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Feminicídio: Entre o punitivismo simbólico e a urgência de mudança cultural

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Atualizado às 07:23

O Brasil terminou 2024 com um dado estarrecedor: 1.492 mulheres foram assassinadas em razão de gênero, segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Trata-se do maior número desde a criação do tipo penal em 2015. A estatística é acompanhada de outro recorde: 87.545 estupros, uma vítima a cada seis minutos. Ambos os números ilustram a persistência de um problema estrutural que, ano após ano, segue ceifando vidas e impondo marcas irreparáveis.

Nesse cenário alarmante, a estratégia predominante do Estado brasileiro tem sido previsível: o endurecimento penal. A mais recente expressão dessa lógica foi a lei 14.994/24, que transformou o feminicídio em crime autônomo e ampliou a pena máxima para 40 anos de reclusão. O gesto atende ao clamor social, gera manchetes e transmite a sensação de resposta rápida. Ao mesmo tempo, evidencia os limites de uma política criminal centrada quase exclusivamente no punitivismo simbólico.

A trajetória recente confirma esse diagnóstico. Mesmo após sucessivas reformas legislativas, as estatísticas não arrefecem. Ao contrário, continuam a crescer. Isso revela que, embora o aumento de penas produza impacto imediato na opinião pública e funcione como resposta política a pressões sociais, ele raramente enfrenta as raízes do problema. Em outras palavras, gera efeito midiático, mas não transforma a realidade.

Convém lembrar que o feminicídio não é um episódio súbito ou isolado. Ele corresponde ao último degrau de uma escada de violências - verbais, psicológicas, patrimoniais e físicas - que poderiam ser interrompidas antes de atingir o desfecho letal. Portanto, quando uma mulher é assassinada, não se trata apenas da falha de um agressor individual, mas de uma cadeia de omissões sociais e institucionais.

Um dos principais obstáculos ao enfrentamento efetivo é a subnotificação. O Mapa Nacional da Violência de Gênero (2024) estimou que 61% dos casos de violência doméstica e familiar sequer chegam às estatísticas oficiais. Assim, a dimensão real do problema é muito maior do que a que se conhece. Não se trata apenas de deficiência técnica: invisibilizar dados também é uma escolha política, pois sem números consistentes governos se livram da pressão por medidas concretas.

Outrossim, o mesmo levantamento revelou outro aspecto preocupante: 48% das brasileiras já sofreram algum tipo de violência no convívio familiar, mas apenas 30% reconhecem ter passado por tais situações. Essa discrepância decorre, em grande medida, da naturalização de agressões como insultos, empurrões ou destruição de objetos, que muitas mulheres não identificam como violência. A diferença entre realidade vivida e violência percebida compromete a busca por ajuda e perpetua o silêncio.

De igual modo, a desinformação agrava o quadro. Apenas 24% das entrevistadas declararam conhecer bem a lei Maria da Penha, um dos marcos mais relevantes de proteção. O desconhecimento fragiliza a confiança no sistema de Justiça e contribui para a permanência em relacionamentos abusivos, muitas vezes sem que a vítima se reconheça como tal.

Nesse contexto, a democratização da informação jurídica surge como instrumento de transformação tão poderoso quanto a criação de leis. Um exemplo emblemático ocorreu na cultura popular: uma cena de novela transmitida em horário nobre, na qual uma personagem recorre à Defensoria Pública, resultou em mais de 270 mil acessos ao serviço em apenas uma hora. O episódio demonstra como a popularização da informação pode converter medo em ação.

Se uma representação fictícia foi capaz de gerar tamanho impacto, é legítimo perguntar o que campanhas institucionais bem estruturadas poderiam alcançar. Apostar em comunicação acessível, em campanhas educativas contínuas e em formação para igualdade de gênero é tão essencial quanto legislar. Afinal, informação salva vidas.

De maneira complementar, vivências concretas, tanto no Brasil quanto no exterior, apontam caminhos mais promissores. A Ronda Maria da Penha, na Bahia, mostra como a proximidade das forças de segurança com mulheres que possuem medidas protetivas reduz riscos e fortalece a confiança no Estado. A Casa da Mulher Brasileira, ainda que restrita a algumas capitais, evidencia a importância de serviços integrados - jurídicos, psicológicos, sociais e de acolhimento emergencial - reunidos em um mesmo espaço.

No cenário internacional, a Iniciativa Spotlight, promovida pela ONU em parceria com a União Europeia, investe em programas locais de prevenção e capacitação de agentes, além de mobilizar comunidades inteiras contra a violência de gênero. Já a Convenção de Istambul, do Conselho da Europa, estabelece obrigações concretas de prevenção, proteção e investigação, reconhecendo a violência de gênero como grave violação de direitos humanos.

Igualmente, na América Latina, experiências oferecem lições valiosas. A Cidade do México criou uma secretaria específica para os direitos das mulheres e instalou unidades do Ministério Público especializadas em feminicídios, funcionando 24 horas por dia. Na Costa do Marfim, milhares de mulheres marcharam em Grand-Bassam contra o feminicídio em 2024, mostrando como a mobilização social pode pressionar governos por mudanças estruturais.

Esses exemplos reforçam que o combate ao feminicídio exige muito mais do que penas mais longas. Ele depende de políticas públicas integradas, capazes de articular educação, saúde, assistência social, segurança e Justiça. É preciso fortalecer redes de acolhimento, investir em capacitação de profissionais, interiorizar serviços de proteção e, sobretudo, enfrentar o machismo estrutural que naturaliza a violência contra as mulheres.

É ilusório acreditar que o encarceramento, isoladamente, será capaz de modificar padrões de dominação construídos ao longo de séculos. O sistema penal reage quando a violência já foi consumada: pune, mas não previne; sanciona, mas não educa; aprisiona, mas não transforma. A verdadeira mudança exige investimento em prevenção e transformação cultural.

Sem dúvida, o endurecimento das penas tem valor simbólico. Ele sinaliza que o Estado reconhece a gravidade do feminicídio e busca puni-lo exemplarmente. Contudo, se essa estratégia não for acompanhada de políticas consistentes de prevenção e acolhimento, permaneceremos reféns de um modelo que só reage a tragédias consumadas.

Cada feminicídio, afinal, é um lembrete brutal de que falhamos antes: quando a vítima não se sentiu segura para denunciar, quando não encontrou rede de apoio, quando teve seu pedido ignorado ou sua vida banalizada. Enquanto celebramos leis mais duras, mulheres seguem morrendo.

O Brasil precisa romper com a ilusão de que a violência de gênero se resolverá apenas com prisões mais longas. Punir é necessário, mas não basta. Se de fato pretendemos proteger mulheres, precisamos galgar um mundo menos machista, no qual a igualdade de gênero seja prática cotidiana, e não promessa retórica. Isso implica investir em educação que desconstrua estereótipos, em políticas que garantam autonomia econômica e em serviços públicos que acolham com dignidade.

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BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Diário Oficial da União, Brasília, 10 mar. 2015.

BRASIL. Lei nº 14.994, de 17 de julho de 2024. Dispõe sobre o feminicídio como crime autônomo. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jul. 2024.

BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jul. 1990.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2025.

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