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Imunização e desinformação: A responsabilidade penal do médico na disseminação de fake news sobre vacinas

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Atualizado em 16 de setembro de 2025 09:20

A vacinação, reconhecida como uma das mais eficazes intervenções em saúde pública, é considerada fundamental pelos órgãos de saúde mundiais e nacionais para a erradicação e o controle de diversas doenças infecciosas. Contudo, nos últimos anos, o mundo tem assistido a preocupante queda nas taxas de cobertura vacinal e o Brasil está inserido nesse contexto. 

O resultado foi o aumento de doenças anteriormente controladas ou erradicadas no país, tais como sarampo, poliomielite, meningite, rubéola e difteria.

Essa regressão é multifacetada, mas a proliferação de desinformação tem papel central. A pandemia de Covid-19, paradoxalmente, apesar de evidenciar a urgência das vacinas, também serviu como catalisador para a amplificação de narrativas antivacina, muitas vezes infundadas e alarmistas, alimentando a hesitação vacinal.

Uma evidência são os dados apurados por pesquisa realizada pelo VCP - Vaccine Confidence Project, projeto que avalia a confiança em vacinas em 140 países. A pesquisa apurou que enquanto para 99% dos entrevistados brasileiros, a vacina era importante para as crianças, que 93% achavam as vacinas seguras, 94% as julgavam eficazes e 95% consideravam os imunizantes compatíveis com a crença dos brasileiros em 2015, em 2022, no final da pandemia, os mesmos percentuais caíram respectivamente para 88%, 88%, 87% e 79%.

A situação se agrava quando o desestímulo se dá pela atuação de médicos que, deliberadamente, desaconselham a vacinação obrigatória em ambientes de consulta ou em plataformas digitais ou em redes sociais, minando a confiança pública na medicina e na ciência1, com potencial prejuízo à saúde coletiva.

No Brasil, experimentamos até mesmo o discurso antivacina capitaneado por médico no Senado, em plena pandemia de coronavírus2

Nesse contexto, importante analisar se propagação da desinformação vacinal pelo profissional de medicina estão amparadas no ordenamento jurídico, restringindo a análise, neste artigo, às responsabilidades ética e penal.

2. A postura antivacina: Quebra de um dever ético-legal ou exercício da autonomia médica?

É certo que o Código de Ética Médica garanta ao profissional de medicina o exercício à profissão com autonomia, e lhe proíba de "renunciar à sua liberdade profissional" e de "permitir restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e correção do seu trabalho" (incisos I e II do Capítulo 1), contudo a suposta liberdade médica não é absoluta.

Ao analisar a normativa ético-profissional, que se extrai é que o dever de cuidado do médico é reforçado e transcende a esfera individual do atendimento, evidenciado pelo princípio ético presente no inciso XIV do mesmo Capítulo 1 ao impor ao médico o dever "assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação Sanitária e à legislação referente à saúde".

Nessa esteira, o mesmo Diploma traz no Capítulo II, inciso II, limitação ao direito da liberdade de indicar procedimento adequado ao paciente às "práticas cientificamente reconhecidas" e desde que "respeitada a legislação vigente", e a imposição pelo art. 21, do dever de colaborar com as autoridades sanitárias e a proibição de infringir a legislação pertinente.

Para melhor compreensão, a legislação pertinente à vacinação é imperioso ressaltar duas leis essenciais: a lei 6259/75, que institui no art. 3° o poder ao Ministério da Saúde definir as vacinações, inclusive as de caráter compulsório, e o Estatuto da Criança e do Adolescente que reafirma no art. 14, § 1° a obrigatoriedade da vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias - impondo o dever de imunização.

A interpretação sistemática desses dispositivos legais permite concluir que a conduta ativa do profissional em desestimular a vacinação tida como obrigatória pelo Ministério da Saúde à população geral ou colocada como recomendação às crianças e adolescentes, por si só, já é apta a configurar, em tese, infração ética.

Mas a quebra do dever ético também é verificada em condutas mais específicas.

Ao aconselhar a não-vacinação, o profissional pode praticar ou indicar atos que contrariam o art. 32, que veda ao médico "deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção (...) cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente".

Já quando se fala de divulgação e propagação ampla de desinformação sobre vacina, a conduta antiética pode ser enquadrada, ainda por contrariedade aos arts. 112 e 113 do Diploma Ético, que proíbem ao médico "divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico" e "divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente".

Nesse contexto, é preciso verificar o que entende o órgão tido como competente. 

Com efeito, desde 2021, o Conselho Federal de Medicina vem adotando uma postura de estimular a vacinação e esclarecer a eficácia, importância e segurança dos imunizantes, colocando posicionamentos contrários como exceção3-4, demonstrando que o órgão não considera verdadeiros as posições que consideram as vacinas ineficazes ou inseguras.

Disso se extrai que, ao impor o dever de obedecer as legislações de saúde vigentes e cooperar com as autoridades sanitárias e vedar a divulgação de informações inverídicas ou não reconhecidas na  normativa ético-profissional, o Conselho Federal de Medicina entende que o conhecimento técnico e a credibilidade do profissional da medicina impõem-lhe um ônus de responsabilidade maior sobre a veracidade e o impacto de suas manifestações ao de um cidadão comum, especialmente em um contexto de saúde pública - onde estão inseridas as políticas de vacinação - conferindo-lhe o dever, ao menos normativo, de zelar por esta.  

Por outro lado, também não há como amparar a disseminação de fake news sob o manto da liberdade de expressão, pois, da mesma forma que a autonomia médica, essa não é absoluta encontrando limites na proteção de outros direitos constitucionais, como a saúde pública e o próprio Direito. 

Os médicos, ao se formarem, juram ser fiéis à honestidade e a ciência. Logo, espera-se que exerça a medicina baseada em evidências, sendo que a disseminação de falsa informação sobre imunização não se qualifica como mera "opinião" ou "manifestação de pensamento", mas como um ato que deturpa a verdade científica e viola a confiança pública5.

3. Tipicidade penal da propagação de desinformação vacinal por médicos

Para análise da tipicidade penal, é preciso primeiramente relembrar as repercussões profundas no Direito Penal e Processual penal trazidas pela pandemia da Covid-19, em que se tensionou princípios constitucionais, e se forçou uma releitura de institutos clássicos diante da emergência sanitária, em especial aqueles relacionados à proteção da saúde pública. 

Por consequência, a utilização desses dispositivos não foi uniforme: houve debates sobre sua tipicidade, aplicabilidade e possível uso abusivo, já que as normas sanitárias variavam entre Estados e municípios, dificultando a definição clara da conduta proibida.

Contudo, ainda que o discurso antivacina tenha sido evidenciado no contexto pandêmico, no que tange à responsabilidade penal médica na disseminação de fake news sobre vacinas em geral é preciso analisar de é possível subsumi-la a tipos penais já existentes no ordenamento jurídico brasileiro. 

Em primeiro temos o art. 268 do CP com a configuração do crime de infração à medida sanitária preventiva, pelo qual pune-se a conduta de "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".

Infringir no tipo penal é no sentido de "violar, desrespeitar, ignorar, descumprir"6 determinação do Poder Público deverá ser destinada a impedir a introdução ou a propagação de doença contagiosa.

A política de imunização é uma medida sanitária preventiva de saúde pública cuja competência, por força do art. 3° da lei 6.259/75, é do Ministério da Saúde através da elaboração Programa Nacional de Imunizações.

É importante ressaltar, porém, que parte da doutrina entende que "deve o comando inobservado (...) revestir-se de imperatividade, isto é, não deve constituir-se em simples recomendação"7.

Para essa corrente doutrinária, o crime do art. 268, CP, só se configurará nos casos em que a vacinação for considerada compulsória pelo Ministério da Saúde.

Com efeito, passada a pandemia, atualmente as vacinações de caráter obrigatório por força do art.14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), são todas aquelas presentes no calendário de vacinação recomendadas às crianças e adolescentes, de forma que a desestimulação a quaisquer outras vacinas não configurará a conduta criminosa.

Por força do parágrafo único, os profissionais de medicina que praticarem a conduta terão sua pena aumentada de um terço. A maior reprimenda do legislador se justifica, pois os profissionais de saúde "têm o dever de evitar a introdução ou propagação de doença contagiosa"8 e são dotados de "conhecimentos técnicos para avaliar a gravidade de seus comportamentos"9.

Contudo, em que pese o dever de agir médico, no contexto de disseminação de desinformação sobre as vacinas, entende-se que para a caracterização do crime em apreço é essencial que haja efetiva orientação ou recomendação à não imunização ao menos a uma pessoa, sendo a simples reprodução ou veiculação de dado falso - por mais que sejam evidentes os efeitos graves dela decorrentes - insuficiente para sua tipificação.

Isso porque o médico somente infringirá a determinação de imunização, em regra, por ação comissiva. Interpretação contrária só seria possível, caso houvesse determinação do poder público aos médicos para disseminar informações pró-vacinação - o que esbarraria, por óbvio, na garantia constitucional da liberdade de expressão.

Por outro lado, a conduta de disseminação de dados alarmantes falsos sobre imunizantes sem a orientação à recusa vacinatória, pode ser apta a configurar a contravenção penal do art. 41 do decreto-lei 3.688/41 que pune a conduta de "provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto".

Contudo, referida infração só seria tipificada, caso a divulgação de fake news se desse de forma dolosa, ou seja, quando o médico, ciente da falsidade da informação sobre vacinas, decide propagá-la com o objetivo deliberado de gerar desinformação. 

Entretanto, a prova do dolo é complexa, exigindo a demonstração da ciência da falsidade da notícia por parte do profissional, muitas vezes a partir de indícios robustos, como a recorrência da conduta, a ausência de base científica para suas alegações e a desconsideração de evidências consolidadas. 

4. Penalização ética e penal: Uma lacuna jurisprudencial

Em que pese a possibilidade legal de penalidade ética e criminal aos profissionais de medicina que dissuadem a vacinação à população, e a relevância do assunto evidenciados na pandemia de Covid-19 - cujos prejuízos de informações falsas divulgadas por médicos foram experimentados em importante escala -, não se verificou qualquer decisão ética ou criminal sobre tais condutas.

As pesquisas nos Tribunais Estaduais, Federais e Superiores só retornaram resultados no âmbito civil, já a pesquisa jurisprudencial no Conselho Federal de Medicina sequer apontou qualquer precedente relacionado aos termos "vacina" e desinformação - muito embora o próprio Conselho de Classe oriente a denúncia de desinformação vacinal por médicos.

Enquanto isso, na ausência de apuração de infração ética e penal, alguns médicos permanecem disseminando conteúdos inverídicos aptos a acentuar a queda na taxa de imunização, colocando a saúde pública em xeque.

5. PL 2.745/21 do Senado Federal

Enquanto a punição ética patina, a punição criminal parece avançar - a lentos passos - a caminho de inserção de tipo penal específico à desinformação vacinal.

Com efeito, desde 9/8/21, tramita no Senado Federal PL 2.747/21 proposto pelo senador Jorge Kajuru visando inserir o art. 268-A ao CP, tipificando criminalmente a conduta de "divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, informações falsas ou sem comprovação científica sobre as vacinas".10

O projeto, embora protocolado em meio ao cenário pandêmico da Covid-19, traz como justificação o aumento do movimento antivacina como atrelado a Estudo Britânico que associou a vacina trivalente ao autismo em crianças e que foi posteriormente considerado fraudulento. Além disso, adicionou às motivações, a classificação pela OMS, em 2019, da resistência vacinal como uma das 10 maiores ameaças à saúde global, e aos surtos de Sarampo experimentados pelo Brasil nos anos de 2018 e 2019.

Contudo, ao contrário do art. 268, CP, o novo tipo penal possui pena única de detenção de seis meses a dois anos mais multa, deixando de trazer a previsão de aumento de pena para profissionais de saúde, impondo-lhes a mesma reprovabilidade da pessoa leiga.

De qualquer maneira, é inegável o potencial de preenchimento da lacuna legislativa com o aumento da reprimenda atualmente aplicável, o que poderia, em tese minimizar os potenciais prejuízos trazidos pela desinformação.  

Infelizmente, passados mais de 4 anos da propositura, e com o arrefecimento da pandemia, a propositura legislativa permanece em tramitação, estando desde 4/9/23 aguardando relatório pelo legislador designado, demonstrando o desinteresse do Congresso em criminalizar a desinformação vacinal e garantir o direito à saúde e à informação adequada.

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1 Disponível aqui. Acesso em setembro de 2025.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 SPOLJARIC, MARIANA. A responsabilidade penal por omissão imprópria de médicos diretores em uma estrutura hospitalar. Disponível aqui. Acesso em 07.09.2025.

6 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Vol.3 - 22ª Edição 2025. 22. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2025. E-book. p.337

7 ESTEFAM, André. Direito penal: parte especial (arts. 235 a 359-T). v.3. 10. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. p.124. No mesmo sentido MASSON, Cleber. Direito Penal - Parte Especial - (arts. 213 a 359-t) - Vol. 3 - 15ª Edição 2025. 15. ed. Rio de Janeiro: Método, 2025. E-book. p.277

8 MASSON, Cleber. Direito Penal - Parte Especial - (arts. 213 a 359-t) - Vol. 3 - 15ª Edição 2025. 15. ed. Rio de Janeiro: Método, 2025. E-book. p.280.

9 Idem.

10 Disponível aqui.