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UMA Migalhas

Os mais variados ramos e temas do Direito, sempre escritos por mulheres.

Clarissa Höfling, Claudia Bernasconi e Danyelle Galvão
A seletividade do sistema penal brasileiro não é novidade. Jovens, pretos e pobres sempre foram desproporcionalmente visados pela persecução penal e formam a esmagadora maioria da população carcerária. Essa distorção revela um padrão estrutural que transforma desigualdades sociais em critérios implícitos de criminalização. Quando o réu é mulher, a seletividade opera com uma camada adicional. A criminalização feminina carrega consigo o julgamento de papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao gênero. A mulher que chega ao banco dos réus é, frequentemente, também acusada por não ter sido a mãe protetora, a esposa devotada, a cuidadora atenta. Seu processo penal carrega o peso simbólico da "falha moral", da "violação de expectativas sociais", e não apenas a análise jurídica da tipicidade, ilicitude e culpabilidade do fato. Assim, a seletividade penal que atinge as mulheres é qualitativa: mais do que punir o ato, visa corrigir a mulher, reeducá-la e enquadrá-la em normas de comportamento que reproduzem a lógica patriarcal. Compreender a atuação do sistema de justiça em relação às mulheres requer mais do que contabilizar números - exige a análise interseccional que leve em conta como gênero, raça e classe moldam a resposta punitiva do Estado. Entre as imputações mais recorrentes contra mulheres, destacam-se os casos de aborto, omissão materna, tráfico de pequenas quantidades de drogas e legítima defesa em contexto de violência doméstica. Em todos esses exemplos, a resposta penal ignora contextos de violência, coação, pobreza e desigualdade, revelando que a pretensa neutralidade do Direito Penal funciona, na prática, como uma engrenagem de reprodução de exclusões sociais e de gênero. No caso do aborto, embora estimativas apontem mais de 500 mil procedimentos clandestinos anuais no Brasil, a persecução penal recai quase exclusivamente sobre mulheres pobres, pretas e atendidas pelo SUS. Estudo da UFPR analisou 43 decisões judiciais e verificou que em 37,2% dos casos a denúncia partiu de profissionais de saúde da rede pública, em violação ao dever legal de sigilo (art. 154, CP) e à proteção constitucional da intimidade (art. 5º, X, CF). Apesar dessas ilegalidades, são raras as decisões que reconhecem a nulidade do processo ou acolhem excludentes como o estado de necessidade (art. 24, CP) ou a inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, CP). Outro estudo, realizado pela USP em parceria com a Columbia Law School, demonstrou empiricamente que a criminalização do aborto é seletiva e atravessada por discursos moralizantes. Juízes e promotores costumeiramente recorrem a expressões como "frieza", "torpeza" ou "desumanidade" para descrever o ato de aborto e qualificam a mulher como "prostituta" e "insensível", desqualificando-a não apenas como agente do fato típico, mas como mulher. A imputação penal converte-se em punição moral, sustentada em estereótipos de maternidade compulsória e papéis sociais idealizados. Esse julgamento moral também se manifesta nas acusações por omissão em crimes praticados por terceiros contra seus filhos - muitas vezes por companheiros violentos. Impõe-se às mães um padrão de vigilância onipresente. Ao invés de reconhecer a coação física e moral que elas mesmas sofrem, a dependência emocional, a ausência de rede de apoio e os riscos reais de reação, o Judiciário ignora a exigibilidade de conduta diversa e aplica de forma inadequada a teoria do garantidor (art. 13, §2º, CP). A omissão materna, longe de representar ato doloso, decorre de condicionamentos severos que comprometem substancialmente a autodeterminação da mulher. A responsabilização penal, por isso, não pode se basear em padrões abstratos de cuidado materno ou em expectativas idealizadas de vigilância. Estudo empírico que analisou 130 acórdãos do TJ/SP revelou que o tratamento judicial conferido às mães difere substancialmente daquele aplicado aos pais. Das mulheres, espera-se presença constante, dedicação afetiva e superação das barreiras estruturais. Dos homens, pouco ou nada se exige. Enquanto a omissão paterna é naturalizada - tratada como desinteresse, ou simples ausência -, a omissão materna, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, é qualificada como falha grave, moralmente censurável e juridicamente relevante. O resultado é a assimetria estrutural no parâmetro de exigibilidade: a mesma conduta - como a ausência no cuidado direto e dedicado dos filhos - gera consequências distintas. Para as mães, pode levar à responsabilização penal e à perda do poder familiar; para os pais, raramente sequer entra em debate. Em síntese, a mulher é responsabilizada por cada falha e o homem perdoado por toda ausência. Quando o processo penal se volta às mulheres acusadas de tráfico, a seletividade ganha contornos ainda mais evidentes. Segundo o Infopen Mulheres (DEPEN, 2018), 62% das mulheres privadas de liberdade estão encarceradas por esse tipo penal. A maioria exerce funções coadjuvantes - especialmente como "mulas" - e vive em contextos marcados por precariedade social, dependência emocional e exclusão econômica. Levantamento da Defensoria Pública do Tocantins apontou que 77% ingressaram no crime por influência de companheiros. Ainda assim, o sistema tende a tratá-las como plenamente autônomas, ignorando os condicionamentos que atravessam suas trajetórias. A resolução 492/23 do CNJ, de aplicação obrigatória, impõe justamente o abandono dessa neutralidade aparente. Seu protocolo para julgamento com perspectiva de gênero orienta os magistrados a reconhecer o papel subalterno que muitas dessas mulheres ocupam no tráfico, frequentemente vinculado a relações de afeto, coação ou dependência. Essa posição estruturalmente desfavorecida - decorrente de fatores socioeconômicos e relacionais - deve ser considerada elemento central na análise da culpabilidade. É nesse cenário que se insere a noção de culpabilidade por vulnerabilidade, proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni. Em ruptura com a dogmática penal tradicional, a teoria desloca o juízo de culpabilidade para uma análise que considera a seletividade penal e os marcadores sociais de subordinação. Ao propor a integração da vulnerabilidade social, não se elimina a responsabilidade penal, mas se exige sua modulação à luz do esforço real da agente para resistir à criminalização. Por fim, nos casos em que mulheres reagem após anos de violência doméstica, o sistema penal brasileiro tem se mostrado refratário ao reconhecimento da legítima defesa (art. 25, CP). A jurisprudência desconsidera o contexto de opressão contínua, aplicando de forma rígida os parâmetros clássicos de atualidade e proporcionalidade. Ignoram-se os ciclos de violência e a escalada psicológica presentes nas relações abusivas. A doutrina penal tradicional parte de uma lógica binária do conflito. No entanto, na violência doméstica crônica, em que a mulher vive sob constante ameaça, a percepção de risco não pode ser avaliada por moldes clássicos. Por isso, necessária a ampliação do conceito de legítima defesa para abarcar tais contextos, reconhecendo a reação como resposta ao histórico de abusos reiterados. Vale lembrar que a Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo decreto 1.973/1996, impõe aos Estados o dever de adotar medidas de proteção às mulheres. A jurisprudência interamericana, como no caso Maria da Penha v. Brasil, reforça a responsabilidade internacional por falhas na prevenção e punição da violência doméstica. O sistema de justiça não é neutro. Penaliza não apenas condutas, mas condições sociais. No caso das mulheres, a punição opera com base em expectativas de gênero e na invisibilização da exclusão. No aborto, pune-se a autonomia; na omissão, pune-se a impotência; no tráfico, pune-se a pobreza e a submissão. Urge, portanto, repensar as respostas penais. É imprescindível fortalecer as Defensorias Públicas, capacitar magistrados e membros do Ministério Público para atuação com perspectiva de gênero e aplicar os princípios da insignificância, da justiça restaurativa e da culpabilidade por vulnerabilidade. O banco dos réus não pode seguir sendo o palco onde o Estado perpetua as violências que deveria combater. _______________________ BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito penal brasileiro: parte geral. v. 2, t. 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará. BRASIL. Resolução CNJ nº 254, de 4 de setembro de 2018. Dispõe sobre a política institucional do Poder Judiciário para a perspectiva de gênero na aplicação da justiça. COLUMBIA LAW SCHOOL; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Aborto no Brasil: falhas substantivas e processuais na criminalização de mulheres. Julho 2022. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS. Tráfico de drogas por influência dos companheiros está ligado ao encarceramento feminino. Palmas, 19 set. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Infopen Mulheres - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Princípios para a atuação da Defensoria Pública nas áreas criminal e de execução penal. Brasília: SENAPPEN, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. PLASTINO, Luisa Mozetic. Mães inaptas, pais incapazes: prisão e pobreza nas narrativas do Tribunal de Justiça de São Paulo para destituir o poder familiar. São Paulo: FGV Direito SP, 2022. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. RODRIGUES, Larissa Benevides; FERREIRA, Bruna Martins. Violência institucional e criminalização do aborto: uma análise empírica a partir de decisões judiciais brasileiras. Revista de Direito Público, v. 54, p. 93-112, jan./abr. 2020. SILVA, F. A. de A. O silêncio da mãe diante do abuso: a omissão materna. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, março 2020.
É com imensa alegria que anunciamos que a União de Mulheres Advogadas - UMA conseguiu este grandioso espaço para a publicação de uma coluna semanal sobre os mais variados ramos e temas do direito, sempre escritos por mulheres. Mas antes de apresentarmos os textos semanais, entendemos importante nos apresentarmos e contarmos nossa história até aqui. Em setembro de 2019, Danyelle Galvão e Claudia Bernasconi, advogadas criminalistas, resolveram chamar algumas amigas advogadas para um almoço exclusivamente entre mulheres, com a proposta de que cada amiga convidasse mais uma amiga. O objetivo era começar a realizar encontros periódicos para aproximar outras profissionais que geralmente só se veem em audiências e reuniões, com o objetivo de conectar advogadas de áreas diferentes para eventuais novos projetos profissionais. Mais de 50 advogadas foram a este primeiro encontro em São Paulo - SP, que contou com relato emocionado de JOYCE ROYSEN, reconhecida advogada criminalista e decana naquele evento, sobre as dificuldades de ser mulher na área jurídica e os benefícios da reunião feminina que se iniciava. Mais um encontro ocorreu em dezembro de 2019, com cerca de 80 profissionais de várias áreas. Outro almoço ficou marcado para meados de março, que acabou não acontecendo pelo início da pandemia. Decidiu-se, então, criar um grupo de whatsapp para que a tão almejada troca de experiências não se perdesse pela impossibilidade de encontro físico. Rapidamente mais de 150 advogadas ingressaram no grupo e inúmeras conversas e trocas pessoais, profissionais e cotidianas aconteceram. Paralelamente um pequeno grupo se formou para discutir sobre a escolha de um nome para o grupo, debater sobre a possibilidade de elaboração de um estatuto para formalização jurídica e criação de outros grupos de whatsapp temáticos por área do direito. Após uma votação democrática entre todas as participantes, decidiu-se por União de mulheres Advogadas - UMA. O "grupo de gestão", formado pelas advogadas que ora subscrevem este artigo além de Anna Paola Bonagura e Kathleen Militello, elaborou um estatuto social e criou uma marca, inclusive agora registrada no INPI, graças ao empenho da especialista no tema de marcas e advogada da UMA, LUCIANA ARRUDA, bem como abriu uma conta na rede social Instagram (uniao_de_mulheres_advogadas) para divulgação de palestras e eventos das participantes. Atualmente contamos com mais de 450 advogadas de todas as regiões do país e áreas. Além dos encontros maiores e anuais que acontecem em São Paulo, almoços e outros encontros já ocorreram em Salvador, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Lisboa, geralmente em datas coincidentes a congressos nestas cidades. A troca de experiências, indicações de trabalho, vagas, profissionais de outras expertises e incentivo são constantes. Advogadas de áreas, idades e origens diferentes apontam diariamente suas vitórias, dificuldades profissionais, dúvidas jurídicas, dúvidas sobre a carreira, estudos acadêmicos ou aspectos da vida pessoal. Amizades e parcerias surgiram, bem como projetos sociais de arrecadação e doação de roupas de trabalho, tampinhas plásticas para reciclagem, itens para os atingidos pela enchente em Porto Alegre/RS, cestas básicas e brinquedos para crianças, dentre outras. Um subgrupo de leitura de literatura russa surgiu, contratou uma professora supervisora e se reúne para aulas e debates. Candidaturas ao quinto constitucional de alguns tribunais, inclusive superiores, foram incentivadas, apoiadas e algumas vagas conquistadas. Inúmeros cargos na OAB foram conquistados pelas participantes, inclusive a presidência de seccionais, de comissões importantes e ocupação de cargos nos conselhos estaduais e federais. Além disso, ainda durante a pandemia, UMA das participantes questionou o grupo sobre onde poderia comprar uma beca. Foi a oportunidade perfeita para discutir o motivo pelo qual não existia uma beca feminina. Decidiu-se, então, buscar modelos e uma estilista para confeccionar UMA beca feminina. A estilista Marciana Souza (fuerzafeminina.com.br) topou o desafio e criou uma beca linda, transpassada, que usa renda renascença feita à mão por rendeiras do Nordeste. A ideia da beca, lindamente realizada pela Marciana, trouxe também uma mensagem de que os ambientes do sistema de Justiça devem ser mais justos e paritários, preservando-se a identidade de cada uma. No entanto, o mais importante até agora foi o espírito incentivador e colaborativo instalado no grupo e nas participantes. A UMA é realmente um grupo de união de mulheres advogadas. E esta coluna, com muita alegria, poderá expor mais um pouco do trabalho que cada uma vem fazendo. Com isso, objetiva-se mostrar que a mulher pode sim discutir sobre temas diversificados e se apresentar como especialistas e autoridades em assuntos diversos e complexos dentro do direito. E assim, se verá a potência do feminino unido. Somos UMA por todas e todas por UMA. Sejam todas e todos muito bem-vindos. __________ Comitê de gestão: Clarissa Holfling - Advogada criminalista, sócia fundadora do escritório Höfling Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (GVLaw), Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD). Cursou, também, Governança Corporativa e Compliance na INSPER (Instituto de Ensino e Pesquisa) e Gestão de Riscos e Compliance na FIA Business School. Atuou como relatora presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados de São Paulo no triênio de 2022 a 2024 e é professora de Compliance Criminal no Damásio Educacional. Claudia Bernasconi - Advogada Criminalista, sócia do escritório Joyce Roysen Advogados, Conselheira Estadual da OAB/SP e Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Danyelle Galvão - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Galvão & Raca Advogados, doutora pela USP, professora. Giulia De Felippo Moretti - Advogada Criminalista no escritório Rosner Fadul Sociedade de Advogados, pós-graduada em Direito Penal Econômico e em Direito Digital pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Maira Salomi - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Salomi Advocacia Criminal. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Doutoranda e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Marina Toth - Advogada Criminalista e de Compliance Criminal (Certificação Profissional CPC-A). Sócia fundadora do Toth e Gomez Advogados. Mestre em Direito (LL.M) pela Universidade de Michigan (EUA) e pós-graduada pela Universidade de Nova Iorque (NYU SPCS). M.B.A. pela FIA Business School. Nara Nishizawa - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Nishizawa Advocacia, mestre em raciocínio probatório pela Universidade de Girona e Universidade de Gênova. Mestranda em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Priscila Pamela dos Santos - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Priscila Pamela Santos Advocacia, mestre pela USP. Renata Mariz de Oliveira - Advogada Criminalista, sócia da Advocacia Mariz de Oliveira, Presidente da AASP.