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Por que deixar os ricos menos ricos? A razão por trás do imposto progressivo

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Atualizado às 07:43

Que o Brasil é um país muito desigual, todo mundo já sabe. Mas talvez essa informação seja um tanto abstrata para que você entenda o que ela realmente significa na prática. Para ilustrar, inicio com a seguinte estatística: segundo dados da PNAD contínua1, no ano de 2024, o país conseguiu atingir a menor diferença de renda habitual entre os mais ricos e os mais pobres2. E em comparação com 2023, os 40% mais pobres da população conseguiram um ganho real de renda (descontada a inflação) mais de 6 vezes maior que os 10% mais ricos3. Além disso, no ano passado, a renda habitual média atingiu o maior pico desde o início da série histórica, em 2012.

Esses dados seriam motivo de comemoração se não fosse o fato de que os 10% mais ricos recebem, todos os meses, 13,4 vezes mais renda que os 40% mais pobres. Esse número aumenta significativamente quando comparamos os mais pobres com o 1% mais rico, que recebe 36,2 vezes mais que aqueles. Quando olhamos para a riqueza acumulada, ao invés da renda, descobrimos que, até 2021, 1% da população brasileira acumulava 63% de todos os ativos financeiros do país, enquanto 50% mais pobres detém meros 2%4. Como nos lembra Marcelo Medeiros, "1 em 5 no 0,5", quer dizer, a cada 5 reais existentes no país, 1 real é apropriado pelo 0,5% mais rico, e "50 no 5", ou seja, quase 50% da renda é concentrada no 5% mais rico da pirâmide social brasileira5.

E esse cenário vem se mostrando relativamente estável ao longo da história. Apesar de oscilações relacionadas a ciclos políticos específicos, entre 1926 e 2013, a quantidade de renda apropriada pelo centésimo mais rico variou muito pouco: oscilou entre 20% e 25%, estacionando em 23% na primeira década dos anos 20006. Já entre 2012 e 2023, a fatia de renda concentrada nos 10% mais ricos variou de 42,8% para 41%7.

Tudo bem, está claro que somos muito desiguais. Mas, por que isso é um problema? Há quem diga que se resolvêssemos a nossa pobreza, não importaria muito se os ricos são muito ricos. Resolver a pobreza com certeza seria muito bom para muita gente, considerando que o Brasil, além de desigual, é pobre. Na verdade, somos um país homogeneamente pobre.

Rodolfo Hoffmann8 calculou que, em 2023, o limite entre os "relativamente pobres" e os "relativamente ricos" seria algo em torno de R$ 4 mil de renda domiciliar per capita9. Já segundo a PNAD contínua, em 2024, a renda média domiciliar per capita dos brasileiros que vivem entre os 80% e os 90% mais ricos bateu os R$ 3.212,0010. Vou repetir: 90% dos brasileiros vivem com até R$ 3.212,00, em média, ao mês. Quer dizer, acima disso, já estamos entrando no grupo dos 10% mais ricos. Talvez seja uma surpresa para você que ser "rico" no Brasil equivalha a conseguir pagar a prestação de um carro "popular" e viajar para a praia de vez em quando.

Então, parece que somos, na verdade, meio iguais: igualmente pobres. Se isso é verdade, onde está a desigualdade? Ela está no topo, justamente nos 10% mais ricos. Esse pequeno grupo agrega as pessoas mais variadas, desde gente que sua para pagar o plano de saúde ao Eduardo Severin. Para se ter uma ideia, o topo desse grupo (1%) é 7 vezes mais rico que quem está na base11. E se compararmos o grupo dos 20% mais ricos, a diferença entre o topo e a base é de 193 vezes12. O Brasil é isso: uma massa gigante de pessoas pobres ou meio pobres e um minúsculo grupo de gente realmente muito rica.

Partindo desse cenário, fica mais fácil entender o porquê de ser mais simples reduzir a desigualdade a partir do topo. Aumentar os rendimentos de 90% da população é tarefa muito mais complexa que diminuir a riqueza do 1%, por exemplo. Vários estudos vêm mostrando que, por conta do tamanho e da complexidade da pobreza brasileira, grandes esforços em modificá-la, por mais importantes que sejam, geram impactos relativamente módicos.

Um grande exemplo disso é a educação. Muita gente defende que o investimento em educação deve ser a principal arma de ataque à pobreza. Argumenta-se que a educação é a forma mais eficaz de fomentar a mobilidade social. Obviamente, ninguém aqui é contra políticas que aumentem o alcance e a qualidade da educação brasileira, muito pelo contrário. Mas é preciso entender as limitações dessa proposta para o fim específico de redução da desigualdade social. Além de ser um investimento à longo prazo - e nossos problemas são urgentes - as estatísticas nos mostram que a educação, principalmente a básica, reverbera pouco na desigualdade social.

Em primeiro lugar porque a educação é um legado. "Em 1996, 65,0% dos filhos de pais com ensino superior tinham também esse nível de instrução; em 2014, 73,4%"13. Já os filhos de pais sem escolaridade raramente conseguem entrar nas universidades. Com a grande ampliação de acesso às universidades nas últimas décadas, esse grupo triplicou de tamanho. Falando assim, parece bom, mas veja os números: em 1996, somente 0,9% dos filhos de pais sem escolaridade conseguiam, de fato se formar no ensino superior; já em 2014, esse grupo aumentou para meros 3%. Quase 20 anos separam esses dados e, ainda assim, a mudança é estatisticamente modesta.

Ademais, mesmo com o aumento da educação nas últimas décadas, a renda dos pais continua sendo o maior preditor de renda dos filhos14. Soma-se a isso o fato de que o incremento salarial está, na verdade, mais relacionado à conclusão do ensino superior que dos níveis mais básicos de escolaridade15. Ou seja, reduzir a desigualdade social a partir da educação exigiria várias décadas de investimento, bem como uma massificação do ensino superior16. E, ainda assim, se praticamente toda a força de trabalho tivesse nível superior, a desigualdade social seria reduzida na ordem dos 10%17.

Nas palavras de Gabriela da Cruz, do IBGE, e de Valéria Peso, da UFRJ, "alterar posições na distribuição de renda, porém, parece ser uma transformação mais difícil, não impactada pelo aumento geral da escolaridade da população"18.

Bom, se é mais difícil combater a desigualdade a partir do foco nos pobres, talvez o caminho seja olhar para os ricos. E, para isso, é inevitável falarmos de tributação. Mas, antes, quero voltar naquela pergunta que fiz antes: por que a desigualdade é um problema? É ruim que as pessoas sejam muito diferentes entre si? Se essa diferença for relacionada à renda e à riqueza, sim. Mas, hipoteticamente, se todos tivessem condições de vida e dignidade mínimas, a desigualdade ainda importaria tanto? Sim e vejamos os porquês.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a desigualdade social é sempre acompanhada de hierarquização. Não é a mera diferença entre as pessoas, mas sim a existência de categorias sociais a partir das quais alguns indivíduos são considerados "cidadãos de segunda classe", enquanto outras são privilegiadas de diversas formas.

Por isso, a desigualdade de renda e riqueza gera desequilíbrio político. Você sabe, ainda que intuitivamente, que o poder econômico impacta o poder político. Pessoas muito ricas têm mais condições de influenciar a direção de um país, com financiamentos de campanha robustos, lobby e controle das mídias tradicionais e sociais. Enquanto eu e você precisamos nos unir com outras tantas pessoas para, por meio de representantes de classe e sindicais, tentar falar com um deputado, o super-rico pode apenas pegar seu telefone e ligar para esse mesmo parlamentar ou visitá-lo diretamente.

Nas palavras de Oscar Vilhena Vieira, a desigualdade social causa a "invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, minando a imparcialidade da lei"19. Isto é, quando a política se torna mais acessível aos ricos e mais representativa de seus interesses, por conseguinte, acaba por se esquecer dos mais pobres, provocando um ciclo sem fim de criação e reforço de desigualdade. Surge, assim, a diferença de tratamento pelo Estado e de representação política. Desigualdade social é, então, motivo para a erosão do rule of law, uma vez que cria imunidades e privilégios para os ricos, enquanto cala a voz dos mais pobres. Por isso mesmo, "países desiguais reforçam desigualdade, desconfiança e corrupção, as quais são difíceis de erradicar considerando suas íntimas correlações com a distribuição de riqueza e a cultura social"20.

A desigualdade também afeta a coordenação e solidariedade sociais. Quando as pessoas não convivem, sequer se veem, é mais difícil desenvolver consciência social e sentimentos de comunhão. Como vou me importar com alguém que eu sequer sei que existe? A polarização ideológica é maior em sociedades desiguais e, nelas, há a erosão das possibilidades de diálogo e consenso. Vivemos em bolhas e achamos que elas são o mundo real. As pessoas passam a ressentir umas às outras. Os sentimentos de alteridade e de empatia são perdidos.

Por fim, Thomas Piketty argumenta que, mesmo se todos tivéssemos condições de vida e dignidade mínimas, a desigualdade social extrema continuaria a ser um problema em razão do "poder de compra do tempo do outro". "Se ao despender o equivalente a uma hora de minha renda posso comprar o seu ano inteiro de trabalho, isso revela a existência de modalidades de distância social nas relações humanas que suscitam preocupações e questionamentos seríssimos"21. Isto é "você gasta um pouquinho de sua renda e acredita ter o poder de ditar o que os demais farão com o tempo deles"22.

Em síntese, da mesma forma que pobreza demais é um problema, riqueza em excesso também é. E, aí, entra a tributação progressiva, ou seja, aquela que vai aumentando à medida que o nível de renda e riqueza também crescem.

Por óbvio, o raciocínio feito pelo governo atual está correto: isentar a grande massa de pobres do imposto de renda carece de uma compensação arrecadatória, que seria alcançada por meio do imposto progressivo. Mas, tributar mais os super-ricos não importa somente para o aumento da arrecadação ou por razões compensatórias. Como visto, a existência de super-ricos ameaça a própria estrutura do Estado Democrático de Direito. Tornar os ricos menos ricos importa para a diminuição da hierarquização social e das assimetrias de poder. Aqui no Brasil, são 141.400 indivíduos, ou 0,06% da população, que ostentam poder econômico e político (pelo menos em potencial) infinitamente maior do que os outros 99,94% dos brasileiros.

Aproveito meus momentos finais para fazer uma observação sobre o fantasma da fuga de capital. Marcelo Medeiros explica que um bom desenho de tributação progressiva é essencial para evitar que os ricos fujam do país com suas riquezas23. Poderão, obviamente, seguir esse caminho ilegalmente, como já o fazem atualmente. Mas, licitamente, suas opções podem ser radicalmente limitadas, a partir, por exemplo, da tributação de residentes ou nacionais brasileiros, não importando onde estejam localizadas suas riquezas. A migração e a alteração do domicílio fiscal são medidas que encontram obstáculos concretos. Esta última, por exemplo, seria útil somente para a evasão de capital financeiro, o que representa uma menor parte da riqueza brasileira, a qual é composta em 2/3 por bens corpóreos (imóveis, máquinas, equipamentos, animais) de difícil ou impossível deslocamento24. E mesmo o capital financeiro encontra barreiras como custos tributários de movimentação e variações de câmbio.

Enfim, a arrecadação possibilitada pelo imposto progressivo pode, obviamente, ser destinada às políticas de redistribuição e ao serviço público no geral (o que seria ideal). No entanto, já há um mérito imediato e intrínseco na diminuição da riqueza extrema, da mesma forma em que há na redução da pobreza.

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1 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a qual é conduzida pelo IBGE.

 

2 Conforme noticiado pela Agência Brasil neste link.

3 "Entre os 40% com os menores rendimentos mensais reais domiciliares per capita houve um aumento de 9,3% em 2024 na comparação com 2023, (de R$ 550 para R$ 601). Já entre os 10% com os maiores rendimentos, essa variação foi menor em um ano (1,5%), passando de R$ 7.914 para R$ 8.034".

4 Segundo Relatório "Desigualdade S.A", publicado pela Oxfam em janeiro de 2024. Acesso neste link.

5 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 30.

6 SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos, 1926-2013, 1ª ed., São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018, p. 369-370.

7 Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Rio de Janeiro: IBGE, 2024, p. 49.

8 HOFFMANN, Rodolfo. A distribuição da renda no Brasil conforme dados da PNAD contínua, 2012-2023. Texto para Discussão n. 81, Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG), 2024, p. 3.

9 A renda domiciliar per capita equivale à soma de todos os rendimentos de um domicílio dividida pelo número de habitantes que nele residem. Já a renda média domiciliar per capita é média das rendas domiciliares per capita das pessoas residentes em determinado espaço geográfico em um determinado período.

10 PNAD Contínua, Rendimento de Todas as Fontes, 2024, p. 13.

11 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 25.

12 Ibidem, p. 43.

13 CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024, p. 191.

14 Ibidem, p. 198.

15 MEDEIROS, Marcelo; BARBOSA, Rogério; CARVALHAES, Flavio. Educational Expansion, Inequality and Poverty Reduction in Brazil: A Simulation Study, SSRN, jul., 2018.

16 Ibidem.

17 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 60.

18 CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024, p. 198.

19 VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do estado de direito. Sur Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 6, ano 4, 2007, p. 28-51.

20 BENVINDO, Juliano. The Rule of Law in Brazil: the legal construction of inequality. Oxford: Hart, 2022, p. 52.

21 PIKETTY, Thomas; SANDEL, Michael. Igualdade: significado e importância. Tradução: Maria de Fátima Oliveira do Coutto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025, p.20.

22 Ibidem, p. 94.

23 MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 119-123.

24MEDEIROS, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 119-123.

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BENVINDO, Juliano. The Rule of Law in Brazil: the legal construction of inequality. Oxford: Hart, 2022.

CRUZ, Gabriela Freitas da; PERO, Valéria. Mobilidade intergeracional de renda no Brasil: uma análise da evolução nos últimos vinte anos. Pesquisa e Planejamento Econômico, Brasília, v. 54, n. 01, abr., 2024.

HOFFMANN, Rodolfo. A distribuição da renda no Brasil conforme dados da PNAD contínua, 2012-2023. Texto para Discussão n. 81, Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG), 2024.

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SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos, 1926-2013, 1ª ed., São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do estado de direito. Sur Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 6, ano 4, 2007, p. 28-51.