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Massacre do Carandiru: Três décadas de ecos no sistema prisional brasileiro

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Atualizado em 21 de outubro de 2025 10:14

Em outubro de 2025 completaram-se 33 anos do Massacre do Carandiru, que permanece como um dos maiores símbolos da violência institucional do país, no qual 111 presos foram brutalmente mortos por agentes estatais na Casa de Detenção Carandiru, na cidade de São Paulo. Na época do massacre, o pavilhão 9 da Casa de Detenção abrigava mais que o dobro de detentos do que a sua capacidade comportava. Das 7.257 pessoas privadas de liberdade no Carandiru, 2.706 estavam recolhidas no referido pavilhão. Apesar disso, os presos se encontravam sob a vigilância de apenas 15 guardas penitenciários.

O episódio, materialização de anos de descaso e abandono institucional, escancarou ao grande público a dura realidade do sistema prisional brasileiro, que já àquela época enfrentava uma combinação devastadora de violência e precariedade estrutural, mas que ainda hoje carrega dores semelhantes, quando não piores.

No dia 2 de outubro de 1992, por um motivo fútil, dois presos começaram a brigar com outros no segundo andar do pavilhão 9. Com o término da briga, os guardas fecharam o acesso ao corredor, aglomerando os presos. Estes conseguiram romper as trancas e iniciaram um motim. Diante das circunstâncias, os guardas retiraram-se do Carandiru e o diretor da prisão solicitou o auxílio da Polícia Militar, a qual chegou com aproximadamente 350 policiais. Os juízes da Vara de Execuções Penais e da Corregedoria dos Presídios também foram convocados, mas os oficiais da PM de São Paulo os desencorajaram de intervir e ingressar no pavilhão, pois os presos estariam armados. Com a interrupção da breve tentativa de negociação, o pavilhão foi ocupado pelos policiais.

A atuação da Polícia Militar de São Paulo foi realizada com absoluto desprezo pela vida dos presos, pois as armas caseiras que esses tinham em seu poder foram depostas no momento em que houve a entrada maciça da polícia fortemente armada.

A perícia declarou que as mortes dos presos foram execuções sumárias, pois foi comprovada a existência de rajadas de metralhadora a cerca de 60 centímetros do solo, o que demonstrou que os presos foram mortos ajoelhados. Quando os juízes tiveram permissão para ingressar no local, estes viram muitos detentos nus, sentados no chão e com as mãos sobre as cabeças. Ao fim, restou comprovado que os 111 presos foram mortos e 35 ficaram feridos em consequência da brutalidade da ação policial.

O caso foi submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Caso 11.291). No relatório 34/00 de 13 de abril de 2000, constatou-se que as condições carcerárias no Carandiru eram contrárias à lei, de modo que o Estado Brasileiro foi considerado responsável pelo descumprimento das devidas condições de detenção, bem como pela omissão em adotar estratégias adequadas para prevenir as situações de violência e para debelar possíveis motins. A CIDH concluiu que o Brasil violou os direitos à vida e à integridade pessoal, em virtude dos homicídios e lesões corporais no Carandiru, cometidos pelos agentes da Polícia Militar de São Paulo.1

A CIDH recomendou ao Brasil o desenvolvimento de políticas destinadas a descongestionar a população das casas de detenção e prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos, bem como assegurar que as vítimas e suas famílias recebessem indenização pelas violações. Contudo, até 2022, apenas um terço dos familiares das vítimas que ajuizaram ações perante o TJ/SP receberam os valores devidos. Em média, as famílias esperaram mais de 20 anos para a conclusão dos processos com pedidos de indenização e/ou pensão.2

Após três décadas do Massacre é preciso refletir: que permanências do Carandiru ainda se manifestam em 2025?

Atualmente, o sistema carcerário brasileiro possui 909.067 pessoas presas, sendo certo que, desse total, 674.016 estão privados de liberdade em celas físicas e distribuídos em 1.382 estabelecimentos penais pelo país. Existe, ainda, um déficit de 175.886 vagas, que resulta em uma preocupante superlotação carcerária.3

No entanto, o aumento de encarceramentos não fez crescer a sensação de segurança na sociedade. A bem da verdade, parece refletir tão somente uma política criminal altamente revanchista e inegavelmente marcada pela herança colonial do racismo, que instrumentaliza o Direito Penal para produzir efeito simbólico de apaziguamento social.

Mas, afinal, por que punimos? O que realmente se busca com a aplicação de uma pena de encarceramento?

A ideia contida na máxima "pune-se porque é pecado" estrutura o que se entende como teoria absoluta da pena. Para teóricos como Beccaria e Pietro Verri, a pena criminal se justifica pela expiação ou retribuição do "mal" causado pelo crime.4

Partindo dessa ideia, Immanuel Kant sistematizou a necessidade de aplicação da pena enquanto um imperativo categórico ou como um dever moral. A "dor do crime", portanto, seria compensada com a "dor da pena".5

Posteriormente, as teorias relativas contestaram a ideia de que o objetivo da pena seria a punição por si só, estabelecendo que, na realidade, a pena deveria também cumprir a função de prevenir futuros delitos.6

No Brasil, o art. 59 do CP7 unifica as teorias absoluta e relativa, adotando uma teoria mista ao prever que a pena deve cumprir a finalidade de reprovar, bem como de prevenir o crime. Mais que isso, o art. 1º da lei de execução penal8 traz a perspectiva da ressocialização ao prever a necessidade de se "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado".

Apesar da evolução teórica, a realidade material denuncia a completa ineficácia das premissas de retribuição e prevenção. Ao contrário de uma efetiva ressocialização dos indivíduos, estamos diante de um cenário onde impera a violência policial, o encarceramento massificado de jovens negros e o uso da pena como instrumento de controle social da população marginalizada. Ao contrário da prevenção, vê-se estigmatização. No lugar da proporcional retribuição do mal do crime com o mal da pena a partir da culpabilidade, impera o constante desrespeito aos direitos humanos e o racismo institucionalizado.

De acordo com dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos, só no ano de 2023, foram registradas 5.007 denúncias de violações de direitos humanos de pessoas privadas de liberdade no Brasil, o que equivale a cerca de 14 denúncias por dia. Já no 1º semestre de 2024, a média subiu para 17 denúncias por dia, com 3.100 registros, sendo a maior parte das denúncias advindas dos estados de São Paulo e Minas Gerais.9

Ainda segundo o levantamento, também em 2023, foram registradas 3.091 mortes no sistema penitenciário, sendo que 703 foram homicídios. Isso significa que de 1 em cada 4 óbitos foram criminais.

Nesse contexto, é impossível ignorar o papel crucial que o Massacre do Carandiru teve no surgimento da organização criminosa de maior ressonância no Brasil, o Primeiro Comando da Capital. Nascido inicialmente de um pacto entre os presos para se protegerem das violências experimentadas no sistema prisional e com o fim de evitar que aquilo que se passou no dia 02 de outubro de 1992 tornasse a ocorrer, o PCC segue sendo um dos piores ecos do silêncio do Estado para a situação do cárcere no país.

Declarando a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro, o STF declarou, na ADPF 347, a sua caracterização como Estado de Coisas Inconstitucional, em razão da violação massiva e persistente de direitos fundamentais dos presos. O STF reconheceu que a maioria das pessoas privadas de liberdade no país está sujeita a penas cruéis e desumanas, vedadas pela Constituição Federal de 1988.10

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio sustentou a situação vexaminosa do sistema penitenciário brasileiro, pois a maior parte dos detentos está sujeita às seguintes condições:

"superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual."11

Consequentemente, existe uma conexão essencial entre a superlotação carcerária e a violação de direitos humanos dos presos no país. A incapacidade do sistema carcerário brasileiro em atingir seus objetivos declarados é incontestável. Sendo assim, o modelo de justiça criminal funciona exclusivamente como uma "máquina de moer gente (...) uma violenta engrenagem de controle de corpos que opera de forma a infligir dor e sofrimento".12

Em uma tentativa de propor um novo olhar para a questão criminal da América Latina, Eugenio Raúl Zaffaroni foi o responsável pela sistematização da ideia de Direito Penal Redutor, linha teórica que nega a ideia de que a punição serve fins retributivos e preventivos, marcando aquilo que já é evidente para os olhos mais atentos: o recolhimento ao cárcere é na verdade um ato de exercício de poder político e controle social. Nesse sentido, seria necessário conter o poder punitivo e o sistema penal, reduzindo a irracionalidade e a violência do Estado e protegendo o cidadão contra excessos, o que parece ser um bom ponto de partida para a viabilização do Estado de Direito.13

Contudo, os desafios ainda são inúmeros. A máquina estatal não parece desejar contenções, buscando na ampliação do Direito Penal uma ilusória forma de promoção de segurança pública, como se sua falência já não estivesse amplamente anunciada, seja pela dogmática penal, seja pelo STF ou pela experiência daqueles que vivem o cárcere.

Nesse contexto, manter viva a memória do Massacre do Carandiru é imprescindível: uma forma de denúncia das violações que ainda ecoam em nosso sistema prisional e um chamado à atuação efetiva do Estado, sem populismo punitivista e com políticas públicas realmente eficazes.

_______

1 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 34/00. Caso 11.291 (Carandiru Brasil). 13 abril 2000. Disponível aqui. Acesso em: 06 out 2025.

2 MENDONÇA, Jeniffer. Famílias de vítimas esperam em média 22 anos por indenização do Massacre do Carandiru.  23/09/2022. Ponte Jornalismo: Disponível aqui. Acesso em 06 out 2025

3 SISDEPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias. Disponível aqui. Acesso em: 06/10/2025.

4 BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Sentença Penal. 2ª. E. P. Alegre: Verbo Jurídico, 2005.

5 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Tradução de Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez. Navarra:Thomson Civitas, 2006, p. 99.

6 FEUERBACH, Paul J. A. R. Tratado de Derecho Penal Común Vigente en Alemania. Editorial Hamurabi. Buenos Aires. 1989.

7 BRASIL. Decreto - Lei nº  2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível aqui. Acesso em 06/10/2025.

8 BRASIL. Decreto - Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível aqui. Acesso em 06/10/2025.

9 ObservaDH. Disponível aqui. Acesso em 06/10/2025.

10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 - DF. Relator: Ministro Marco Aurélio.

11 Ibidem.

12 MORGADO, Helena. 30 Anos do Massacre do Carandiru: Propostas para a redução da superpopulação carcerária brasileira. in: FERRAZ, Hamilton Gonçalves. Os 30 anos do Massacre do Carandiru e o futuro das ciências criminais e dos direitos humanos no Brasil. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2023.

13 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro I, Rio de Janeiro, Revan, 2003.