Os limites penais da liberdade de expressão
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Atualizado em 17 de julho de 2025 07:29
Num momento da história em que as diferenças ficaram ainda maiores, a temática da liberdade de expressão se apresenta como um grande desafio. De um lado, almejamos a autonomia do pensamento e a livre circulação de ideias; de outro, não há liberdade sem limites e responsabilidade.
A preservação da liberdade de expressão, um dos pilares do sistema democrático, abrange "toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não, desde que não esteja em conflito com outro direito ou valor constitucionalmente protegido" (Branco, 2015).
No entanto, a polarização no Brasil deixou de ser apenas uma divergência ideológica e passou a ser um filtro pelo qual as pessoas enxergam o mundo (Nunes, 2023). A "polarização afetiva", processo de radicalização no qual o confronto extrapola a política e afeta as relações sociais, é um exemplo sobre o que esbarra nos limites do discurso permitido. Além disso, importante destacar que, até o momento, nenhuma nação superou definitivamente o ciclo da polarização na era digital - e o Brasil não é exceção.
E, embora as redes sociais - principal espaço no qual o cidadão expressa e molda suas opiniões - não tenham criado a polarização política, nem o discurso extremista, tampouco os xingamentos e hatters, é fato que elas se monetizam com isso. O ambiente virtual maximiza o engajamento dos usuários e o modelo algorítmico privilegia conteúdos que despertem emoções intensas, como raiva ou indignação, expondo os usuários a informações que reforcem suas convicções, reduzindo o contato com perspectivas divergentes. Estudos indicam que as fake news, por exemplo, notícias falsas publicadas com a intenção de gerar ódio, violência ou desinformação, se propagam em velocidade 70% maior do que uma notícia verdadeira (Vosoughi, 2018) e são disseminadas em grande parte por pessoas reais - e não robôs.
É certo que a democracia exige a crítica pública, a crítica política, a crítica ideológica e, portanto, o discurso livre. Contudo, apesar de ser direito fundamental, que por si só seria tão absoluto a ponto de sequer poder sofrer qualquer restrição, a liberdade de expressão encontra limites na Constituição. E, exatamente por ser base da democracia, deve ser contida e exercida harmonicamente com os demais princípios e garantias constitucionais, como a dignidade da pessoa humana ou a proteção à honra.
Nesse contexto, o Poder Judiciário atua como garantidor dos direitos fundamentais e restringe, excepcionalmente, a livre manifestação de ideias em três situações: (1) crimes contra a honra - calúnia, difamação e injúria; (2) discursos de ódio, como racismo, homofobia, misoginia ou apologia à violência; (3) propagação deliberada de desinformação ou, em outras palavras, a disseminação de fake news quando há ciência da inverdade.
No âmbito penal, os crimes contra a honra representam limites jurídicos claros à liberdade de expressão. Imputações falsas de crime (calúnia), atribuições ofensivas que exponham alguém ao desprezo público (difamação) ou ofensas à dignidade pessoal (injúria) configuram ilícitos puníveis e o ordenamento busca tutelar a dignidade e a reputação das pessoas frente a manifestações abusivas. Entretanto, a jurisprudência do STF reconhece que críticas legítimas, ainda que duras, estão protegidas pelo direito à livre manifestação. Assim, o desafio reside em distinguir o discurso crítico - essencial à democracia - do discurso lesivo - incompatível com os direitos fundamentais da pessoa humana.
Os discursos de ódio, por sua vez, extrapolam os limites da liberdade de expressão por atentarem diretamente contra a dignidade de grupos vulneráveis. Expressões que incitam discriminação, hostilidade ou violência com base em raça, gênero, religião, orientação sexual ou origem não são protegidas pelo manto da liberdade de discurso. A lei 7.716/1989 criminaliza condutas discriminatórias ou preconceituosas, enquanto o CP prevê crimes correlatos, como apologia ao crime ou criminoso (art. 287), incitação ao crime (art. 286) e o crime de injúria racial (art. 140, §3º).
Já a disseminação de fake news, especialmente quando dolosa e com potencial lesivo concreto, pode ensejar responsabilidade penal em diversas frentes. Embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tenha tipificado de forma autônoma a "notícia falsa", sua divulgação intencional pode configurar tipos penais diversos e deve ser combatida com rigor. Isso porque, no mundo onde verdade é o que gera visualização, os impactos da desinformação são danosos: plataformas digitais e agentes políticos se beneficiam da viralização do conteúdo, acelerando narrativas falsas, promovendo discursos ofensivos e normalizando ataques pessoais.
Assim, a responsabilização penal não deve ser confundida com silenciamento. Ainda que a censura prévia seja vedada, o ordenamento admite a responsabilização posterior, inclusive penal, quando a liberdade de expressão é instrumentalizada para propagar um discurso lesivo ou discriminatório ou propagar falsidades com consequências concretas. Por isso, é imprescindível estabelecermos limites e, quanto mais claras as balizas, melhor.
Numa sociedade plural como a nossa, o diálogo pode - e deve - ser utilizado para construir pontes entre os dissensos, resguardando e fomentando a democracia, inclusive nos ambientes digitais.
Conter a polarização afetiva exige que partidos e lideranças, independentemente da posição ideológica, isolem as alas extremistas e reorientem o debate para temas estruturais. Fortalecer a educação cívica e política e promover instituições de conhecimento, como bibliotecas, museus e universidades, com o propósito de que o pensamento seja discutido - com todas as suas diferenças - com seriedade, autonomia e liberdade, pode ser um caminho.
Referências bibliográficas
BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.
NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias e compromete o futuro do Brasil. São Paulo: HarperCollins, 2023.
VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. Science, v. 359, n. 6380, p. 1146-1151, 2018. DOI: 10.1126/science.aap9559. Acesso em 7 jul. 2025.
*As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.
**A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas.