Compliance como instrumento para direitos humanos, eficiência na aplicação de dinheiro público e maturidade corporativa
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Atualizado em 2 de setembro de 2025 09:47
Nos últimos meses, temos acompanhado um (novo) aumento na divulgação de operações policiais que apuram casos de corrupção, crimes financeiros e outros desvios envolvendo empresas de diversos ramos de atuação, em conluio com agentes públicos1. O enfrentamento à corrupção, assunto que dominou o debate político no Brasil em anos recentes, permanece como um dos temas mais relevantes na política e economia nacionais. A esse respeito, a Transparência Internacional divulgou que o Brasil atingiu em 2024 sua pior colocação no Índice de Percepção da Corrupção desde o início da pesquisa em 20122, a reforçar que ainda temos muito a caminhar no enfrentamento a esse problema.
Nesse contexto, o compliance se destaca como uma das soluções disponíveis ao poder público na estrutura de combate à corrupção, além de medidas repressivas. Programas de integridade, como são chamados desde a lei 12.846/13 (lei anticorrupção ou empresa limpa), são mecanismos que ajudam a empresa a conhecer e compreender seus riscos concretos de incorrer em violações de normas e regulamentos, estabelecer controles para preveni-los e mitigá-los, e fortalecer uma cultura ética na qual todos compreendam como devem agir3.
A norma estabeleceu a responsabilidade objetiva das empresas que se envolvem em situações de corrupção, isto é, independente da comprovação de conhecimento ou intenção de seus dirigentes4. Muito além dos códigos e políticas internas, a lei determina que as empresas se responsabilizem ativamente pela difusão da integridade5, inclusive perante seus funcionários, gestores, consumidores, fornecedores e parceiros. Logo, não basta coletar assinaturas em um código que ninguém conhece ou manter um canal de denúncias que ninguém utiliza. É preciso um compromisso real e perceptível adequado ao setor, tamanho e momento da empresa.
Em contrapartida, a organização que estrutura um bom programa de integridade recebe diversos benefícios, como incremento no valor da empresa, redução de volatilidades, auxílio na tomada de decisão, proteção de gestores e aumento da eficiência6. A existência de análise de risco e de mecanismos de controle apropriados reduz a possibilidade de prejuízos decorrentes de fraudes e desvios, além de danos trabalhistas e ambientais. Além disso, o fortalecimento de uma cultura ética baseada em valores claros, refletidos desde a alta administração, tem impacto direto na produtividade e na retenção de talentos, reduzindo o turnover7. Enfim, quando alguma ilegalidade de fato acontece, a empresa que demonstra possuir compliance efetivo pode ter redução substancial na multa (a qual pode chegar a até 20% do faturamento anual)8.
Desse modo, os programas de compliance assumem um papel de auxiliar todo o campo empresarial e produtivo brasileiro a alcançar um patamar de maior maturidade corporativa, convidando todos os setores a ocuparem um lugar de maior responsabilidade socioeconômica, conforme as expectativas dos stakeholders. Mais do que uma imposição legal, os programas de integridade oferecem caminhos possíveis para aumentar a confiança entre particulares e, de fato, podem ser uma ferramenta potente na repactuação civilizatória democrática que a sociedade tanto almeja.
Isso porque o compliance é baseado em metodologias de avaliação de riscos de integridade, auxiliando as empresas que realmente querem se comprometer com valores como transparência, integridade e sustentabilidade - ou seja, que já compreendem seu papel social diante de uma economia dinâmica, complexa e arriscada - a se aproximarem de outras com o mesmo compromisso e dedicação. Assim, quem apenas simula aderência à legalidade e à integridade para dissimular práticas ilegais terá cada vez menos espaço no mercado, já que o compliance demanda um olhar mais aprofundado sobre os processos internos e a cadeia produtiva. Desse modo, quando devidamente aplicados, os programas de integridade podem servir até mesmo para aumentar a segurança e confiança entre pessoas e empresas.
Por seu grande potencial transformador, o conceito de integridade vem sendo ampliado e, atualmente, vai além do combate a corrupção, fraudes e irregularidades financeiras. Pelos parâmetros da Controladoria-Geral da União, integridade inclui também preocupações com questões de sustentabilidade e condições de trabalho, em sintonia com a agenda ESG9. Outros temas vêm recebendo cada vez mais destaque por seu potencial de riscos legais e reputacionais, como assédio moral e sexual, e discriminações por motivo de raça, gênero, orientação sexual e deficiência. Esses recortes impactam diretamente na saúde mental do trabalhador e nos riscos psicossociais, cuja avaliação será obrigatória para a partir de 202610.
Importante destacar que esses temas não aparecem dentro da legislação e dos programas de integridade por conta de opiniões ou posições ideológicas. Trata-se de um movimento global que ressalta a responsabilidade das empresas sobre a sociedade na qual se inserem11, e destaca melhores práticas de governança baseadas em evidências, as quais demonstram que todos esses fatores mencionados atravessam, enfim, a produtividade e lucratividade das empresas. Um ambiente ético, saudável e íntegro atrai e retém talentos, interessa aos consumidores, fortalece parcerias comerciais e promove as empresas a um patamar de crescimento mais seguro e longevo.
Portanto, os programas de integridade se tornaram um instrumento social para caminhar em direção à garantia de direitos humanos12. Evidentemente, as relações sociais permanecem tão conflituosas quanto sempre foram, e o cenário geopolítico global atual impõe desafios complexos e altamente dinâmicos. Enquanto sociedade, estaremos diante de questionamentos para os quais não temos respostas fáceis, e seremos cada vez mais cobrados para apresentar soluções criativas, inovadoras e efetivas. É justamente nesse contexto que recursos complexos e estruturados como os programas de integridade demonstram um potencial transformador que não deve ser ignorado.
Além disso, os programas de integridade também têm se tornado importantes aliados para a otimização dos gastos públicos, uma vez que passaram a incorporar as soluções da nova lei de licitações (lei 14.133/22), que coloca esses programas como exigência no caso de contratações de grande vulto, como critério para desempate e para reabilitação. Aliás, o decreto 12.304/24, que regulamenta essa lei e define os critérios de avaliação dos programas, estabelece que um de seus objetivos é "mitigar os riscos sociais e ambientais decorrentes das atividades da organização, de modo a zelar pela proteção dos direitos humanos", reforçando o ponto anterior.
No mesmo sentido, diversos estados e municípios já promulgaram suas normas locais estabelecendo a obrigatoriedade desses programas para hipóteses semelhantes ou até ampliadas em relação à lei federal. É o caso, por exemplo, de Rio de Janeiro, Distrito Federal e Porto Alegre, que possuem legislações importantes e avaliação rigorosa sobre os programas de integridade de empresas fornecedoras de bens e serviços13.
Esses avanços sinalizam a tendência de que o compliance venha a ser utilizado como ferramenta de governança para construção de consensos sociais, efetivação de políticas públicas e avaliação de compromissos. Outro indício nesse sentido vem de discussões acerca do anteprojeto do CC, em que alguns autores14 defendem a atualização do significado da responsabilidade civil para alcançar também funções como preventiva e promocional15. Nesse contexto, práticas de governança e compliance com foco em direitos fundamentais poderiam funcionar como parâmetro para redução de indenizações, buscando formas mais eficazes de reparação de danos.
É certo que a existência de programas de integridade, ainda que efetivos e robustos, não impedem por completo o risco de ocorrer um pagamento de propina, uma fraude, um conflito de interesse, ou um caso de assédio, más condições de trabalho ou destruição ambiental. Porém, quando esses fatos acontecem dentro de um sistema de gestão de riscos devidamente gerenciado, torna-se possível entender onde a falha aconteceu e rapidamente corrigi-la. Por isso, o compliance funciona a partir da lógica de melhoria contínua, por meio de ciclos de planejamento, ação, checagem e revisão constante.
Enquanto sociedade, é importante conhecer e fazer uso dessas ferramentas como forma de proteger o erário público, reduzir desperdícios, identificar falhas e prevenir fraudes16. O árduo caminho para um país com relações sociais mais harmônicas, direcionado para o compromisso democrático de redução das desigualdades e defesa dos direitos fundamentais, que defenda a inovação e o desenvolvimento sustentável, pode ser beneficiar significativamente do olhar voltado para a gestão de riscos trazido pelos programas de integridade.
_______
1 Alguns casos recentes: Disponível aqui e aqui.
2 Relatório disponível aqui.
3 Art. 56 do Decreto 11.129/22, que regulamenta a Lei 12.486/13.
4 Brandt, Felipe e Rocha, Renata. Os elementos da responsabilidade objetiva prevista na lei anticorrupção. Revista da CGU, 2022. Disponível aqui.
5 Para um aprofundamento nos conceitos de integridade e ética no contexto da administração pública, ver: Bergue, Sandro. Integridade e ética: problematizando os conceitos no contexto da administração pública federal brasileira. Revista da CGU, 2024. Disponível aqui.
6 Webley, Simon e More, Elise. Does Business Ethics Pay? Ethics and Financial Performance. IBE, 2003. E artigos: Corporate Performance Is Closely Linked To Strong Ethical Commitment, disponível aqui, e; Are ethical companies more profitable? disponível aqui.
7 Delloite e Instituto Rede Brasil do Pacto Global. Integridade Corporativa no Brasil 2022 - Evolução do compliance e das boas práticas empresariais. Disponível aqui.
8 Para saber como a CGU tem realizado a dosimetria das multas em violações à Lei Anticorrupção, ver recente relatório disponível aqui.
9 "Portanto, um Programa de Integridade não se limita a medidas para evitar irregularidades ou meramente garantir a conformidade com a legislação vigente; ele pressupõe a adoção de ações positivas que promovam a ética, a boa governança, a preservação do meio ambiente e o respeito aos direitos humanos e sociais. O objetivo é contribuir para o desenvolvimento sustentável da empresa e da sociedade em que ela está inserida. Assim, um Programa de Integridade deve ser uma ferramenta que auxilia as empresas a prosperarem financeiramente enquanto promovem uma cultura de integridade que transforme o ambiente organizacional e suas relações com a sociedade." Disponível aqui.
10 Disponível aqui.
11 Lima, Renata et al. Compliance e os seus impactos à luz da responsabilidade social e governança corporativa. Revista Semestral de Direito Empresarial da UERJ. Disponível aqui.
12 Sobre o avanço da pauta de empresas e direitos humanos no Brasil, ver Além do compliance: a nova era dos direitos humanos nas empresas, disponível aqui, e; Direitos Humanos e responsabilidade empresarial: avanços no debate, disponível aqui.
13 Rainho, Renata. Compliance como instrumento de integridade e combate à corrupção nas contratações públicas: uma análise do tema à luz da Lei n° 14.133/2021. Revista da CGU, 2023. Disponível aqui.
14 Disponível aqui.
15 Sobre atualização dos objetivos da responsabilidade civil, ver: BARROS, Paula. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. PUCSP, 2010. Disponível aqui.
16 Para saber mais sobre aplicação de metodologias práticas adaptáveis à realidade de cada empresa, ver a iniciativa Pacto Brasil pela Integridade Empresarial da CGU, disponível aqui.