Delloite e Instituto Rede Brasil do Pacto Global. Integridade Corporativa no Brasil 2022 - Evolução do compliance e das boas práticas empresariais. Disponível aqui. 8 Para saber como a CGU tem realizado a dosimetria das multas em violações à Lei Anticorrupção, ver recente relatório disponível aqui. 9 "Portanto, um Programa de Integridade não se limita a medidas para evitar irregularidades ou meramente garantir a conformidade com a legislação vigente; ele pressupõe a adoção de ações positivas que promovam a ética, a boa governança, a preservação do meio ambiente e o respeito aos direitos humanos e sociais. O objetivo é contribuir para o desenvolvimento sustentável da empresa e da sociedade em que ela está inserida. Assim, um Programa de Integridade deve ser uma ferramenta que auxilia as empresas a prosperarem financeiramente enquanto promovem uma cultura de integridade que transforme o ambiente organizacional e suas relações com a sociedade." Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Lima, Renata et al. Compliance e os seus impactos à luz da responsabilidade social e governança corporativa. Revista Semestral de Direito Empresarial da UERJ. Disponível aqui. 12 Sobre o avanço da pauta de empresas e direitos humanos no Brasil, ver Além do compliance: a nova era dos direitos humanos nas empresas, disponível aqui, e; Direitos Humanos e responsabilidade empresarial: avanços no debate, disponível aqui. 13 Rainho, Renata. Compliance como instrumento de integridade e combate à corrupção nas contratações públicas:  uma análise do tema à luz da Lei n° 14.133/2021. Revista da CGU, 2023. Disponível aqui. 14 Disponível aqui. 15 Sobre atualização dos objetivos da responsabilidade civil, ver: BARROS, Paula. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. PUCSP, 2010. Disponível aqui. 16 Para saber mais sobre aplicação de metodologias práticas adaptáveis à realidade de cada empresa, ver a iniciativa Pacto Brasil pela Integridade Empresarial da CGU, disponível aqui.
A consolidação da sociedade da informação e o avanço das tecnologias de vigilância têm transformado profundamente os mecanismos de controle estatal e a lógica da persecução penal. Ferramentas baseadas em IA - inteligência artificial, como softwares de reconhecimento facial, cruzamento automatizado de dados e monitoramento de redes sociais, vêm sendo incorporadas por autoridades policiais e judiciais com o intuito de ampliar a eficácia das investigações criminais. No entanto, quando empregados sem limites legais e institucionais adequados, esses instrumentos tecnológicos representam uma ameaça concreta à privacidade, à proteção de dados pessoais e, em última instância, à própria democracia. O fenômeno da vigilância algorítmica insere-se na lógica do que Zuboff (2019) denominou como capitalismo de vigilância, sistema no qual dados pessoais são coletados, tratados e utilizados para mapear, prever e influenciar comportamentos. No âmbito penal, essa lógica intensifica a assimetria entre Estado e indivíduo, sobretudo quando as decisões passam a ser automatizadas, sem métodos transparentes e potencialmente enviesadas, como demonstrado no caso de utilização do software COMPAS, nos Estados Unidos, ferramenta que foi duramente criticada após estudos que indicavam que o algoritmo produzia uma taxa de falsos positivos muito maior para negros do que para brancos e apresentava erros nas avaliações de risco de reincidência criminal (ANGWIN et al., 2016). No Brasil, a ausência de um marco regulatório específico para o uso de tecnologias em investigações criminais evidencia um vácuo normativo que compromete garantias fundamentais. Embora a LGPD (lei 13.709/18) estabeleça princípios para o tratamento de dados, sua aplicabilidade à esfera penal ainda é objeto de debate, diante da inexistência de um regime jurídico próprio voltado à persecução criminal com base em provas digitais. A nova arquitetura do poder penal e o conceito de sociedade de vigilância A incorporação de tecnologias digitais ao cotidiano tem provocado transformações estruturais no exercício do poder estatal, em especial no campo penal. A capacidade de coletar, armazenar, cruzar e processar dados pessoais em larga escala, por meio de inteligência artificial, big data e algoritmos preditivos, que se refere ao uso de dados com o intuito de prever eventos futuros, usando técnicas de estatística, probabilidade e mineração de dados, configurou uma nova arquitetura do sistema de justiça criminal, mais orientada à prevenção estatística do que à responsabilização jurídica convencional. Esse modelo se ancora em uma lógica de antecipação do risco, na qual decisões passam a ser fundamentadas em padrões comportamentais inferidos por dados, substituindo critérios objetivos e jurídicos por métricas automatizadas. A consequência prática é a conformação de um processo penal cada vez mais vulnerável à vigilância algorítmica e ao controle digital, frequentemente à margem dos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da presunção de inocência. O conceito de sociedade de vigilância descreve um modelo social em que a coleta sistemática de dados sobre indivíduos torna-se central não apenas para fins comerciais, mas também para o exercício do poder institucional e estatal. Esse fenômeno ganhou força com o desenvolvimento das tecnologias digitais, que viabilizaram a obtenção, armazenamento e análise de grandes volumes de informações pessoais em tempo real, muitas vezes sem o conhecimento ou o consentimento dos sujeitos monitorados. LGPD e o Projeto de LGPD Penal: Limites e oportunidades para o Processo Penal Democrático Como mencionado, a promulgação da LGPD, pela lei 13.709/18, representou um avanço significativo na consolidação do direito à proteção de dados no Brasil, estabelecendo disposições normativas claras para o tratamento de dados pessoais por entes públicos e privados. Contudo, embora tenha consagrado importantes garantias e refletido uma evolução, a LGPD excluiu expressamente de seu âmbito de aplicação as atividades realizadas para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e investigação e repressão de infrações penais, conforme dispõe seu art. 4º, inciso III. Esta exclusão deixou desprovidas de regulamentação específica as operações de tratamento de dados realizadas no contexto da persecução penal, evidenciando uma preocupante lacuna normativa. Vários doutrinadores têm apontado que essa exclusão não pode ser interpretada como uma autorização irrestrita para práticas de vigilância e coleta de dados sem qualquer limitação ou controle. Ao contrário, mesmo na ausência de uma legislação infraconstitucional específica, permanecem aplicáveis os princípios constitucionais e internacionais de proteção à privacidade e à autodeterminação informacional. Como afirma a autora Jacqueline Abreu, "o recorte encontrado na LGPD não significa carta branca até que a lei específica seja aprovada: operações de tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública ainda podem ser objeto de questionamento" (ABREU, 2021, p. 555). Essa lacuna legislativa gera profunda insegurança jurídica, tanto para os titulares de dados quanto para os agentes públicos encarregados da segurança pública e da persecução penal. De um lado, os cidadãos ficam privados de garantias claras quanto ao tratamento de seus dados pessoais; de outro, os operadores do sistema penal carecem de balizas normativas para delimitar a extensão e os limites de sua atuação. Como adverte Vladimir Aras, "deveríamos ter uma legislação apropriada desde a entrada em vigor da LGPD, mas não foi isso o que ocorreu" (ARAS, 2020, p. 18). Tal lacuna também compromete a inserção do Brasil no cenário internacional de cooperação em matéria penal, sobretudo com países europeus que exigem, como condição para a transferência internacional de dados, um nível de proteção essencialmente equivalente ao estabelecido pelo GDPR - Regulamento Geral de Proteção de Dados e pela Diretiva (UE) 2016/680. Vigilância digital, justiça algorítmica e o devido processo legal: riscos de retrocesso democrático O avanço das tecnologias digitais, em especial com o surgimento da IA - inteligência artificial, e a utilização de sistemas automatizados de análise de dados, tem transformado profundamente as práticas de segurança pública, investigação criminal e justiça penal. O crescente uso de algoritmos e bancos massivos de dados para orientar decisões sobre quem investigar, quem processar e quem punir representa um fenômeno global que gera sérias preocupações quanto à preservação do devido processo legal e à proteção dos direitos fundamentais. Um dos casos mais emblemáticos do uso de sistemas algorítmicos na esfera penal é o do COMPAS - Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions, amplamente empregado em diversos estados norte-americanos como ferramenta de apoio à decisão judicial sobre concessão de liberdade provisória e dosimetria da pena. Baseado em um modelo preditivo que estima a probabilidade de reincidência criminal, o COMPAS tornou-se alvo de críticas severas após investigações jornalísticas e acadêmicas demonstrarem seu viés discriminatório, sobretudo contra pessoas negras e pobres. Conforme apontado por Jeff Larson, "réus negros que não reincidiram em um período de dois anos tinham quase o dobro de probabilidade de serem classificados erroneamente como de alto risco em comparação com seus colegas brancos (45% contra 23%)" (LARSON ET AL., 2016). Além disso, a enorme dificuldade ou completa impossibilidade de compreender como determinados algoritmos operam, fazem escolhas ou chegam a conclusões específicas, impede a plena auditabilidade dos critérios utilizados, violando o princípio da transparência e o direito à ampla defesa. No Brasil, o uso de tecnologias de reconhecimento facial pela segurança pública ilustra os riscos associados à implementação de sistemas algorítmicos sem regulamentação adequada. Casos de prisões injustas baseadas em erros de reconhecimento facial, como os amplamente divulgados na Bahia e no Rio de Janeiro, revelam a vulnerabilidade técnica dessas ferramentas e a fragilidade dos mecanismos de controle implantados. Como destaca Jacqueline Abreu, "o tratamento de dados para segurança pública não pode ocorrer de maneira desregrada, mesmo com a exclusão da LGPD, pois continua sujeito a princípios constitucionais e ao devido processo legal" (ABREU, 2021, p. 555). No entanto, a ausência de normas específicas para o uso de tais tecnologias na esfera penal favorece práticas de vigilância massiva e de monitoramento indiscriminado, com impactos desproporcionais sobre populações marginalizadas. Conclusão A análise realizada neste artigo evidenciou as profundas transformações provocadas pela incorporação das tecnologias digitais, da inteligência artificial e da vigilância algorítmica no âmbito da persecução penal. Embora tais ferramentas ampliem exponencialmente as capacidades estatais de investigação e prevenção de delitos, elas também representam riscos severos à proteção dos direitos fundamentais, à privacidade e, sobretudo, à integridade do devido processo legal. O percurso argumentativo partiu da identificação do fenômeno da sociedade da vigilância e da nova arquitetura do Estado na repressão de crimes, caracterizada pela coleta massiva e pelo tratamento automatizado de dados pessoais, muitas vezes sem o conhecimento ou o consentimento dos indivíduos. Essa lógica preditiva e estatística altera profundamente os contornos tradicionais do processo penal, deslocando-o de um modelo garantista, baseado na culpabilidade pessoal, para um paradigma tecnocrático e preventivo, no qual decisões passam a ser orientadas por inferências algorítmicas, frequentemente marcadas por vieses discriminatórios. Nesse cenário, ressaltou-se a centralidade da proteção de dados pessoais como elemento estruturante de um processo penal democrático. Ela não apenas limita abusos, mas também contém a expansão desmedida do poder punitivo digital. A análise da LGPD (lei 13.709/18) revelou que, embora tal marco legal represente um avanço significativo na consolidação do direito fundamental à autodeterminação informacional, a exclusão expressa das atividades de segurança pública e investigação criminal criou uma grave lacuna normativa, capaz de fragilizar a tutela dos direitos fundamentais e comprometer a segurança jurídica. _______ Referências Bibliográficas ABREU, Jaqueline. Tratamento de dados pessoais para segurança pública: contornos do regime jurídico pós-LGPD. In: DONEDA, Danilo; SARLET, Ingo Wolfgang; MENDES, Laura Schertel Ferreira; et al (Orgs.). Tratado de proteção de dados pessoais. 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A OAB, Seção do Paraná, Subseção de Londrina, criou o GAMA - Grupo de Apoio à Mulher Advogada, objetivando a troca de experiência, estudo e acolhimento às colegas acerca de temas inerentes à condição de mulher. O projeto, que foi idealizado em meados do ano anterior, tomou forma no início de 2025 e conta com dezenas de mulheres advogadas dispostas a dividir suas dores, histórias e conhecimento. Para a roda de conversa do mês de julho, as advogadas ora articulistas foram convidadas para tratar do tema da violência institucional de gênero, sob uma perspectiva histórica, estrutural e legal, bem como para apontar e discutir as tantas práticas de opressão a que somos submetidas diariamente. As bases da estrutura social brasileira foram historicamente erguidas sobre bases pilares patriarcais, nos quais a divisão sexual do trabalho e a subalternização das mulheres foram naturalizadas e legitimadas. Por meio da ideia de divisão sexual do trabalho, onde há definição das atividades consideradas próprias para cada gênero, também há hierarquização de suas figuras e, por consequência, a atribuição de maior valor ao trabalho masculino, produtivo ou simbólico. Não é por acaso que, via de regra, a cúpula do Poder Judiciário, da segurança pública e da política permanecem majoritariamente ocupadas por homens. Como consequência da ausência de representatividade feminina, revela-se não apenas a exclusão sistemática de suas vozes, mas também compromete a formulação de políticas públicas adequadas e sensíveis às desigualdades de gênero, assim como perpetua cada vez mais essa ordem excludente e violenta. Quando falamos em mulheres negras, periféricas ou pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+, a situação é ainda mais tortuosa, pois marcada por marginalização e apagamento. A regra é clara: às mulheres, cuidado, silêncio, obediência e subserviência; aos homens, espaços de poder e decisão. O simbolismo destes papéis não se limita ao ambiente doméstico ou privado, mas são reproduzidos e consolidados no âmbito das instituições estatais, fazendo com que o próprio aparato público se torne também um agente que reproduz violência. Um exemplo claro é apontado pela saudosa advogada criminalista Alexandra Szafir em seu livro "Descasos", a seguir, alguns trechos: Rosalina Ela era negra. Tinha dois filhos adolescentes. Morava na favela da Rodovia dos Imigrantes. O marido era alcoólatra e ela sustentava os filhos trabalhando como faxineira. A vida conjugal era um sem-fim de agressões físicas e morais. O marido lhe passara o vírus HIV. Não se separavam porque a casa de dois cômodos era tudo o que possuíam: nem ela nem ele tinham para onde ir. Certo dia, quando ele estava prestes a agredi-la novamente, Rosalina o matou. O advogado, além de juntar procuração, literalmente não fez mais nada no processo [...]. Fui nomeada às vésperas da data designada para o júri, após ela ter passado todo o processo indefesa. Eu tinha algumas opções: falar que Rosalina agira em legítima defesa ou que não tivera a intenção de matá-lo. As duas coisas eram verdadeiras, mas precisavam ser demonstradas para os jurados, o que, na prática, significava que os filhos do casal teriam de testemunhar. Poderia ainda adotar a tese do Ministério Público, que não concordava com a legítima defesa, mas propunha uma condenação com pena mais baixa: quatro anos em regime aberto [...]. Coloquei as alternativas que tínhamos e ela optou pela última [...]. Tudo resolvido, parecia que nos encaminhávamos para um julgamento tranquilo; afinal, acusação e defesa pediram a mesma coisa. Mas não foi bem assim. O promotor fez questão de fazer um verdadeiro ataque, demonstrando do por que, na sua opinião, o crime era mesmo homicídio qualificado, com pena mínima de doze anos, e não simples. Pintou-a como um monstro e finalizou dizendo que ele "tinha a coragem" de pedir uma condenação por crime menos grave porque Rosalina era portadora do vírus HIV. Eu imaginava que o motivo pelo qual o promotor expusera pública e desnecessariamente seu estado de saúde, revelando que Rosalina tinha uma doença estigmatizante, tivesse sido o de despertar a compaixão dos jurados. Mas subestimei a insensibilidade alheia. Na verdade, disse ele, pedia a pena mais branda porque "uma aidética morrendo na cadeia seria um desperdício; custaria muito caro aos cofres públicos e a nós, contribuintes". [...]. A ré estava ao meu lado. Olhei para ela e a vi de perfil, a cabeça baixa e as lágrimas de vergonha e tristeza caindo no seu colo, enquanto o promotor lhe apontava o dedo acusador diante de todos, inclusive de seus filhos. Pedi para retirá-la da sala, o que foi prontamente autorizado pelo juiz. [...]. Alguns dias depois, sem querer, Rosalina acabou dando uma descrição tão simples quanto exata do que tinha acontecido. Fomos ao Cartório do Tribunal do Júri cumprir algumas formalidades. Trabalhando lá, por pura causalidade, estava uma amiga dela com quem perdera o contato alguns anos antes. [...] a amiga lhe perguntou o que fazia ali. Ela respondeu o seguinte: - lembra do meu marido, como a gente vivia brigando, se matando? Então, estou aqui porque quem morreu foi ele. Brilhante, em sua simplicidade, definição de legítima defesa.1 Quantas Rosalinas existem por aí - mulheres que, antes vítimas, acabam se tornando rés; que, ao buscarem amparo, são novamente violentadas, agora pelo próprio sistema que deveria protegê-las. São vidas marcadas por múltiplas camadas de silenciamento e exclusão, revitimizadas por discursos oficiais e condutas institucionais. É neste contexto que devemos discutir o crime de violência institucional, inserido pela lei 14.321/22 no art. 15-A da lei de abuso de autoridade2, como resposta à necessidade de nomear esse fenômeno e enfrentá-lo com seriedade. Reconhecer que há decisões do Poder Judiciário pautadas em estereótipos, há discriminação por parte de servidores públicos, além do descrédito vivenciado por vítimas de crimes em repartições estatais. O dispositivo foi criado reconhecendo que o próprio Estado pode ser violento e que a responsabilização dos agentes públicos é primordial, de modo que qualquer autoridade pública pode ser sujeito ativo do crime3. Quando antes a violência era vista como algo praticado exclusivamente no âmbito privado, agora as instituições públicas também passam a ser objeto de análise crítica e de responsabilização criminal, seja quando a violência institucional é praticada contra a vítima ou testemunha de crimes violentos. Embora, como apontam Fernanda Moretzsohn e Patrícia Burin4, para que o agente responda pelo crime, é necessário que atue com a finalidade específica prevista no art. 1º, §1º, da lei de abuso de autoridade5 - qual seja, com o intuito de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal -, o que torna a caracterização do tipo penal mais difícil. Soma-se a isso a exigência do elemento normativo do tipo, no sentido de que a conduta do agente deve ser desnecessária, o que impõe obstáculos adicionais à responsabilização. Ademais, ao utilizar os termos "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos", constata-se que o legislador exige que as condutas sejam reiteradas6. Como pontua Vladimir Aras, devem ser evitadas perguntas vexatórias, discriminatórias, preconceituosas, humilhantes ou com finalidade puramente ofensiva, assim como o emprego de estereótipos7. É preciso, então, lutar para que o alerta levantado por Izabella Borges e Tamara Brockhausen - de que "ao vencer a barreira da fala, a mulher se depara com uma estrutura pública fria, que reproduz dupla vitimização pela repetição da violência em nível ainda mais profundo, invertendo a lógica entre vítima e algoz" - não mais se perpetue8. Ocorre que, ao fazer uma rápida busca de julgados no site do STJ, não foi possível identificar casos concretos em que o dispositivo tenha sido aplicado9. Daí a importância de se discutir o tema, para que não se trate apenas de mais uma medida meramente formal, sem efetividade prática. Nomear as violências, reconhecendo sua existência inclusive no interior das instituições estatais, é passo essencial para romper com a naturalização da opressão. Não surpreende, portanto, que existam tantos movimentos de reação e tentativa de destruição dos poucos avanços que tivemos nessa construção crítica. A despeito disso, não podemos deixar de mencionar o PL proposto pela deputada federal Bia Kicis (PL 10/23), que visa sustar os efeitos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, demonstrando que há grande resistência, inclusive política, à incorporação de uma visão de justiça que seja comprometida com a equidade. Além disso, como se não bastassem as violências institucionais públicas e privadas, não podemos esquecer que há tentativas de silenciamento e desqualificação também por parte de outras mulheres, o que revela o quanto a estrutura aqui denunciada é internalizada e reproduzida por quem mais deveria combatê-la. Como nos alerta bell hooks, "enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo"10. O verdadeiro compromisso com a equidade exige coragem não apenas para apontar o dedo às instituições, mas também para olhar criticamente para dentro dos próprios espaços de poder, inclusive os representativos, admitindo nossos equívocos e traçando estratégias para miná-los. E é exatamente isso que buscamos - a curtos passos, mas sem parar - modificar. _______ Referências ARAS, Vladimir. Proteção de vítimas e violência institucional. Consultor Jurídico, 02 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. BORGES, Izabella; BROCKHAUSEN, Tamara. Violência institucional contra a mulher: uma abordagem psicojurídica. Consultor Jurídico, 2 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Questão de gênero: primeiras impressões sobre o crime de violência institucional. Consultor Jurídico, 08 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com os direitos dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010. 1 SZAFIR, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com os direitos dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 15-17. 2 Violência Institucional Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). § 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro. 3 Art. 2º. É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: [...]. 4 MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Questão de gênero: primeiras impressões sobre o crime de violência institucional. Consultor Jurídico, 08 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. 5 Art. 1º. Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. § 1º. As condutas descritas nesta lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. 6 O dispositivo ainda prevê que, se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima, gerando sua revitimização, a pena será aumentada em dois terços; e, se for o próprio agente quem intimidar a vítima, acarretando a revitimização, a pena será aplicada em dobro. 7 ARAS, Vladimir. Proteção de vítimas e violência institucional. Consultor Jurídico, 02 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. 8 BORGES, Izabella; BROCKHAUSEN, Tamara. Violência institucional contra a mulher: uma abordagem psicojurídica. Consultor Jurídico, 2 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025. 9 Critérios de busca no STJ: "crime e violência e institucional"; "violência e institucional"; "art. 15-A e abuso e autoridade"; 10 O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
A democracia constitucional é marcada por um paradoxo fundamental: ao mesmo tempo em que reconhece a soberania popular como base do regime democrático, impõe-lhe limites contramajoritários por meio de uma Constituição rígida. Essa contenção da vontade da maioria, sobretudo quando exercida pelas Cortes de forma impopular, pode gerar descompasso com o sentimento social dominante e, em contextos críticos, resultar em reações adversas - o chamado efeito backlash. O conceito de backlash designa a reação social e política deflagrada por decisões judiciais que colidem com convicções profundamente arraigadas - ainda que, não raramente, tais convicções sejam marcadas por traços extemporâneos. À luz desse referencial teórico, a legitimidade das decisões jurisdicionais transcende a mera aderência ao texto constitucional, exigindo, ademais, a aptidão para dialogar com a cultura política vigente e com os valores em disputa no tecido social. Sentenças que desconsideram esse universo simbólico arriscam-se não apenas à rejeição popular, mas à erosão da autoridade judicial e à própria ineficácia normativa da Constituição. Vivenciamos, no presente, o clímax dessa tensão estruturante, iniciada com as eleições brasileiras de 2022, que em meio a uma grave crise de confiança nas instituições, materializaram esse fenômeno. A atuação das Cortes Superiores durante o processo eleitoral de 22 foi marcada por forte protagonismo. A multiplicação das fakenews, os ataques sistemáticos ao sistema eleitoral e a retórica golpista adotada por lideranças políticas exigiram respostas firmes do TSE e do STF. Medidas como a suspensão de conteúdos considerados desinformativos, sanções por litigância de má-fé e bloqueio de perfis de empresários que incentivaram o golpe em grupos virtuais privados foram duramente criticadas por parte da população, que passou a rotular tais ações como censura e autoritarismo. Dentre as decisões impopulares, destacou-se aquela adjetivada pela ministra Carmen Lúcia como "excepcionalíssima", de prorrogação da estréia do vídeo "Quem mandou matar Jair Bolsonaro?", "documentário" da plataforma Brasil Paralelo, previsto para seis dias antes do segundo turno das eleições 20221. O canal do YouTube, desmonetizado no período eleitoral por propagar desinformação, enfrentou outros processos e investigações, dentre as quais, por propagar fakenews em face de Maria da Penha, utilizando-se do que parece ser um laudo falso para descredibilizar sua história e luta2. Além das diversas decisões de grande repercussão, o TSE editou e aprovou logo após, em 21 de outubro de 2022, uma polêmica resolução que permitia à Corte Superior agir de ofício em casos idênticos que já tenham sido enfrentados anteriormente. A resolução, que visava coibir a nova reprodução de conteúdos já considerados falaciosos e prejudiciais pelo TSE (nos moldes "copia, cola e posta"), facilitando o andamento processual na Corte, foi recebida como o ápice do autoritarismo por parte da população e até mesmo da mídia, que destacou como "alarmante" que um único homem (o ministro Alexandre de Moraes) regulasse o direito à liberdade de expressão durante as eleições brasileiras. Embora juridicamente defensável no contexto de proteção à integridade eleitoral e efetividade da Justiça Eleitoral, que se vê enxugando gelo diante da profusão de materiais deletérios diariamente despejados nas redes sociais, a medida foi retratada por setores da sociedade e da imprensa como concentração excessiva de poder nas mãos de um único ministro - ministro esse que segue protagonista dos maiores embates relacionais da atualidade. Esse ambiente alimentou a narrativa de que o Judiciário teria extrapolado suas funções, servindo de gatilho para uma série de reações que culminaram nos atos criminosos e antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Os acontecimentos subsequentes não apenas agravaram o quadro de crise - marcado, inclusive, por episódios de intervenção internacional -, como também intensificaram a expectativa em torno das eleições presidenciais de 2026. É certo que a escalada do autoritarismo e da desinformação no Brasil não é um fenômeno isolado. Em diversas democracias consolidadas, o discurso antissistema tem ganhado fôlego, alimentado por redes digitais e teorias conspiratórias. O backlash contemporâneo não é apenas doméstico; ele dialoga com uma ecologia global de erosão democrática. O episódio brasileiro de 8 de janeiro encontra paralelos no Capitólio dos EUA e nos protestos violentos em países da União Europeia. Não se nega, assim, que o backlash judicial é parcela de um cenário bastante mais complexo. Não se pretende responsabilizar o backlash judicial por toda a reação social experimentada, um fenômeno multifacetado. Defende-se, no entanto, a urgência de refletir sobre os limites e possibilidades da jurisdição constitucional em tempos de crise. Se três anos atrás o cenário já se mostrava desafiador, com a evolução da tecnologia de deepfakes e o aprofundamento da desconfiança popular frente ao judiciário, as eleições vindouras representam uma provação de magnitude inédita: enquanto não se nega a necessidade de manutenção de uma postura ativa por parte do judiciário no combate aos atos antidemocráticos e ataques jurisdicionais, o tom e timing das decisões pode ditar a magnitude do backlash a ser enfrentado. Emerge a necessidade de compreender tais respostas sociais não como meras rupturas a serem lamentadas, mas como parte do processo de disputa pelo significado constitucional. O constitucionalismo democrático enxerga o backlash como expressão da pluralidade política e oportunidade de refinamento da jurisprudência e do próprio pacto democrático. Essa compreensão, no entanto, exige maturidade institucional e disposição para o debate público fundamentado. É preciso enxergar o backlash como parte do resultado do controle constitucional e buscar as ferramentas que permitirão uma atuação estratégica. Teorias como a da democracia militante (Loewenstein) e da democracia defensiva (Fernandes) oferecem molduras normativas para legitimar a atuação excepcional das instituições diante de ameaças existenciais ao regime democrático, e vem sendo utilizadas com recorrência pelos Tribunais Superiores. A primeira, nascida da reação ao nazismo, autoriza o uso de medidas excepcionais para barrar atores que pretendem instrumentalizar a democracia para destruí-la por dentro. A segunda, de inspiração mais recente, exige demonstração concreta do risco à ordem democrática. Ambas têm sido invocadas para compreender a atuação do TSE e STF diante dos discursos golpistas, mas também suscitam preocupações legítimas sobre os riscos de uma jurisprudência excepcional ser naturalizada em tempos de normalidade. Desaconselha-se, no entanto, a aplicação das molduras teóricas como exonerativas de suas consequências, em adoção acrítica. Ainda que não se busque, neste pequeno texto, questionar a legitimidade filosófica das decisões que nos trouxeram até aqui - em sua maioria fundamentais à preservação democrática, na leitura desta autora -, defende-se a necessidade de se reconhecer a responsabilidade sobre o mal cálculo de efeitos adversos de futuras decisões, refletindo com seriedade os potenciais impactos nas eleições vindouras. É nesse ponto que a análise proposta por Post e Siegel, enriquecida pela matriz de William Eskridge, se mostra especialmente relevante: em sociedades pluralistas, recomenda-se que as Cortes avaliem, caso a caso, se a emissão de determinadas decisões gerará backlash e se os efeitos desse refluxo social serão compatíveis com a preservação da ordem constitucional. Em alguns momentos, provocar o dissenso pode ser necessário para proteger direitos fundamentais e estruturas institucionais. Em outros, o silêncio estratégico - o "minimalismo judicial" de Cass Sunstein - pode ser o caminho mais prudente. Se for impossível o silêncio, recomenda-se ao menos o minimalismo estratégico. A recente decisão pela decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Bolsonaro parece ilustrar com precisão a reflexão que se pretende: ainda que evidente o descumprimento das medidas cautelares anteriormente impostas, o decreto de ofício e o tom belicoso da decisão - por vezes, até jocoso -, prolatada por ministro cuja atuação tornou-se alvo central do backlash social, funcionam como desnecessário combustível à retórica de fragilidade instrumentalizada e autocomplacente do ex-presidente. Para além disso, alimentam desnecessariamente a retórica de autoritarismo judicial, utilizada por aqueles de mal caráter para justificar um amplo pacote de maldades, como a tentativa de ingerência internacional sobre nosso país soberano. É preciso diferenciar a utilização de medidas excepcionais em prol da manutenção das próprias estruturas democráticas das decisões que atravessadas por efusão emocional contida, embora redigidas com acerto técnico. Que sejam pensados desde já os potenciais backlashes que serão sofridos a partir das decisões judiciais tomadas no atual contexto de tensão. O Brasil sobreviveu - por ora - ao maior teste democrático desde a redemocratização: uma inegável tentativa de golpe com apoio interno de membros das instituições. O desafio que se impõe agora é saber como institucionalizar as lições extraídas sem comprometer os pilares da democracia. As Cortes, ao se protegerem, devem proteger também os princípios que as legitimam. O backlash, se inevitável, deve ser contingenciado e compreendido não como fracasso, mas como uma chance de reaproximação estratégica entre direito, sociedade e Constituição. _______ Referências bibliográficas BUNCHAFT, Maria Eugenia. Constitucionalismo democrático versus minimalismo judicial. Direito, Estado e Sociedade, nº 8, p. 154-180, jan./jun. 2011. CHUEIRI, V. K.; GODOY, M. G. Constitucionalismo e democracia: soberania e poder constituinte. 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Julgamento em 30 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 6 ago. 2025. 2 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Ação Civil Pública: ACP PNDD/PGU n. ACPmariadapenha (AGU c. Brasil Paralelo). Ação ajuizada pela AGU em 28 mar. 2025 contra o portal Brasil Paralelo por disseminação de desinformação sobre o caso Maria da Penha, requerendo indenização de R$?500?000 e divulgação de conteúdo educativo. Disponível aqui. Acesso em: 6 ago. 2025.
O feminicídio, entendido como o homicídio de mulheres em razão de sua condição de gênero ou em decorrência de violência doméstica ou familiar, reflete o extremo da violência estrutural e sistêmica contra a mulher. Apesar de previsto como tipo penal no ordenamento jurídico brasileiro desde a lei 13.104/15 - em que era uma forma qualificada do crime de homicídio -, o Brasil segue entre os países com maiores índices de feminicídios do mundo. A persistência desse fenômeno motivou novas reformas legislativas, como a lei 14.550/23, que além de criar um tipo penal autônomo (art. 121-A do Código Penal), buscou dar tratamento mais severo, com um sancionamento mais alto de 20 a 40 anos de reclusão, além de outras causas de aumento e agravantes e reflexos diretos na execução penal. Além de majorar a pena do crime de descumprimento de medida protetiva (art. 24-A, da lei 11.340/2006). Apesar dos 10 anos da primeira previsão legal quanto ao crime de feminicídio e de quase 19 anos da lei Maria da Penha, de acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025, quatro mulheres são mortas, por dia no Brasil. E vejam, não estamos aqui contabilizando os casos de feminicídios tentados - em que o agressor não alcança seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade e nem os casos em que é dada pelas autoridades policiais e judiciárias uma classificação diversa em que se afasta o animus necandi. De acordo com o Mapa de Segurança Pública - que traz dados compilados no ano de 2024 -, ocorreram 1.459 vítimas em 2024, contra 1.449 em 2023, ou seja, um crescimento de 0,69%. De forma mais clara, para que os leitores consigam entender a gravidade do problema dessa forma de violência contra as mulheres, a cada 100 mil mulheres, 1,34 caso de feminicídio foi registrado. E os números vêm crescendo desde 2020, quando foram 1.355 vítimas. O relatório mais recente da ONU - Organização das Nações Unidas afirma que o feminicídio continua sendo uma verdadeira e silenciosa pandemia, dados de 2023 mostram que uma média de 140 mulheres e meninas são mortas todos os dias, em todo o mundo, por seus parentes próximos ou parceiros, o que significa uma de nós é morta a cada 10 minutos. Sim, nós. Nós porque a violência contra a mulher - seja ela em razão do gênero, mas especialmente aquela em decorrência da violência doméstica ou familiar - é altamente "democrática". Não escolhe cor, raça, credo, classe social ou profissão. Falo isso, obviamente, sem deixar de ressaltar as interseccionalidades tão necessárias e que comprovam que as mulheres pretas são as maiores vítimas de tais violências. Todavia, qualquer uma de nós pode ser vítima de um dos tipos de violência que exemplificativamente são colocados no art. 7º da lei 11.340/2006, a lei Maria da Penha, podemos ser aquela esposa que é jogada pela janela do seu apartamento após uma briga que começa na garagem do prédio, podemos ser aquela que estava tomando sol na piscina e que levou 1,2,3,4,5,6... 61 socos. Todos conhecemos e ouvimos que o feminicídio é uma palavra relativamente nova para um fenômeno antigo: matar mulheres que não são vistas como seres humanos ou sujeitos de direitos, mas como objetos, pertences. Que esse crime decorre de causas sociais, históricas e culturais que impõem uma ideia de desigualdade entre homens e mulheres em decorrência de seu gênero. Tão importante quanto continuarmos falando sobre a violência contra a mulher, para que não seja esquecida, seja pela sociedade, seja por aqueles que ocupam espaços de poder, é essencial que lutemos por medidas realmente preventivas: desde a educação de crianças, adolescentes e adultos sobre a equidade de gênero até aplicação de medidas protetivas de urgência, real acolhimento das vítimas por agentes de polícia e do estado e efetiva celeridade aos processos que tratam de questões de gênero, em especial, reconhecer que a aplicação dos protocolos existentes, em especial o de julgamento sob perspectiva de gênero não é uma opção, mas uma necessidade para que nenhuma outra de nós, ou nossas filhas ou mães, receba 61 socos no rosto. __________ BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União, Brasília, 2006. BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Lei do Feminicídio. Diário Oficial da União, Brasília, 2015^. Disponível aqui. MELLO, A.R. Feminicidio. Uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Editora GZ, Rio de Janeiro, 3ª edição, 2020. ONU MULHERES; SPM; SENASP. Feminicídios: diretrizes nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília: ONU Mulheres, SPM e SENASP, 2016.
Que o Brasil é um país muito desigual, todo mundo já sabe. Mas talvez essa informação seja um tanto abstrata para que você entenda o que ela realmente significa na prática. Para ilustrar, inicio com a seguinte estatística: segundo dados da PNAD contínua1, no ano de 2024, o país conseguiu atingir a menor diferença de renda habitual entre os mais ricos e os mais pobres2. E em comparação com 2023, os 40% mais pobres da população conseguiram um ganho real de renda (descontada a inflação) mais de 6 vezes maior que os 10% mais ricos3. Além disso, no ano passado, a renda habitual média atingiu o maior pico desde o início da série histórica, em 2012. Esses dados seriam motivo de comemoração se não fosse o fato de que os 10% mais ricos recebem, todos os meses, 13,4 vezes mais renda que os 40% mais pobres. Esse número aumenta significativamente quando comparamos os mais pobres com o 1% mais rico, que recebe 36,2 vezes mais que aqueles. Quando olhamos para a riqueza acumulada, ao invés da renda, descobrimos que, até 2021, 1% da população brasileira acumulava 63% de todos os ativos financeiros do país, enquanto 50% mais pobres detém meros 2%4. Como nos lembra Marcelo Medeiros, "1 em 5 no 0,5", quer dizer, a cada 5 reais existentes no país, 1 real é apropriado pelo 0,5% mais rico, e "50 no 5", ou seja, quase 50% da renda é concentrada no 5% mais rico da pirâmide social brasileira5. E esse cenário vem se mostrando relativamente estável ao longo da história. Apesar de oscilações relacionadas a ciclos políticos específicos, entre 1926 e 2013, a quantidade de renda apropriada pelo centésimo mais rico variou muito pouco: oscilou entre 20% e 25%, estacionando em 23% na primeira década dos anos 20006. Já entre 2012 e 2023, a fatia de renda concentrada nos 10% mais ricos variou de 42,8% para 41%7. Tudo bem, está claro que somos muito desiguais. Mas, por que isso é um problema? Há quem diga que se resolvêssemos a nossa pobreza, não importaria muito se os ricos são muito ricos. Resolver a pobreza com certeza seria muito bom para muita gente, considerando que o Brasil, além de desigual, é pobre. Na verdade, somos um país homogeneamente pobre. Rodolfo Hoffmann8 calculou que, em 2023, o limite entre os "relativamente pobres" e os "relativamente ricos" seria algo em torno de R$ 4 mil de renda domiciliar per capita9. Já segundo a PNAD contínua, em 2024, a renda média domiciliar per capita dos brasileiros que vivem entre os 80% e os 90% mais ricos bateu os R$ 3.212,0010. Vou repetir: 90% dos brasileiros vivem com até R$ 3.212,00, em média, ao mês. Quer dizer, acima disso, já estamos entrando no grupo dos 10% mais ricos. Talvez seja uma surpresa para você que ser "rico" no Brasil equivalha a conseguir pagar a prestação de um carro "popular" e viajar para a praia de vez em quando. Então, parece que somos, na verdade, meio iguais: igualmente pobres. Se isso é verdade, onde está a desigualdade? Ela está no topo, justamente nos 10% mais ricos. Esse pequeno grupo agrega as pessoas mais variadas, desde gente que sua para pagar o plano de saúde ao Eduardo Severin. Para se ter uma ideia, o topo desse grupo (1%) é 7 vezes mais rico que quem está na base11. E se compararmos o grupo dos 20% mais ricos, a diferença entre o topo e a base é de 193 vezes12. O Brasil é isso: uma massa gigante de pessoas pobres ou meio pobres e um minúsculo grupo de gente realmente muito rica. Partindo desse cenário, fica mais fácil entender o porquê de ser mais simples reduzir a desigualdade a partir do topo. Aumentar os rendimentos de 90% da população é tarefa muito mais complexa que diminuir a riqueza do 1%, por exemplo. Vários estudos vêm mostrando que, por conta do tamanho e da complexidade da pobreza brasileira, grandes esforços em modificá-la, por mais importantes que sejam, geram impactos relativamente módicos. Um grande exemplo disso é a educação. Muita gente defende que o investimento em educação deve ser a principal arma de ataque à pobreza. Argumenta-se que a educação é a forma mais eficaz de fomentar a mobilidade social. Obviamente, ninguém aqui é contra políticas que aumentem o alcance e a qualidade da educação brasileira, muito pelo contrário. Mas é preciso entender as limitações dessa proposta para o fim específico de redução da desigualdade social. Além de ser um investimento à longo prazo - e nossos problemas são urgentes - as estatísticas nos mostram que a educação, principalmente a básica, reverbera pouco na desigualdade social. Em primeiro lugar porque a educação é um legado. "Em 1996, 65,0% dos filhos de pais com ensino superior tinham também esse nível de instrução; em 2014, 73,4%"13. Já os filhos de pais sem escolaridade raramente conseguem entrar nas universidades. Com a grande ampliação de acesso às universidades nas últimas décadas, esse grupo triplicou de tamanho. Falando assim, parece bom, mas veja os números: em 1996, somente 0,9% dos filhos de pais sem escolaridade conseguiam, de fato se formar no ensino superior; já em 2014, esse grupo aumentou para meros 3%. Quase 20 anos separam esses dados e, ainda assim, a mudança é estatisticamente modesta. Ademais, mesmo com o aumento da educação nas últimas décadas, a renda dos pais continua sendo o maior preditor de renda dos filhos14. Soma-se a isso o fato de que o incremento salarial está, na verdade, mais relacionado à conclusão do ensino superior que dos níveis mais básicos de escolaridade15. Ou seja, reduzir a desigualdade social a partir da educação exigiria várias décadas de investimento, bem como uma massificação do ensino superior16. E, ainda assim, se praticamente toda a força de trabalho tivesse nível superior, a desigualdade social seria reduzida na ordem dos 10%17. Nas palavras de Gabriela da Cruz, do IBGE, e de Valéria Peso, da UFRJ, "alterar posições na distribuição de renda, porém, parece ser uma transformação mais difícil, não impactada pelo aumento geral da escolaridade da população"18. Bom, se é mais difícil combater a desigualdade a partir do foco nos pobres, talvez o caminho seja olhar para os ricos. E, para isso, é inevitável falarmos de tributação. Mas, antes, quero voltar naquela pergunta que fiz antes: por que a desigualdade é um problema? É ruim que as pessoas sejam muito diferentes entre si? Se essa diferença for relacionada à renda e à riqueza, sim. Mas, hipoteticamente, se todos tivessem condições de vida e dignidade mínimas, a desigualdade ainda importaria tanto? Sim e vejamos os porquês. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a desigualdade social é sempre acompanhada de hierarquização. Não é a mera diferença entre as pessoas, mas sim a existência de categorias sociais a partir das quais alguns indivíduos são considerados "cidadãos de segunda classe", enquanto outras são privilegiadas de diversas formas. Por isso, a desigualdade de renda e riqueza gera desequilíbrio político. Você sabe, ainda que intuitivamente, que o poder econômico impacta o poder político. Pessoas muito ricas têm mais condições de influenciar a direção de um país, com financiamentos de campanha robustos, lobby e controle das mídias tradicionais e sociais. Enquanto eu e você precisamos nos unir com outras tantas pessoas para, por meio de representantes de classe e sindicais, tentar falar com um deputado, o super-rico pode apenas pegar seu telefone e ligar para esse mesmo parlamentar ou visitá-lo diretamente. Nas palavras de Oscar Vilhena Vieira, a desigualdade social causa a "invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, minando a imparcialidade da lei"19. Isto é, quando a política se torna mais acessível aos ricos e mais representativa de seus interesses, por conseguinte, acaba por se esquecer dos mais pobres, provocando um ciclo sem fim de criação e reforço de desigualdade. Surge, assim, a diferença de tratamento pelo Estado e de representação política. Desigualdade social é, então, motivo para a erosão do rule of law, uma vez que cria imunidades e privilégios para os ricos, enquanto cala a voz dos mais pobres. Por isso mesmo, "países desiguais reforçam desigualdade, desconfiança e corrupção, as quais são difíceis de erradicar considerando suas íntimas correlações com a distribuição de riqueza e a cultura social"20. A desigualdade também afeta a coordenação e solidariedade sociais. Quando as pessoas não convivem, sequer se veem, é mais difícil desenvolver consciência social e sentimentos de comunhão. Como vou me importar com alguém que eu sequer sei que existe? A polarização ideológica é maior em sociedades desiguais e, nelas, há a erosão das possibilidades de diálogo e consenso. Vivemos em bolhas e achamos que elas são o mundo real. As pessoas passam a ressentir umas às outras. Os sentimentos de alteridade e de empatia são perdidos. Por fim, Thomas Piketty argumenta que, mesmo se todos tivéssemos condições de vida e dignidade mínimas, a desigualdade social extrema continuaria a ser um problema em razão do "poder de compra do tempo do outro". "Se ao despender o equivalente a uma hora de minha renda posso comprar o seu ano inteiro de trabalho, isso revela a existência de modalidades de distância social nas relações humanas que suscitam preocupações e questionamentos seríssimos"21. Isto é "você gasta um pouquinho de sua renda e acredita ter o poder de ditar o que os demais farão com o tempo deles"22. Em síntese, da mesma forma que pobreza demais é um problema, riqueza em excesso também é. E, aí, entra a tributação progressiva, ou seja, aquela que vai aumentando à medida que o nível de renda e riqueza também crescem. Por óbvio, o raciocínio feito pelo governo atual está correto: isentar a grande massa de pobres do imposto de renda carece de uma compensação arrecadatória, que seria alcançada por meio do imposto progressivo. Mas, tributar mais os super-ricos não importa somente para o aumento da arrecadação ou por razões compensatórias. Como visto, a existência de super-ricos ameaça a própria estrutura do Estado Democrático de Direito. Tornar os ricos menos ricos importa para a diminuição da hierarquização social e das assimetrias de poder. Aqui no Brasil, são 141.400 indivíduos, ou 0,06% da população, que ostentam poder econômico e político (pelo menos em potencial) infinitamente maior do que os outros 99,94% dos brasileiros. Aproveito meus momentos finais para fazer uma observação sobre o fantasma da fuga de capital. Marcelo Medeiros explica que um bom desenho de tributação progressiva é essencial para evitar que os ricos fujam do país com suas riquezas23. Poderão, obviamente, seguir esse caminho ilegalmente, como já o fazem atualmente. Mas, licitamente, suas opções podem ser radicalmente limitadas, a partir, por exemplo, da tributação de residentes ou nacionais brasileiros, não importando onde estejam localizadas suas riquezas. A migração e a alteração do domicílio fiscal são medidas que encontram obstáculos concretos. Esta última, por exemplo, seria útil somente para a evasão de capital financeiro, o que representa uma menor parte da riqueza brasileira, a qual é composta em 2/3 por bens corpóreos (imóveis, máquinas, equipamentos, animais) de difícil ou impossível deslocamento24. E mesmo o capital financeiro encontra barreiras como custos tributários de movimentação e variações de câmbio. Enfim, a arrecadação possibilitada pelo imposto progressivo pode, obviamente, ser destinada às políticas de redistribuição e ao serviço público no geral (o que seria ideal). No entanto, já há um mérito imediato e intrínseco na diminuição da riqueza extrema, da mesma forma em que há na redução da pobreza. _______ 1 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a qual é conduzida pelo IBGE.   2 Conforme noticiado pela Agência Brasil neste link. 3 "Entre os 40% com os menores rendimentos mensais reais domiciliares per capita houve um aumento de 9,3% em 2024 na comparação com 2023, (de R$ 550 para R$ 601). Já entre os 10% com os maiores rendimentos, essa variação foi menor em um ano (1,5%), passando de R$ 7.914 para R$ 8.034". 4 Segundo Relatório "Desigualdade S.A", publicado pela Oxfam em janeiro de 2024. Acesso neste link. 5 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 30. 6 SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos, 1926-2013, 1ª ed., São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018, p. 369-370. 7 Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Rio de Janeiro: IBGE, 2024, p. 49. 8 HOFFMANN, Rodolfo. A distribuição da renda no Brasil conforme dados da PNAD contínua, 2012-2023. Texto para Discussão n. 81, Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG), 2024, p. 3. 9 A renda domiciliar per capita equivale à soma de todos os rendimentos de um domicílio dividida pelo número de habitantes que nele residem. Já a renda média domiciliar per capita é média das rendas domiciliares per capita das pessoas residentes em determinado espaço geográfico em um determinado período. 10 PNAD Contínua, Rendimento de Todas as Fontes, 2024, p. 13. 11 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 25. 12 Ibidem, p. 43. 13 CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024, p. 191. 14 Ibidem, p. 198. 15 MEDEIROS, Marcelo; BARBOSA, Rogério; CARVALHAES, Flavio. Educational Expansion, Inequality and Poverty Reduction in Brazil: A Simulation Study, SSRN, jul., 2018. 16 Ibidem. 17 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 60. 18 CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024, p. 198. 19 VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do estado de direito. Sur Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 6, ano 4, 2007, p. 28-51. 20 BENVINDO, Juliano. The Rule of Law in Brazil: the legal construction of inequality. Oxford: Hart, 2022, p. 52. 21 PIKETTY, Thomas; SANDEL, Michael. Igualdade: significado e importância. Tradução: Maria de Fátima Oliveira do Coutto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025, p.20. 22 Ibidem, p. 94. 23 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 119-123. 24MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 119-123. _______ BENVINDO, Juliano. The Rule of Law in Brazil: the legal construction of inequality. Oxford: Hart, 2022. CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024. HOFFMANN, Rodolfo. A distribuição da renda no Brasil conforme dados da PNAD contínua, 2012-2023. Texto para Discussão n. 81, Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG), 2024. MEDEIROS, Marcelo; BARBOSA, Rogério; CARVALHAES, Flavio. Educational Expansion, Inequality and Poverty Reduction in Brazil: A Simulation Study, SSRN, jul., 2018. MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023. PIKETTY, Thomas; SANDEL, Michael. Igualdade: significado e importância. Tradução: Maria de Fátima Oliveira do Coutto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025. SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos, 1926-2013, 1ª ed., São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018. VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do estado de direito. Sur Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 6, ano 4, 2007, p. 28-51.
Um tema recorrente no CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica e artigos diversos sobre antitruste é a potencialidade ilícita da troca de informações sensíveis entre concorrentes1. O art. 36 da lei 12.529/11 (LDC - lei de defesa da concorrência) estabelece como infração à ordem econômica o acordo, combinação, manipulação ou ajuste com concorrentes de informações sobre preços de bens ou serviços afetados ofertados individualmente, condições de oferta, divisão de mercado em partes ou segmentos, bem como preços, condições ou vantagens em licitações públicas2. Não há uma previsão legal específica tipificando a troca de informações sensíveis entre agentes (concorrentes ou não) como ilícito concorrencial, mas a prática tem atraído grande atenção do CADE nos últimos anos e gerado uma série de investigações. Ainda que não configure um ilícito per se, a prática de trocar informações concorrencialmente sensíveis pode sim ser considerada uma infração à ordem econômica autônoma e isolada, independentemente da existência de um cartel. Contudo, seria muito importante que se tivesse maior clareza sobre o que é efetivamente sensível a ponto de configurar uma infração à ordem econômica e ensejar investigação e condenação no CADE. Ademais, a troca de informação pontual entre concorrentes em um pleito coletivo perante autoridade reguladora ou de defesa comercial, por vezes, faz parte até de um processo necessário, desde que limitada ao contexto do pleito. A realização de atividades de benchmarking entre players de diferentes indústrias, mas com processos semelhantes, por vezes tem fim benéfico à coletividade ao buscar maior eficiência de produção ou mesmo aumentar padrões de segurança do trabalho. A coleta e divulgação de informações de mercado para produção de relatórios setoriais e inteligência de mercado também pode ser benéfica à concorrência de forma geral, pois ao reduzir a assimetria de informações, pode reduzir barreiras à entrada de novos agentes, estimular investimentos, dentre diversos outros benefícios3. A falta de limites claros, contudo, gera elevado receio e uma certa confusão dos administrados acerca dos limites a serem observados para cumprir exemplarmente a legislação de defesa da concorrência. Evidência disso são as quatro investigações abertas pelo CADE em 2024 sobre a troca de informações sensíveis, sendo que duas delas envolvem a troca de informações de RH - Recursos Humanos4. Os grupos investigados em tais casos envolvendo informações de RH são compostos por empresas que, em sua maioria, atuam em mercados distintos e sequer podem ser consideradas concorrentes. Aparentemente, pelo tempo em que tais grupos estavam supostamente em funcionamento e a quantidade de empresas participantes, a prática de troca de informações naquele contexto era entendido pelos investigados como legítimo benchmarking, sem envolver necessariamente intenção de alinhamento que pudesse levar à formação de um cartel do mercado de trabalho. Não obstante o interesse pelo tema da troca de informações sensíveis como conduta autônoma pareça recente, nos Estados Unidos da América o primeiro precedente que se dedicou de forma mais atenta ao tema remonta a 1921. Trata-se do caso American Column & Lumber Co. v. United States. Neste caso, diversos membros da associação de madeireiras (Hardwood Manufacturers Association) compartilhavam informações sensíveis de sua atividade econômica e suas visões sobre condições futuras de mercado a um "expert" que produzia relatórios com sugestões para preços e produção futuras. Logo, a conduta em questão era essencialmente de troca de informações sensíveis entre concorrentes que de alguma tinha o condão de influenciar as decisões futuras de cada agente. A Suprema Corte dos EUA decidiu, então, que o sistema de troca de informações sobre preços e produção configuraria uma conduta anticoncorrencial, mesmo sem que houvesse um acordo explícito sobre preços, confirmando a violação da seção 1 do Sherman Act, legislação americana aplicável ao tema. No Brasil, embora ainda seja incerto como o CADE deverá se posicionar sobre as investigações em curso sobre o tema, decisão recente no contexto do julgamento do processo administrativo 08012.008859/2009-86, que investigou a formação de cartel no mercado de revenda de combustível na cidade de Brasília (caso conhecido como "Operação Dubai"), buscou dar algum norte acerca do potencial ofensivo da mera prática de troca de informações sensíveis não associada à formação de cartel. Neste precedente, decidido em 25/6/25, além da investigação sobre a prática de cartel na revenda de combustíveis, o CADE examinou de forma específica a conduta de troca de informações sobre preços de compra de combustíveis e volumes de vendas entre redes de postos de combustíveis, pontuando o seguinte: Como é sabido, ainda não há precedente do CADE que condene a troca de informações sensíveis como um ilícito autônomo. De toda forma, pode-se afirmar que há consenso de que essa prática deve ser alvo de análise das autoridades concorrenciais, ainda que a conduta não faça parte de um acordo mais amplo. Em 2011, a OCDE já reconheceu que a troca de informações entre concorrentes poderia se dar como uma conduta autônoma, e não apenas nos cenários em que a troca faz parte de um acordo mais amplo entre concorrentes, atuando como um fator facilitador da colusão e ou no contexto de acordos de cooperação, como joint ventures5. Com relação especificamente ao tema da troca de informações sensíveis, o Conselho, sem se afastar da gravidade que a troca de informações entre concorrentes pode configurar em determinados casos, posicionou-se de forma a fortalecer o entendimento de que a prática não é ilícito per se e que cada caso deve ser avaliado de forma individual. Ficou claro a partir do julgamento da Operação Dubai que é ponto fundamental para definir se a troca de informação pode infringir a concorrência ou não responder algumas questões como: (i) qual a finalidade da troca; e (ii) a informação trocada pode reduzir a incerteza sobre o comportamento dos agentes? Se a informação a ser trocada nitidamente tem o condão de influenciar um próximo passo estratégico do seu concorrente, ela não deve ser compartilhada. Como lição - ainda parcial e sujeita a muitos ajustes num futuro próximo a depender do posicionamento do CADE em relação aos tantos casos em curso no Conselho hoje, tem-se que as práticas de benchmarking e troca de informações entre agentes de mercado não precisa necessariamente ser banida do dia a dia das empresas e associações brasileiras, mas requer grande cuidado e atenção.  __________ 1 Informações concorrencialmente sensíveis são aquelas que, se compartilhadas entre concorrentes, podem resultado na tomada de decisões conjuntas e/ou alinhamentos que prejudiquem a livre competição e favoreçam a formação de acordos ilícitos. São informações sensíveis concorrencialmente, por exemplo: preços, custos, dados de clientes e fornecedores, estratégias comerciais e previsões de comportamento futuro (projeções), dentre outras. 2 O rol de condutas do art. 36 da LDC não é exaustivo. Além disso, as condutas do art. 36 da LDC são consideras ilícitos concorrenciais na medida em que produzam ou possam produzir (potencialidade) os seguintes efeitos, ainda que não alcançados: (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços; (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; e (iv) exercer de forma abusiva posição dominante.  3 Sobre o tema, ver: Competitive Impacts of Information Exchange. Charles River Associates, 2004, Disponível aqui. Acesso em 18/7/25. 4 Em julho de 2024, foi aberta investigação sobre a troca de informações sensíveis no mercado internacional de veículos leves contra as empresas Audi, BMW, Porsche, Mercedes e Volkswagen. Em setembro de 2024, foi aberto caso para investigar para a troca de informações sensíveis, cobertura de propostas em licitações e "no-poach" agreement no mercado de empilhadeiras Já os casos de RH foram abertos em outubro de 2024 e envolvem diversas empresas nacionais e multinacionais. 5 Vide voto vogal do Conselheiro Victor Oliveira Fernandes no processo administrativo 08012.008859/2009-86.
quarta-feira, 16 de julho de 2025

Os limites penais da liberdade de expressão

Num momento da história em que as diferenças ficaram ainda maiores, a temática da liberdade de expressão se apresenta como um grande desafio. De um lado, almejamos a autonomia do pensamento e a livre circulação de ideias; de outro, não há liberdade sem limites e responsabilidade. A preservação da liberdade de expressão, um dos pilares do sistema democrático, abrange "toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não, desde que não esteja em conflito com outro direito ou valor constitucionalmente protegido" (Branco, 2015). No entanto, a polarização no Brasil deixou de ser apenas uma divergência ideológica e passou a ser um filtro pelo qual as pessoas enxergam o mundo (Nunes, 2023). A "polarização afetiva", processo de radicalização no qual o confronto extrapola a política e afeta as relações sociais, é um exemplo sobre o que esbarra nos limites do discurso permitido. Além disso, importante destacar que, até o momento, nenhuma nação superou definitivamente o ciclo da polarização na era digital - e o Brasil não é exceção.  E, embora as redes sociais - principal espaço no qual o cidadão expressa e molda suas opiniões - não tenham criado a polarização política, nem o discurso extremista, tampouco os xingamentos e hatters, é fato que elas se monetizam com isso. O ambiente virtual maximiza o engajamento dos usuários e o modelo algorítmico privilegia conteúdos que despertem emoções intensas, como raiva ou indignação, expondo os usuários a informações que reforcem suas convicções, reduzindo o contato com perspectivas divergentes. Estudos indicam que as fake news, por exemplo, notícias falsas publicadas com a intenção de gerar ódio, violência ou desinformação, se propagam em velocidade 70% maior do que uma notícia verdadeira (Vosoughi, 2018) e são disseminadas em grande parte por pessoas reais - e não robôs. É certo que a democracia exige a crítica pública, a crítica política, a crítica ideológica e, portanto, o discurso livre. Contudo, apesar de ser direito fundamental, que por si só seria tão absoluto a ponto de sequer poder sofrer qualquer restrição, a liberdade de expressão encontra limites na Constituição. E, exatamente por ser base da democracia, deve ser contida e exercida harmonicamente com os demais princípios e garantias constitucionais, como a dignidade da pessoa humana ou a proteção à honra. Nesse contexto, o Poder Judiciário atua como garantidor dos direitos fundamentais e restringe, excepcionalmente, a livre manifestação de ideias em três situações: (1) crimes contra a honra - calúnia, difamação e injúria; (2) discursos de ódio, como racismo, homofobia, misoginia ou apologia à violência; (3) propagação deliberada de desinformação ou, em outras palavras, a disseminação de fake news quando há ciência da inverdade. No âmbito penal, os crimes contra a honra representam limites jurídicos claros à liberdade de expressão. Imputações falsas de crime (calúnia), atribuições ofensivas que exponham alguém ao desprezo público (difamação) ou ofensas à dignidade pessoal (injúria) configuram ilícitos puníveis e o ordenamento busca tutelar a dignidade e a reputação das pessoas frente a manifestações abusivas. Entretanto, a jurisprudência do STF reconhece que críticas legítimas, ainda que duras, estão protegidas pelo direito à livre manifestação. Assim, o desafio reside em distinguir o discurso crítico - essencial à democracia - do discurso lesivo - incompatível com os direitos fundamentais da pessoa humana. Os discursos de ódio, por sua vez, extrapolam os limites da liberdade de expressão por atentarem diretamente contra a dignidade de grupos vulneráveis. Expressões que incitam discriminação, hostilidade ou violência com base em raça, gênero, religião, orientação sexual ou origem não são protegidas pelo manto da liberdade de discurso. A lei 7.716/1989 criminaliza condutas discriminatórias ou preconceituosas, enquanto o CP prevê crimes correlatos, como apologia ao crime ou criminoso (art. 287), incitação ao crime (art. 286) e o crime de injúria racial (art. 140, §3º). Já a disseminação de fake news, especialmente quando dolosa e com potencial lesivo concreto, pode ensejar responsabilidade penal em diversas frentes. Embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tenha tipificado de forma autônoma a "notícia falsa", sua divulgação intencional pode configurar tipos penais diversos e deve ser combatida com rigor. Isso porque, no mundo onde verdade é o que gera visualização, os impactos da desinformação são danosos: plataformas digitais e agentes políticos se beneficiam da viralização do conteúdo, acelerando narrativas falsas, promovendo discursos ofensivos e normalizando ataques pessoais. Assim, a responsabilização penal não deve ser confundida com silenciamento. Ainda que a censura prévia seja vedada, o ordenamento admite a responsabilização posterior, inclusive penal, quando a liberdade de expressão é instrumentalizada para propagar um discurso lesivo ou discriminatório ou propagar falsidades com consequências concretas. Por isso, é imprescindível estabelecermos limites e, quanto mais claras as balizas, melhor. Numa sociedade plural como a nossa, o diálogo pode - e deve - ser utilizado para construir pontes entre os dissensos, resguardando e fomentando a democracia, inclusive nos ambientes digitais. Conter a polarização afetiva exige que partidos e lideranças, independentemente da posição ideológica, isolem as alas extremistas e reorientem o debate para temas estruturais. Fortalecer a educação cívica e política e promover instituições de conhecimento, como bibliotecas, museus e universidades, com o propósito de que o pensamento seja discutido - com todas as suas diferenças - com seriedade, autonomia e liberdade, pode ser um caminho. Referências bibliográficas BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias e compromete o futuro do Brasil. São Paulo: HarperCollins, 2023. VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. Science, v. 359, n. 6380, p. 1146-1151, 2018. DOI: 10.1126/science.aap9559. Acesso em 7 jul. 2025. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.     **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas.
A revolução digital tem provocado mudanças estruturais profundas na forma como nos comunicamos e nos relacionamos em sociedade e, sobretudo, como consumimos informação. Passamos de um modelo centrado na mídia tradicional para um ecossistema digital descentralizado e interativo. Nessa nova configuração comunicacional, redes sociais e plataformas digitais têm assumido papel central na mediação da comunicação pública, funcionado quase como como espelhos e amplificadores da sociedade: refletem nossas virtudes democráticas, mas também ecoam - em alto volume - nossas distorções mais perigosas, como a desinformação, o discurso de ódio e os ataques às instituições democráticas1. Essa expansão vertiginosa do digital tem imposto ao Direito desafios inéditos, especialmente no que tange à proteção de direitos fundamentais tradicionalmente assegurados no plano físico. A exposição pública ampliada, a velocidade na disseminação de informações e a permanência dos registros digitais tornam bens como a honra, a dignidade da pessoa humana e a integridade das instituições especialmente vulneráveis - emergindo a demanda por instrumentos jurídicos capazes de conter abusos e responsabilizar condutas. Como proteger a honra sem restringir indevidamente a liberdade de expressão? Como punir abusos sem atropelar o devido processo legal? Como intervir sem desrespeitar o princípio da intervenção mínima, tão caro ao Estado Democrático de Direito? Essa é, em essência, a tensão que permeia as recentes discussões no STF acerca da constitucionalidade da regulação das redes sociais e da responsabilização das big techs. O debate, que envolve diretamente temas como a desinformação, a moderação de conteúdo e a responsabilização por danos decorrentes de publicações ilícitas, coloca o Judiciário - e, por extensão, o Estado brasileiro - diante da difícil missão de equilibrar liberdade e proteção, inovação e responsabilidade, pluralidade e segurança institucional. I. O Marco Civil da Internet sob escrutínio Para falar sobre o caldo em fervura aquecido no STF e servido à população, é preciso, antes, lembrar que o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) consolidou princípios fundamentais para o uso da internet no Brasil, como a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a neutralidade de rede. O art. 19, em especial, estabeleceu que provedores de aplicações de internet (como este site) somente podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos gerados por terceiros se não atenderem a uma ordem judicial específica de remoção. Ocorre que, diante da intensificação da disseminação de fake news, do uso estratégico de redes para atentados à democracia (como visto no emblemático 8 de janeiro de 2023) e da ampliação do alcance de discursos de ódio, a eficácia desse modelo legal passou a ser contestada. No extenso julgamento da ADI 7.411, o STF discutiu a constitucionalidade do art. 19. A controvérsia girava em torno de dois eixos principais: (i) se a exigência de ordem judicial para a retirada de conteúdo violava o direito à proteção imediata de vítimas de discursos ilícitos, e (ii) se a norma representava uma blindagem indevida às plataformas, dificultando a responsabilização por danos causados no ambiente virtual. O julgamento envolveu ainda outras ações conexas, como o RE 1.057.258 (Tema 533) e o RE 1.037.396 (Tema 987 de repercussão geral), o que demonstra o grau de complexidade da matéria. No último dia 26 de junho, com um placar de 8 a 3, a Suprema Corte finalizou o julgamento e considerou parcialmente inconstitucional a regra do art. 19 do Marco Civil da Internet que condicionava a responsabilidade civil das plataformas à existência de ordem judicial. Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento de que esse modelo atual de responsabilização civil das plataformas não atende aos desafios do mundo digital e, agora, os provedores poderão ser responsabilizados por conteúdos ilícitos mesmo sem decisão judicial (à exceção dos crimes contra honra) especialmente nos casos de impulsionamento pago, uso de robôs e disseminação massiva de conteúdos elencados na lista de crimes graves, como discursos de ódio, pornografia infantil e atos antidemocráticos2. O que estava em jogo, portanto, é que as plataformas atuem de maneira eficaz e satisfatória na prevenção e resposta, adotando mecanismos que impeçam a proliferação desses conteúdos, com autorregulação obrigatória, acessibilidade de contato e representação jurídica no Brasil, sob risco de serem responsabilizados. Vale dizer, também, que o STF devolveu a questão aos olhos do Congresso Nacional para que o tema seja definitivamente posto à discussão para edição de legislação. Enquanto isso não ocorrer - e bem sabemos o quanto isso pode caminhar a passos curtos - a plataforma será responsabilizada civilmente pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crimes em geral ou atos ilícitos se, após receber um pedido de retirada, deixar de remover o conteúdo. Não se perde de vista que, com o entendimento firmado pela Corte Suprema, o cidadão comum também pode se beneficiar: conteúdos ofensivos que hoje demandam longos trâmites judiciais para remoção (como ameaças, injúrias e vazamentos de fotos íntimas) poderão ser excluídos de forma mais célere. Contudo, o julgamento paradigmático levanta discussões que transcendem a esfera abstrata e já reverberam no nosso cotidiano. A aplicação do entendimento exarado pelo STF pode trazer implicações penais práticas bastante relevantes como: (a) o aumento significativo e desmedido de investigações por crimes cibernéticos; (b) a responsabilização de influenciadores digitais, administradores de páginas e moderadores de comunidades digitais com maior rigor por tolerância ou estímulo a práticas ilegais, com potencial risco de enquadramento na figura de partícipes de delitos; e, talvez o mais perigoso, (c) o reforço do uso do Direito Penal como mecanismo de contenção institucional. Esse último parece ser aquele mais alarmante, por caminhar numa zona cinzenta de risco concreto de que, com a expansão de interpretações sobre responsabilidade penal em redes, o Ministério Público e o Judiciário passem a utilizar com mais frequência medidas como quebra de sigilo telemático, condução coercitiva e bloqueios judiciais de perfis e páginas, inclusive antes de trânsito em julgado - o que suscita debate sobre violação ao devido processo legal. II. Expansão penal e os riscos da criminalização das plataformas No calor dessas discussões, emergem propostas legislativas e decisões judiciais que indicam uma possível ampliação da responsabilidade penal das plataformas virtuais e até mesmo de seus dirigentes. A possibilidade de criminalização da omissão na remoção de conteúdo, ou da manutenção de contas envolvidas com práticas ilícitas, gera inquietações importantes no campo das garantias penais. A responsabilização penal de empresas no Brasil é, hoje, restrita aos crimes ambientais (art. 225, §3º, CF). Paralelamente, o Brasil é parte da Convenção de Budapeste que, em seu art. 12, prevê responsabilidade penal da pessoa jurídica pela prática dos crimes cibernéticos, quando cometidos em seu benefício por qualquer pessoa física em posição de direção, que aja individualmente ou como integrante de um órgão da própria pessoa jurídica, com base no seu poder de representação, na autoridade para tomar decisões e de exercer o controle interno na pessoa jurídica; e (ii) quando outros indivíduos, despidos de tais características, praticarem crimes dentro do seu escopo de atuação, em benefício da pessoa jurídica, porque houve falha na supervisão ou o controle. O Brasil, contudo, ainda não criou tipos penais específicos para essas hipóteses, embora exista orientação internacional para tanto. A esse respeito, vale destacar que "o nível de discussão para a criação de um modelo de imputação de responsabilidade penal do ente coletivo ainda parece incipiente no âmbito legislativo, demandando maior aprofundamento sobre a sua viabilidade, seja pelas hipóteses de responsabilização, seja pela adequação dos modelos de responsabilidade com os princípios orientadores do Direito Penal brasileiro"3. Quanto aos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, a possibilidade de uma responsabilização penal por omissão - quando havia o dever jurídico de agir - suscita debates. É nesse ponto que, inclusive, também se discute se plataformas digitais poderiam, em tese, ser equiparadas a garantidoras, nos termos do art. 13, §2º, do CP. Tal argumento se sustenta na ideia de que as empresas detêm poder técnico, estrutural e informacional para evitar a propagação de conteúdos ilícitos. No entanto, essa tese esbarra em diversos obstáculos, tais como: o volume de dados, a complexidade dos algoritmos de recomendação e a ausência de clareza normativa sobre o que constitui conteúdo "manifestamente ilegal". Assim, a responsabilização criminal, ainda que indireta, de CEOs ou diretores de plataformas por atos de terceiros - encontra sérias restrições no Estado Democrático de Direito. A adoção da teoria do domínio do fato por omissão, para imputar responsabilidade penal a executivos de empresas multinacionais sediadas no exterior, exige prova robusta da ciência e da inércia dolosa - elementos que nem sempre são fáceis de demonstrar com segurança jurídica e por meio de provas lícitas. III. Liberdade de expressão x discurso de ódio: um falso dilema? Nesse contexto, o discurso de ódio, as fake news e a desinformação têm sido temas centrais na agenda internacional. No Brasil, os impactos disso foram sentidos de forma aguda durante as eleições e nos ataques de 8 de janeiro. Contudo, a resposta a esses fenômenos não pode implicar a erosão da liberdade de expressão, especialmente quando não há critérios objetivos para a definição do que é "conteúdo falso" ou "discurso perigoso". O Marco Civil da Internet foi construído com base em três pilares: a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a preservação da arquitetura aberta da internet. Qualquer tentativa de regulação e, especialmente de criminalização, deve partir da compatibilização desses princípios com o dever do Estado de proteger a ordem pública e os direitos fundamentais. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, reconhece a liberdade de expressão como um dos pilares da democracia, alertando que medidas restritivas devem se ajustar ao princípio da proporcionalidade, pois "ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças"4. A criminalização imprecisa, baseada em conceitos vagos como "fake news", pode ser convertida em ferramenta de perseguição política, sobretudo em contextos de polarização institucional. Isso não significa, contudo, que a inação seja solução. Pelo contrário: é fundamental que o Estado regule, sim, mas com mecanismos administrativos eficientes, instrumentos de responsabilização cível e com incentivo à autorregulação transparente por parte das plataformas. IV. Considerações finais: por uma regulação proporcional e democrática O Direito Penal, em sua feição garantista, deve ser reservado a condutas lesivas de alta gravidade e não pode se transformar em instrumento de pressão política ou moral sobre agentes privados. A internet é, ao mesmo tempo, um espaço de liberdade e de riscos. Proteger a democracia nesse ambiente exige maturidade institucional, capacidade técnica e respeito aos limites do Estado de Direito. Mais do que punir, é preciso construir um modelo de regulação que seja democrático, multissetorial e comprometido com a transparência. A responsabilização das plataformas deve passar por instrumentos eficazes de regulação administrativa, sanções proporcionais e exigências concretas de transparência algorítmica, sem abandonar a perspectiva dos direitos fundamentais. A liberdade de expressão é condição da democracia - e não obstáculo à sua defesa. O julgamento da ADI 7411 no STF representou marco decisivo para a reestruturação da regulação digital no Brasil. Essa interpretação constitucional parece estabelecer o prenúncio de um regime híbrido, que deverá ser regularizado pelo Poder Legislativo: Responsabilidade subjetiva: aplicável em geral, exige prova de falha ou omissão por parte das plataformas, via sistemas de notificação e diligência técnica adequada. Presunção de responsabilidade: em situações de impulsionamento pago, uso de robôs para disseminação e crimes graves (como terrorismo, pornografia infantil, racismo, atos antidemocráticos, discurso de ódio, abuso sexual e tráfico de pessoas), impõe-se remoção imediata sem necessidade de notificação judicial. De um lado, temos mais rapidez na remoção de conteúdos ilícitos graves e a ampliação da atuação das plataformas; de outro, o risco de incremento da criminalização da liberdade de expressão e o uso desenfreado do Direito Penal como instrumento de regulação social. Esse panorama desafia a sociedade a buscar soluções equilibradas e colegiadas, que não recorram ao Direito Penal como resposta imediata e simbólica. Ao contrário, é preciso consolidar uma regulação administrativa e cível eficaz, fundamentada em transparência técnica, proteção de direitos e cultura digital democrática. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.   **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. _______ 1 De acordo com o IBGE (2024), de 2016 a 2023, a proporção de domicílios das áreas rurais que utilizaram internet cresceu de 35,0% para 81,0%. Em áreas urbanas, percentual foi de 76,6% a 96,1% no período. Dados disponíveis aqui. 2 O resumo do julgamento pode ser consultado aqui. 3 Lumi Kamimura Murata, D. A. M.; Ritzmann Torres, M. P. A convenção de Budapeste sobre os crimes cibernéticos foi promulgada, e agora?. Boletim IBCCRIM, [S. l.], v. 31, n. 368, 2023. Disponível aqui. 4 Um compilado da jusrisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos está disponível aqui.
O PL 2.159/21 (conhecido como PL da devastação) está em fase de votação no Congresso Nacional e tem provocado reações extremas da sociedade civil com inúmeros abaixo-assinados contra seu texto. O projeto propõe uma flexibilização no sistema de fiscalização e controle de empreendimentos que possam causar danos ambientais passando o licenciamento do Estado para a forma de autodeclaração do empreendedor, além de hipóteses de isenção de licenciamento e eliminação de fases ou análises atualmente previstas. Diante da polêmica, esse artigo se propõe a dar um passo atrás e retomar as bases que estruturaram o licenciamento ambiental e tentar entender: por que importa tanto? No que implica o licenciamento ambiental? Para avançar sobre o tema, será necessário entender os valores que estão sendo protegidos (ou não) e porque esse instrumento é o escolhido para fazê-lo. A Constituição Federal traz disposições sobre o meio ambiente natural em três dimensões de proteção jurídica: o direito de extrair o potencial econômico do meio ambiente, o direito do ser humano e todas as formas de vida usufruírem de um meio ambiente que os mantenha saudável e o direito que o próprio meio ambiente tem de existir em sua integralidade. Para isso, o Texto Constitucional ora exemplificou em sua dimensão mais agressiva de uso econômico (CF. art. 225, § 2º - mineração), ou trouxe disposições valorativas que se espraiam por todo o sistema jurídico (art. 225: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) além de indicar a proteção do meio ambiente natural per si, trazendo valores particularizadores como ocorre com os biomas brasileiros (CF. art. 225, III, § 4º).  Pois bem, ao lado da proteção ambiental em suas dimensões garantidas constitucionalmente há o direito à livre iniciativa e à atividade econômica e, assim, a proteção ambiental e a atividade econômica precisam ter uma conexão que os viabilize segundo os parâmetros constitucionais (CF. art. 170). Essa conexão é trazida pelo poder de polícia estatal por meio de instrumentos que categorizam, fiscalizam e verificam as atividades frente o meio ambiente. O instrumento principal é o licenciamento ambiental, no qual deverá ser feita a análise do atingimento do bem ambiental juridicamente protegido pela obra ou serviço legalmente pretendido pelo solicitante. No procedimento de licenciamento ambiental deverá ser analisada a instalação da obra, sua operação e seu funcionamento, pois cada etapa pode ter seus próprios impactos em graus e intensidades diferentes. Exemplo disso é a instalação de uma usina hidrelétrica que, mesmo sendo considerada benéfica ambientalmente por ser uma matriz energética renovável e de pouca emissão de gases, sua instalação gera danos irreversíveis para o meio ambiente, com a inundação de área, por um lado, e diminuição de vertente hídrica, de outro. Assim, mesmo uma atividade lícita pode gerar impactos ambientais que desequilibram seu entorno ou área de dimensões diversas gerando impacto social, econômico e ambiental que, sem a atividade solicitada, não existiria. Portanto, o licenciamento ambiental é absolutamente necessário para equilibrar direitos e responsabilidades a partir de uma atividade ou obra de origem lícita, mas que, nem por isso, pode ser exercida sem fiscalização e balizamento das consequências de sua ação. Ajustes de obra, realocação de área, checagem de metodologias, ações mitigadoras ou compensatórias fazem parte do repertório que incide sobre a tentativa de equacionar tais direitos constitucionalmente assegurados, de um lado, o direito à livre iniciativa, de outro, o direito coletivo à vida saudável e o direito do meio ambiente existir. Assim, afastar do Estado seu poder de polícia diante da gestão do meio ambiente frente atividades essencialmente degradadoras é atingir valores constitucionalmente garantidos incidindo em potenciais danos para muito além da própria atividade econômica geradora do dano.  *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.   **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas.
Como diz o antigo ditado popular, "ninguém casa pensando em separar". De fato, o intuito principal do casamento é o de constituição familiar. Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2010, p. 29) nos ensina que a família pode ser conceituada como o primeiro agente socializador do ser humano. Desde muito, deixou de ser uma célula do Estado e passou a ser uma célula da sociedade. A maior missão do Estado, em suas palavras, é o de "preservar o organismo familiar sobre o qual repousam suas bases".1 Até o início do século XX, predominavam os casamentos duradouros, unidos pelo laço sagrado da igreja, separados, unicamente, pelo falecimento de um dos cônjuges. Isso porque, prezavam-se as tradições sociais acima de tudo, inclusive do próprio bem-estar2. Contudo, a sociedade foi se transformando, moldando-se às novas nuances e realidades e, quando os relacionamentos deixam de ser viáveis, a dissolução tornou-se algo inevitável. Nas palavras de Cerveny (2002), "a separação do casal não acaba com a família, porém a transforma. Em outras palavras, a estrutura se altera com a dissolução da conjugalidade, embora a família, enquanto organização, se mantenha".3 E foi justamente nesse contexto de transformações que nos deparamos com os aprimoramentos normativos na legislação brasileira que, buscando atender aos anseios sociais, trataram sobre a dissolução do casamento, consagrando o divórcio como direito potestativo, dispensando-se qualquer justificativa ou comprovação de culpa para sua decretação. Nesse contexto, tivemos a promulgação da EC 66, de 20104, por exemplo, que é tida como o marco inicial desse movimento, que eliminou a necessidade de separação judicial prévia, reforçando a liberdade individual para extinguir o vínculo conjugal. Apesar dos avanços normativos, a efetivação do divórcio ainda é nebulosa, particularmente em casos de violência de gênero. Nessas situações, é comum que o cônjuge resista à dissolução da sociedade conjugal. Urge, nesse contexto, com relevância a discussão sobre o divórcio unilateral, cuja regulamentação encontra eco em decisões judiciais recentes, debates no CNJ e em projetos legislativos que vislumbram operacionalizar esse instituto diretamente nas serventias extrajudiciais. Decisões de tribunais estaduais têm admitido a decretação liminar do divórcio mesmo sem manifestação do outro cônjuge, sob o fundamento de que a vontade inequívoca de uma das partes em não permanecer casada já autoriza o magistrado a decretar o fim do matrimônio sem submeter o pedido à espera de eventual recurso ou retratação do outro titular do vínculo. Temos, como exemplo, decisão de 2020, do TJ/DF e territórios, que deferiu divórcio em caráter liminar sem a manifestação prévia do outro cônjuge, julgando que "a manifestação inequívoca de vontade de não manter mais o vínculo conjugal autoriza a antecipação da decretação do divórcio, afastando a necessidade de aguardar eventual manifestação do outro lado"5. No âmbito do STJ, embora ainda não exista súmula específica acerca do divórcio unilateral em cartório, sua jurisprudência e comunicados tendem a reconhecer a natureza potestativa desse direito, ampliando medidas que assegurem celeridade quando restar demonstrada a vontade firme de romper o casamento, a exemplo de precedentes que admitem decretar o divórcio mesmo diante de circunstâncias excepcionais, como a morte posterior de um dos cônjuges após ajuizamento da ação6. Com esse mesmo entendimento, o STJ julgou o recurso especial 2189143-SP (2024/0355419-7) tratando que a "a dissolução do casamento passou a depender, unicamente, da válida manifestação da vontade de um dos cônjuges de não mais permanecer casado, sem ter que cumprir qualquer requisito temporal e, principalmente, sem se vincular à vontade da contraparte7". O CNJ, por seu turno, já se posicionou acerca da vedação a regulamentações estaduais que pretendam autorizar averbação de divórcio por declaração unilateral, conforme a recomendação CNJ 36/198, que impede tribunais de criar procedimentos internos para divórcio unilateral em cartório sem previsão legal específica. Vale-se dizer que, sobre o devido tema, no campo legislativo, tramita no Congresso Nacional proposta de inserção expressa do divórcio unilateral extrajudicial no Código Civil: o PL 3.457/199, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, que prevê a possibilidade de um dos cônjuges requerer a averbação de divórcio diretamente no cartório de registro civil, ainda que o outro não concorde com a separação. O texto disciplina a notificação pessoal ou por edital ao outro cônjuge, com possibilidade de impugnação dentro de prazo legal, sob pena de ser lavrada a escritura de divórcio unilateralmente, encerrando-se formalmente o vínculo civil. Em paralelo, o anteprojeto10 para o novo Código Civil prevê, em seu 1.582-A11, a possibilidade de requerer, unilateralmente, o divórcio ou a dissolução da união estável diretamente no cartório de Registro Civil. O projeto, ora se inspira na premissa de que o Estado deve oferecer meios desburocratizados para que o exercício do direito de dissolver o casamento não seja obstado por morosidade ou recusa infundada de um dos cônjuges. A proposta delimita, contudo, que o pedido de averbação unilateral seja instruído com documentos que comprovem a ciência do outro cônjuge: notificação pessoal ou editalícia. Essa via extrajudicial do divórcio unilateral assume particular importância sob a ótica de gênero: a morosidade natural do processo judicial e a dependência de anuência do outro cônjuge representam, para muitas mulheres, obstáculos que prolongam situações de violência doméstica, coação moral ou abandono de fato. Ao garantir a possibilidade de romper o vínculo formal de modo célere, o Divórcio Unilateral Extrajudicial confere dignidade e autonomia à mulher que já não convive, de fato, em comunhão com o cônjuge. A desburocratização, ao reduzir custos e evitar litígios prolongados, facilita medidas práticas subsequentes: alteração de documentos, reorganização patrimonial e planejamento de vida independente. Esse mecanismo jurídico não impede que outras questões, como partilha de bens, guarda de filhos e alimentos, sejam tratadas em instrumentos próprios, conforme a natureza consensual ou litigiosa de cada caso. Nessas situações, o cônjuge pode contar com orientação profissional para garantir seus demais direitos, o que reforça a importância de se ampliar o acesso à informação e aos serviços jurídicos, sobretudo em contextos de maior vulnerabilidade social. A efetividade dessa modalidade, portanto, está intrinsecamente ligada à valorização da autonomia e à democratização dos meios de acesso à Justiça. No nível das serventias extrajudiciais, a introdução do divórcio unilateral exige preparo e sensibilidade dos oficiais e equipe de cartório; é essencial que o ambiente seja acolhedor e garantidor de segurança para a parte requerente. A formalização da vontade unilateral implica formalidades específicas: notificação pessoal ou editalícia, manifestação ou ausência de manifestação do outro cônjuge no prazo estipulado, e declaração de inexistência de impedimentos para a lavratura de ato extrajudicial. Além disso, a atividade extrajudicial deve estar preparada para orientar sobre a necessidade de providências subsequentes; por exemplo, sobre onde e como ajuizar ações de alimentos ou ajustar visitas e guarda, se for o caso. A atuação integrada entre registradores, Defensoria Pública e órgãos de atendimento é essencial para garantir apoio multidisciplinar. Sob a ótica doutrinária, diversos autores sinalizam a relevância do divórcio unilateral extrajudicial para reforçar o princípio da autonomia privada e a dignidade da pessoa humana. Maria Berenice Dias, em seu Manual de Direito das Famílias12, enfatiza que a simplificação de atos que não envolvem litígio material imediato pode descongestionar o Judiciário e, ao mesmo tempo, conferir liberdade individual, sobretudo quando há manifesta vontade de uma das partes em não permanecer vinculada ao outro. Importa ressaltar que embora o modelo extrajudicial de divórcio unilateral possa evitar litígios desnecessários, não pode ser visto como meio de elidir a proteção aos dependentes ou ao cônjuge em situação de fragilidade econômica. Para o público feminino, em específico, o impacto potencial é grandioso: facilita o rompimento de matrimônios em que a mulher se encontra em situação de violência doméstica, abandono afetivo ou econômico; reduz o custo emocional de prolongar relações desgastadas; e retira do ex-cônjuge resistente o poder de manter o vínculo formal. Por outro lado, ressalta-se a importância de medidas complementares: acesso gratuito a advogado ou defensor público, apoio psicossocial, e orientação para que a mulher não apenas encerre o estado civil, mas também obtenha, se necessário, pensão alimentícia e arranjos de guarda que assegurem a proteção dos filhos. Políticas públicas devem ser orientadas para garantir que a mulher que se divorcia unilateralmente tenha suporte para reorganizar sua vida patrimonial e familiar, evitando que a liberdade formal resulte em vulnerabilidade material. Com isso, o divórcio unilateral extrajudicial configura um avanço civilizatório ao privilegiar a liberdade individual e a dignidade, de pessoas que vivem em situação de dependência ou violência. A formalização célere do fim do vínculo conjugal não esgota as demandas patrimoniais e familiares, mas representa primeiro passo essencial para que a mulher retome o controle de sua vida. A conjunção de previsões legais (como no PL 3.457/19 e no anteprojeto do Código Civil, art. 1.582-A), decisões judiciais que reforcem a natureza potestativa do divórcio e atuação acolhedora dos cartórios, embora ainda careçam de uma regulamentação clara e objetiva, podem e devem ser aprimoradas, juntamente com políticas públicas de assistência jurídica e social, delineia caminho para que o divórcio deixe de ser, aos vulneráveis, obstáculo intransponível, transformando-se em mecanismo efetivo de liberdade e proteção. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.   **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. _________ 1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 2 JABLONSKI, B. Até que a vida nos separe:  a crise no casamento contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1998 3 Cerveny, C. M. O. (2002). Pensando a família sistemicamente. In C. M. O. Cerveny & C. M. E. Berthoud (Eds.), Visitando a família ao longo do ciclo vital (pp. 15-28). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 5 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Juiz decreta divórcio em decisão liminar sem manifestação do outro cônjuge. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 6 Superior Tribunal de Justiça. Morte de cônjuge durante o processo não impede decretação do divórcio se houve concordância em vida. Secretaria de Comunicação Social, 04 jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 7 Disponível aqui. 8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação CNJ n.º 36, de 30 de maio de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 9 BRASIL. Projeto de Lei n.º 3.457, de 2019. Senado Federal. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 10 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas para a Revisão e Atualização do Código Civil. Emenda nº 52 ao Anteprojeto do Novo Código Civil - Art. 1.582-A. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 11 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas para a Revisão e Atualização do Código Civil. Emenda nº 9, de 2023 - CJDCODCIVIL. Redação proposta ao Art. 1.582-A do Texto Final do Anteprojeto. Disponível aqui. Acesso em: 16/6/25. 12 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025. Pág 601 e seguintes.
Antes de iniciar o artigo, gostaria de registrar o orgulho de integrar a UMA, um coletivo que tem sido fundamental para o apoio, a troca de experiências e o fortalecimento das mulheres advogadas em um ambiente jurídico ainda majoritariamente masculino. Agradeço o espaço para discutir tecnicamente uma questão de grande relevância para o Direito e processo criminal: a (i)legalidade do compartilhamento de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira pelo Coaf a pedido de autoridades de persecução penal. Como é de conhecimento de quem acompanha a matéria, essa discussão tem sido objeto de intensos debates judiciais. Em 2019, ao julgar o RE 1.055.941 (Tema 990), o STF admitiu o compartilhamento, sem autorização prévia, de RIFs e de procedimentos da Receita Federal, desde que respeitados quatro requisitos: (i) sigilo; (ii) existência de procedimento formalmente instaurado; (iii) possibilidade de controle judicial posterior; e (iv) uso de canais oficiais. Após o julgamento, remanesceu a dúvida sobre a legalidade do compartilhamento dos RIFs nas hipóteses em que a iniciativa não parte do Coaf, mas das próprias autoridades de persecução penal, que solicitam diretamente tais informações ao órgão. No âmbito do STJ, as turmas com competência criminal apresentavam entendimentos divergentes sobre o tema. A 6ª turma considerava ilícito o compartilhamento de RIFs mediante solicitação direta das autoridades de persecução penal, sem prévia autorização judicial1. Já a 5ª turma admitia o intercâmbio de informações, desde que houvesse um procedimento de investigação formalmente instaurado, afastando a licitude em casos de procedimentos de apuração prévios às investigações criminais2. Diante da divergência, a matéria foi afetada à 3ª seção do STJ, no julgamento conjunto do agravo no REsp 2.150.571, do RHC 196.150 e do RHC 174.173. Por maioria, a seção concluiu pela ilegalidade do compartilhamento, sem autorização judicial, de relatórios de inteligência financeira pelo Coaf a pedido de autoridades penais. Nos termos do acórdão no AgRg no REsp 2.150.571: 3. O compartilhamento de dados financeiros por meio de solicitação direta pelos órgãos de persecução penal sem autorização judicial não é permitido, conforme interpretação do art. 15 da lei 9.613/1998. 4. A decisão do STF no Tema 990 da repercussão geral não abrange a solicitação direta de dados financeiros por autoridades de persecução penal, mas apenas o compartilhamento de informações do Coaf e da Receita Federal para esses órgãos. 5. A autorização judicial constitui elemento material necessário para a solicitação direta de informações sigilosas, sobrepondo-se a qualquer discussão sobre a natureza jurídica de um procedimento formal. No âmbito do STF, o tema ainda não foi uniformizado. A 1ª turma entende que o compartilhamento dos RIFs a pedido das autoridades foi objeto de deliberação pelo plenário no julgamento do Tema 990, constando expressamente do voto dos ministros naquela oportunidade3. Além disso, admite a licitude desse compartilhamento mesmo antes da instauração de procedimentos investigativos, abrangendo fases preliminares como "notícia-crime em verificação" e "notícia de fato"4. A 2ª turma do STF, por seu turno, ao tratar do compartilhamento de dados entre a Receita Federal e as autoridades penais, matéria que também integrou o julgamento do Tema 990, decidiu ser ilegal a solicitação direta de dados fiscais pelo Ministério Público, utilizando o precedente citado como referência5. Após a uniformização do entendimento na 3ª seção do STJ, a matéria já é objeto de dois processos conhecidos no STF, que questionam o entendimento do Tribunal Superior: a Rcl 79.982/SP e o RE 1.537.165, este último com repercussão geral já reconhecida. Adicionalmente, está pendente de julgamento no STF a ADI 7624 ajuizada pelo CFOAB - Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da qual se pleiteia a interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 15 da lei 9.613/1998 (LLD - lei de lavagem de dinheiro), que trata da possibilidade de compartilhamento de informações do Coaf com os órgãos de persecução penal. Diante desse contexto, o STF deverá, em breve, definir os contornos constitucionais da matéria. Neste cenário, o objetivo deste artigo é contribuir com a resposta a duas questões centrais: (a) a legalidade do compartilhamento de RIFs a pedido de autoridades de persecução penal e sem autorização judicial foi efetivamente decidida no julgamento do Tema 990? E, caso positivo, (b) os fundamentos adotados naquela ocasião permanecem adequados ou há razões jurídicas supervenientes que justifiquem um overruling desse entendimento? Para responder ao primeiro questionamento, é necessário atentar à distinção entre ratio decidendi e oibter dictum. Como ensina Danyelle Galvão, no primeiro caso, considera-se "a tese jurídica utilizada para solucionar o caso concreto, construindo uma norma jurídica geral e abstrata que poderá ser utilizada em casos futuros, a depender da similitude fática"6. Ainda segundo a autora, a ratio decidendi "não se confunde com a fundamentação da decisão judicial, apesar de nela se encontrar"7. O obter dictum, por sua vez, consiste em "um argumento incidental, lateral ou comentário/observação tangencial de passagem que não possui importância para a solução do caso concreto ou que não é objeto da causa"8.  Em outras palavras, fica claro que nem tudo o que é mencionado em um precedente adquire força vinculante: apenas a ratio decidendi deve ser observada em casos futuros. Fixadas essas premissas, a leitura do acórdão proferido no julgamento do Tema 990 permite concluir que, embora alguns Ministros tenham feito referências ao compartilhamento de relatórios de inteligência a pedido das autoridades penais, essa questão não integrou a ratio decidendi da decisão. O objeto fático-jurídico efetivamente julgado dizia respeito ao compartilhamento de informações sigilosas por iniciativa da Receita Federal e do Coaf - e não à via inversa. Adicionalmente, a menção ao fluxo inverso (autoridade ? Coaf) surgiu apenas de forma incidental, em razão de nota explicativa encaminhada pelo próprio Coaf durante o trâmite do processo. Tal referência foi acessória e não essencial para o deslinde da controvérsia, o que reforça seu caráter de obiter dictum. Nada obstante, ainda que fosse possível considerar que o compartilhamento dos RIFs a pedido das autoridades integrou a ratio decidendi e formou a tese vinculante, é necessário investigar se há modificações no cenário social e/ou jurídico que permitam avaliar a necessidade de superação do precedente (overruling). No cenário jurídico, a mudança é evidente. Como ensina Heloísa Estellita9, ao tempo do julgamento do Tema 990 (ano de 2019), ainda não havia sido promulgada a EC 115/22 - que incluiu expressamente a proteção de dados pessoais no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, LXXIX) - nem entrado em vigor a LGPD - lei 13.709/18). Esta alteração jurídica tem impacto significativo e direto sobre a questão aqui tratada. O reconhecimento expresso do direito à proteção de dados como direito fundamental subordina a intervenção estatal e penal nesta esfera de direitos à regra da abstenção e exceção de intervenção, que, conforme Heloísa Estellita, possui três pressupostos: um formal, que exige que toda "intervenção tem de ser veiculada em lei em sentido formal, ou seja, uma autorização democrática dada pelo legislador"10 e dois materiais, que consistem na vedação de atingir o núcleo dos direitos fundamentais e na necessidade de proporcionalidade11. Não há dúvidas de que a elaboração de RIFs pelo Coaf pressupõe diversas operações de tratamento de dados dos cidadãos12- sejam financeiros, sensíveis ou protegidos pelo sigilo -, como a coleta e recepção, o processamento, a avaliação, o armazenamento e a comunicação de dados13. Todas essas atividades devem observar, de forma estrita, os limites e as condições estabelecidos em lei em sentido formal. Ao se analisar a LLD, verifica-se que o sistema de prevenção ali instituído autoriza apenas operações específicas de tratamento de dados, em um fluxo informacional único. Nos termos dos arts. 10 e 11 da LLD, os sujeitos obrigados devem coletar e avaliar dados de seus clientes, monitorar as operações realizadas com ou por eles e, ao identificarem situações suspeitas, comunicar tais operações ao Coaf14. Este, por sua vez, recebe, processa e avalia essas informações (art. 3º da lei 13.974/20) e, caso identifique indícios de crime, encaminha-as às autoridades de persecução penal, nos termos do art. 15 da LLD. Essa comunicação ocorre via sistema próprio (SEI-C), por meio dos RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira. O sistema legal é, portanto, de mão única: os dados são coletados e avaliados pelos sujeitos obrigados e comunicados ao Coaf, que, após processamento e análise, pode compartilhá-los com as autoridades de persecução penal, sempre por iniciativa própria do órgão de inteligência. A via oposta - ou seja, o fluxo de informações das autoridades de persecução penal para o Coaf, com pedidos de compartilhamento - envolve um conjunto de operações de tratamento de dados sem base legal, disciplinadas apenas por normas infralegais. Essa prática, surgida na rotina institucional, foi posteriormente incorporada por atos normativos como a resolução BCB 427/24 e o decreto 9.663/19. Tais instrumentos ampliaram, sem respaldo em lei formal, a competência do Coaf para receber comunicações de autoridades públicas e do público em geral, além de autorizarem o compartilhamento de informações mediante solicitação dos órgãos de persecução penal - atividades que não encontram previsão nem autorização na LLD. Ante o exposto, uma análise atenta da LLD permite concluir que o compartilhamento de RIFs pelo Coaf a pedido de autoridades penais, sem autorização judicial, não cumpre sequer o primeiro requisito do regime jurídico de proteção de dados, qual seja, a existência de base legal em sentido formal. Adicionalmente, como afirmaram Heloisa Estellita e Orlandino Gleizer em parecer juntado no Resp 2.150.571, o compartilhamento de RIFs a pedido das autoridades, além de ilegal fere o princípio da separação informacional: "Franquear ao Ministério Público ou à Polícia a provocação para o acesso a dados, cobertos ou não por sigilo financeiro, armazenados pelo Coaf (...) anularia o regime constitucional (e infraconstitucional) de proteção de dados ao criar uma verdadeira fusão informacional entre órgãos que têm finalidades e autorizações distintas para o tratamento de dados. Por essa via, Ministério Público e/ou Polícia Judiciária teriam acesso a um imenso conjunto de dados que o legislador outorgou apenas ao Coaf, e o faria igualmente contornando a reserva de jurisdição prevista na LC 105/2001"15. Trata-se, portanto, de uma violação direta ao direito fundamental à proteção de dados pessoais. Quanto à elaboração dos RIFs e seu encaminhamento de ofício, a embora exista regramento legal sobre a matéria, entendemos que as normas atualmente vigentes são insuficientes para assegurar a proporcionalidade dessa intervenção estatal. Não há, por exemplo, qualquer previsão sobre o conteúdo dos RIFs - se podem conter, por exemplo, informações de terceiros ou dados sobre a investigação interna realizados pelos sujeitos obrigados ou dados de fontes abertas. Além dessas lacunas, chama atenção o fato de que as hipóteses de coleta ativa de dados pelo Coaf também são bastante restritas do ponto de vista legal, embora tenham sido ampliadas por resoluções infralegais e pela prática administrativa. As únicas previsões expressas encontram-se no art. 10, V, e no art. 14, § 2º, da LLD. O primeiro impõe aos sujeitos obrigados o dever de atender às requisições do órgão, desde que observados os critérios de forma, periodicidade e condições previamente estabelecidos. O segundo autoriza o Coaf a requisitar informações cadastrais, bancárias e financeiras exclusivamente a órgãos da Administração Pública. O decreto 9.663/19, contudo, ampliou ilegalmente essas hipóteses ao prever, em seu art. 11, V, a possibilidade de requisição de informações a quaisquer órgãos e entidades públicas e privadas - extrapolando os limites fixados pela legislação em sentido formal. Por fim, inexiste qualquer previsão legal sobre a exclusão de dados das bases do Coaf, que, segundo informações oficiais do próprio órgão, já acumula mais de 57 milhões de comunicações de operações suspeitas16. Diante desse quadro, o STF tem, agora, a oportunidade de revisar o tema de forma mais ampla e sistemática, estabelecendo parâmetros que adequem o fluxo de informações dos cidadãos às garantias constitucionais de proteção de dados, devido processo legal e proporcionalidade na intervenção estatal sobre direitos fundamentais. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.   **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. __________ 1 Precedentes representativos deste entendimento: RHC n. 147.707/PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 24/8/2023; AgRg no HC n. 876.250/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 1/7/2024, DJe de 3/7/2024; HC n. 943.710/SC, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024; RHC n. 203.373/SC, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024; RHC n. 201.841/PI, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 20/3/2025, DJEN de 28/3/2025; RHC n. 203.578/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 5/11/2024, DJe de 7/11/2024. 2 AgRg no RHC n. 187.335/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 28/6/2024; EDcl no AgRg no RHC n. 188.838/PE, relator Ministro Ribeiro Dantas, relatora para acórdão Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 24/9/2024, DJe de 14/10/2024 3 Rcl 61944 AgR, Relator(a): CRISTIANO ZANIN, Primeira Turma, julgado em 02-04-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-05-2024 PUBLIC 28-05-2024 4 Rcl 70191 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 12-11-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-11-2024 PUBLIC 19-11-2024 5 RE 1.393.219 AgR, Rel. Ministro Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 01/07/2024 Public 10/07/2024 6 GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo penal. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 78. 7 Op. Cit, p. 77 8 Op. Cit, p. 78. 9 ESTELLITA, Heloisa. O RE 1.055.941: um pretexto para explorar alguns limites à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e difusão de dados pessoais pelo COAF.  Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 100, 2022. DOI: 10.11117/rdp.v18i100.5991. Disponível aqui. Acesso em: 16/10/24. 10 Op. Cit, p. 6 11 Idem, ibidem. 12 Utiliza-se aqui a definição do art.5º, X, da LGPD 13 Neste sentido, ver ESTELLITA, Heloisa. Op Cit, p. 16 14 Idem, ibidem. 15 ESTELLITA, Heloísa; GLEIZER, Orlandino. Disseminação de RIF pelo COAF mediante provocação das autoridades de persecução penal. Parecer técnico juntado aos autos do REsp nº 1.215.057/SP, 2023. 16 CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS - COAF. Relatório integrado de gestão: exercício de 2024. Brasília: COAF, mar. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 2/5/25. p. 34
A seletividade do sistema penal brasileiro não é novidade. Jovens, pretos e pobres sempre foram desproporcionalmente visados pela persecução penal e formam a esmagadora maioria da população carcerária. Essa distorção revela um padrão estrutural que transforma desigualdades sociais em critérios implícitos de criminalização. Quando o réu é mulher, a seletividade opera com uma camada adicional. A criminalização feminina carrega consigo o julgamento de papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao gênero. A mulher que chega ao banco dos réus é, frequentemente, também acusada por não ter sido a mãe protetora, a esposa devotada, a cuidadora atenta. Seu processo penal carrega o peso simbólico da "falha moral", da "violação de expectativas sociais", e não apenas a análise jurídica da tipicidade, ilicitude e culpabilidade do fato. Assim, a seletividade penal que atinge as mulheres é qualitativa: mais do que punir o ato, visa corrigir a mulher, reeducá-la e enquadrá-la em normas de comportamento que reproduzem a lógica patriarcal. Compreender a atuação do sistema de justiça em relação às mulheres requer mais do que contabilizar números - exige a análise interseccional que leve em conta como gênero, raça e classe moldam a resposta punitiva do Estado. Entre as imputações mais recorrentes contra mulheres, destacam-se os casos de aborto, omissão materna, tráfico de pequenas quantidades de drogas e legítima defesa em contexto de violência doméstica. Em todos esses exemplos, a resposta penal ignora contextos de violência, coação, pobreza e desigualdade, revelando que a pretensa neutralidade do Direito Penal funciona, na prática, como uma engrenagem de reprodução de exclusões sociais e de gênero. No caso do aborto, embora estimativas apontem mais de 500 mil procedimentos clandestinos anuais no Brasil, a persecução penal recai quase exclusivamente sobre mulheres pobres, pretas e atendidas pelo SUS. Estudo da UFPR analisou 43 decisões judiciais e verificou que em 37,2% dos casos a denúncia partiu de profissionais de saúde da rede pública, em violação ao dever legal de sigilo (art. 154, CP) e à proteção constitucional da intimidade (art. 5º, X, CF). Apesar dessas ilegalidades, são raras as decisões que reconhecem a nulidade do processo ou acolhem excludentes como o estado de necessidade (art. 24, CP) ou a inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, CP). Outro estudo, realizado pela USP em parceria com a Columbia Law School, demonstrou empiricamente que a criminalização do aborto é seletiva e atravessada por discursos moralizantes. Juízes e promotores costumeiramente recorrem a expressões como "frieza", "torpeza" ou "desumanidade" para descrever o ato de aborto e qualificam a mulher como "prostituta" e "insensível", desqualificando-a não apenas como agente do fato típico, mas como mulher. A imputação penal converte-se em punição moral, sustentada em estereótipos de maternidade compulsória e papéis sociais idealizados. Esse julgamento moral também se manifesta nas acusações por omissão em crimes praticados por terceiros contra seus filhos - muitas vezes por companheiros violentos. Impõe-se às mães um padrão de vigilância onipresente. Ao invés de reconhecer a coação física e moral que elas mesmas sofrem, a dependência emocional, a ausência de rede de apoio e os riscos reais de reação, o Judiciário ignora a exigibilidade de conduta diversa e aplica de forma inadequada a teoria do garantidor (art. 13, §2º, CP). A omissão materna, longe de representar ato doloso, decorre de condicionamentos severos que comprometem substancialmente a autodeterminação da mulher. A responsabilização penal, por isso, não pode se basear em padrões abstratos de cuidado materno ou em expectativas idealizadas de vigilância. Estudo empírico que analisou 130 acórdãos do TJ/SP revelou que o tratamento judicial conferido às mães difere substancialmente daquele aplicado aos pais. Das mulheres, espera-se presença constante, dedicação afetiva e superação das barreiras estruturais. Dos homens, pouco ou nada se exige. Enquanto a omissão paterna é naturalizada - tratada como desinteresse, ou simples ausência -, a omissão materna, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, é qualificada como falha grave, moralmente censurável e juridicamente relevante. O resultado é a assimetria estrutural no parâmetro de exigibilidade: a mesma conduta - como a ausência no cuidado direto e dedicado dos filhos - gera consequências distintas. Para as mães, pode levar à responsabilização penal e à perda do poder familiar; para os pais, raramente sequer entra em debate. Em síntese, a mulher é responsabilizada por cada falha e o homem perdoado por toda ausência. Quando o processo penal se volta às mulheres acusadas de tráfico, a seletividade ganha contornos ainda mais evidentes. Segundo o Infopen Mulheres (DEPEN, 2018), 62% das mulheres privadas de liberdade estão encarceradas por esse tipo penal. A maioria exerce funções coadjuvantes - especialmente como "mulas" - e vive em contextos marcados por precariedade social, dependência emocional e exclusão econômica. Levantamento da Defensoria Pública do Tocantins apontou que 77% ingressaram no crime por influência de companheiros. Ainda assim, o sistema tende a tratá-las como plenamente autônomas, ignorando os condicionamentos que atravessam suas trajetórias. A resolução 492/23 do CNJ, de aplicação obrigatória, impõe justamente o abandono dessa neutralidade aparente. Seu protocolo para julgamento com perspectiva de gênero orienta os magistrados a reconhecer o papel subalterno que muitas dessas mulheres ocupam no tráfico, frequentemente vinculado a relações de afeto, coação ou dependência. Essa posição estruturalmente desfavorecida - decorrente de fatores socioeconômicos e relacionais - deve ser considerada elemento central na análise da culpabilidade. É nesse cenário que se insere a noção de culpabilidade por vulnerabilidade, proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni. Em ruptura com a dogmática penal tradicional, a teoria desloca o juízo de culpabilidade para uma análise que considera a seletividade penal e os marcadores sociais de subordinação. Ao propor a integração da vulnerabilidade social, não se elimina a responsabilidade penal, mas se exige sua modulação à luz do esforço real da agente para resistir à criminalização. Por fim, nos casos em que mulheres reagem após anos de violência doméstica, o sistema penal brasileiro tem se mostrado refratário ao reconhecimento da legítima defesa (art. 25, CP). A jurisprudência desconsidera o contexto de opressão contínua, aplicando de forma rígida os parâmetros clássicos de atualidade e proporcionalidade. Ignoram-se os ciclos de violência e a escalada psicológica presentes nas relações abusivas. A doutrina penal tradicional parte de uma lógica binária do conflito. No entanto, na violência doméstica crônica, em que a mulher vive sob constante ameaça, a percepção de risco não pode ser avaliada por moldes clássicos. Por isso, necessária a ampliação do conceito de legítima defesa para abarcar tais contextos, reconhecendo a reação como resposta ao histórico de abusos reiterados. Vale lembrar que a Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo decreto 1.973/1996, impõe aos Estados o dever de adotar medidas de proteção às mulheres. A jurisprudência interamericana, como no caso Maria da Penha v. Brasil, reforça a responsabilidade internacional por falhas na prevenção e punição da violência doméstica. O sistema de justiça não é neutro. Penaliza não apenas condutas, mas condições sociais. No caso das mulheres, a punição opera com base em expectativas de gênero e na invisibilização da exclusão. No aborto, pune-se a autonomia; na omissão, pune-se a impotência; no tráfico, pune-se a pobreza e a submissão. Urge, portanto, repensar as respostas penais. É imprescindível fortalecer as Defensorias Públicas, capacitar magistrados e membros do Ministério Público para atuação com perspectiva de gênero e aplicar os princípios da insignificância, da justiça restaurativa e da culpabilidade por vulnerabilidade. O banco dos réus não pode seguir sendo o palco onde o Estado perpetua as violências que deveria combater. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação. **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. _______________________ BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito penal brasileiro: parte geral. v. 2, t. 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará. BRASIL. Resolução CNJ nº 254, de 4 de setembro de 2018. Dispõe sobre a política institucional do Poder Judiciário para a perspectiva de gênero na aplicação da justiça. COLUMBIA LAW SCHOOL; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Aborto no Brasil: falhas substantivas e processuais na criminalização de mulheres. Julho 2022. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS. Tráfico de drogas por influência dos companheiros está ligado ao encarceramento feminino. Palmas, 19 set. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Infopen Mulheres - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Princípios para a atuação da Defensoria Pública nas áreas criminal e de execução penal. Brasília: SENAPPEN, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. PLASTINO, Luisa Mozetic. Mães inaptas, pais incapazes: prisão e pobreza nas narrativas do Tribunal de Justiça de São Paulo para destituir o poder familiar. São Paulo: FGV Direito SP, 2022. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. RODRIGUES, Larissa Benevides; FERREIRA, Bruna Martins. Violência institucional e criminalização do aborto: uma análise empírica a partir de decisões judiciais brasileiras. Revista de Direito Público, v. 54, p. 93-112, jan./abr. 2020. SILVA, F. A. de A. O silêncio da mãe diante do abuso: a omissão materna. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, março 2020.
É com imensa alegria que anunciamos que a União de Mulheres Advogadas - UMA conseguiu este grandioso espaço para a publicação de uma coluna semanal sobre os mais variados ramos e temas do direito, sempre escritos por mulheres. Mas antes de apresentarmos os textos semanais, entendemos importante nos apresentarmos e contarmos nossa história até aqui. Em setembro de 2019, Danyelle Galvão e Claudia Bernasconi, advogadas criminalistas, resolveram chamar algumas amigas advogadas para um almoço exclusivamente entre mulheres, com a proposta de que cada amiga convidasse mais uma amiga. O objetivo era começar a realizar encontros periódicos para aproximar outras profissionais que geralmente só se veem em audiências e reuniões, com o objetivo de conectar advogadas de áreas diferentes para eventuais novos projetos profissionais. Mais de 50 advogadas foram a este primeiro encontro em São Paulo - SP, que contou com relato emocionado de JOYCE ROYSEN, reconhecida advogada criminalista e decana naquele evento, sobre as dificuldades de ser mulher na área jurídica e os benefícios da reunião feminina que se iniciava. Mais um encontro ocorreu em dezembro de 2019, com cerca de 80 profissionais de várias áreas. Outro almoço ficou marcado para meados de março, que acabou não acontecendo pelo início da pandemia. Decidiu-se, então, criar um grupo de whatsapp para que a tão almejada troca de experiências não se perdesse pela impossibilidade de encontro físico. Rapidamente mais de 150 advogadas ingressaram no grupo e inúmeras conversas e trocas pessoais, profissionais e cotidianas aconteceram. Paralelamente um pequeno grupo se formou para discutir sobre a escolha de um nome para o grupo, debater sobre a possibilidade de elaboração de um estatuto para formalização jurídica e criação de outros grupos de whatsapp temáticos por área do direito. Após uma votação democrática entre todas as participantes, decidiu-se por União de mulheres Advogadas - UMA. O "grupo de gestão", formado pelas advogadas que ora subscrevem este artigo além de Anna Paola Bonagura e Kathleen Militello, elaborou um estatuto social e criou uma marca, inclusive agora registrada no INPI, graças ao empenho da especialista no tema de marcas e advogada da UMA, LUCIANA ARRUDA, bem como abriu uma conta na rede social Instagram (uniao_de_mulheres_advogadas) para divulgação de palestras e eventos das participantes. Atualmente contamos com mais de 450 advogadas de todas as regiões do país e áreas. Além dos encontros maiores e anuais que acontecem em São Paulo, almoços e outros encontros já ocorreram em Salvador, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Lisboa, geralmente em datas coincidentes a congressos nestas cidades. A troca de experiências, indicações de trabalho, vagas, profissionais de outras expertises e incentivo são constantes. Advogadas de áreas, idades e origens diferentes apontam diariamente suas vitórias, dificuldades profissionais, dúvidas jurídicas, dúvidas sobre a carreira, estudos acadêmicos ou aspectos da vida pessoal. Amizades e parcerias surgiram, bem como projetos sociais de arrecadação e doação de roupas de trabalho, tampinhas plásticas para reciclagem, itens para os atingidos pela enchente em Porto Alegre/RS, cestas básicas e brinquedos para crianças, dentre outras. Um subgrupo de leitura de literatura russa surgiu, contratou uma professora supervisora e se reúne para aulas e debates. Candidaturas ao quinto constitucional de alguns tribunais, inclusive superiores, foram incentivadas, apoiadas e algumas vagas conquistadas. Inúmeros cargos na OAB foram conquistados pelas participantes, inclusive a presidência de seccionais, de comissões importantes e ocupação de cargos nos conselhos estaduais e federais. Além disso, ainda durante a pandemia, UMA das participantes questionou o grupo sobre onde poderia comprar uma beca. Foi a oportunidade perfeita para discutir o motivo pelo qual não existia uma beca feminina. Decidiu-se, então, buscar modelos e uma estilista para confeccionar UMA beca feminina. A estilista Marciana Souza (fuerzafeminina.com.br) topou o desafio e criou uma beca linda, transpassada, que usa renda renascença feita à mão por rendeiras do Nordeste. A ideia da beca, lindamente realizada pela Marciana, trouxe também uma mensagem de que os ambientes do sistema de Justiça devem ser mais justos e paritários, preservando-se a identidade de cada uma. No entanto, o mais importante até agora foi o espírito incentivador e colaborativo instalado no grupo e nas participantes. A UMA é realmente um grupo de união de mulheres advogadas. E esta coluna, com muita alegria, poderá expor mais um pouco do trabalho que cada uma vem fazendo. Com isso, objetiva-se mostrar que a mulher pode sim discutir sobre temas diversificados e se apresentar como especialistas e autoridades em assuntos diversos e complexos dentro do direito. E assim, se verá a potência do feminino unido. Somos UMA por todas e todas por UMA. Sejam todas e todos muito bem-vindos. __________ Comitê de gestão: Clarissa Holfling - Advogada criminalista, sócia fundadora do escritório Höfling Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (GVLaw), Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD). Cursou, também, Governança Corporativa e Compliance na INSPER (Instituto de Ensino e Pesquisa) e Gestão de Riscos e Compliance na FIA Business School. Atuou como relatora presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados de São Paulo no triênio de 2022 a 2024 e é professora de Compliance Criminal no Damásio Educacional. Claudia Bernasconi - Advogada Criminalista, sócia do escritório Joyce Roysen Advogados, Conselheira Estadual da OAB/SP e Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Danyelle Galvão - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Galvão & Raca Advogados, doutora pela USP, professora. Giulia De Felippo Moretti - Advogada Criminalista no escritório Rosner Fadul Sociedade de Advogados, pós-graduada em Direito Penal Econômico e em Direito Digital pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Maira Salomi - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Salomi Advocacia Criminal. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Doutoranda e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Marina Toth - Advogada Criminalista e de Compliance Criminal (Certificação Profissional CPC-A). Sócia fundadora do Toth e Gomez Advogados. Mestre em Direito (LL.M) pela Universidade de Michigan (EUA) e pós-graduada pela Universidade de Nova Iorque (NYU SPCS). M.B.A. pela FIA Business School. Nara Nishizawa - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Nishizawa Advocacia, mestre em raciocínio probatório pela Universidade de Girona e Universidade de Gênova. Mestranda em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Priscila Pamela dos Santos - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Priscila Pamela Santos Advocacia, mestre pela USP. Renata Mariz de Oliveira - Advogada Criminalista, sócia da Advocacia Mariz de Oliveira, Presidente da AASP.