Liberdade de expressão, responsabilidade penal e regulação das redes sociais: Reflexões a partir das discussões no STF
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Atualizado em 17 de julho de 2025 07:29
A revolução digital tem provocado mudanças estruturais profundas na forma como nos comunicamos e nos relacionamos em sociedade e, sobretudo, como consumimos informação. Passamos de um modelo centrado na mídia tradicional para um ecossistema digital descentralizado e interativo.
Nessa nova configuração comunicacional, redes sociais e plataformas digitais têm assumido papel central na mediação da comunicação pública, funcionado quase como como espelhos e amplificadores da sociedade: refletem nossas virtudes democráticas, mas também ecoam - em alto volume - nossas distorções mais perigosas, como a desinformação, o discurso de ódio e os ataques às instituições democráticas1.
Essa expansão vertiginosa do digital tem imposto ao Direito desafios inéditos, especialmente no que tange à proteção de direitos fundamentais tradicionalmente assegurados no plano físico. A exposição pública ampliada, a velocidade na disseminação de informações e a permanência dos registros digitais tornam bens como a honra, a dignidade da pessoa humana e a integridade das instituições especialmente vulneráveis - emergindo a demanda por instrumentos jurídicos capazes de conter abusos e responsabilizar condutas.
Como proteger a honra sem restringir indevidamente a liberdade de expressão? Como punir abusos sem atropelar o devido processo legal? Como intervir sem desrespeitar o princípio da intervenção mínima, tão caro ao Estado Democrático de Direito?
Essa é, em essência, a tensão que permeia as recentes discussões no STF acerca da constitucionalidade da regulação das redes sociais e da responsabilização das big techs.
O debate, que envolve diretamente temas como a desinformação, a moderação de conteúdo e a responsabilização por danos decorrentes de publicações ilícitas, coloca o Judiciário - e, por extensão, o Estado brasileiro - diante da difícil missão de equilibrar liberdade e proteção, inovação e responsabilidade, pluralidade e segurança institucional.
I. O Marco Civil da Internet sob escrutínio
Para falar sobre o caldo em fervura aquecido no STF e servido à população, é preciso, antes, lembrar que o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) consolidou princípios fundamentais para o uso da internet no Brasil, como a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a neutralidade de rede. O art. 19, em especial, estabeleceu que provedores de aplicações de internet (como este site) somente podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos gerados por terceiros se não atenderem a uma ordem judicial específica de remoção.
Ocorre que, diante da intensificação da disseminação de fake news, do uso estratégico de redes para atentados à democracia (como visto no emblemático 8 de janeiro de 2023) e da ampliação do alcance de discursos de ódio, a eficácia desse modelo legal passou a ser contestada.
No extenso julgamento da ADI 7.411, o STF discutiu a constitucionalidade do art. 19. A controvérsia girava em torno de dois eixos principais: (i) se a exigência de ordem judicial para a retirada de conteúdo violava o direito à proteção imediata de vítimas de discursos ilícitos, e (ii) se a norma representava uma blindagem indevida às plataformas, dificultando a responsabilização por danos causados no ambiente virtual. O julgamento envolveu ainda outras ações conexas, como o RE 1.057.258 (Tema 533) e o RE 1.037.396 (Tema 987 de repercussão geral), o que demonstra o grau de complexidade da matéria.
No último dia 26 de junho, com um placar de 8 a 3, a Suprema Corte finalizou o julgamento e considerou parcialmente inconstitucional a regra do art. 19 do Marco Civil da Internet que condicionava a responsabilidade civil das plataformas à existência de ordem judicial. Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento de que esse modelo atual de responsabilização civil das plataformas não atende aos desafios do mundo digital e, agora, os provedores poderão ser responsabilizados por conteúdos ilícitos mesmo sem decisão judicial (à exceção dos crimes contra honra) especialmente nos casos de impulsionamento pago, uso de robôs e disseminação massiva de conteúdos elencados na lista de crimes graves, como discursos de ódio, pornografia infantil e atos antidemocráticos2.
O que estava em jogo, portanto, é que as plataformas atuem de maneira eficaz e satisfatória na prevenção e resposta, adotando mecanismos que impeçam a proliferação desses conteúdos, com autorregulação obrigatória, acessibilidade de contato e representação jurídica no Brasil, sob risco de serem responsabilizados.
Vale dizer, também, que o STF devolveu a questão aos olhos do Congresso Nacional para que o tema seja definitivamente posto à discussão para edição de legislação. Enquanto isso não ocorrer - e bem sabemos o quanto isso pode caminhar a passos curtos - a plataforma será responsabilizada civilmente pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crimes em geral ou atos ilícitos se, após receber um pedido de retirada, deixar de remover o conteúdo.
Não se perde de vista que, com o entendimento firmado pela Corte Suprema, o cidadão comum também pode se beneficiar: conteúdos ofensivos que hoje demandam longos trâmites judiciais para remoção (como ameaças, injúrias e vazamentos de fotos íntimas) poderão ser excluídos de forma mais célere.
Contudo, o julgamento paradigmático levanta discussões que transcendem a esfera abstrata e já reverberam no nosso cotidiano. A aplicação do entendimento exarado pelo STF pode trazer implicações penais práticas bastante relevantes como: (a) o aumento significativo e desmedido de investigações por crimes cibernéticos; (b) a responsabilização de influenciadores digitais, administradores de páginas e moderadores de comunidades digitais com maior rigor por tolerância ou estímulo a práticas ilegais, com potencial risco de enquadramento na figura de partícipes de delitos; e, talvez o mais perigoso, (c) o reforço do uso do Direito Penal como mecanismo de contenção institucional.
Esse último parece ser aquele mais alarmante, por caminhar numa zona cinzenta de risco concreto de que, com a expansão de interpretações sobre responsabilidade penal em redes, o Ministério Público e o Judiciário passem a utilizar com mais frequência medidas como quebra de sigilo telemático, condução coercitiva e bloqueios judiciais de perfis e páginas, inclusive antes de trânsito em julgado - o que suscita debate sobre violação ao devido processo legal.
II. Expansão penal e os riscos da criminalização das plataformas
No calor dessas discussões, emergem propostas legislativas e decisões judiciais que indicam uma possível ampliação da responsabilidade penal das plataformas virtuais e até mesmo de seus dirigentes. A possibilidade de criminalização da omissão na remoção de conteúdo, ou da manutenção de contas envolvidas com práticas ilícitas, gera inquietações importantes no campo das garantias penais.
A responsabilização penal de empresas no Brasil é, hoje, restrita aos crimes ambientais (art. 225, §3º, CF). Paralelamente, o Brasil é parte da Convenção de Budapeste que, em seu art. 12, prevê responsabilidade penal da pessoa jurídica pela prática dos crimes cibernéticos, quando cometidos em seu benefício por qualquer pessoa física em posição de direção, que aja individualmente ou como integrante de um órgão da própria pessoa jurídica, com base no seu poder de representação, na autoridade para tomar decisões e de exercer o controle interno na pessoa jurídica; e (ii) quando outros indivíduos, despidos de tais características, praticarem crimes dentro do seu escopo de atuação, em benefício da pessoa jurídica, porque houve falha na supervisão ou o controle.
O Brasil, contudo, ainda não criou tipos penais específicos para essas hipóteses, embora exista orientação internacional para tanto. A esse respeito, vale destacar que "o nível de discussão para a criação de um modelo de imputação de responsabilidade penal do ente coletivo ainda parece incipiente no âmbito legislativo, demandando maior aprofundamento sobre a sua viabilidade, seja pelas hipóteses de responsabilização, seja pela adequação dos modelos de responsabilidade com os princípios orientadores do Direito Penal brasileiro"3.
Quanto aos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, a possibilidade de uma responsabilização penal por omissão - quando havia o dever jurídico de agir - suscita debates. É nesse ponto que, inclusive, também se discute se plataformas digitais poderiam, em tese, ser equiparadas a garantidoras, nos termos do art. 13, §2º, do CP.
Tal argumento se sustenta na ideia de que as empresas detêm poder técnico, estrutural e informacional para evitar a propagação de conteúdos ilícitos. No entanto, essa tese esbarra em diversos obstáculos, tais como: o volume de dados, a complexidade dos algoritmos de recomendação e a ausência de clareza normativa sobre o que constitui conteúdo "manifestamente ilegal".
Assim, a responsabilização criminal, ainda que indireta, de CEOs ou diretores de plataformas por atos de terceiros - encontra sérias restrições no Estado Democrático de Direito. A adoção da teoria do domínio do fato por omissão, para imputar responsabilidade penal a executivos de empresas multinacionais sediadas no exterior, exige prova robusta da ciência e da inércia dolosa - elementos que nem sempre são fáceis de demonstrar com segurança jurídica e por meio de provas lícitas.
III. Liberdade de expressão x discurso de ódio: um falso dilema?
Nesse contexto, o discurso de ódio, as fake news e a desinformação têm sido temas centrais na agenda internacional. No Brasil, os impactos disso foram sentidos de forma aguda durante as eleições e nos ataques de 8 de janeiro. Contudo, a resposta a esses fenômenos não pode implicar a erosão da liberdade de expressão, especialmente quando não há critérios objetivos para a definição do que é "conteúdo falso" ou "discurso perigoso".
O Marco Civil da Internet foi construído com base em três pilares: a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a preservação da arquitetura aberta da internet. Qualquer tentativa de regulação e, especialmente de criminalização, deve partir da compatibilização desses princípios com o dever do Estado de proteger a ordem pública e os direitos fundamentais.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, reconhece a liberdade de expressão como um dos pilares da democracia, alertando que medidas restritivas devem se ajustar ao princípio da proporcionalidade, pois "ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças"4. A criminalização imprecisa, baseada em conceitos vagos como "fake news", pode ser convertida em ferramenta de perseguição política, sobretudo em contextos de polarização institucional.
Isso não significa, contudo, que a inação seja solução. Pelo contrário: é fundamental que o Estado regule, sim, mas com mecanismos administrativos eficientes, instrumentos de responsabilização cível e com incentivo à autorregulação transparente por parte das plataformas.
IV. Considerações finais: por uma regulação proporcional e democrática
O Direito Penal, em sua feição garantista, deve ser reservado a condutas lesivas de alta gravidade e não pode se transformar em instrumento de pressão política ou moral sobre agentes privados.
A internet é, ao mesmo tempo, um espaço de liberdade e de riscos. Proteger a democracia nesse ambiente exige maturidade institucional, capacidade técnica e respeito aos limites do Estado de Direito. Mais do que punir, é preciso construir um modelo de regulação que seja democrático, multissetorial e comprometido com a transparência.
A responsabilização das plataformas deve passar por instrumentos eficazes de regulação administrativa, sanções proporcionais e exigências concretas de transparência algorítmica, sem abandonar a perspectiva dos direitos fundamentais. A liberdade de expressão é condição da democracia - e não obstáculo à sua defesa.
O julgamento da ADI 7411 no STF representou marco decisivo para a reestruturação da regulação digital no Brasil. Essa interpretação constitucional parece estabelecer o prenúncio de um regime híbrido, que deverá ser regularizado pelo Poder Legislativo:
- Responsabilidade subjetiva: aplicável em geral, exige prova de falha ou omissão por parte das plataformas, via sistemas de notificação e diligência técnica adequada.
- Presunção de responsabilidade: em situações de impulsionamento pago, uso de robôs para disseminação e crimes graves (como terrorismo, pornografia infantil, racismo, atos antidemocráticos, discurso de ódio, abuso sexual e tráfico de pessoas), impõe-se remoção imediata sem necessidade de notificação judicial.
De um lado, temos mais rapidez na remoção de conteúdos ilícitos graves e a ampliação da atuação das plataformas; de outro, o risco de incremento da criminalização da liberdade de expressão e o uso desenfreado do Direito Penal como instrumento de regulação social.
Esse panorama desafia a sociedade a buscar soluções equilibradas e colegiadas, que não recorram ao Direito Penal como resposta imediata e simbólica. Ao contrário, é preciso consolidar uma regulação administrativa e cível eficaz, fundamentada em transparência técnica, proteção de direitos e cultura digital democrática.
*As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.
**A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas.
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1 De acordo com o IBGE (2024), de 2016 a 2023, a proporção de domicílios das áreas rurais que utilizaram internet cresceu de 35,0% para 81,0%. Em áreas urbanas, percentual foi de 76,6% a 96,1% no período. Dados disponíveis aqui.
2 O resumo do julgamento pode ser consultado aqui.
3 Lumi Kamimura Murata, D. A. M.; Ritzmann Torres, M. P. A convenção de Budapeste sobre os crimes cibernéticos foi promulgada, e agora?. Boletim IBCCRIM, [S. l.], v. 31, n. 368, 2023. Disponível aqui.
4 Um compilado da jusrisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos está disponível aqui.