Violência institucional de gênero: Mais uma entre tantas formas de perpetuação de um sistema de opressão
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Atualizado em 19 de agosto de 2025 13:44
A OAB, Seção do Paraná, Subseção de Londrina, criou o GAMA - Grupo de Apoio à Mulher Advogada, objetivando a troca de experiência, estudo e acolhimento às colegas acerca de temas inerentes à condição de mulher. O projeto, que foi idealizado em meados do ano anterior, tomou forma no início de 2025 e conta com dezenas de mulheres advogadas dispostas a dividir suas dores, histórias e conhecimento.
Para a roda de conversa do mês de julho, as advogadas ora articulistas foram convidadas para tratar do tema da violência institucional de gênero, sob uma perspectiva histórica, estrutural e legal, bem como para apontar e discutir as tantas práticas de opressão a que somos submetidas diariamente.
As bases da estrutura social brasileira foram historicamente erguidas sobre bases pilares patriarcais, nos quais a divisão sexual do trabalho e a subalternização das mulheres foram naturalizadas e legitimadas.
Por meio da ideia de divisão sexual do trabalho, onde há definição das atividades consideradas próprias para cada gênero, também há hierarquização de suas figuras e, por consequência, a atribuição de maior valor ao trabalho masculino, produtivo ou simbólico. Não é por acaso que, via de regra, a cúpula do Poder Judiciário, da segurança pública e da política permanecem majoritariamente ocupadas por homens.
Como consequência da ausência de representatividade feminina, revela-se não apenas a exclusão sistemática de suas vozes, mas também compromete a formulação de políticas públicas adequadas e sensíveis às desigualdades de gênero, assim como perpetua cada vez mais essa ordem excludente e violenta. Quando falamos em mulheres negras, periféricas ou pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+, a situação é ainda mais tortuosa, pois marcada por marginalização e apagamento.
A regra é clara: às mulheres, cuidado, silêncio, obediência e subserviência; aos homens, espaços de poder e decisão. O simbolismo destes papéis não se limita ao ambiente doméstico ou privado, mas são reproduzidos e consolidados no âmbito das instituições estatais, fazendo com que o próprio aparato público se torne também um agente que reproduz violência.
Um exemplo claro é apontado pela saudosa advogada criminalista Alexandra Szafir em seu livro "Descasos", a seguir, alguns trechos:
Rosalina
Ela era negra. Tinha dois filhos adolescentes. Morava na favela da Rodovia dos Imigrantes.
O marido era alcoólatra e ela sustentava os filhos trabalhando como faxineira. A vida conjugal era um sem-fim de agressões físicas e morais. O marido lhe passara o vírus HIV.
Não se separavam porque a casa de dois cômodos era tudo o que possuíam: nem ela nem ele tinham para onde ir. Certo dia, quando ele estava prestes a agredi-la novamente, Rosalina o matou.
O advogado, além de juntar procuração, literalmente não fez mais nada no processo [...]. Fui nomeada às vésperas da data designada para o júri, após ela ter passado todo o processo indefesa.
Eu tinha algumas opções: falar que Rosalina agira em legítima defesa ou que não tivera a intenção de matá-lo. As duas coisas eram verdadeiras, mas precisavam ser demonstradas para os jurados, o que, na prática, significava que os filhos do casal teriam de testemunhar.
Poderia ainda adotar a tese do Ministério Público, que não concordava com a legítima defesa, mas propunha uma condenação com pena mais baixa: quatro anos em regime aberto [...].
Coloquei as alternativas que tínhamos e ela optou pela última [...]. Tudo resolvido, parecia que nos encaminhávamos para um julgamento tranquilo; afinal, acusação e defesa pediram a mesma coisa. Mas não foi bem assim.
O promotor fez questão de fazer um verdadeiro ataque, demonstrando do por que, na sua opinião, o crime era mesmo homicídio qualificado, com pena mínima de doze anos, e não simples. Pintou-a como um monstro e finalizou dizendo que ele "tinha a coragem" de pedir uma condenação por crime menos grave porque Rosalina era portadora do vírus HIV.
Eu imaginava que o motivo pelo qual o promotor expusera pública e desnecessariamente seu estado de saúde, revelando que Rosalina tinha uma doença estigmatizante, tivesse sido o de despertar a compaixão dos jurados.
Mas subestimei a insensibilidade alheia.
Na verdade, disse ele, pedia a pena mais branda porque "uma aidética morrendo na cadeia seria um desperdício; custaria muito caro aos cofres públicos e a nós, contribuintes". [...].
A ré estava ao meu lado. Olhei para ela e a vi de perfil, a cabeça baixa e as lágrimas de vergonha e tristeza caindo no seu colo, enquanto o promotor lhe apontava o dedo acusador diante de todos, inclusive de seus filhos. Pedi para retirá-la da sala, o que foi prontamente autorizado pelo juiz.
[...].
Alguns dias depois, sem querer, Rosalina acabou dando uma descrição tão simples quanto exata do que tinha acontecido.
Fomos ao Cartório do Tribunal do Júri cumprir algumas formalidades. Trabalhando lá, por pura causalidade, estava uma amiga dela com quem perdera o contato alguns anos antes. [...] a amiga lhe perguntou o que fazia ali. Ela respondeu o seguinte: - lembra do meu marido, como a gente vivia brigando, se matando? Então, estou aqui porque quem morreu foi ele.
Brilhante, em sua simplicidade, definição de legítima defesa.1
Quantas Rosalinas existem por aí - mulheres que, antes vítimas, acabam se tornando rés; que, ao buscarem amparo, são novamente violentadas, agora pelo próprio sistema que deveria protegê-las. São vidas marcadas por múltiplas camadas de silenciamento e exclusão, revitimizadas por discursos oficiais e condutas institucionais.
É neste contexto que devemos discutir o crime de violência institucional, inserido pela lei 14.321/22 no art. 15-A da lei de abuso de autoridade2, como resposta à necessidade de nomear esse fenômeno e enfrentá-lo com seriedade. Reconhecer que há decisões do Poder Judiciário pautadas em estereótipos, há discriminação por parte de servidores públicos, além do descrédito vivenciado por vítimas de crimes em repartições estatais.
O dispositivo foi criado reconhecendo que o próprio Estado pode ser violento e que a responsabilização dos agentes públicos é primordial, de modo que qualquer autoridade pública pode ser sujeito ativo do crime3. Quando antes a violência era vista como algo praticado exclusivamente no âmbito privado, agora as instituições públicas também passam a ser objeto de análise crítica e de responsabilização criminal, seja quando a violência institucional é praticada contra a vítima ou testemunha de crimes violentos.
Embora, como apontam Fernanda Moretzsohn e Patrícia Burin4, para que o agente responda pelo crime, é necessário que atue com a finalidade específica prevista no art. 1º, §1º, da lei de abuso de autoridade5 - qual seja, com o intuito de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal -, o que torna a caracterização do tipo penal mais difícil. Soma-se a isso a exigência do elemento normativo do tipo, no sentido de que a conduta do agente deve ser desnecessária, o que impõe obstáculos adicionais à responsabilização. Ademais, ao utilizar os termos "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos", constata-se que o legislador exige que as condutas sejam reiteradas6.
Como pontua Vladimir Aras, devem ser evitadas perguntas vexatórias, discriminatórias, preconceituosas, humilhantes ou com finalidade puramente ofensiva, assim como o emprego de estereótipos7. É preciso, então, lutar para que o alerta levantado por Izabella Borges e Tamara Brockhausen - de que "ao vencer a barreira da fala, a mulher se depara com uma estrutura pública fria, que reproduz dupla vitimização pela repetição da violência em nível ainda mais profundo, invertendo a lógica entre vítima e algoz" - não mais se perpetue8.
Ocorre que, ao fazer uma rápida busca de julgados no site do STJ, não foi possível identificar casos concretos em que o dispositivo tenha sido aplicado9. Daí a importância de se discutir o tema, para que não se trate apenas de mais uma medida meramente formal, sem efetividade prática. Nomear as violências, reconhecendo sua existência inclusive no interior das instituições estatais, é passo essencial para romper com a naturalização da opressão. Não surpreende, portanto, que existam tantos movimentos de reação e tentativa de destruição dos poucos avanços que tivemos nessa construção crítica. A despeito disso, não podemos deixar de mencionar o PL proposto pela deputada federal Bia Kicis (PL 10/23), que visa sustar os efeitos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, demonstrando que há grande resistência, inclusive política, à incorporação de uma visão de justiça que seja comprometida com a equidade.
Além disso, como se não bastassem as violências institucionais públicas e privadas, não podemos esquecer que há tentativas de silenciamento e desqualificação também por parte de outras mulheres, o que revela o quanto a estrutura aqui denunciada é internalizada e reproduzida por quem mais deveria combatê-la. Como nos alerta bell hooks, "enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo"10.
O verdadeiro compromisso com a equidade exige coragem não apenas para apontar o dedo às instituições, mas também para olhar criticamente para dentro dos próprios espaços de poder, inclusive os representativos, admitindo nossos equívocos e traçando estratégias para miná-los.
E é exatamente isso que buscamos - a curtos passos, mas sem parar - modificar.
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Referências
ARAS, Vladimir. Proteção de vítimas e violência institucional. Consultor Jurídico, 02 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
BORGES, Izabella; BROCKHAUSEN, Tamara. Violência institucional contra a mulher: uma abordagem psicojurídica. Consultor Jurídico, 2 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Questão de gênero: primeiras impressões sobre o crime de violência institucional. Consultor Jurídico, 08 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
SZAFIR, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com os direitos dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010.
1 SZAFIR, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com os direitos dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 15-17.
2 Violência Institucional Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). § 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.
3 Art. 2º. É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: [...].
4 MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Questão de gênero: primeiras impressões sobre o crime de violência institucional. Consultor Jurídico, 08 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
5 Art. 1º. Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º. As condutas descritas nesta lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
6 O dispositivo ainda prevê que, se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima, gerando sua revitimização, a pena será aumentada em dois terços; e, se for o próprio agente quem intimidar a vítima, acarretando a revitimização, a pena será aplicada em dobro.
7 ARAS, Vladimir. Proteção de vítimas e violência institucional. Consultor Jurídico, 02 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
8 BORGES, Izabella; BROCKHAUSEN, Tamara. Violência institucional contra a mulher: uma abordagem psicojurídica. Consultor Jurídico, 2 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2025.
9 Critérios de busca no STJ: "crime e violência e institucional"; "violência e institucional"; "art. 15-A e abuso e autoridade";
10 O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.