STF iniciou, nesta segunda-feira, 9, a oitiva dos réus do "núcleo 1" da ação penal que apura a tentativa de golpe de Estado e os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
Os depoimentos, conduzidos pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, representam uma das últimas etapas do processo antes do julgamento de mérito.
O primeiro réu interrogado foi o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro.
Cid celebrou um acordo de colaboração premiada, instrumento jurídico previsto na lei 12.850/13, pelo qual o acusado, em troca de benefícios penais — como redução ou perdão da pena —, fornece informações relevantes às autoridades responsáveis pela investigação criminal.
Como funciona o interrogatório?
O interrogatório começou com perguntas do ministro relator, Alexandre de Moraes. Em seguida, ministro Luiz Fux interpelou diretamente o réu.
A partir desse momento, as demais perguntas — da Procuradoria-Geral da República, dos advogados do réu interrogado e dos demais defensores — foram dirigidas ao ministro relator, que conduziu a inquirição.
O primeiro a perguntar foi o advogado do próprio réu interrogado, seguido pelos advogados dos corréus, em ordem alfabética, como já vem sendo feito nas sustentações orais.
No início do interrogatório, ministro Alexandre de Moraes destacou que todas as defesas têm o direito de fazer perguntas a todos os corréus, conforme jurisprudência pacífica do STF.
Colaboração premiada
Ministro Alexandre de Moraes iniciou o interrogatório questionando se as acusações feitas pela PGR contra Mauro Cid eram verdadeiras. O ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou que presenciou "grande parte dos fatos", mas negou envolvimento direto nos episódios.
Em seguida, Moraes detalhou o acordo de colaboração premiada firmado por Cid em 28/8/23, na presença de advogados. O militar também assinou um termo de confidencialidade com a PF e, posteriormente, compareceu ao STF, em 6 de setembro, para confirmar a voluntariedade da delação em audiência.
Questionado se estava ciente e se agiu de livre e espontânea vontade, Cid respondeu afirmativamente, ressaltando a presença de seus defensores em todas as etapas.
O ministro também rememorou o depoimento prestado em 22/3/24, após a divulgação, pela revista Veja, de áudios nos quais Cid sugeriria ter sido pressionado pela PF e pelo STF.
Sobre o episódio, o militar afirmou que os áudios foram gravados sem autorização e refletiam desabafos pessoais em meio a uma crise emocional e familiar.
"Foi um vazamento de áudios feitos sem consentimento. Era um momento difícil que eu e minha família estávamos passando. Fotos pessoais vazadas, minha carreira militar desabando, minha vida financeira acabada. Isso gerou uma crise pessoal e até psicológica muito grande. Os áudios foram um desabafo com amigos, com pessoas próximas, não eram declarações oficiais ou acusações formais".
Disse ainda que criticou generais e políticos, e "saiu atirando para tudo quanto é lado", apenas como forma de extravasar.
Apesar do conteúdo das gravações, negou qualquer tipo de coação.
"Em nenhum momento houve pressão. O que havia era uma diferença de visão entre minha narrativa e a linha investigativa da Polícia Federal."
Grupos distintos
Moraes também retomou trechos do depoimento prestado em 28/8/23, no qual Cid relatou que a possibilidade de ruptura institucional era debatida dentro do governo.
O militar classificou os interlocutores em três grupos: um grupo "bem conservador", que aconselhava Bolsonaro a desmobilizar os manifestantes nos quartéis; um grupo "moderado", que reconhecia a legitimidade do resultado eleitoral, apesar de críticas ao país; e um grupo "radical", que defendia abertamente medidas golpistas.
Segundo Cid, entre os radicais havia tanto os que alegavam fraude nas urnas como os que defendiam intervenção armada, com base em interpretação deturpada do art. 142 da CF.
O tenente-coronel confirmou que a classificação foi feita por ele a partir da convivência com os personagens do entorno presidencial, mas ponderou que não se tratava de grupos organizados, e sim de indivíduos que se aproximavam do presidente em momentos distintos.
Instado a nomear integrantes dos grupos, Cid apontou Almir Garnier como do grupo "radical-radical"; classificou Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto como mais moderados; e afirmou que Alexandre Ramagem, Anderson Torres e Augusto Heleno não se enquadravam em nenhuma das categorias.
Jair Bolsonaro não foi incluído em nenhum dos grupos, segundo Moraes, por ser o alvo das tentativas de influência.
Cid afirmou ainda que Bolsonaro esperava uma postura mais firme do general Paulo Sérgio, então ministro da Defesa, diante do relatório da Comissão de Transparência Eleitoral.
O presidente teria pressionado por um documento mais político, enquanto o general buscava manter um tom técnico. "Essa pressão realmente existia", declarou, relatando que a versão final acabou sendo um meio-termo.
Minuta golpista
O depoente confirmou que, a partir de meados de novembro de 2022, ocorreram diversas reuniões no Palácio da Alvorada para tratar de formas de reverter o resultado das eleições.
Entre os participantes, estava o ex-assessor Filipe Martins, que apresentou ao presidente Jair Bolsonaro um documento dividido em duas partes: a primeira, com supostas interferências do STF e TSE nas eleições; e a segunda, com sugestões como decretação de Estado de Defesa e prisão de autoridades.
O documento teria sido entregue a Bolsonaro em ao menos duas ocasiões. "Foram umas duas, no máximo três reuniões", disse Cid, afirmando que o presidente revisou o texto, retirando, por exemplo, a sugestão de prisão de ministros do STF e do presidente do Senado.
Na versão modificada, segundo Cid, apenas o ministro Alexandre de Moraes permaneceria como alvo da prisão.
"De certa forma, enxugou o documento. Ele enxugou o documento, basicamente, retirando as autoridades das prisões. Somente o senhor ficaria como preso."
Segundo Cid, Filipe Martins fez as alterações diretamente no computador, dentro do Alvorada.
"Eu vi o documento com as correções. O presidente leu e pediu os ajustes."
Após essa etapa, uma nova reunião foi convocada com os comandantes das Forças Armadas. Apenas a primeira parte do documento foi projetada, com participação de Bolsonaro e Filipe Martins. Cid, que operava o computador, afirmou:
"A parte com os artigos do tal decreto, Estado de Defesa, ou não foi apresentada ou nós não estávamos presentes no momento."
Relatou também ter se reunido com o então comandante do Exército, general Freire Gomes, que demonstrava preocupação com atitudes unilaterais do presidente:
"Às vezes me ligava, perguntava quem tinha ido ao Alvorada. Eu morava perto e, muitas vezes, passava na casa dele às 11h30, meia-noite, para informá-lo."
Apesar das discussões, afirmou que nenhuma das propostas foi executada.
Segundo ele, Bolsonaro queria testar a reação das Forças Armadas. A reunião com os três comandantes — da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — teria contado com apoio apenas do almirante Almir Garnier.
"Ele colocou as forças, as tropas da Marinha à disposição do então presidente, para o que fosse necessário, caso o decreto fosse assinado."
Os demais chefes militares reagiram de forma contrária. O brigadeiro Baptista Júnior, da Aeronáutica, "cortava qualquer tipo de conversa nesse sentido". As reuniões não contaram com ministros ou assessores, e Anderson Torres teria ido ao Alvorada apenas uma ou duas vezes, sem participar dos encontros decisivos.
Segundo Cid, Bolsonaro resistia à ideia de desmontar os acampamentos em frente aos quartéis:
"Ele não queria que o pessoal saísse das ruas". Acreditava em duas possibilidades: descoberta de fraude ou apoio das Forças Armadas.
No entanto, Cid foi enfático: não havia indícios de fraude.
"Todas as minhas mensagens, que foram abertas pela investigação, deixam claro que não foi encontrada nenhuma fraude, que tudo ficou no campo da estatística."
Indagado se houve indicação de fraude por parte de comandantes, ministros ou assessores, respondeu: "Não, senhor". E concluiu: "Não tinha apoio dos comandantes militares e não havia subsídio de fraude ou algo que pudesse ser o estopim de alguma ação".
Redes sociais
Cid revelou que Bolsonaro operava pessoalmente suas redes sociais, como WhatsApp e Facebook, e ele próprio encaminhava conteúdos ofensivos a ministros do STF.
"Nas mídias sociais, particularmente o Facebook que ele operava, e o WhatsApp dele, era ele que operava."
Sobre os hackers, Cid afirmou que o único que teve contato com Bolsonaro foi Walter Delgatti Neto, levado ao Alvorada pela deputada Carla Zambelli.
Delgatti teria apresentado hipóteses de fraude, e Bolsonaro teria pedido que o general Paulo Sérgio o recebesse. A reunião no ministério da Defesa, no entanto, ocorreu com um general subordinado, e Cid disse não ter recebido retorno.
Relatou ainda episódio com o ex-deputado Daniel Silveira e o senador Marcos do Val, sobre suposta tentativa de gravação de Moraes.
Segundo Cid, Silveira disse que o senador tinha uma gravação comprometendo o ministro, mas depois admitiu que a gravação não existia e sugeriu fabricá-la.
"As informações foram essas: que o senador tinha ido lá dizendo que tinha uma gravação do senhor [Moraes], e que depois não era bem isso — que ele poderia tentar fazer a gravação utilizando outros meios."
O senador teria dito, ainda, ser "muito amigo" de Moraes, o que poderia facilitar o acesso para a escuta clandestina.
Caixa de vinho
Cid confessou ter omitido a reunião de 12/11/22, realizada na casa de Braga Netto, a pedido dos coronéis de Oliveira e Ferreira Lima. Inicialmente prevista para o Alvorada, foi transferida de última hora. Disse que permaneceu por 10 a 15 minutos e depois se retirou, por orientação do próprio general:
"É bom que você não fique, para não aproximar nada do presidente."
Dois dias após a reunião, Oliveira pediu ajuda financeira.
Braga Netto orientou que o PL fosse consultado, mas o partido recusou. Diante da negativa, Braga Netto entregou pessoalmente uma quantia em dinheiro.
"Ele trouxe uma quantia de dinheiro que eu também não sei precisar, mas com certeza não era os 100 mil [reais]", disse Cid. "Estava em uma caixa de vinho."
O valor foi repassado no mesmo dia ao major, ainda nas dependências do Alvorada.
A defesa de Braga Netto questionou o motivo pelo qual o episódio só foi mencionado por Cid mais de um ano após os fatos. Em resposta, o militar afirmou que, inicialmente, não viu relevância penal na entrega da quantia, pois entendeu que se tratava de apoio logístico a manifestações então vistas como legítimas:
"Isso, para mim, estava dentro de um contexto de manifestação que era, teoricamente, dentro do que o Exército aceitava e até a Justiça, legal e legítima, tinha apoio dos militares. Tudo o que foi tratado, para mim, estava sendo direcionado àquelas manifestações."
Somente após a deflagração da Operação Punhal Verde e Amarelo, no final de 2024, ele teria percebido o caráter sensível do episódio.
Ao ser confrontado por Alexandre de Moraes a respeito da normalidade de um ex-ministro entregar dinheiro vivo em caixa de vinho, Cid respondeu: "Normal não seria, mas, naquele contexto das manifestações nas frentes dos quartéis, muita gente vindo, muita gente apoiando, eu não vi ali nada demais. (...) Não vi, naquele momento, como algo de hipótese criminal."
Operação Punhal Verde e Amarelo
Cid negou qualquer envolvimento ou conhecimento prévio sobre a chamada “Operação Punhal Verde e Amarelo”, que supostamente envolveria militares em plano golpista após o segundo turno. Disse que só tomou ciência pela imprensa, no dia das prisões.
"Meu nome nem constava naquele gabinete de crise que seria criado", concluiu.
Minuta mal escrita
Durante a fase de inquirição conduzida pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, o tenente-coronel Mauro Cid foi questionado sobre registros fotográficos de uma minuta de decreto com conteúdo golpista encontrados em seus dispositivos eletrônicos. A última página do arquivo estava parcialmente encoberta por um papel, que ocultava propositalmente as provisões finais do texto.
Questionado se foi ele quem fotografou ou redigiu o documento, Cid negou. "Não fui eu quem tirou a foto. Eu nem lembrava desse documento. Só lembrei quando a Polícia Federal me mostrou no depoimento", disse. O militar explicou que recebia um volume diário elevado de mensagens e, por vezes, postergava a leitura.
Segundo ele, o texto chegou por meio digital e foi transferido de seu celular pessoal para outro número que usava para acessar o WhatsApp Web em seu computador. "O documento era muito mal escrito. Não recebi a versão física e também não repassei para ninguém", garantiu.
Kids pretos
Durante questionamento feito pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, o tenente-coronel Mauro Cid confirmou que havia informações sobre a presença de militares infiltrados nos acampamentos organizados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro após o resultado das eleições de 2022.
Embora tenha ressalvado que já não estava oficialmente vinculado ao batalhão à época, Cid afirmou que era de conhecimento comum entre os militares a atuação de integrantes de forças especiais e da inteligência nas áreas de concentração dos manifestantes.
A pergunta de Gonet mencionava especificamente os "kids pretos" — nome informalmente atribuído a militares das forças especiais. Em resposta, Cid explicou que, apesar de não ter acesso direto aos comandos da operação, ouvia relatos sobre esse tipo de atuação. "O que a gente escutava é que tinham militares, forças especiais, militares de inteligência ali fazendo levantamento de vulnerabilidades, possíveis ações", disse.
Segundo ele, esse tipo de ação é considerado prática comum em situações de instabilidade ou possível crise.
"Quando há uma situação crítica, é normal que as Forças Armadas façam um levantamento operacional diário, identificando lideranças, objetivos e possíveis riscos."
"Reunião de amigos"
Mauro Cid detalhou os bastidores de reunião realizada em 28 de novembro de 2022, no salão de festas de um prédio residencial na Superquadra Norte 305, Bloco I, em Brasília.
O encontro reuniu militares com formação em forças especiais, em meio ao clima de tensão institucional após o resultado das eleições presidenciais.
Questionado por Paulo Gonet sobre o objetivo e a composição do grupo, Cid afirmou que a reunião teve caráter informal e surgiu a partir de uma tradição entre militares egressos de cursos como Forças Especiais, Guerra na Selva, Paraquedismo e Educação Física — conhecidos internamente por manterem vínculos duradouros.
Segundo ele, esses encontros ocorriam mensalmente em Brasília, e aquele dia específico foi aproveitado por haver mais militares na capital Federal.
"Era um grupo de amigos que serviram juntos por muitos anos, reunidos para conversar. Claro que o tema da conjuntura política apareceu, mas não houve ata, pauta formal ou qualquer plano de ação", disse Cid.
Ele negou que tenha havido convocação restrita por motivações estratégicas, explicando que o perfil dos participantes refletia vínculos pessoais, e não uma estrutura organizada.
Apesar disso, Cid reconheceu que a conversa girou em torno das manifestações nas portas dos quartéis e da incerteza institucional que marcava o período.
"Alguns diziam que tinha que pedir intervenção, outros que deveria pressionar o Congresso, e outros criticavam o silêncio das Forças Armadas. Foi um ambiente de opiniões divergentes, com discursos que iam do conservador ao radical, mas sem articulação prática", relatou.
O tenente-coronel afirmou que os presentes também buscavam entender o cenário político e as posições de generais e autoridades próximas do então presidente Jair Bolsonaro.
"Havia muito boato, muita fake news em grupos de WhatsApp. Qualquer deslocamento de tropa era interpretado como o início de uma ação. As pessoas estavam tentando entender o que realmente estava acontecendo."
Cid enfatizou que, apesar do tom político da conversa, a reunião não resultou em mobilizações nem planos concretos. "Não houve planejamento, nem coordenação. E muitos dos militares ali presentes sequer ocupavam cargos de comando, estavam em funções secundárias ou fora de Brasília", concluiu.
O réu afirmou que a manifestação dos militares não representava intenção real de ruptura institucional, mas sim "bravatas".
Segundo ele, era comum que militares expressassem frustração sem, contudo, romperem com a legalidade. "Uma coisa é o que ele acha, outra coisa é, dentro do círculo de legalidade das Forças Armadas, dificilmente esse círculo seria rompido sem ordem do comandante", declarou.
Cid explicou que conhecia pessoalmente muitos dos que faziam tais declarações e que, em sua avaliação, tratavam-se de desabafos semelhantes aos de um torcedor exaltado.
"[...] como se, no final do campeonato, o atacante perde o gol ou perde o pênalti e o cara vai gritar, esse cara tem que morrer, vou matar esse cara."
Relatou ainda ter sido procurado por colegas em busca de informações confiáveis, em meio à proliferação de fake news sobre decretos e mobilizações militares.
"As pessoas me ligavam porque sabiam que o Cid ia dar a informação mais fiel."
O réu foi questionado por Gonet a respeito de mensagens trocadas com o coronel Corrêa Neto logo após a reunião de militares realizada no dia 28 de novembro de 2022, em Brasília.
Em um dos diálogos, Cid pede que sejam enviadas "as observações", ao que Corrêa Neto responde: "Apaguei essa parada. Não combinamos de apagar?"
No dia seguinte, o interlocutor sugere: "Depois a gente se fala por ligação."
As mensagens foram recuperadas pela PF, apesar de terem sido excluídas dos dispositivos. Gonet questionou Cid sobre o conteúdo desses tópicos, o motivo do pedido de exclusão e se a conversa havia continuado por outro meio, conforme sugerido.
Cid afirmou não se lembrar de ter solicitado qualquer anotação ou registro da reunião.
"Realmente eu não me recordo de ter pedido para ele nenhuma anotação de ideias que foram levantadas", disse.
Ele também não soube precisar se chegaram a conversar por telefone posteriormente, mas admitiu manter contato frequente com Corrêa Neto, a quem descreveu como amigo de longa data.
Segundo o militar, era comum entre os envolvidos o receio de que mensagens trocadas por aplicativos de celular fossem mal interpretadas, principalmente aquelas que refletiam opiniões mais radicais sobre o cenário político. "As pessoas tinham muito medo de que alguma coisa escrita no WhatsApp pudesse virar uma narrativa e ser mal interpretada. Todo mundo queria apagar mensagens ou pedir para continuar a conversa pelo Signal, pelo Telegram", afirmou.
Cid explicou que o ambiente da época era de forte tensão e insegurança quanto à confidencialidade das comunicações.
"O medo era de que uma ideia, mesmo que não fosse articulada, pudesse ser usada fora de contexto. Então havia esse cuidado de apagar mensagens e migrar para aplicativos considerados mais seguros."
Apesar de admitir que os temas tratados na reunião envolviam questões políticas e institucionais, o tenente-coronel reafirmou que não houve deliberação formal ou planejamento.
"Eram opiniões soltas, cada um falando o que pensava, sem estrutura de comando ou objetivo claro", concluiu.
Paulo Figueiredo
Cid confirmou que o então presidente Jair Bolsonaro tinha conhecimento da confecção de uma carta redigida por militares, mas negou ter sido ele o responsável por repassá-la ao influenciador Paulo Figueiredo, atualmente foragido nos Estados Unidos.
A carta, cujo conteúdo ainda é objeto de investigação, apresentava teor alinhado a teses golpistas e circulou entre apoiadores do ex-presidente nos dias que antecederam sua saída do cargo.
Questionado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, se havia enviado a carta a Paulo Figueiredo, Cid negou.
"Não, senhor. Não fui eu que encaminhei e desconheço quem foi."
Segundo ele, o texto vinha sendo elaborado por outro grupo de militares, sem ligação com o núcleo das Forças Especiais, e que o material está relacionado a uma linha paralela de investigação.
Gonet também questionou se Bolsonaro determinava o envio de conteúdos a influenciadores. Cid negou qualquer orientação presidencial nesse sentido.
"Nunca houve ordem nem determinação do presidente para que fosse passada alguma coisa para o Paulo Figueiredo. E eu também não sei qual o grau de relação que o presidente tinha com ele."
Sobre sua própria relação com o influenciador, o ex-ajudante de ordens afirmou que falava com ele esporadicamente, da mesma forma que se comunicava com outros nomes da imprensa.
"Nunca foi meu amigo, nunca foi próximo. Conheci pessoalmente só uma vez, quando o presidente esteve em Miami". Cid disse que o contato mais frequente com a mídia era com jornalistas da Jovem Pan, especialmente do programa "Os Pingos nos Is".
"Só ficou olhando"
Cid afirmou que o ex-presidente Jair Bolsonaro tinha conhecimento da elaboração da carta endereçada ao comandante do Exército, redigida por apoiadores fardados, mas que não determinou a divulgação ou adesão.
Também relatou que, à época, o então presidente foi alertado de que a iniciativa poderia ter efeito contrário: ao invés de mobilizar apoio, poderia provocar reações disciplinares por parte do Alto Comando da Força.
Ainda de acordo com o depoente, Bolsonaro teria apenas escutado, em silêncio, o alerta de que os militares signatários seriam punidos.
"Ele só ficou olhando para mim, não comentou nada."
Discurso e plano de fuga
O procurador citou a apreensão de um discurso elaborado para ser lido em caso de decretação de Estado de sítio, encontrado na sede do PL e na sala do ex-presidente.
Cid disse desconhecer o texto.
Também foi mencionada uma pasta intitulada "Memórias Importantes", localizada na mesa de um assessor de Braga Netto, com um esboço da chamada Operação 142.
O plano previa ações como anulação das eleições, substituição dos ministros do TSE e a frase final "Lula não sobe a rampa". Cid afirmou jamais ter tido contato com o documento.
Outro ponto foi a descoberta de um documento com o título "RAF/LAF" no computador de Cid, contendo um plano de fuga para Jair Bolsonaro.
O material, datado de 2021, previa auxílio em diferentes cenários. O militar disse lembrar do documento, mas alegou não saber quem o enviou nem ter discutido o conteúdo com o presidente.
"O contexto era o oposto. Era sobre como proteger Bolsonaro se ele fosse alvo de um golpe dentro das Forças Armadas", explicou. Segundo ele, tratava-se de conteúdo "passivo", que acabou sendo arquivado sem maiores repercussões.
"Alma amargurada"
O militar também foi questionado sobre troca de mensagens com o tenente-coronel Sérgio Cavalieri, em 4 de janeiro de 2023. Na conversa, Cavalieri perguntou se ainda havia algo por vir. Cid respondeu com duas mensagens — apagadas em seguida —, e Cavalieri insistiu: "Coisa boa ou coisa horrível?", ao que Cid respondeu: "Depende para quem. Para o Brasil é boa."
Ao contextualizar o diálogo, Cid mencionou uma mensagem que recebeu em 30 de dezembro do então comandante do Exército, general Freire Gomes, a quem se referiu como um de seus principais interlocutores. O general escreveu: "Meu coração está muito triste, minha alma amargurada, mas a consciência me diz que o presidente fez o correto. Deus estará com ele."
Segundo Cid, a mensagem expressava alívio por Bolsonaro não ter tomado medidas de ruptura. "Sempre coadunei com as ideias do general. Nada poderia ser feito. Qualquer ação mais radical geraria um grande problema para o país."
Ele relatou que o próprio Freire Gomes alertava: "Não adianta ter 20 minutos de alegria e 20 anos de regime militar. Qualquer regime assim teria que ser sustentado pelas armas. E isso não era o que o Brasil queria."
Cid disse ainda que, durante os momentos de maior tensão, buscava manter o general informado sobre o ambiente político-institucional ao redor do presidente.
"De alguma forma, eu auxiliava o general a ter essa visão de conjuntura."
Manifestantes e Augusto Heleno
Questionado sobre eventual orientação de Bolsonaro para desmobilizar os manifestantes acampados em frente aos quartéis, Cid afirmou: "O presidente nunca me deu nenhuma ordem ou solicitação nesse sentido. E eu não tinha contato com nenhum manifestante, nem com lideranças".
Para ele, seria improvável que uma missão desse tipo lhe fosse atribuída, dado seu afastamento desse núcleo de apoiadores.
Sobre a relação entre Bolsonaro e o general Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, Cid explicou que o presidente costumava ouvi-lo nos primeiros anos de governo, mas que a influência do general diminuiu significativamente no último biênio.
Outros depoentes
A partir de terça-feira, 10, os demais acusados serão ouvidos por ordem alfabética, sempre a partir das 9h.
Os interrogatórios ocorrerão na sala de sessões da 1ª turma do STF, com exceção do general da reserva Walter Braga Netto, que participará por videoconferência — ele está preso desde dezembro de 2024, acusado de obstruir a investigação e tentar obter informações sigilosas da delação de Cid.
Durante as oitivas, tanto o procurador-geral da República, Paulo Gonet, quanto os advogados de defesa poderão formular perguntas aos depoentes. Os réus têm o direito constitucional de permanecer em silêncio diante de perguntas que possam levar à autoincriminação.
Ao longo da semana, serão ouvidos:
- Alexandre Ramagem – deputado Federal e ex-diretor da Abin;
- Almir Garnier – ex-comandante da Marinha;
- Anderson Torres – ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do DF;
- Augusto Heleno – ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional;
- Jair Bolsonaro – ex-presidente da República;
- Paulo Sérgio Nogueira – ex-ministro da Defesa;
- Walter Braga Netto – ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente em 2022.
Todos os réus respondem pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
Em relação ao deputado Alexandre Ramagem, a Câmara dos Deputados sustou parte das acusações. Com isso, por decisão da 1ª turma do STF, ele responde apenas pelos atos supostamente cometidos antes de sua diplomação como parlamentar.