Entre o Constitucionalismo militante e o backlash: À espera das eleições 2026
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Atualizado em 12 de agosto de 2025 08:30
A democracia constitucional é marcada por um paradoxo fundamental: ao mesmo tempo em que reconhece a soberania popular como base do regime democrático, impõe-lhe limites contramajoritários por meio de uma Constituição rígida. Essa contenção da vontade da maioria, sobretudo quando exercida pelas Cortes de forma impopular, pode gerar descompasso com o sentimento social dominante e, em contextos críticos, resultar em reações adversas - o chamado efeito backlash.
O conceito de backlash designa a reação social e política deflagrada por decisões judiciais que colidem com convicções profundamente arraigadas - ainda que, não raramente, tais convicções sejam marcadas por traços extemporâneos. À luz desse referencial teórico, a legitimidade das decisões jurisdicionais transcende a mera aderência ao texto constitucional, exigindo, ademais, a aptidão para dialogar com a cultura política vigente e com os valores em disputa no tecido social. Sentenças que desconsideram esse universo simbólico arriscam-se não apenas à rejeição popular, mas à erosão da autoridade judicial e à própria ineficácia normativa da Constituição.
Vivenciamos, no presente, o clímax dessa tensão estruturante, iniciada com as eleições brasileiras de 2022, que em meio a uma grave crise de confiança nas instituições, materializaram esse fenômeno. A atuação das Cortes Superiores durante o processo eleitoral de 22 foi marcada por forte protagonismo. A multiplicação das fakenews, os ataques sistemáticos ao sistema eleitoral e a retórica golpista adotada por lideranças políticas exigiram respostas firmes do TSE e do STF. Medidas como a suspensão de conteúdos considerados desinformativos, sanções por litigância de má-fé e bloqueio de perfis de empresários que incentivaram o golpe em grupos virtuais privados foram duramente criticadas por parte da população, que passou a rotular tais ações como censura e autoritarismo.
Dentre as decisões impopulares, destacou-se aquela adjetivada pela ministra Carmen Lúcia como "excepcionalíssima", de prorrogação da estréia do vídeo "Quem mandou matar Jair Bolsonaro?", "documentário" da plataforma Brasil Paralelo, previsto para seis dias antes do segundo turno das eleições 20221. O canal do YouTube, desmonetizado no período eleitoral por propagar desinformação, enfrentou outros processos e investigações, dentre as quais, por propagar fakenews em face de Maria da Penha, utilizando-se do que parece ser um laudo falso para descredibilizar sua história e luta2.
Além das diversas decisões de grande repercussão, o TSE editou e aprovou logo após, em 21 de outubro de 2022, uma polêmica resolução que permitia à Corte Superior agir de ofício em casos idênticos que já tenham sido enfrentados anteriormente. A resolução, que visava coibir a nova reprodução de conteúdos já considerados falaciosos e prejudiciais pelo TSE (nos moldes "copia, cola e posta"), facilitando o andamento processual na Corte, foi recebida como o ápice do autoritarismo por parte da população e até mesmo da mídia, que destacou como "alarmante" que um único homem (o ministro Alexandre de Moraes) regulasse o direito à liberdade de expressão durante as eleições brasileiras. Embora juridicamente defensável no contexto de proteção à integridade eleitoral e efetividade da Justiça Eleitoral, que se vê enxugando gelo diante da profusão de materiais deletérios diariamente despejados nas redes sociais, a medida foi retratada por setores da sociedade e da imprensa como concentração excessiva de poder nas mãos de um único ministro - ministro esse que segue protagonista dos maiores embates relacionais da atualidade.
Esse ambiente alimentou a narrativa de que o Judiciário teria extrapolado suas funções, servindo de gatilho para uma série de reações que culminaram nos atos criminosos e antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Os acontecimentos subsequentes não apenas agravaram o quadro de crise - marcado, inclusive, por episódios de intervenção internacional -, como também intensificaram a expectativa em torno das eleições presidenciais de 2026.
É certo que a escalada do autoritarismo e da desinformação no Brasil não é um fenômeno isolado. Em diversas democracias consolidadas, o discurso antissistema tem ganhado fôlego, alimentado por redes digitais e teorias conspiratórias. O backlash contemporâneo não é apenas doméstico; ele dialoga com uma ecologia global de erosão democrática. O episódio brasileiro de 8 de janeiro encontra paralelos no Capitólio dos EUA e nos protestos violentos em países da União Europeia. Não se nega, assim, que o backlash judicial é parcela de um cenário bastante mais complexo. Não se pretende responsabilizar o backlash judicial por toda a reação social experimentada, um fenômeno multifacetado. Defende-se, no entanto, a urgência de refletir sobre os limites e possibilidades da jurisdição constitucional em tempos de crise.
Se três anos atrás o cenário já se mostrava desafiador, com a evolução da tecnologia de deepfakes e o aprofundamento da desconfiança popular frente ao judiciário, as eleições vindouras representam uma provação de magnitude inédita: enquanto não se nega a necessidade de manutenção de uma postura ativa por parte do judiciário no combate aos atos antidemocráticos e ataques jurisdicionais, o tom e timing das decisões pode ditar a magnitude do backlash a ser enfrentado.
Emerge a necessidade de compreender tais respostas sociais não como meras rupturas a serem lamentadas, mas como parte do processo de disputa pelo significado constitucional. O constitucionalismo democrático enxerga o backlash como expressão da pluralidade política e oportunidade de refinamento da jurisprudência e do próprio pacto democrático. Essa compreensão, no entanto, exige maturidade institucional e disposição para o debate público fundamentado. É preciso enxergar o backlash como parte do resultado do controle constitucional e buscar as ferramentas que permitirão uma atuação estratégica.
Teorias como a da democracia militante (Loewenstein) e da democracia defensiva (Fernandes) oferecem molduras normativas para legitimar a atuação excepcional das instituições diante de ameaças existenciais ao regime democrático, e vem sendo utilizadas com recorrência pelos Tribunais Superiores. A primeira, nascida da reação ao nazismo, autoriza o uso de medidas excepcionais para barrar atores que pretendem instrumentalizar a democracia para destruí-la por dentro. A segunda, de inspiração mais recente, exige demonstração concreta do risco à ordem democrática. Ambas têm sido invocadas para compreender a atuação do TSE e STF diante dos discursos golpistas, mas também suscitam preocupações legítimas sobre os riscos de uma jurisprudência excepcional ser naturalizada em tempos de normalidade. Desaconselha-se, no entanto, a aplicação das molduras teóricas como exonerativas de suas consequências, em adoção acrítica.
Ainda que não se busque, neste pequeno texto, questionar a legitimidade filosófica das decisões que nos trouxeram até aqui - em sua maioria fundamentais à preservação democrática, na leitura desta autora -, defende-se a necessidade de se reconhecer a responsabilidade sobre o mal cálculo de efeitos adversos de futuras decisões, refletindo com seriedade os potenciais impactos nas eleições vindouras.
É nesse ponto que a análise proposta por Post e Siegel, enriquecida pela matriz de William Eskridge, se mostra especialmente relevante: em sociedades pluralistas, recomenda-se que as Cortes avaliem, caso a caso, se a emissão de determinadas decisões gerará backlash e se os efeitos desse refluxo social serão compatíveis com a preservação da ordem constitucional. Em alguns momentos, provocar o dissenso pode ser necessário para proteger direitos fundamentais e estruturas institucionais. Em outros, o silêncio estratégico - o "minimalismo judicial" de Cass Sunstein - pode ser o caminho mais prudente. Se for impossível o silêncio, recomenda-se ao menos o minimalismo estratégico.
A recente decisão pela decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Bolsonaro parece ilustrar com precisão a reflexão que se pretende: ainda que evidente o descumprimento das medidas cautelares anteriormente impostas, o decreto de ofício e o tom belicoso da decisão - por vezes, até jocoso -, prolatada por ministro cuja atuação tornou-se alvo central do backlash social, funcionam como desnecessário combustível à retórica de fragilidade instrumentalizada e autocomplacente do ex-presidente. Para além disso, alimentam desnecessariamente a retórica de autoritarismo judicial, utilizada por aqueles de mal caráter para justificar um amplo pacote de maldades, como a tentativa de ingerência internacional sobre nosso país soberano.
É preciso diferenciar a utilização de medidas excepcionais em prol da manutenção das próprias estruturas democráticas das decisões que atravessadas por efusão emocional contida, embora redigidas com acerto técnico. Que sejam pensados desde já os potenciais backlashes que serão sofridos a partir das decisões judiciais tomadas no atual contexto de tensão.
O Brasil sobreviveu - por ora - ao maior teste democrático desde a redemocratização: uma inegável tentativa de golpe com apoio interno de membros das instituições. O desafio que se impõe agora é saber como institucionalizar as lições extraídas sem comprometer os pilares da democracia. As Cortes, ao se protegerem, devem proteger também os princípios que as legitimam. O backlash, se inevitável, deve ser contingenciado e compreendido não como fracasso, mas como uma chance de reaproximação estratégica entre direito, sociedade e Constituição.
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Referências bibliográficas
BUNCHAFT, Maria Eugenia. Constitucionalismo democrático versus minimalismo judicial. Direito, Estado e Sociedade, nº 8, p. 154-180, jan./jun. 2011.
CHUEIRI, V. K.; GODOY, M. G. Constitucionalismo e democracia: soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, 2010.
DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy. European Journal of Philosophy, v. 3, n. 1, p. 2-11, 1995.
ESKRIDGE, William N. Dynamic Statutory Interpretation. University of Pennsylvania Law Review, n. 135, 1987.
FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021.
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political Science Review, v. 31, n. 3, p. 417-432, 1937.
POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Faculty Scholarship Series, Paper 169, 2007. Disponível aqui.
SUNSTEIN, Cass. One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
1 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 0601522-38.2022.6.00.0000. Relator: Benedito Gonçalves. Julgamento em 30 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 6 ago. 2025.
2 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Ação Civil Pública: ACP PNDD/PGU n. ACPmariadapenha (AGU c. Brasil Paralelo). Ação ajuizada pela AGU em 28 mar. 2025 contra o portal Brasil Paralelo por disseminação de desinformação sobre o caso Maria da Penha, requerendo indenização de R$?500?000 e divulgação de conteúdo educativo. Disponível aqui. Acesso em: 6 ago. 2025.