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Civil em pauta

Questões práticas cotidianas do Direito Civil, com precedentes recentes, teorias novas e teses úteis.

Flávio Tartuce e Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Como é de conhecimento geral, com a apresentação do PL 4/2025 há cenário reformador do Código Civil, empreitada esta que ocorre de forma ampla em todos os livros da atual codificação em número massivo de alterações efetuadas no corpo do texto legal. Sumária catalogação indica que mais de 1.100 (mil e cem) artigos estão sendo afetados pela reforma. No entanto, mesmo com tal constatação, merece observar que o PL 4/2025 altera o Código Civil em vigor de diversas formas. De modo mais simples, em alguns casos a reforma promove apenas a melhor (e atualizada) redação de alguns dispositivos, situação que se repete em vários momentos ao longo do diploma quando se traz o convivente em equiparação jurídica a posição do cônjuge1. Por outro giro, o PL 4/25, embora não se utilize da expressão "recodificação"2 na sua "Justificação" (que ocupa o espaço de uma "Exposição de Motivos"), introduz vários dispositivos inspirados em posicionamentos advindos da jurisprudência (principalmente do STJ3) e da doutrina (com destaque para o agasalho aos enunciados produzidos nas Jornadas deflagradas pelo Conselho da Justiça Federal - CJF4). Em menor número, funcionando com exceções, também foram trazidas disposições que, na "contramaré", parecem fazer correções aos rumos acerca da jurisprudência predominante, ou seja, fugindo do processo de "recodificação" que funciona com uma das suas bússolas do PL 4/255. Por fim, há gama de dispositivos que são trazidos como inovações de fato, seja pela mudança de paradigma no tratar de determinados institutos6, seja pela regulação de novas figuras jurídicas, até então fora de tratamento legal7 (ao menos no ventre do Código Civil). A resenha acima é por deveras relevante não só para a compreensão das diretrizes da reforma, analisando o Código Civil em seu todo, mas também para que determinados institutos regulados pelo diploma sejam analisados no plano efetivo do alcance do PL n. 04/2025, pois as alterações se aplicam de formas e quilates diferentes em relação a várias figuras jurídicas e, internamente, aos próprios dispositivos que as tratam, seguindo-se a depuração acima efetuada: (a) atualização redacional, (b) recodificação, (c) "contramaré" da recodificação e (d) inovações ou mudanças substanciais. Com a introdução apresentada, a reforma atua de forma diversa na parte que dispõe sobre o contrato de doação, compreendido no espaço iniciado pelo art. 538 e finalizado pelo art. 564. A análise indica que 14 (catorze) dispositivos foram alterados de alguma forma, a saber: arts. 538, 541, 543, 544, 546, 547, 549, 550, 551, 552, 553, 557, 559 e 564. Mais ainda, há alterações propostas que, apesar se não estarem fixadas nos artigos de lei destacados, também impactam o contrato de doação, sendo necessário que se efetue a correspondente análise e diálogo com os regramentos específicos e vinculados ao trecho dos arts. 538-664. Por certo, o cenário trazido é indicativo de que é oportuno que se produza estudo minudente sobre todas as mudanças propostas, empreitada que não é possível ser efetuada no presente ensaio, diante da limitação de espaço que lhe é inerente. Na busca de temática relevante e que segue as linhas do que foi traçado acima, o alvo da abordagem está jungida a dois pontos: (i) a necessidade de retificação do texto do art. 544 e (ii) as alterações sobre a inserção da cláusula de dispensa da colação (assunto que provoca o diálogo do art. 544 com o art. 2.006). A redação proposta para o art. 544 do Código Civil, que é diversa da atualmente em vigor, prevê que a doação de ascendente a descendente será recepcionada como adiantamento de legítima, devendo, assim, respeitar as normas legais para dispensa da colação8, tema tratado no art. 2.006 do Código Civil e que, de igual modo, também foi alvo do PL n. 04/2025, que lhe traz nova redação9.  Ao se fazer a leitura atenta ao art. 544 (seja na versão atual, seja no texto do PL n. 04/2025), fica evidenciado que é necessária a retificação do texto do dispositivo. Sem rebuços, ao contrário do que está posto no art. 544 (nas duas versões), não se pode limitar apenas a doação do ascendente ao descendente como hipótese de adiantamento de legítima, pois deve se considerar que a situação restará configurada em qualquer ato de liberalidade que possa causar prejuízo ao herdeiro necessário que se encontre em concorrência com outro na sucessão do doador. Assim, considerando que o art. 1.845 em vigor (e também na proposta) traz os ascendentes com herdeiros necessários, a doação de descendente para ascendente poderá também desestabilizar a isonomia pregada para a "legítima", nos casos em que a sucessão é protagonizada apenas por ascendentes comuns ao autor da herança (descendente daqueles). O quadro estampado fica evidenciado na aplicação do art. 1.836 da proposta10, pois na falta de descendentes do autor da herança serão chamados à sucessão os ascendentes de grau mais próximo (sem distinção de linhas) e, no caso concreto, vislumbrando-se que há igualdade em grau e diversidade em linha, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os ascendentes chamados à sucessão, ou seja, em cenário de concorrência de herdeiros necessários. Como art. 544 do Código Civil atual e o texto reformador não tratam, de forma explicitada, a doação de descendente como possível hipótese de adiantamento de legítima, interpretação literal pode levar a incorreta conclusão de que a(s) doação(ões) feitas com tal fluxo (= descendente para ascendente) não se submetem ao engenho da colação, criando-se falseada espécie de "dispensa" e que pode prejudicar severamente a concorrência entre ascendentes (art. 1.836). No pormenor, as sucessões que atraem os ascendentes como herdeiros necessários são aptas a trazerem personagens em estado de vulnerabilidade e/ou dependência econômica do autor da herança (o descendente comum). Em tempos de maior expectativa de vida11, a sucessão prevista no art. 1.836 é uma realidade que não pode ser desprezada pelo PL n. 04/2025, sendo oportuna a retificação do art. 544 projetado. Dessa forma, deve ficar estampado no dispositivo que se considera como adiantamento de legítima a doação em favor de pessoa que se posta com herdeiro necessário do doador, tratando o tema de forma mais abrangente e não apenas em relação ao ato de liberalidade do ascendente para o descendente. No que se refere ao outro ponto do ensaio, o art. 2.006 do Código Civil em vigor prevê que a dispensa da colação pode ser concedida por declaração contida em testamento ou no próprio título de liberalidade.  A regra legal foi alvo do PL n. 04/2005 que, alterando a redação atual, passou a admitir que a dispensa da colação possa se feita também "por simples declaração do doador, por escritura pública subsequente ao ato". Trata-se de alteração que possui eco na jurisprudência e também na doutrina, podendo ser tirado como um exemplo de "recodificação", conforme explicitação na parte inicial do estudo12. Como o art. 2.006 traz uma inovação, é oportuno que alguns pontos sejam abordados, a fim de que a alteração possa ser mais bem compreendida e possa se aprimorar a proposta. Inicialmente, não parece existir prazo específico para que a declaração posterior ao ato de liberalidade seja efetuada. O fato de que a alteração aponta que a declaração deve ser feita subsequente ao ato de liberalidade não induz em trazer imediatividade, até porque tal declaração, importando em dispensa da colação, poderá também ser feita por testamento. Com o raciocínio posto, até mesmo para se manter a coerência interna ao disposto no art. 2.006 (ao autorizar a dispensa da colação através de disposição testamentária), pode-se dizer que a declaração ao ato de liberalidade se submete a situação temporal parelha à que deve ser aferida para a elaboração do testamento que, em seu corpo, possa conter disposição com a dispensa da colação. Assim, enquanto o doador, antes sua morte (e, por certo, da abertura da sucessão), possuir capacidade adequada para a elaboração de testamento, igualmente o terá para efetuar a declaração de dispensa da colação. A aproximação feita acima poderá ter importância prática, pois a declaração de dispensa na colação poderá ser efetuada através do chamado "testamento de emergência", previsto no art. 1.879 do Código Civil atual13, que permite que a pessoa natural capaz, em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, redija testamento de próprio punho, o assinado sozinho, mesmo sem a presença de testemunhas, a fim de que o negócio jurídico seja confirmado, depois de aferição judicial. Sob outro aspecto, parece ter ocorrido pequeno deslize na parte final do texto proposto ao se vincular a declaração posterior do doador (de dispensa da colação) à lavratura de escritura, que pode ser notada na seguinte dicção: "simples declaração do doador, por escritura pública subsequente ao ato". Às claras, levando-se em conta o disposto nos arts. 108, 1.226 e 1.227 do Código Civil, há separação evidente nas formalidades que envolvem as alienações entre os bens imóveis e os bens móveis, sendo a escritura exigida em regra, salvo as exceções previstas em lei, quando o negócio jurídico tem como objeto bem tratado pela legislação como imóvel (art. 79-81 do Código Civil). O panorama não se afasta da doação, uma vez que esta é um negócio jurídico que propicia a alienação, ainda que gratuita, do doador ao donatário. Dessa forma, somente poderá ser exigida escritura pública como formalidade essencial para o ato de liberalidade se o objeto do negócio jurídico for considerado com bem imóvel e esteja acima da alçada de valor prevista no art. 108 do Código Civil (trinta salários-mínimos). Admite-se a doação de bens móveis por instrumento particular e até pela via verbal, desde que o bem seja tratado de baixa monta, conforme previsto no art. 541 do Código Civil em vigor.14 Em relação à dispensa da colação deve se seguir a mesma mecânica do art. 541 do Código Civil, exigindo-se que o ato seja efetuado por escritura apenas quando o objeto da doação for um bem tido como imóvel. Logo, é perfeitamente viável que a declaração seja ultimada através de instrumento particular quando a doação incidir sobre bem tratado como móvel pela legislação. No que se refere aos bens móveis de baixo valor a cláusula de dispensa está acoplada à própria manifestação de vontade de doar, isto é, de entrega do bem sem se cogitar análise patrimonial, especialmente quando este possui mais valor estimativo do que financeiro. Excepcionalmente, poderá ser analisado no caso concreto se a doação de bem móvel de baixo valor interfere na rubrica final correspondente à legítima, pois, como dito, pela sua natureza e a (em tese) diminuta expressão econômica, não deve interferir no cálculo da parte destinada aos herdeiros necessários.15 Saliente-se que quando o texto proposto para o art. 2.006 do Código Civil faz alusão a "simples declaração do doador, por escritura pública subsequente ao ato", deve se ter em mente que o ato sequencial que importa em dispensa da colação deve ocupar espaço vazio, ou seja, não ocupado no ato de liberalidade. Dito de outro modo, se na doação constar cláusula expressa de que a colação não foi dispensada, tendo o doador exigido de forma explícita no ato de liberalidade que esta seja efetuada, a dispensa não poderá mais ser ultimada posteriormente. A linha de pensar aqui plasmada parte da concepção da irrevogabilidade que gravita sobre a doação como negócio jurídico (arts. 555-565 do Código Civil), com liberdade restrita e demarcada ao longo dos seus dispositivos gerais e de que a favor de herdeiros necessário é tratada como adiantamento de legítima. Com as observações acima sobre o art. 2.006 apresentado no PL 4/25, tem-se que: (a) não há prazo definido para que a posterior declaração seja efetuada, (b) a obrigatoriedade da escritura pública para a dispensa da colação somente se aplica se a doação tiver como objeto bem tratado como imóvel pela legislação e que ultrapasse o valor indicado no art. 108 do Código Civil, e (c) caso conste no ato de liberalidade a indicação expressa de que a colação será exigida, não será possível que, por declaração posterior, se altere a disposição já lançada no negócio jurídico original, transportando para a hipótese o caráter de irrevogabilidade da doação. Da breve exposição, percebe-se que as alterações efetuadas nos arts. 544 e 2.006 do Código Civil pelo PL n. 04/2025 não se operaram de forma semelhante. No que tange ao art. 544 ocorreu apenas mudança redacional (embora sem perfeição completa), ao passo de que em relação ao art. 2.006 há uma situação de provável "recodificação", inserindo-se na regra legal posicionamento que possui amparo na jurisprudência e doutrina. Os dois dispositivos, contudo, necessitam de refino redacional, servindo o presente texto como contribuição construtiva no sentido. Aliás, fique registrado, que é natural que ao longo do processo legislativo as proposições iniciais sejam retificadas, assumindo a doutrina importante papel no aprimoramento do projeto, a fim de trazer opções e sugestões para a melhoria do texto reformador. __________ 1 Por exemplo, confira-se o art. 978 do Código Civil em vigor e na proposta de alteração. 2 Conforme Francisco Amaral, no Direito Civil a recodificação consiste na "ressistematização da matéria de direito privado, preservando, no possível, as disposições do Código vigente, e a ele incorporando as contribuições legais, jurisprudenciais e doutrinárias que têm cercado a evolução do direito civil brasileiro na segunda metade do século XX. O novo Código Civil brasileiro, instituído pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com 'vacatio legis' de um ano, é exemplo de um processo de recodificação" (O novo Código Civil brasileiro, in Estudos em homenagem ao professor doutor Inocêncio Galvão Telles, Coimbra: Almedina, 2003, p. 9). Sobre o Código Civil de 2002 como exemplo de diploma que trabalha com a recodificação, confira-se: No tema: Rodrigo Mazzei [Notas iniciais à leitura do novo código civil. In: Arruda Alvim e Thereza Alvim (coords). Comentários ao Código Civil Brasileiro: parte geral. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. LXVII-LXIX]. 3 Em exemplo frisante, na Justificação ao PL n. 04/2025, na parte confeccionada pela Subcomissão de Direito de Família, há expresso reconhecimento da influência da jurisprudência do STJ para os contornos e efeitos adotados para a separação de fato no projeto. 4 Na Justificação ao PL n. 04/2025, no trecho atrelado à Subcomissão Direito das Obrigações e Títulos de Crédito ficou consignado que parte das alterações "não representam novidades, mas sim o pensamento doutrinário majoritário, representado por enunciados do CJF e com amparo na jurisprudência. É o caso dos artigos 263, § 2º, 282, 308, 309 e 310, etc." 5 Ilustrando a postura de exceção, a redação proposta ao art. 389, com a inclusão do § 1º e § 2º, contrapõe a jurisprudência dominante do STJ no sentido de que apenas os "honorários contratuais pagos para a adoção de providências extrajudiciais decorrentes do inadimplemento são compreendidos pelo termo "honorários de advogado" previsto pelos arts. 389, 395 e 404 do Código Civil, excluindo-se os honorários contratados para a atuação judicial" (AgInt no AREsp n. 2.482.522/ES, 3ª. Turma, j. DJe de 17/4/2024). 6 Por exemplo, a alteração do rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), retirando o cônjuge sobrevivente do cardápio legal. 7 Exemplo maior está na inclusão do Livro VI na codificação, que passa a tratar do Direito Civil Digital. 8 CC atual: art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança. Texto proposto no PL n. 04/2025: Art. 544. A doação de ascendente a descendente importa adiantamento de legítima, respeitadas as exigências legais para a dispensa de colação. 9 CC atual: Art. 2.006. A dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade. Texto proposto no PL n. 04/2025: Art. 2.006. A dispensa da colação pode ser concedida pelo doador em testamento, no próprio título de liberalidade ou por simples declaração do doador, por escritura pública subsequente ao ato. 10 Texto proposto no PL n. 04/2025: art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes. § 1º Na classe dos ascendentes, o grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas. § 2º Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os ascendentes chamados à sucessão. 11 Conforme amplamente noticiado na mídia, a expectativa de vida no Brasil em 2025 foi projetada pelo IBGE para 76,8 anos em média. Acesso em 02/09/2025. 12 Na jurisprudência, confira-se: STJ, REsp n. 440.128/AM, 3ª. Turma, j. 03/06/2003, DJ de 1/9/2003. Na doutrina: Rodrigo Mazzei, que traz outros autores com a mesma censura [Comentários ao Código de Processo Civil: volume XII - arts. 610 a 673. Jose Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Bondioli e José Francisco Naves da Fonseca (coords). São Paulo: Saraiva, 2023, p. 592] e Pablo Stloze Gabliano (Contrato de doação. 6ª. ed., São Paulo, 2024, p.139-140). 13 O testamento de emergência também está na pauta das modificações pretendidas pelo PL n. 04/2025. Confira-se: art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas pelo testador, o testamento particular escrito e assinado de próprio punho ou em meio digital, ou gravado em qualquer programa ou dispositivo audiovisual pelo testador, sem testemunhas ou demais formalidades, poderá ser confirmado, se, a partir dos demais elementos de prova, não houver dúvida fundamentada sobre a autenticidade da assinatura, das imagens ou sobre a higidez das declarações manifestadas pelo testador. Parágrafo único. Perde a eficácia o testamento particular excepcional, se o testador não morrer no prazo de noventa dias, contados da cessação das circunstâncias excepcionais declaradas na cédula ou no dispositivo eletrônico. 14 Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular. Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição. O PL n. 04/2025 traz alterações no dispositivo, mas que não afetam as assertivas feitas no corpo do texto. Confira-se: Art. 541 (...) § 1º A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, ou de bens móveis de uso pessoal, se lhe seguir incontinenti a tradição. § 2º Para a aferição do que seja bem de pequeno valor, nos termos do que consta do § 1º deste artigo, deve-se levar em conta o patrimônio do doador. § 3º É válida a doação de valores pecuniários empregados pelo donatário para o pagamento do preço ao alienante na compra de bens, ainda que não declarada expressamente a liberalidade no instrumento contratual e ainda que o pagamento tenha sido feito diretamente ao alienante. 15 A aferição poderá ficar a cargo do juiz, examinado o ato de liberalidade frente à potência do doador no momento da doação tida como verbal. Com idéia próxima, confira-se: "Doação verbal de bens móveis, de pequeno valor. art. 1168 parágrafo único do Código Civil (1916). Esse pequeno valor varia, conforme o vulto da fortuna do doador, ficando ao critério do juiz fixá-lo em cada caso. Não prevalece, para tal efeito, o limite do artigo 141 do Código Civil (1916)" (STF, RE 19817, 1ª. Turma, j. em 08.01.1953, DJ 29.10.1953, p.13.304).
Inicio nesta coluna Civil em Pauta, do portal Migalhas, que tenho a honra de coordenar, uma série de breves textos sobre a nova lei dos seguros, conhecida também como Marco Legal dos Seguros, a lei 15.040/24. A norma está no momento em prazo de vacatio legis, e entrará em vigor no País no dia 11 de dezembro de 2025, substituindo o tratamento que hoje consta do CC, no capítulo dos contratos em espécie (arts. 757 a 803). Destaco que está em revisão obra coletiva sobre a nova lei, elaborada em coautoria com os professores Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Pablo Stolze Gagliano, que será editada pelo Grupo GEN Editorial. Começo aqui tratando a respeito da formação e da duração do contrato (arts. 41 a 53 da lei 15.040/24), especificamente quanto à proposta de contratação no seguro, sendo certo que a nova legislação traz regras importantes, com o fim de deixar mais claro o momento de aperfeiçoamento do negócio e como se efetiva a proposta. Existe, nesse sentido, um aperfeiçoamento mais do que necessário e em prol da segurança jurídica, a respeito das regras de formação dos contratos que constam do CC de 2002, entre os seus arts. 427 e 435. O texto também foi melhorado frente ao art. 759 do CC, segundo o qual "a emissão da apólice deverá ser precedida de proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco".   Adotou-se parte do que estava previsto há tempos na antiga circular SUSEP 251/04, que tratava do assunto, e que foi revogada e modificada pela mais recente circular SUSEP 642/21. Nos termos do seu art. 3º, a celebração, a alteração ou a renovação não automática do contrato de seguro somente poderão ser feitas mediante proposta preenchida e assinada pelo proponente, seu representante legal ou corretor de seguros, exceto quando a contratação se der por meio de bilhete. Em complemento, o seu § 1º preceitua que a proposta deverá conter os elementos essenciais ao exame e aceitação do risco. Por fim, o § 2º da norma administrativa prevê que caberá à sociedade seguradora fornecer ao proponente, seu representante legal ou corretor de seguros, o protocolo que identifique a proposta por ela recepcionada, com indicação da data e hora de seu recebimento. Na atualidade, as previsões legais da codificação privada encontram-se muito desatualizadas e defasadas, pois elaboradas em momento em que não existiam as novas tecnologias hoje disponíveis, sobretudo diante do incremento da internet e dos negócios celebrados pela via digital, o que o PL do CC pretende regulamentar (PL do Senado 4/25). Em se tratando de contratos entre ausentes, o vigente CC ainda traz regras e premissas criadas para os contratos formados por cartas ou missivas, os chamados contratos epistolares, sendo imperiosa a sua atualização, em prol da segurança jurídica e dos avanços tecnológicos percebidos nos últimos anos. Sendo assim, de início e sem previsão específica no CC, sobretudo nos dispositivos a respeito do contrato em estudo que foram revogados, o art. 41 da lei dos seguros estabelece que a proposta de seguro poderá ser feita diretamente, pelo potencial segurado ou estipulante, pela própria seguradora, ou por intermédio de seus representantes, caso dos corretores de seguro, como é comum na prática. A respeito dos últimos, o parágrafo único do comando prevê que "o corretor de seguro poderá representar o proponente na formação do contrato, na forma da lei". Vale lembrar, nos termos do que está previsto na nova norma, que aquele que faz a proposta de contrato é denominado proponente, solicitante ou policitante, enquanto aquele que a recebe é o oblato, solicitado ou policitado, figuras com as quais o Direito Civil trabalha desde os mais remotos tempos. Sabe-se que o policitante está vinculado à proposta, como estabelece o art. 427 do CC em termos gerais, a saber: "a proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso". Essa obrigação tem justamente o sentido de uma vinculação ao conteúdo do que foi proposto. Em se tratando de relação de consumo, como é comum nos contratos de seguro e como premissa geral, a vinculação da oferta realizada pelo prestador de serviços, como é a seguradora via de regra, é retirada, entre outros, do art. 30 da lei 8.078/1990: "toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Essa vinculação consumerista é considerada obrigatória. Tratando especificamente da vinculação da proposta do seguro, na linha dos últimos preceitos legais citados, o art. 42 da lei 15.040/24 expressa em seu caput que a proposta feita pela seguradora não poderá ser condicional, submetida a sua eficácia a um evento futuro e incerto. Ademais, deverá ela conter, em suporte duradouro - que pode ser digital ou virtual -, e mantido à disposição dos interessados, todos os requisitos necessários para a contratação, o conteúdo integral do contrato e o prazo máximo para sua aceitação. Assim, com aplicação às plataformas digitais e outros meios eletrônicos, o § 1º desse art. 42 prevê que "entende-se por suporte duradouro qualquer meio idôneo, durável e legível, capaz de ser admitido como meio de prova". De todo modo, seria interessante, como faz o PL do CC, que as novas tecnologias fossem expressamente mencionadas pelo novo comando, pois podem surgir dúvidas quanto à amplitude de sua aplicação. Mesmo com essa ausência no tratamento legal, é possível concluir desse modo. Em prol da segurança contratual e da boa-fé objetiva, o § 2º do art. 42 da lei de seguros veda os comportamentos contraditórios, adotando-se a máxima nemo venire contra factum proprium non potest, enunciando que a seguradora não poderá invocar omissões em sua proposta depois da formação do contrato. A título de exemplo, não poderá a seguradora alegar a falta de uma previsão contratual ou mesmo uma lacuna no clausulado para negar a cobertura securitária, o que visa a proteger o segurado, tutela que se repete em vários comandos da norma emergente. Também com fins de tutelar o segurado, que se presume relativamente como aderente no seguro, via de regra um contrato de consumo e de adesão, o § 3º do art. 42 preceitua que a aceitação da proposta feita pela seguradora somente se dará pela manifestação expressa de vontade ou por ato inequívoco do destinatário da informação por ela prestada. Adota-se, assim, a ideia constante dos arts. 113, § 1º, inc. IV, e 423 do CC, bem como do art. 47 do CDC, no sentido de se interpretar o contrato de adesão e de consumo de modo favorável ao aderente e consumidor e contra o estipulante, proferentem ou prestador de serviços, no caso a seguradora. No mesmo sentido, aliás, o enunciado 370, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, e antes aplicado ao art. 757 do CC/2002, previa que, "nos contratos de seguro por adesão, os riscos predeterminados indicados no art. 757, parte final, devem ser interpretados de acordo com os arts. 421, 422, 424, 759 e 799 do CC e 1º, inc. III, da Constituição Federal". A título de exemplo, caso a seguradora, por um corretor de seguros devidamente credenciado e identificado, faça uma proposta por email, somente haverá aceitação quando o segurado concordar com ela, de forma expressa e incontestável. Em havendo dúvida de qualquer natureza, o contrato não será considerado formado, não vinculando as partes, sobretudo o segurado ou estipulante. Na mesma linha do art. 107 do CC, e adotando-se o princípio da liberdade das formas, o art. 43 da lei de seguros prevê que a proposta feita pelo potencial segurado ou estipulante não exige forma escrita. A contrario sensu, a mesma premissa não vale para a proposta feita pela seguradora, que exigirá os mínimos requisitos previstos no art. 42, reproduzidos em forma escrita. Por fim, como última regra relativa à proposta do seguro, o parágrafo único desse art. 42 preceitua que o simples pedido de cotação à seguradora não equivale a proposta de contrato. A solução constante da norma tem sido adotada pela jurisprudência. A título de exemplo, em hipóteses envolvendo o seguro de vida e o seguro de veículos, merecem destaque os seguintes acórdãos: "Seguro de vida. Pedido de obrigação de fazer e de cobrança de indenização securitária. Autores que são filhos da segurada e alegam ser beneficiários do seguro contratado pela falecida junto à ré. Documentos acostados que se referem à mera cotação não efetivada. Proposta datada de 2014. Tese defensiva comprovada. Extratos bancários da segurada que indicam a inexistência de pagamento do prêmio. Segurada que nunca realizou pagamento de contraprestação. Falecimento ocorrido em 2020. Ausência de qualquer indício de contratação vigente à época do ocorrido. Conduta ilícita ou abusiva não verificada. Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido" (TJ/SP, apelação cível 1001454-91.2021.8.26.0024, Acórdão 15602250, Andradina, Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado, rel. des. Milton Carvalho, julgado em 25/4/2022, DJESP 29/4/2022, p. 2678). "CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. SEGURO DE VIDA. CONTRATO PARTICULAR. SEGURO VEICULAR NÃO PERSEGUIDO. DOCUMENTO NOS AUTOS QUE ATESTA SE TRATAR DE MERA COTAÇÃO. COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL COMUM. JUÍZO CÍVEL COMUM DA 9ª VARA CÍVEL DE ARACAJU (SUSCITADO). CONFLITO DE COMPETÊNCIA CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 9ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE ARACAJU. DECISÃO UNÂNIME. A Vara de Acidentes e de Delitos de Trânsito possui competência para processar e julgar as ações que envolvam contratos de seguro referente a veículos terrestres. Na hipótese dos autos, é possível visualizar que existem dois seguros: um de natureza pessoal e outro de caráter veicular, com validades diversas, mas o seguro automobilístico residente nos autos cuida-se de mera COTAÇÃO que sequer se efetivou de acordo com o que está descrito no cabeçalho daquela proposta e, ainda que houvesse a efetiva contratação, resta claro que os seguros teriam natureza diversa e a ação busca perseguir somente o seguro de vida, conforme discriminação do valor aposto pela Autora (R$ 31.026,80), afastando a competência da Vara de Acidentes e de Delitos de Trânsito de Aracaju. Competência do Juízo Cível Comum da 9ª Vara Cível de Aracaju" (TJ/SE, Conflito de Competência 201700619469, Acórdão 25425/2017, Câmaras Cíveis Reunidas, rel. des. Ricardo Mucio Santana de A. Lima, julgado em 16/11/2017, DJSE 20/11/2017). Todavia, pela mesma legislação emergente, as informações prestadas pelas partes e por terceiros intervenientes antes da celebração do pacto integram o contrato que vier a ser celebrado no futuro, com força vinculativa (art. 43, parágrafo único, da lei 15.040/24). A norma dialoga com o antes citado art. 30 do CDC, e com a aplicação da boa-fé objetiva à fase das tratativas iniciais ou negociações preliminares do contrato, nos termos da correta interpretação do art. 422 do CC, e com a incidência do antes citado art. 30 do CDC, que, como visto, trata da força vinculativa da oferta, em havendo um contrato de consumo. Vale lembrar que o dispositivo civil em vigor não menciona a fase pré-contratual, mas apenas as fases contratual e pós-contratual, prevendo que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Todavia, na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal aprovou-se o enunciado 25, estabelecendo que "o art. 422 do CC não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual". Da III Jornada, merece destaque o enunciado 170, com incidência para os contratantes: "a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato". No contexto dos citados enunciados doutrinários é que deve ser aplicado o instituto civil, influenciando igualmente a incidência do art. 43 da lei 15.040/24. Como exemplo concreto de incidência dessa boa-fé objetiva, com a força vinculativa das informações prestadas inicialmente pelas partes, não cabe à seguradora alterar de forma abrupta as condições do contrato quando da renovação do seguro. A esse propósito, o enunciado 543 da VI Jornada de Direito Civil, de 2013, que assim se expressa, com precisão: "constitui abuso do direito a modificação acentuada das condições do seguro de vida e de saúde pela seguradora quando da renovação do contrato". A jurisprudência superior tem concluído da mesma forma, a saber: "'a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que deve orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo (REsp 1.073.595/MG, relatora ministra NANCY ANDRIGHI, Segunda Seção, DJe 29/4/2011)'" (STJ, Ag. Rg. no REsp 1.470.392/SC, 3ª turma, rel. min. Moura Ribeiro, julgado em 17/3/2015, DJe 27/3/2015). Entendo que esse entendimento jurisprudencial continuará sendo aplicado na vigência da nova legislação. De fato, não há como concluir de forma distinta, sendo imperioso valorizar as informações prestadas antes da celebração do contrato, não sendo admitidas condutas contraditórias e em afronta à boa-fé. O seguro é um contrato de boa-fé, como afirmava, entre outros, Clóvis Bevilaqua. Não se trata, portanto, de um contrato de malícia e ou de aproveitamento indevido de uma parte frente a outra (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Edição histórica. 2. tir. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, p. 573). Mais do que isso, não se trata de um contrato que possa trazer a quebra da confiança ou de justas expectativas de qualquer uma das partes frente a outra. Uma parte deve sempre prestar informações verdadeiras para a outra, o que deve sempre ser valorizado pelos julgadores, na linha do que foi adotado pela lei 15.040/24 quanto à proposta do seguro, e com notáveis e importantes avanços sobre essa temática.
1. Introdução Como se sabe, a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva "é a retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus titulares, sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes".1 Noutros termos, com a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva, os bens particulares de quem faz parte da pessoa coletiva podem responder pelos danos causados a terceiros, ou seja, "o véu ou escudo, no caso da pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. Bens da empresa também poderão responder por dívidas dos sócios, por meio do que se denomina como desconsideração inversa ou invertida."2 O art. 50 do CC cuida da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva nas relações civis e empresariais e traz a teoria maior3 subjetiva (desvio de finalidade) e objetiva (confusão patrimonial).4 Nessa senda, o presente artigo tem por objeto trazer à baila a proposição feita no PL 4/25, atualmente em tramitação no Senado Federal5, acerca da desconsideração da personalidade jurídica que, no CC, se encontra no art. 50, cuja comparação entre os textos é a seguinte: Art. 50 do CC Art. 50 da PL do CC Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela lei 13.874, de 2019) Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens de propriedade de administradores, sócios ou associados da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.   § 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 1º O disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela lei 13.874, de 2019) I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019) III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica.   § 3º  O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 3º É cabível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, para alcançar bens de sócio, administrador ou associado que se valeram da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. § 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 4º Para os fins do disposto neste art., desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, inclusive a de abuso de direito.   § 5º  Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 5º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação dos patrimônios, caracterizada: I - pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade; II - pelo cumprimento repetitivo pela pessoa jurídica de obrigações do sócio, associados ou administradores, ou vice-versa; III - pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e IV - por outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.   § 6º Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste art.     § 7º A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste art. não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 8º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.   Passa-se à análise da proposição posta na reforma do CC. 2. Alguns pontos de reflexão sobre a proposição da reforma do art. 50 do CC Como linha geral, a proposição de reforma do CC visou apor para o texto codificado construções doutrinárias e judicativas dos Tribunais, mormente STJ6, realizadas desde a entrada em vigor em 11/1/2003 do CC em vigor. Foram mantidos no caput do art. 50 do CC os dois requisitos não cumulativos - desvio de finalidade ou confusão patrimonial - para fins de desconsideração da personalidade jurídica abarcou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica.7 O caput do art. 50 do CC não sofreu muitas alterações, tendo sido acrescido ao texto somente que associados da pessoa jurídica também podem sofrer os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva. A subcomissão da Parte Geral do CC, no relatório final dos trabalhos afirmou que "foi incluída previsão, no art. 50, da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica das associações, a qual será limitada aos associados com poder de direção ou capazes de influenciar na tomada da decisão"8, como se infere da redação proposta do § 2º do art. 50 do CC. Tal mudança nos parece adequada para deixar induvidosa a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das associações. A mudança propalada no § 1º do art. 50 do CC visa deixar bastante claro que a desconsideração da personalidade jurídica é possível para "todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público" e tal mudança também deve ser aplaudida, uma vez que concretiza a perspectiva da operalidade9 do CC. O § 3º do art. 50 do CC cuida expressamente e em nome da operabilidade, segundo a subcomissão da Parte Geral do CC, "da desconsideração da personalidade jurídica inversa e esclarecido que os bens a serem eventualmente constritos são 'de propriedade' do atingido pela desconsideração, harmonizando o texto atual com o CPC".10 Existe doutrina no Direito Empresarial que entende não ser possível falar de desconsideração inversa da personalidade jurídica, pois tais hipóteses seriam enquadradas como responsabilidade de quem controla a pessoa coletiva: Uma pretensa novidade nesse campo teria surgido com a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica, que se caracteriza pela imposição de responsabilidade do patrimônio social diante de abusos praticados por seu controlador e administradores. No entanto, trata-se ao somente do desconhecimento do sistema de responsabilidade previsto na lei, tanto em relação à sociedade limitada, quanto à anônima, que se coloca no plano da teoria dos atos abusivos do controlador e dos administradores (itens 1.14 e 1.14.2, infra).11 Indubitavelmente este é um bom debate, uma vez que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa foi consagrado na doutrina e em julgados brasileiros. O § 4º do art. 50 do CC, de acordo com a redação proposta pela subcomissão de juristas, objetivou delimitar parâmetros de aferição do desvio de finalidade e, de novo em nome da operabilidade, incluiu expressamente o abuso do direito e isso é salutar, pois o critério de imputação do abuso do direito posto no art. 187 do CC é objetivo, ou seja, não se afere culpa ou dolo. O § 5º do art. 50 do CC, na redação proposta, repete as hipóteses do atual § 2º do art. 50 do CC e inclui, como hipótese de confusão patrimonial, a "prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade". O § 6º do art. 50 do CC, na redação sugerida, realiza pequenas alterações na redação do atual § 3º do art. 50 do CC ao indicar que: "Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste art.". Este é um ponto interessante de se debater, uma vez que parte da doutrina do direito empresarial sustenta que não se pode confundir a desconsideração da personalidade jurídica com as hipóteses de responsabilidade direta de membro da pessoa coletiva, como expressamente previsto nos arts. 117 e 158 da lei 6.404/76, 135 da lei 5.175/66 (CTN) e dos arts. 1.009, 1.016 e 1.080 do CC, visto que não "foi a pessoa jurídica que teve sua finalidade desvirtuada, foram as pessoas físicas que agiram de forma ilícita e, por isso, têm responsabilidade pessoal".12 Além disso, é possível responsabilizar membro ou administrador da pessoa coletiva, sem que se desconsidere a personalidade desta, se membros ou administrador da pessoa coletiva extrapolam os poderes ao violar a lei ou o estatuto ou o contrato social, a ensejar a responsabilidade direta do membro ou do administrador13, como explica a doutrina: Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou o gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) - a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ilícito seu, por fato próprio.14 Portanto, quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe que certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal. O mesmo se diga se a extensão da responsabilidade é contratual.15 Parece que o debate sobre o tema continuará acesso no Direito Privado brasileiro sobre o tema, porque julgados, por exemplo, já acolheram a desconsideração da personalidade jurídica inversa, a partir das construções da doutrina.16 O § 7º do art. 50 do CC, com o texto proposto, reforça o § 4º do art. 50 atual e aponta que: "A mera existência de grupo econômico17-18, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica". O § 8º do art. 50 do CC, com a redação proposta, espelha o atual § 5º do art. 50 do CC: "§ 8º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica". Importante ressaltar que a proposição da reforma não cuidou de alguns pontos de relevo sobre o instituto, a saber: a) A utilização da pessoa coletiva para fins de configuração do desvio de finalidade necessita de conduta dolosa ou intencional de lesar o direito de outrem ou de atos ilícitos? (a.1) O STJ responde que: "Para fins de aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC/02), exige-se a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros) ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem mesmo em casos de dissolução irregular ou de insolvência da sociedade empresária" (grifo nosso) (STJ - AgInt no REsp 2.175.692. 3ª T. Rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva. DJEN 28/3/2025).19 (a.2) Este entendimento do STJ é equivocado, uma vez que o desvio de finalidade é espécie de abuso do direito posto no art. 187 do CC, cujo critério de imputação é objetivo "sem qualquer menção ao elemento subjetivo do dolo ou da culpa, e que fundamenta o instituto da desconsideração da personalidade jurídica".20 (a.3) O STJ entende que a hipótese de abuso do direito alinhavada no art. 187 do CC enseja critério de imputação objetivo de responsabilidade: "O desrespeito aos limites legais na utilização do sistema, configurando abuso no exercício desse direito (art. 187 do CC), enseja a responsabilidade objetiva" (STJ - RESP 2.122.455. Rel. min. Marco Aurélio Belizze. Publ. 1/3/2024). (a.4) Desse modo, por que os demais casos de abuso do direito são valorados pelo critério de imputação objetivo de responsabilidade, sem análise de culpa e dolo, e o caso de desvio de finalidade na desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva, sendo hipótese de abuso do direito, o mesmo STJ exige "ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros"? (STJ - AgInt no REsp 2.175.692) (a.5) Lembra-se de que o STJ exigia o dolo somente nos casos de encerramento irregular das atividades da pessoa coletiva sem adimplir com as dívidas e com as obrigações e com a modificação forma das informações perante os órgãos competentes (STJ, EREsp 1.306.553/SC, 2.ª Seção, Rel. min. Maria Isabel Gallotti, j. 10/12/2014, DJe 12/12/2014). (a.6) Além disso, o mesmo STJ entende que não "se tratando de execução de dívida ativa, mas de título extrajudicial fundado em nota promissória (vinculado a contrato de abertura de crédito) - relação jurídica de natureza civil-empresarial -, não pode ser admitido o redirecionamento da execução, ou a desconsideração da personalidade jurídica, com base na simples dissolução irregular da empresa" (ex: no AgInt no REsp 2.175.692). b) por que manter, no caso da confusão patrimonial, a exigência de que haja o cumprimento repetitivo da pessoa coletiva de deveres dos(as) sócios(as) ou do(a) administrador(a), visto que "a confusão patrimonial poderia estar configurada por um único cumprimento obrigacional da pessoa jurídica em relação aos seus membros; por um ato isolado, é possível realizar um total esvaziamento patrimonial com o intuito de prejudicar credores"21? c) deixar explícito, em nome da operabilidade que o § 7º do art. do CC projetado acolheu a desconsideração da personalidade jurídica econômica ou indireta ou expansiva22, já admitida pelo STJ (ex.: Ag. Int. no REsp 1.837.435); d) acolher a desconsideração da personalidade jurídica positiva, já admitida pelo STJ em 2023 (ex.: Ag. Int. no AREsp 1.868.007). 3. Conclusão: a reforma proposta melhorou a redação do art. 50 do CC e, ao mesmo tempo, manteve candente o debate sobre temas que envolvem a desconsideração da personalidade jurídica. As inovações propostas para o art. 50 do CC pela subcomissão de Parte Geral da reforma do CC são relevantes e efetivam o que doutrina e julgados dos Tribunais têm debatido desde a entrada em vigor do CC em 2003. Não obstante isso, temas que circundam os requisitos e o próprio instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como apontado no tópico anterior deste texto continuam efervescentes e manterão o debate pela comunidade jurídica brasileira, a tornar, mais do que imprescindível, o papel da literatura jurídica em apor parâmetros adequados à interpretação dos assuntos e dos institutos que envolvem a desconsideração da personalidade jurídica posta no art. 50 do CC. _______ 1 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial - Teoria Geral e Direito Societário-vol.1. 16. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.225. 2 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 282. 3 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 283. 4 Nesse sentido: "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, medida excepcional prevista no art. 50 do Código Civil, pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial. A mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não enseja a desconsideração da personalidade jurídica". STJ - Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 2.159.188. 4ª T. Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira. DJe de 15.12.2022. Idem: STJ - Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 924.641. 5 Disponível aqui. 6 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 295. 7 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 283. 8 BRASIL. FEDERAL SENADO. Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. 9 A operabilidade vai ao encontro da "tendência de facilitar a interpretação e a aplicação dos institutos nele previstos. Procurou-se assim eliminar as dúvidas que imperavam na codificação anterior, fundada em exagerado tecnicismo jurídico. Nesse ponto, visando à facilitação, a operabilidade é denotada com o intuito de simplicidade. Como exemplo, pode ser citada a distinção que agora consta em relação aos institutos da prescrição e da decadência, matéria que antes trazia grandes dúvidas pela lei anterior, que era demasiadamente confusa. Facilitadas as previsões legais desses institutos pelo Código Civil de 2002, poderá o estudioso do direito entender muito bem as distinções existentes e identificar com facilidade se determinado prazo é de prescrição ou de decadência (arts. 189 a 211 do CC/2002)". TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 81. 10 BRASIL. FEDERAL SENADO. Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. 11 Verçosa, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito Comercial: Sociedades: Teoria Geral do Direito Societário - As Sociedades em Espécie do Código Civil - Volume II. 4.ed. São Paulo: Dialética, 2022, p. 149-150. 12 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial - Teoria Geral e Direito Societário-vol.1. 16. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.232. 13 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial - Teoria Geral e Direito Societário-vol.1. 16. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.231. 14 OLIVEIRA, José Lamartine Côrrea. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 520. 15 AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar. 1993, p. 172. 16 Nesse sentido: "Embargos de declaração. Contradição. Inocorrência. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Responsabilização da sócia da empresa requerida, genitora do executado. Impossibilidade. Art. 50, § 3º, do Código Civil. Doutrina. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Inclusão da sociedade e de sua sócia, mãe do executado, no polo passivo da execução. Agravo parcialmente provido para indeferir a inclusão da sócia no polo passivo. Acórdão que reconhece a atuação da agravante como 'interposta pessoa' na sociedade, mas dá parcial provimento ao agravo para indeferir a sua inclusão no polo passivo da execução. Inexistência de contradição. Ausência de comprovação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial por parte da sócia agravante. A desconsideração inversa visa a responsabilização da pessoa jurídica pelas obrigações do seu sócio, nos casos em que este abusa da personalidade jurídica daquela, seja mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Art. 50, § 3º, do Código Civil. Doutrina. Embargos de declaração rejeitados" (TJSP - ED 2153987-85.2024.8.26.0000, 4-10-2024, Rel. J.B. Paula Lima). "Agravo de instrumento - Incidente de desconsideração da personalidade jurídica - Decisão que reconhece a formação de bloco econômico e a responsabilidade solidária das empresas autorizadas a constarem no polo passivo da demanda - Inconformismo que aduz a inexistência dos requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica - Argumentos que não convencem diante das circunstâncias fáticas comprovadas nos autos - Observância do artigo 50, § 3º, do Código Civil, bem como disposto no artigo 28, §5º, do Código do Consumidor - Recurso desprovido" (TJSP - AI 2036227-52.2023.8.26.0000, 31-3-2023, Rel. José Carlos Ferreira Alves). "Recurso - Agravo de instrumento - Responsabilidade civil - Acidente de trabalho - Ação de reparação de danos materiais e morais - Cumprimento de sentença - Incidente de desconsideração da inversa da personalidade jurídica. Insurgência contra respeitável decisão que indeferiu pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos executados (agravados), fundada na ausência de demonstração dos requisitos legais para tanto. Alegação de desvio de bens dos sócios da executada para outras empresas com sócios comuns, com o intuito de fraudar credores, não demonstrada. Exegese do artigo 50, § 3º, do Código Civil, com a redação dada pela Lei 13.874/2019. A ausência de bens da executada passíveis de penhora, ou mesmo o seu encerramento irregular, não bastam para o deferimento da desconsideração, sendo necessária a prova do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial, na forma da lei. Precedentes do C. STJ e deste E. TJSP. Decisão mantida. Recurso de agravo de instrumento não provido" (TJSP - AI 2204436-52.2021.8.26.0000, 4-11-2021, Rel. Marcondes D'Angelo)". 17 O sentido de grupo econômico é trazido pela literatura jurídica: "Os grupos econômicos podem ser de fato ou de direito. No grupo econômico de fato existe uma relação entre sociedades controladas/controladoras e sociedades coligadas, porém não existe a constituição regular do grupo econômico. Na área trabalhista, o grupo econômico de fato é conhecido como grupo econômico horizontal. Com a Reforma Trabalhista, não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes (art. 2º, § 3º, da CLT). No grupo econômico de direito existe uma convenção para a constituição do grupo econômico, e então ocorre o registro do grupo na Junta Comercial. Quando um grupo econômico é constituído, podemos encontrar a figura da holding. A holding pode ser uma sociedade constituída puramente para participar das outras sociedades. Também pode ser chamada de holding a sociedade constituída para participar de outras sociedades, além de exercer uma atividade econômica. De qualquer forma, o grupo econômico não constitui uma nova personalidade jurídica, e cada sociedade responderá com seu patrimônio pelas obrigações assumidas, ou seja, não há solidariedade entre as sociedades que constituem o grupo econômico (art. 266 da Lei n. 6.404/76)". VIDO, Elisabete. Curso de Direito Empresarial. 13. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.246. 18 O STJ aponta: "na linha do que vem entendendo o STJ: (...) 2. O tipo de relação comercial ou societária travada entre as empresas, ou mesmo a existência de grupo econômico, por si só, não é suficiente para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica. 3. No caso, a extensão da responsabilidade pelas obrigações da falida às empresas que nela fizeram investimentos dependeria, como sustentado pelo Ministério Público em primeira instância, da "eventual concentração de prejuízos e endividamento exclusivo de apenas uma, ou algumas, das empresas participantes falidas", o que, todavia, não foi comprovado pela perícia para tal fim determinada, a qual o acórdão recorrido consignou não haver "apontado, ou descartado, a existência dos critérios mencionados pelo MP, nem elaborado o histórico de pagamento e a comparação pedida". 4. Para ensejar a desconsideração da personalidade e a extensão da falência, seria necessário demonstrar quais medidas ou ingerências, em concreto, foram capazes de transferir recursos de uma empresa para outra, ou demonstrar o desvio da finalidade natural da empresa prejudicada. 5. Fatos assentados pelo acórdão recorrido que não configuram abuso de personalidade, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, pressupostos necessários, à luz do art. 50 do Código Civil, para a desconsideração das personalidades jurídicas das empresas envolvidas nas transações, a fim de justificar lhes fosse estendida a falência. (...) (STJ - RESP 1.897.356. 4ª T. Rel.ª Min.ª Maria Isabel Gallotti. J. 03.09.2024. No mesmo sentido: RESP 1.900.147). DIREITO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO ECONÔMICO. MODIFICAÇÃO DAS PREMISSAS FÁTICAS. INVIABILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, uma vez "reconhecido o grupo econômico e verificada confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para responder por dívidas de outra, inclusive em cumprimento de sentença, sem ofensa à coisa julgada" (AgRg no AREsp 441.465/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/06/2015, DJe de 03/08/2015). (...) (STJ - 4ª T. AgInt no AREsp 2454382. Rel. Min. Raul Araújo. DJE 04.06.2024)". 19 Neste sentido: MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Roberta C. Manual de Direito Empresarial. 19. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2025. E-book. p.245; VENOSA, Silvio de S.; RODRIGUES, Claudia. Direito Empresarial. 13. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2025, p. 114. A "distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiros" (Couto Silva, Alexandre. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 36).Julgados de Tribunais seguem esta linha: "Direito processual civil. Agravo de instrumento. Execução de título extrajudicial. Reconhecimento de grupo econômico. Desconsideração da personalidade jurídica. Art. 50 do Código Civil. Ausência de prova de confusão patrimonial ou desvio de finalidade. Requisitos não preenchidos. Recurso não provido. I. Caso em exame 1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu o pedido de reconhecimento de grupo econômico e desconsideração da personalidade jurídica. O agravante sustenta a existência de confusão patrimonial e a prática de atos que justificariam a desconsideração da personalidade jurídica, requerendo a inclusão da empresa coligada no polo passivo da ação de execução. II. Questão em discussão 2. Há duas questões em discussão: (i) definir se estão presentes os requisitos para o reconhecimento de grupo econômico entre as empresas; (ii) determinar se há elementos que justifiquem a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do art. 50 do Código Civil, nesta fase processual. III. Razões de decidir 3. O artigo 50 do Código Civil prevê que a desconsideração da personalidade jurídica exige a comprovação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, caracterizados pelo uso abusivo da pessoa jurídica para lesar credores. 4. No presente caso, as provas apresentadas pelo agravante, como a existência de atividades comerciais similares, localização próxima e o uso de e-mails semelhantes entre as empresas, não são suficientes para caracterizar a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade, elementos necessários para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. 5. Embora as empresas tenham proximidade física e atuem no mesmo ramo, esses fatos, por si só, não comprovam a prática de atos fraudulentos ou o uso indevido da personalidade jurídica com o objetivo de prejudicar credores. 6. A desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, cabível somente quando comprovada a prática de abuso de direito por meio de fraude ou confusão patrimonial, o que não restou demonstrado no caso concreto. 7. O entendimento jurisprudencial majoritário, incluindo precedentes desta Câmara, reforça que a desconsideração da personalidade jurídica exige prova cabal de abuso, o que não foi apresentado pelo agravante. IV. Dispositivo e tese 8. Recurso não provido. Tese de julgamento: 1. A desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do art. 50 do Código Civil, exige a comprovação de confusão patrimonial ou desvio de finalidade, sendo inadmissível sem a demonstração efetiva de abuso de direito. 2. A mera existência de proximidade física e atuação em ramos semelhantes entre empresas não é suficiente para justificar a desconsideração da personalidade jurídica ou o reconhecimento de grupo econômico. Dispositivos relevantes citados: CC/2002, art. 50. Jurisprudência relevante citada: STJ, REsp nº 1647362/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 03.08.2017; TJSP, AI nº 2234819-08.2024.8.26.0000, Rel. Des. Vicentini Barroso, j. 24.09.2024; TJSP, AI nº 2030246-08.2024.8.26.0000, Rel. Des. Ramon Mateo Júnior, j. 16.04.2024" (TJSP - AI 2328372-12.2024.8.26.0000, 4-11-2024, Rel. Achile Alesina). "Agravo de instrumento - desconsideração da personalidade jurídica. Decisão que acolheu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, para, com fulcro no artigo 50 do Código Civil, declarar a desconsideração da personalidade jurídica da executada. Cabimento. Demonstração de desvio de finalidade e confusão patrimonial por parte da empresa executada. Ausência prolongada de movimentações financeiras e deslocamento irregular de endereço sem devida comunicação. Princípio da boa-fé objetiva violado pela conduta da empresa que omite informações relevantes e se esquiva de responsabilidades. Necessidade de medidas efetivas para garantir a satisfação das execuções judiciais e resguardar direitos dos credores. Decisão mantida. Recurso desprovido" (TJSP - AI 2204804-90.2023.8.26.0000, 11-11-2023, Rel. Israel Góes dos Anjos). "Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Rejeição do incidente, diante da prova de que a inclusão do suposto sócio no quadro societário da empresa foi fraudulenta. Exequente sequer manifestou interesse em produzir prova contrária. Ainda, ausentes os requisitos estabelecidos no art. 50, do Código Civil. Medida excepcional que reclama indispensável demonstração do abuso da personalidade jurídica com o intuito fraudulento ou confusão patrimonial, vale dizer, prova concreta e bastante no sentido de que a empresa tenha agido com dolo ou intuito de fraudar credores. Circunstância não evidenciada nos autos. Falta de provas consistentes a apoiar as alegações genericamente aduzidas pela exequente/agravante. Manutenção da r. decisão agravada. Recurso não provido" (TJSP - AI 2107900-76.2021.8.26.0000, 10-9-2021, Rel. Cauduro Padin). "Desconsideração da personalidade jurídica. Embargos à execução. Cerceamento de defesa por falta de designação de perícia e oitiva de testemunhas. Inocorrência. Execução de escritura pública de confissão de dívida com pacto adjeto de hipoteca. Fraude negocial constatada no decorrer da ação - o imóvel não existe. Embargante que é sócio da empresa. Caracterizado o dolo dos administradores da empresa na condução dos negócios, abuso da personalidade jurídica e fraude visando lesar credores, nos termos do artigo 50, do Código Civil. Precedentes. Sentença mantida. Recurso desprovido" (TJSP - AP 1000931-79.2015.8.26.0286, 18-8-2021, Relª Anna Paula Dias da Costa)". 20 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 283. 21 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 284. 22 TARTUCE, Flávio. Direito Civil Vol.1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 291.
1. Introdução: Tecendo a rede da prevenção na era digital A presente série de artigos, "A Aurora do Direito Civil Digital", tem se dedicado a explorar as multifacetadas transformações que a era digital impõe ao ordenamento jurídico cível. Nas reflexões anteriores, foram abordados temas cruciais como a "propedêutica do Direito Civil Digital", oferecendo um panorama introdutório; a delicada questão da proteção de "crianças e adolescentes" no ambiente virtual; e, mais recentemente, o complexo "direito à exclusão e ocultação de dados pessoais", popularmente conhecido como direito ao esquecimento. Adaptando a senda já trilhada, "depois de tratar de que se pode chamar de uma propedêutica do Direito Civil Digital e dos direitos das crianças e adolescentes relacionados a tal temática, no propomos, agora, a discorrer" sobre um elemento que, embora permeie transversalmente as discussões anteriores, merece um exame aprofundado e dedicado: a prevenção. Se proteger os mais jovens é, em essência, prevenir danos futuros, e se o direito ao esquecimento visa prevenir a perpetuação de estigmas, a prevenção emerge agora como um pilar explícito e fundamental na arquitetura do novo Direito Civil Digital que se desenha no horizonte legislativo brasileiro. No dinâmico, interconectado e, por vezes, volátil ecossistema digital, a capacidade de antecipar, mitigar e evitar riscos transcende a tradicional lógica reparatória. A prevenção, no contexto digital, não se contenta em remediar o dano após sua ocorrência; ela aspira à construção de um ambiente virtual intrinsecamente mais seguro, confiável e respeitador dos direitos desde a sua concepção. Este quarto artigo da série tem como objetivo precípuo analisar a imperatividade da prevenção no cenário digital, alicerçando-se nas consolidadas lições doutrinárias sobre o tema, com especial atenção aos ensinamentos sobre risco e antecipação de danos, e, subsequentemente, dissecar as inovadoras e promissoras disposições preventivas contidas no projeto de reforma do CC, atualmente em tramitação no Senado Federal1. A dedicação de um artigo específico à prevenção, dentro desta série, não é fortuita. Ela sinaliza uma evolução na própria compreensão do Direito Digital. Inicialmente, o foco recaía sobre a identificação e a afirmação de novos direitos - como a privacidade digital ou o direito ao esquecimento, explorados nas partes anteriores1. Agora, o debate avança para a análise de princípios estruturantes e mecanismos proativos. Trata-se de um amadurecimento que transcende a abordagem casuística de violações, buscando uma perspectiva mais arquitetônica e sistêmica para a regulação das interações no ciberespaço. Esta ênfase na prevenção, tal como delineada no projeto de reforma do CC, possui o potencial de influenciar não apenas a futura interpretação e aplicação da lei, mas também o próprio desenvolvimento de tecnologias e modelos de negócio. Ao estabelecer deveres claros e mecanismos de responsabilização proativa para plataformas, desenvolvedores e outros atores digitais, a legislação pode fomentar a incorporação de uma cultura de "prevenção desde a concepção" (prevention by design). Este movimento ultrapassa a mera conformidade legal, podendo moldar a ética da inovação tecnológica e direcionar o progresso para um caminho que harmonize avanço e proteção. 2. A essencialidade da prevenção no ecossistema digital: Lições fundamentais A imersão progressiva da sociedade nas tecnologias digitais trouxe consigo um paradoxo: ao mesmo tempo em que se colhem inúmeros benefícios e facilidades, emerge uma nova categoria de vulnerabilidades e ameaças. Compreender a centralidade da prevenção neste novo domínio requer, primeiramente, um olhar sobre a natureza dos riscos digitais e a insuficiência de uma abordagem puramente reativa. O sociólogo Ulrich Beck cunhou o termo "Sociedade de Risco" para descrever uma fase da modernidade onde o próprio progresso social e tecnológico gera riscos como "efeitos colaterais latentes" de suas atividades2. No ambiente digital, este paradigma se manifesta de forma particularmente aguda. A coleta massiva, o tratamento complexo e, muitas vezes, opaco de dados pessoais, a interconexão global instantânea e a rápida evolução de tecnologias como a inteligência artificial criam um terreno fértil para riscos de naturezas diversas. Estes incluem desde o vazamento de dados pessoais, tais como o ocorrido em relação a mais de 223 milhões de brasileiros, até formas mais sutis de manipulação de comportamento, disseminação de desinformação, e ameaças diretas a direitos fundamentais como a liberdade, a igualdade, a identidade e a privacidade. Como ressaltado em estudos sobre o tema, inúmeros riscos foram criados ou potencializados pelo uso das tecnologias digitais no tratamento de dados pessoais. E, não raro, tais riscos se transformam em efetivos danos aos titulares, com lesão aos direitos fundamentais de liberdade, igualdade, privacidade, ou, ainda, simplesmente ao patrimônio. A complexidade inerente a este cenário é agravada pela "invisibilidade dos dados pessoais e a complexidade de seu tratamento", o que faz com que parte considerável das pessoas desconheça - ou ao menos desconsidere - os riscos ligados ao tratamento de dados pessoais. Esta assimetria de informação e percepção de risco acentua a vulnerabilidade dos indivíduos no ciberespaço3. A natureza peculiar dos danos no ambiente digital reforça a necessidade de uma primazia da prevenção sobre a reparação. Muitos dos prejuízos infligidos, especialmente aqueles que atingem direitos da personalidade - como a honra, a imagem, a privacidade ou a identidade digital -, são, por sua essência, irreparáveis ou de difícil reversão. Uma vez que uma informação difamatória se viraliza, ou que dados íntimos são expostos indevidamente, a mera compensação pecuniária raramente se mostra suficiente para restaurar o status quo ante ou apagar as cicatrizes emocionais e sociais deixadas. Neste contexto, prevenir é sempre melhor que indenizar ganha contornos ainda mais prementes. A efetividade da tutela dos direitos no ambiente digital, particularmente do direito fundamental à proteção de dados pessoais, demanda atuação preventiva, antecipada, voltada à minimização dos riscos e, portanto, da probabilidade de danos. A lógica se inverte: o foco se desloca da correção do dano para a sua evitabilidade. O pensamento jurídico acerca da gestão de riscos e danos tem percorrido uma trajetória evolutiva significativa4. Historicamente, o direito lidava com os infortúnios sob um paradigma da responsabilidade individual, onde a reparação dependia da comprovação de culpa. Posteriormente, com a industrialização e a emergência de riscos em larga escala, desenvolveu-se o paradigma da solidariedade, fundamentado na ideia de risco da atividade, que permitiu a responsabilização objetiva em certas circunstâncias. Atualmente, emerge com força o paradigma da precaução. Este vai além da prevenção de riscos já conhecidos e calculáveis, abrangendo também riscos inespecíficos, potenciais ou incertos. Sob este prisma, a ausência de certeza científica absoluta sobre a ocorrência ou a dimensão de um dano não justifica a inação, mas impõe a adoção de medidas proporcionais para evitar prejuízos graves ou irreversíveis. Esta evolução reflete uma mudança fundamental no tempo do direito: de uma racionalidade predominantemente ex post, focada na sanção após a ocorrência do ilícito, para uma racionalidade cada vez mais ex ante, orientada para a proteção e a antecipação, buscando "provocar a prática de atos conformes"5. A exigência de uma postura preventiva por parte dos atores sociais e do Estado não é uma construção meramente teórica. Ela encontra sólidos fundamentos no ordenamento jurídico pátrio. A Constituição Federal de 1988, ao erigir a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos (art. 1º, III) e ao consagrar um vasto rol de direitos fundamentais, implicitamente comanda uma atuação estatal e social voltada à sua efetiva proteção, o que inclui a prevenção de violações. O princípio da solidariedade (art. 3º, I, CF/88) também impõe uma responsabilidade compartilhada na construção de uma sociedade mais justa e segura, o que envolve a mitigação de riscos. No plano infraconstitucional, a LGPD (lei 13.709/18) já representa um marco importante na adoção de uma abordagem preventiva e baseada no risco no tratamento de dados pessoais. Seus princípios basilares, como os da finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade dos dados, transparência, segurança, prevenção, não discriminação e responsabilização e prestação de contas (art. 6º da LGPD), são todos permeados por uma lógica de antecipação e mitigação de riscos. A transição para um "Estado Preventivo", conforme teorizado por Rik Peeters6, no contexto digital, implica uma reconfiguração do papel do Estado e dos agentes privados. Mais do que simplesmente punir infrações, o Estado assume uma função de orquestrador, criando um ambiente regulatório e de incentivos que estimulem provedores de tecnologia, plataformas digitais e usuários a internalizarem a gestão de riscos e a adotarem comportamentos preventivos. Esta abordagem de governança do risco, em detrimento da simples coerção, é fundamental para lidar com a complexidade e a dinamicidade do ciberespaço. A internalização dessa cultura preventiva pelos diversos atores do ecossistema digital pode, inclusive, gerar um ciclo virtuoso. Se a legislação e a própria sociedade passam a valorizar e, de certa forma, recompensar as boas práticas de prevenção - como sugere a "função promocional do direito de danos" ao prever um tratamento mais brando para quem efetivamente reduz riscos7 -, as empresas podem começar a enxergar a segurança e a ética digital não apenas como um custo de conformidade, mas como um investimento estratégico que gera confiança, atrai usuários e se converte em diferencial competitivo. 3. O projeto de reforma do Código Civil e a consagração da prevenção digital O projeto de reforma do CC, ciente das profundas transformações sociais e tecnológicas, propõe a criação de um Livro VI, inteiramente dedicado ao "Direito Civil Digital". Esta iniciativa legislativa não apenas reconhece a especificidade das relações jurídicas no ambiente virtual, mas também incorpora, de maneira robusta e transversal, o princípio da prevenção como um de seus pilares mestres.1 O Livro VI emerge como uma resposta legislativa abrangente e articulada aos desafios da era digital. Sua própria concepção, conforme se depreende da justificação apresentada pela comissão de juristas, revela um claro enfoque preventivo. O texto proposto visa a fortalecer o exercício da autonomia privada, a preservar a dignidade das pessoas e a segurança de seu patrimônio, bem como apontar critérios para definir a licitude e a regularidade dos atos e das atividades que se desenvolvem no ambiente digital. Essa declaração de propósitos já sinaliza uma preocupação fundamental com a antecipação e a mitigação de riscos, buscando um equilíbrio entre o fomento à inovação e a proteção dos direitos dos cidadãos. O Capítulo I do Livro VI estabelece as bases conceituais e principiológicas do Direito Civil Digital, e nele já se identificam diversos fundamentos com clara vocação preventiva, ao elencar os "fundamentos da disciplina denominada direito civil digital", destaca elementos essenciais para a construção de um ambiente virtual mais seguro: "o respeito à privacidade, à proteção de dados pessoais e patrimoniais, bem como à autodeterminação informativa;" "a inviolabilidade da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem da pessoa;" "o desenvolvimento e a inovação econômicos, científicos e tecnológicos, assegurando a integridade e a privacidade mental, a liberdade cognitiva, o acesso justo, a proteção contra práticas discriminatórias e a transparência algorítmica;" "a inclusão social, promoção da igualdade e da acessibilidade digital;" "o efetivo respeito aos direitos humanos, ao livre desenvolvimento da personalidade e dignidade das pessoas e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais." Cada um desses fundamentos contribui para um arcabouço preventivo. A proteção de dados e da privacidade, por exemplo, previne o uso abusivo de informações; a garantia da integridade mental e da liberdade cognitiva antecipa-se a riscos de manipulação por neurotecnologias; e a promoção da inclusão e da igualdade busca prevenir a exclusão digital e suas consequências danosas. Ademais, estabelece "parâmetros fundamentais para a interpretação dos fatos, atos, negócios e atividades civis que tiverem lugar no ambiente digital", reforçando a dimensão preventiva: "a garantia da segurança do ambiente digital, revelada pelos sistemas de proteção de dados, capazes de preservar os usuários contra investidas que lhes coarctem o discernimento, ainda que momentaneamente;" "a promoção de conduta ética no ambiente digital, respeitando os direitos autorais, preservando a informação, sua segurança e correção, bem como a integridade de dados;" "o respeito aos direitos e à proteção integral de crianças e de adolescentes também no ambiente digital." A ênfase na "segurança do ambiente digital" e na "promoção de conduta ética" demonstra uma clara intenção de estabelecer um padrão de comportamento e de infraestrutura que minimize a ocorrência de danos. O Capítulo IV do Livro VI é particularmente emblemático da abordagem preventiva do projeto de reforma. Ele consagra o "direito a um ambiente digital seguro e confiável", impondo deveres específicos às plataformas digitais, especialmente àquelas de grande alcance. Estes deveres são cruciais para a prevenção de danos sistêmicos: Dever geral de diligência: O Capítulo IV estabelece que "As plataformas digitais devem demonstrar a adoção de medidas de diligência para garantir a conformidade dos seus sistemas e processos com os direitos de personalidade e os direitos à liberdade de expressão e de informação...". Este é um dever amplo que impõe uma postura proativa na gestão de riscos. Avaliação de riscos sistêmicos: O mesmo capítulo determina que plataformas de grande alcance (com mais de dez milhões de usuários mensais no Brasil) devem "identificar, analisar e avaliar, ao menos uma vez por ano, os... riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento de seu serviço". Tais riscos incluem a difusão de conteúdo ilícito, efeitos adversos sobre direitos de personalidade, impactos em processos eleitorais e na saúde pública. Esta avaliação periódica é uma ferramenta preventiva poderosa, pois obriga as plataformas a um constante escrutínio de suas operações e potenciais externalidades negativas. Moderação de conteúdo e mecanismos de reclamação: Impõe o dever de "mitigar e prevenir a circulação de conteúdo ilícito" e de assegurar "mecanismos eficazes de reclamação e de reparação integral de danos". A existência de canais de denúncia acessíveis e a obrigação de responder às reclamações são medidas preventivas que visam coibir a disseminação de conteúdos prejudiciais e oferecer vias de solução antes que os danos se agravem ou se perpetuem. Transparência nos termos de uso: Os termos de serviço devem ser "acessíveis, transparentes e de fácil compreensão", detalhando processos de moderação, perfilamento de usuários e eventuais monetizações de conteúdo (Cap. IV). A transparência é fundamental para que os usuários compreendam os riscos aos quais estão expostos e possam tomar decisões mais informadas, atuando como um mecanismo preventivo contra práticas obscuras ou abusivas. Auditorias independentes: As plataformas de grande alcance também estarão sujeitas a auditorias anuais independentes, por elas custeadas, para verificar o cumprimento das obrigações deste capítulo (Cap. IV). As auditorias funcionam como um mecanismo de controle externo e de incentivo à conformidade, prevenindo a negligência ou o descumprimento sistemático dos deveres de cuidado. O Capítulo VII do Livro VI aborda a IA - inteligência artificial com uma forte ênfase preventiva, reconhecendo o potencial transformador da IA, mas também seus riscos inerentes. Estabelece que "O desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial deve respeitar os direitos de personalidade previstos neste Código, garantindo a implementação de sistemas seguros e confiáveis...". Para tanto, são estipulados requisitos fundamentais: Não discriminação: Garantir que decisões, uso de dados e processos baseados em IA não resultem em discriminação. Transparência, auditabilidade, explicabilidade, rastreabilidade, supervisão humana e governança: Estes são pilares para um desenvolvimento de IA responsável, permitindo o controle e a compreensão de seu funcionamento, prevenindo resultados opacos ou injustos. Acessibilidade, usabilidade e confiabilidade: Assegurar que os sistemas de IA sejam acessíveis e funcionem de maneira previsível e segura. Atribuição de responsabilidade civil: Definir claramente a responsabilidade por danos causados por sistemas de IA. De particular relevância preventiva é a regulamentação da criação de imagens de pessoas por meio de IA. As condições impostas são estritas: Obtenção prévia e expressa de consentimento informado da pessoa (ou de seus herdeiros, em caso de falecimento). Respeito à dignidade, reputação, presença e legado da pessoa representada, evitando usos difamatórios ou desrespeitosos. Obrigatoriedade de menção clara e expressa de que a imagem foi gerada por IA em sua veiculação. Estas medidas visam prevenir a criação e disseminação não autorizada de deepfakes, a exploração comercial indevida da imagem alheia e a manipulação da identidade. A preocupação com a prevenção não se limita aos capítulos sobre plataformas e IA, mas reverbera por todo o Livro VI: Proteção de Crianças e Adolescentes (Capítulo VI): Conforme já explorado na Parte II desta série e detalhado no Projeto de Reforma, o Capítulo VI impõe deveres preventivos robustos aos provedores. Estes incluem "implementar sistemas eficazes de verificação da idade", "proporcionar meios para que pais e responsáveis tenham condições efetivas de limitar e monitorar o acesso", "assegurar a proteção de dados pessoais" e, crucialmente, "proteger os direitos das crianças e adolescentes desde o design do ambiente digital". A vedação expressa de publicidade direcionada a este público é outra medida preventiva de grande alcance. Neurodireitos (Capítulo II): A inovadora previsão dos neurodireitos como "parte indissociável da personalidade", visando "preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio...", constitui uma forma de prevenção contra futuras manipulações cognitivas e violações da integridade mental que possam advir do avanço das neurotecnologias. Patrimônio Digital e Contratos Digitais (Capítulos V e VIII): Mesmo em áreas aparentemente mais patrimoniais, a prevenção se faz presente. Disposições sobre a "proteção plena de seus ativos digitais, incluindo a proteção contra acesso, uso ou transferência não autorizados"  e os requisitos para smart contracts - como robustez, controle de acesso e mecanismos de término seguro - possuem um caráter eminentemente preventivo, buscando evitar perdas financeiras, fraudes, disputas contratuais e a insegurança jurídica. A abordagem do projeto de reforma do CC, ao distribuir deveres preventivos entre diferentes atores - plataformas, desenvolvedores de IA, provedores de serviços em geral - demonstra uma compreensão sofisticada da natureza multifacetada dos riscos digitais. Conforme apontado pela doutrina, a complexidade e a invisibilidade de muitos desses riscos exigem uma resposta que não pode ser centralizada em um único agente8. A prevenção eficaz no ambiente digital depende, portanto, de uma responsabilidade compartilhada e de uma atuação coordenada. A implementação bem-sucedida dessas medidas preventivas tem o potencial de não apenas proteger os indivíduos, mas também de reduzir significativamente a litigiosidade relacionada a danos digitais. Se as plataformas são compelidas a realizar avaliações de riscos sistêmicos e se a inteligência artificial deve ser desenvolvida sob os pilares da transparência e da não discriminação, a probabilidade de ocorrência de danos em massa ou de violações sistemáticas de direitos tende a diminuir. Menos danos resultam em menos ações judiciais, o que representa um benefício social e econômico considerável, aliviando o sistema judiciário e, crucialmente, fomentando um ambiente de maior confiança para a inovação e a participação cidadã no espaço digital. 4. Conclusão: Semeando um futuro digital mais seguro e justo A trajetória da presente série de artigos, ao culminar na análise da prevenção, reflete um amadurecimento indispensável na forma como o Direito Civil encara os desafios e as promessas da era digital. Fica evidente que a prevenção não é apenas um conceito acessório, mas o alicerce sobre o qual se deve edificar uma ordem jurídico-digital que verdadeiramente proteja os cidadãos, promova um desenvolvimento tecnológico ético e garanta a perenidade dos valores fundamentais em um mundo cada vez mais interconectado. As inovações propostas no Livro VI do projeto de reforma do CC representam um avanço legislativo de notável envergadura. Ao consagrar deveres preventivos explícitos para os diversos atores do ecossistema digital - desde as grandes plataformas até os desenvolvedores de inteligência artificial - o legislador brasileiro sinaliza um compromisso com a antecipação de riscos e a mitigação de danos. Esta abordagem proativa está em sintonia com as melhores práticas internacionais e responde às necessidades prementes de uma sociedade que vivencia, no seu cotidiano, as complexidades e as vulnerabilidades inerentes ao ciberespaço. O potencial transformador dessas normas é imenso. A internalização da cultura da prevenção pelos provedores de serviços e tecnologias digitais pode redefinir os padrões de desenvolvimento e operação no ambiente online. A exigência de avaliações de risco, de transparência algorítmica, de proteção de dados desde a concepção e de mecanismos eficazes de moderação de conteúdo não são meras formalidades; são instrumentos que, se efetivamente implementados, podem contribuir decisivamente para a tutela da dignidade da pessoa humana, da privacidade e proteção de dados pessoais, da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais que encontram no ambiente digital tanto um espaço de expansão quanto um campo de ameaças. Expressam-se, portanto, votos para que o texto do projeto de reforma do CC, seja objeto de um debate aprofundado e construtivo no âmbito do Senado Federal. Que eventuais aprimoramentos sirvam para reforçar ainda mais seu viés preventivo, consolidando um marco legal robusto e adaptado aos desafios do século XXI. Anseia-se pela rápida aprovação e entrada em vigor desta legislação, para que seus benefícios possam ser sentidos pela sociedade brasileira o mais brevemente possível, inaugurando, de fato, uma nova aurora para o Direito Civil. A aprovação de um arcabouço normativo tão progressista no campo da prevenção digital pode, inclusive, posicionar o Brasil como uma referência internacional, exercendo uma influência positiva sobre outras nações que buscam equilibrar inovação tecnológica e proteção de direitos, de forma análoga ao impacto que o GDPR - Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados europeu teve globalmente. Contudo, a efetividade dessas medidas preventivas não se esgotará na mera publicação da lei. Seu sucesso dependerá crucialmente da capacidade de fiscalização do Estado, da criação e fortalecimento de órgãos reguladores com expertise técnica, da conscientização contínua da sociedade sobre seus direitos e deveres no ambiente digital, e de uma colaboração sinérgica entre os setores público e privado. A prevenção, afinal, é um processo dinâmico e contínuo, que exige vigilância e adaptação constantes frente à evolução incessante das tecnologias e dos riscos. O chamado final é para que a comunidade jurídica, os desenvolvedores, as empresas de tecnologia, as instituições de ensino e cada usuário individual abracem e promovam ativamente a cultura da prevenção. Somente através de um esforço coletivo e concertado será possível construir um futuro digital que seja não apenas inovador e eficiente, mas também fundamentalmente mais seguro, justo e humano, em plena consonância com o espírito que anima "A Aurora do Direito Civil Digital". _______ 1 Disponível aqui. 2 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. 3 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 4 EWALD, François. The return of Descartes's malicious demon: an outline of a philosophy of precaution. In: BAKER, Tom; Simon, Jonathan (ed.). Embracing risk: the changing culture of insurance and responsibility. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. p. 273-301. Disponível aqui. 5 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 6 PEETERS, Rik. The preventive gaze: how prevention transforms our understanding of the state. Haia: Eleven International Publishing, 2013. 7 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 8 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
Em continuidade a outras publicações nossas sobre questões importantes sobre a proteção da pessoa sob curatela1, enfrentaremos, no presente artigo, a seguinte questão: é ou não viável que a pessoa sob curatela faça doações a terceiros mediante autorização judicial? Em uma interpretação literal do art. 1.749, II, do Código Civil (CC), a resposta é negativa. Veja o referido dispositivo:  Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade: I - adquirir por si, ou por interposta pessoa, mediante contrato particular, bens móveis ou imóveis pertencentes ao menor; II - dispor dos bens do menor a título gratuito; III - constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor.  Entendemos, porém, que o referido dispositivo deve ser interpretado em compatibilidade com o princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e com o princípio da vontade presumível2. Defendemos que a proibição de liberalidades do art. 1.749, II, do CC pode ser flexibilizada quando, no caso concreto, o juiz verificar compatibilidade com os princípios acima. Há duas hipóteses principais. A primeira é o caso de aplicação da regra do respeito à vontade presumível da pessoa vulnerável ao tempo de sua lucidez3. Quando a liberalidade condiz com a conduta que a pessoa curatelada adotava antes da interdição, ela deve ser admitida. É que, com a interdição e a consequentemente nomeação de curador, a diretriz a ser adotada é a, no que for viável, de preservar o estilo de vida da pessoa. Essa é a vontade presumível dela, ou seja, a vontade que ela externaria caso conseguisse exprimir lucidamente sua vontade. Cuida-se de um imperativo para garantir a dignidade da pessoa humana, em atenção ao princípio do melhor interesse da pessoa incapaz. Pense em uma pessoa que, antes de ser interditada, fazia doações mensais a favor de uma família carente, de uma instituição filantrópica ou de um conhecido. Com sua interdição, seria totalmente agressivo contra a vontade presumível dessa pessoa "fechar a torneira" dessas liberalidades e proibir a continuidade dessas doações periódicas, a pretexto de uma interpretação literal (e indevida) do art. 1.749, II, do CC. O princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável recomenda uma postura inercial de estilo de vida, com continuidade dessas liberalidades. Afinal de contas, dentro do estilo de vida que a pessoa incapaz levava, era isso que lhe fazia feliz. Não cabe ao Poder Público ingerir no âmbito das preferências individuais para romper o estilo de vida que a pessoa incapaz adotava antes da interdição. É claro que, se as doações estiverem efetivamente a comprometer a subsistência da pessoa vulnerável por conta de dívidas e de outros problemas financeiros, o caso será de "fechar a torneira" das liberalidades. Afinal, pelo princípio da vontade presumível, um homo medius cessaria liberalidades em casos como esses, de insuficiência financeira de custeio das próprias necessidades. Mais um exemplo ocorreu com um servidor público de alto escalão que veio a perder a lucidez por conta de problemas neurológicos e que veio a ser submetido a curatela. Antes da interdição, ele - que já dispunha de imóvel próprio para moradia - utilizava parte de seu considerável salário para fazer "liberalidades" em favor de sua filha adulta (que não tinha profissão regular) e de seus netos. Pagava despesas pessoais da filha, pagava escola particular a netos, comprava iphone e outros produtos para eles etc. Viajava com sua filha e netos para Paris e para outros países, custeando as despesas de todo mundo. Na cosmovisão dele, a felicidade estava em utilizar parte de seu dinheiro para ver sua filha adulta e seus netos fruírem de uma qualidade de vida de classe média alta. Supondo-se que esse alto servidor público não esteja em situação de endividamento e que persista com condição financeira vantajosa (suficiente para custeio das liberalidades sem comprometimento das próprias necessidades), indaga-se: seria compatível com a reta justiça que, no caso de interdição dessa pessoa, o juízo passe a proibir a continuidade dessas liberalidades e desse estilo de vida, expondo a filha adulta e os netos a decaírem no padrão de vida? Entendemos que não. Cabe ao juiz autorizar a continuidade desse estilo de vida, com essas liberalidades, pois essa era a cosmovisão que guiava a pessoa curatelada antes da interdição. A maior felicidade desse indivíduo era propiciar, com as liberalidades, boas condições financeiras à filha adulta e aos netos. E essa perspectiva de vida deve ser protegida após a interdição, em prestígio ao princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. Não cabe ao Poder Público questionar o estilo de vida que era adotado pela pessoa antes da interdição nem adentrar na sua cosmovisão. Em palavras populares, se a pessoa "sustentava filhos folgados", isso é irrelevante: a interdição deve seguir a diretriz de manter, no que for viável, o estilo de vida da pessoa. Seria, inclusive, inconstitucional que o Poder Público, com o processo de interdição, passasse a impor à pessoa vulnerável um estilo de vida sombrio, apático, voltado apenas a assegurar friamente casa, comida e remédios e a acumular dinheiro em aplicações financeiras. A verdade é que, na prática forense, não é incomum essas agressões à dignidade da pessoa humana. Há diversos casos de pessoas sob curatela cujos altos salários são retidos em parcela considerável para engordar aplicações financeiras por força de decisão judicial, de modo que o dinheiro liberado serve apenas para assegurar o custeio de despesas básicas de sobrevivência. Esse tipo de tratamento coisifica o ser humano, transformando a pessoa curatelada em uma espécie de objeto que precisa ser preservado apenas no seu mínimo existencial. Despreza-se que, mesmo após perda da lucidez, estamos diante de um ser humano, que merece ter uma vida digna, à luz daquilo que lhe preenche a alma e o espírito. A segunda hipótese em que se deve flexibilizar a proibição de liberalidade do art. 1.749, II, do CC é quando a vontade presumível no caso concreto o recomendar, à vista das particularidades do caso concreto. Pense, por exemplo, em uma pessoa que, desde o nascimento, esteve sob curatela por falta de lucidez. Seu curador é um amigo da família, que, sempre, com todo amor, dedicou-se ao mister. Imagine que esse curador venha a ficar doente e que, para cura, precise de uma cirurgia. Suponha-se que essa cirurgia venha a custar cem mil reais e que o curador não disponha de recursos. Se a pessoa curatelada dispuser de farto patrimônio (ex.: tenha dois milhões de reais em aplicações financeiras, além de uma pensão mensal elevada), parece-nos totalmente compatível com a vontade presumível autorizar a doação do dinheiro para a cirurgia. Um homo medius, com lucidez, certamente doaria um dinheiro desse para salvar uma pessoa tão próxima a si, que se sacrificou para exercer o tão laborioso e exigente mister de curatela. É consabido que a tarefa de ser curador não é singela e exige elevadíssimos sacrifícios pessoais, sacrifícios esses que são geralmente compensados pelo amor nutrido pela pessoa vulnerável. Enfim, entendemos que a vedação a liberalidades pelo curatelado (art. 1.749, II, do CC) não se aplica quando, no caso concreto, houver incompatibilidade com os princípios da vontade presumível e do melhor interesse da pessoa vulnerável. A diretriz da curatela não é a acumulação de riquezas! É a garantia de uma vida digna à pessoa vulnerável, em uma perspectiva despatrimonializada do Direito Civil. Nossa recomendação aos leitores é que elaborem Diretivas Antecipadas de Curatelada por escritura pública para se protegerem. Isso, porque, infelizmente, a tendência forense atual ainda é um tratamento patrimonializado, frio e coisificado da pessoa sob curatelada. __________ 1 (1) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Curatela de pessoas vulneráveis e as diretivas de curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023, Disponível aqui. Acesso em 18 de abril de 2023; (2) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível aqui. Acesso em 7 de maio de 2024; (3) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado, agosto 2023 (Texto para Discussão nº 320). Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2023; (4) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela: prestação de contas por resultado e os limites do controle jurisdicional a posteriori. Disponível aqui. Publicado em 9 de abril de 2024. 2 Sobre este último, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da vontade presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023. 3 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Curatela de pessoas vulneráveis e as diretivas de curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023, Disponível aqui. Acesso em 18 de abril de 2023.
1. Introdução Neste artigo, trataremos da adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta. Embora ela seja nula, o fato é que seu feito prático (o vínculo jurídico de filiação) é mantido por outro fundamento em muitas situações. Trata-se de aplicação da substituição do fundamento de ato de vontade, uma das formas de aplicação do princípio da conservação do ato jurídico1.  2. Cabimento  A adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta dá-se quando os adotantes são escolhidos diretamente pelos anteriores pais, sem respeitar a fila do cadastro de adoção. É dita "adoção intuitu personae", porque os adotantes são escolhidos diretamente pelos pais. Lembra-se que, em regra, a adoção intuitu personae é vedada, porque é preciso seguir a ordem do cadastro de adoção (art. 50, ECA). Quando ocorre fora dos casos legais, ela também é chamada de "adoção à brasileira", porque envolve um "jeitinho" de burlar as regras formais de adoção. Adoção à brasileira é um ato ilegal de alguém que, mentindo, reconhece um filho alheio com a prática dos pertinentes atos registrais. Cuida-se de informalidade destinada a contornar as "burocracias" próprias do procedimento legal de adoção.  Há, porém, hipóteses legais de dispensa de observância da fila do cadastro de adoção, hipóteses essas que se costuma chamar apenas de adoção intuitu personae ou dirigida, e não de "adoção à brasileira" por conta da ideia de irregularidade própria desta última. As principais hipóteses legais estão § 13 do art. 50 do ECA2, que dispensa o cadastro de adoção em alguns casos. Outra hipótese legal é na adoção internacional quando o Brasil será o país de destino da criança estrangeira a ser adotada e quando o procedimento de adoção tiver de ocorrer no Brasil, conforme art. 52-D do ECA3. A doutrina e a jurisprudência também tendem a admitir a adoção intuitu personae quando, no caso concreto, isso se revelar compatível com o melhor interesse da criança. A ideia é a de que a ordem do cadastro de adoção não é absoluta. Trata-se, porém, de situações excepcionalíssimas. Geralmente os casos concretos que se encaixam em um dos seguintes grupos: (1) de adoções unilaterais informal, sem formalização judicial; ou (2) os de adoções intuitu personae acompanhada de longo tempo de convivência da criança com os adotantes. Esses dois casos são, inicialmente, irregulares; são adoções à brasileira. Todavia, por conta do contexto, podem vir a ser tolerados juridicamente. Em relação à primeira hipótese (adoções unilaterais informal), é comum a adoção à brasileira em situações em situação de mães solteiras que conhecem um novo amor. Esse novo amor, em muitas hipóteses, declara falsamente ser o pai biológico e obtém o registro civil. A rigor, trata-se de ato que configura crime (art. 242, Código Penal4). Lembramos que estamos a tratar da adoção unilateral informal. É que a adoção unilateral formal é plenamente lícita, ocorrida mediante decisão judicial. Em relação à segunda hipótese, essa prática acontece fora do contexto de novos relacionamentos. É o caso de uma mãe gestante que, logo após o parto, entrega o filho para os "adotantes".  Nesses casos, o "pai adotante" mente ao Cartório, registra o filho como próprio e assume, de fato, a guarda da criança com sua esposa. Essa esposa (pretensa "mãe adotante") nem sempre consegue o registro, pois a gestante acaba figurando no registro pelo fato de a Declaração de Nascido Vivo ser expedida pela maternidade indicando-a como a parturiente, o que é levado em conta no Cartório. Essa situação de irregularidade costuma persistir até que, anos depois, o casal adotante tenta alguma forma de inserir a "mãe adotante" no registro público e eventualmente retirar o nome da mãe biológica do registro. Em princípio, os dois tipos de adoções à brasileira acima são nulos. Todavia, caso, após esse ato, seja verificada a formação de um vínculo socioafetivo de filiação, o registro público pode vir a ser mantido incólume por esse outro fundamento (substituição do fundamento de ato de vontade5). A filiação é mantida não por conta do ato ilícito, e sim por causa da socioafetividade e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Em casos de adoções unilaterais informais (ex.: padrasto registrado como pai), a jurisprudência tende a negar que o pai adotivo tente anular posteriormente o registro (o que costuma ser feito quando ele vem a divorciar-se da mãe biológica e pretende esquivar-se de pagar pensão alimentícia ao filho). Um dos principais argumentos é o de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Em outros casos de adoções intuitu personae (ex.: entrega da criança a um casal), a jurisprudência tende a tolerar a manter a situação se já tiver sido consolidada no tempo. Afinal de contas, os danos seriam muito maiores para a criança, se esta fosse retirada do seio da família adotiva para ser submetida à fila do cadastro de adoção e ficar em acolhimento institucional ("abrigos"). O princípio do melhor interesse da criança prevalece no caso concreto. Veja, por exemplo, estes julgados:  CIVIL. HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR. POSSÍVEL ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. WRIT UTILIZADO COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. EXAME DA POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇA DE TENRA IDADE EM VIRTUDE DE BURLA AO CADASTRO DO SISTEMA NACIONAL DE ADOÇÃO E DE INOBSERVÂNCIA DO RITO DE ADOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DO INFANTE SOB OS CUIDADOS DA FAMÍLIA ACOLHEDORA HÁ MAIS DE 1 (UM) ANO E 7 (SETE) MESES. CADASTRO DE ADOTANTES DEVE SER SOPESADO COM O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. FORMAÇÃO DE SUFICIENTE VÍNCULO AFETIVO ENTRE O INFANTE E A FAMÍLIA SUBSTITUTA. PRIMAZIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR EM DETRIMENTO DA COLOCAÇÃO EM ABRIGO INSTITUCIONAL. PRECEDENTES DO STJ. ILEGALIDADE DO ACÓRDÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA DE OFÍCIO, EXCEPCIONALMENTE, CONFIRMANDO A LIMINAR JÁ DEFERIDA. 1. Não é admissível a utilização de habeas corpus como sucedâneo ou substitutivo do cabível recurso ordinário. Possibilidade excepcional de concessão da ordem de ofício. Precedentes. 2. Por expressa previsão constitucional e infraconstitucional, as crianças e os adolescentes têm o direito de ver assegurado pelo Estado e pela sociedade o atendimento prioritário do seu melhor interesse e garantida suas proteções integrais, devendo tais premissas orientar o seu aplicador, principalmente, nas situações que envolvam abrigamento institucional. 3. A jurisprudência desta Eg. Corte Superior, em observância a tal princípio, consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colocação de menor em abrigo institucional, salvo quando houver evidente risco concreto à sua integridade física e psíquica, de modo a se preservar os laços afetivos eventualmente configurados com a família substituta. Precedentes. 4. A ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao lema do melhor interesse da criança ou do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC nº 468.691/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 11/3/2019). 5. Ordem de habeas corpus, excepcionalmente, concedida de ofício, confirmando a liminar já deferida. (HC n. 878.386/ES, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 11/4/2024.)  HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA). MEDIDA DE PROTEÇÃO. BUSCA E APREENSÃO DE MENOR. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AOS PAIS REGISTRAIS DESDE O NASCIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". MEDIDA PROTETIVA EXCEPCIONAL. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. OFENSA AO MELHOR INTERESSE DO MENOR. ORDEM CONCEDIDA. 1. É pacífico o entendimento desta Corte no sentido de permitir, em situações excepcionais, a superação do óbice da Súmula 691 do STF em casos de flagrante ilegalidade ou quando indispensável para garantir a efetividade da prestação jurisdicional. 2. O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ao preconizar a doutrina da proteção integral e prioritária do menor, torna imperativa a observância do melhor interesse da criança. 3. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento do familiar. 4. Nessa senda, o afastamento da medida protetiva de busca e apreensão atende ao princípio do melhor interesse da criança, porquanto, neste momento, o maior benefício à menor é mantê-la com os pais registrais, até ulterior julgamento definitivo da ação principal. 5. Ordem de habeas corpus concedida, com liminar confirmada. (HC n. 597.554/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 2/12/20206)  HABEAS CORPUS. LIMINAR. MENOR. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E MEDIDA PROTETIVA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AO PAI REGISTRAL DESDE O NASCIMENTO. PATERNIDADE BIOLÓGICA AFASTADA. MENOR PORTADOR DE GRAVES PROBLEMAS DE SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. 1. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento daquele em família substituta. Precedentes. 2. Na hipótese, o afastamento liminar da determinação de acolhimento institucional aparenta melhor atender ao princípio da prevalência do interesse da criança, porquanto, neste momento, o estado de saúde do menor inspira cuidados e mantê-lo sob as atenções e desvelos personalizados e individualizados proporcionados pela família substituta se mostra preferível, ao menos até o julgamento definitivo da ação principal, diante da necessidade de acompanhamento médico constante, de duvidoso alcance na via institucional. 3. Medida liminar deferida. (HC n. 683.962/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 18/8/2021.)  A propósito, o STJ, apesar de reconhecer a ilegalidade da adoção à brasileira, entendeu que o Ministério Público (MP) não teria interesse processual para pleitear indenização por dano moral coletivo contra um casal que havia tentado realizar a adoção intuitu personae. Entendeu que o caminho de punir o casal com a indenização por dano moral coletivo não era útil processualmente, até porque a adoção intuitu personae, apesar de ser ilegal e de não dever ser incentivada, acaba sendo uma realidade social (STJ, REsp 2.126.256/SC, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 10/6/2024). Consideramos incensurável a jurisprudência, porque, no final das contas, as regras de Direito da Criança e do Adolescente não é um fim em si mesmo. Elas servem aos mirins, e não o contrário. Portanto, se, no caso concreto, uma situação irregular vier a ser mais adequada ao bem-estar do pequeno, não há o que fazer senão curvar-se ao verdadeiro senhor do Direito da Criança e do Adolescente: o princípio do melhor interesse do mirim. Deve-se, porém, evidentemente sempre evitar irregularidades e prestigiar a fila do cadastro de adoção. Mas, infelizmente, a informalidade é uma realidade contra a qual o Direito nem sempre consegue vitórias. __________ 1 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309. 2 Art. 50, § 13, ECA.  Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:  I - se tratar de pedido de adoção unilateral;  II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;  III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.  § 14.  Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto nesta lei.  3 Art. 52-D.  Nas adoções internacionais, quando o Brasil for o país de acolhida e a adoção não tenha sido deferida no país de origem porque a sua legislação a delega ao país de acolhida, ou, ainda, na hipótese de, mesmo com decisão, a criança ou o adolescente ser oriundo de país que não tenha aderido à Convenção referida, o processo de adoção seguirá as regras da adoção nacional.  4 Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Pena - reclusão, de dois a seis anos. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) 5 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309. 6 Segue excerto do voto do relator detalhando o caso concreto: Na hipótese, noticiam os autos que a menor J V O N é uma bebê de origem paraguaia, que foi acompanhada desde a gestação pelo casal J.O. e R.N.S. e entregue a eles pela sua mãe biológica logo após seu nascimento, os quais registraram-na como filha ainda no consulado brasileiro, em Salto Del Guairá - Paraguai (fls. 53-54), e ratificaram o registro no Brasil (fl. 181). O Ministério Público do Estado do Paraná ajuizou medida protetiva e busca e apreensão, alegando que, em razão de denúncia anônima de suposta adoção irregular por parte de "um casal habilitado para adoção", apuraram-se indícios fortes de adoção irregular da criança, também pelo fato de que o referido casal já estava em processo de adoção naquela comarca. O Juízo natural determinou o acolhimento da criança em Casa-Abrigo. Impetrado writ perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a liminar foi indeferida pela d. Relatora (...) Ante o cumprimento da ordem de busca e apreensão da criança e o acolhimento em abrigo, foi impetrado o presente habeas corpus, com pedido de liminar, sustentando o impetrante a ilegalidade e a impertinência da medida extrema determinada initio litis. A liminar foi deferida pelo em. Ministro Presidente do STJ, que, prestigiando o princípio do melhor interesse da criança, determinou a "imediata entrega da menor J. V. O. N. aos pais registrais, J. O. e R. N. S., afastando, por ora, o recolhimento institucional até o julgamento final do presente habeas corpus". (...) Ante o exposto, concede-se a ordem de habeas corpus para, confirmando a liminar deferida às fls. 1.305-1.310, determinar que a paciente J. V. O. N. permaneça na guarda e responsabilidade dos seus pais registrais, até o julgamento definitivo da ação de anulação de registro civil de nascimento aviada pelo Ministério Público estadual.
1. Introdução Como ficam os direitos sucessórios de quem foi adotado antes, durante e depois do Código de Menores de 1979? É em torno dessa indagação que gira o presente artigo, enfrentando um problema de direito intertemporal que ainda hoje frequenta os tribunais.  2. Definição da adoção na atualidade  A adoção é ato jurídico por meio de qual uma pessoa (adotado) recebe o estado civil de filho em relação ao adotante, com rompimento do anterior vínculo jurídico de filiação. O filho adotivo passa a ter todos os direitos dos filhos naturais (filhos biológicos), inclusive os decorrentes de vínculos com os parentes dos pais biológicos. É vedada qualquer discriminação entre os filhos por conta da origem (biológica ou adotiva), conforme art. 227, § 6º, CF1 e art. 41 do ECA2. Essa é a chamada adoção plena, a única atualmente admitida no Brasil.  3. O problema de direito intertemporal da antiga adoção simples e da mais antiga adoção standard do CC/1916  Atualmente, não se admite mais a antiga adoção simples (também chamada de adoção restrita), que se distinguia da adoção plena por três principais características: 1 não rompia o vínculo jurídico de filiação anterior; 2 não formava vínculo com os parentes do adotante, mas apenas com o adotante; 3 o poder familiar passava do pai biológico ao pai adotivo. Nesse tipo de adoção, o filho seguia com vínculo jurídico de filiação com os pais biológicos. A adoção simples coexistia com a adoção plena após a entrada em vigor do Código de Menores de 19793, quando ainda vigia o CC/1916. A CF/1988, o ECA (que revogou o antigo Código de Menores) e o CC/2002 rejeitaram a adoção simples, porém4. Essa mudança legislativa, porém, não prejudica as adoções simples até então ocorridas, porque novas leis devem respeitar atos jurídicos perfeitos (art. 6º, LINDB5). As adoções simples não se transformam automaticamente em adoções plenas com as novas leis, porque é preciso respeitar o ato jurídico perfeito. Antes do Código de Menores de 1979, só havia uma espécie de adoção, disciplinada pelo CC/1916. Chamamo-la de adoção standard do CC/1916. Daí se seguem algumas consequências práticas de direito intertemporal. Uma delas é a de que, no caso de adoção simples (aquela ocorrida na vigência do Código de Menores de 1979), o adotado segue com direito sucessório em razão da morte de seus pais biológicos, com quem ainda mantém vínculo de filho. Nesse sentido, o STJ reconheceu que uma pessoa que havia sido adotada, de modo simples, pelos avós tinha direito hereditário por ocasião da morte de seu pai biológico após a entrada em vigor do CC/2002. Confira-se:  CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. ADOÇÃO SIMPLES. PARENTESCO ENTRE ADOTANTE E ADOTADO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO SUCESSÓRIO. MANUTENÇÃO DO PARENTESCO NATURAL, EXCETO PODER FAMILIAR. ATO JURÍDICO PERFEITO, SE CUMPRIDOS OS REQUISITOS, FORMA E CONTEÚDO VIGENTES À ÉPOCA. DIREITO ADQUIRIDO AO REGIME SUCESSÓRIO EXISTENTE AO TEMPO DA ADOÇÃO. INOCORRÊNCIA. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO. DIREITO HEREDITÁRIO REGIDO PELA LEI VIGENTE AO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO. SUPERVENIÊNCIA DE NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL E LEGAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE FILHOS E PLENITUDE DA ADOÇÃO. FILHOS DE SEGUNDA LINHAGEM. IMPOSSIBILIDADE. TRANSFORMAÇÃO AUTOMÁTICA DE ADOÇÃO SIMPLES EM ADOÇÃO PLENA. IMPOSSIBILIDADE. PLENITUDE ADOTIVA QUE SE CARACTERIZA NÃO APENAS DO PONTO DE VISTA JURÍDICO, MAS TAMBÉM FÁTICO. INEXISTÊNCIA NA HIPÓTESE EM EXAME. RELAÇÃO PATERNO-FILIAL COM AVÔ MATERNO QUE SE INICIOU E FINDOU À ÉPOCA DAS ADOÇÕES SIMPLES. AUSÊNCIA DE PLENITUDE ADOTIVA. DIREITO DE INVESTIGAÇÃO DA VERDADE BIOLÓGICA E ANCESTRALIDADE E DIREITO SUCESSÓRIO CONFIGURADOS. PRECEDENTE DA 3ª TURMA NO RESP 1.477.498/SP INAPLICÁVEL À HIPÓTESE DIANTE DAS PARTICULARIDADES FÁTICAS. OMISSÃO QUANTO À BASE DE CÁLCULO DOS HONORÁRIOS. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO DECIDIDA. PRETENSÃO, SENTENÇA E ACÓRDÃO CONDENATÓRIOS. RECURSO ESPECIAL QUE DISCUTE PROVEITO ECÔNOMICO. CONCEITOS JURÍDICOS DISTINTOS. SÚMULA 284/STF. HONORÁRIOS RECURSAIS. CONFIGURAÇÃO. 1- Ação proposta em 8/5/2018. Recursos especiais interpostos em 24/3/2022 e atribuídos à Relatora em 18/7/2022. 2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) em relação ao recurso especial de ANTONIO e OUTROS, se a pessoa que havia sido adotada pelos avós de forma simples na vigência do CC/1916 pode participar, na qualidade de descendente, da sucessão de seu pai biológico, que fora aberta apenas na vigência da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e do Código Civil de 2002, e se o Tribunal local, ao admitir essa possibilidade, dissentiu de precedente desta Corte; (ii) em relação ao recurso especial de POLIANA e OUTROS, se há omissões relevantes no acórdão recorrido e se os honorários advocatícios sucumbenciais foram arbitrados de maneira adequada, seja quanto à base de cálculo, seja quanto à majoração em virtude da atividade desenvolvida em grau recursal. 3- A adoção simples possuía, como características marcantes, o estabelecimento de parentesco somente entre adotante e adotado, a vedação de estabelecimento de direito de sucessão entre o adotado e os parentes do adotante e a ausência de extinção dos direitos e deveres que resultam do parentesco natural, exceto o poder familiar, que era transferido do pai natural para o adotivo. 4- A adoção simples realizada na vigência do CC/1916, se observados os requisitos, forma e conteúdo vigentes à época de sua prática, será considerado um ato jurídico perfeito e consumado, de modo que legislação superveniente não poderá exigir que esse mesmo seja novamente praticado em virtude da inexistência, na nova lei, da figura da adoção simples. 5- O ato jurídico perfeito de adoção simples não conduz à existência de um direito adquirido ao regime sucessório vigente ao tempo da consumação da adoção, pois, naquele momento, existia mera expectativa de direito que somente viria a se concretizar com o falecimento do autor da herança e que se se regerá pela lei vigente no momento da abertura da sucessão. 6- Examinada a questão sob diferente perspectiva, a superveniência de uma nova ordem constitucional e legal, que estabeleceu o princípio da igualdade entre os filhos e a plenitude da adoção, teve por finalidade afastar um antigo padrão social existente em nosso país até aquele momento histórico, mas que, ainda hoje, ainda se repete, felizmente em menor escala: a existência de filhos de segunda linhagem. 7- Nesse contexto, o princípio constitucional da igualdade entre os filhos é um freio, necessário e definitivo, a uma conduta social secular, preconceituosa, hipócrita e odiosa de discriminação e de diminuição humana, calcada simplesmente no fato de que o filho fora concebido fora da casta familiar e, por isso mesmo, seria indigno de frequentá-la. 8- De outro lado, a plenitude da adoção é tonificada com a máxima da desvinculação da família biológica enquanto meio e técnica de fortificação e de consolidação do vínculo familiar adotivo. Para que um vínculo filial originado de adoção seja igual ou mais forte do que um vínculo filial originado do laço sanguíneo, o passado não deve ser um assombro ou desassossego. 9- Para a transformação de uma adoção simples do regime anterior, cuja característica era a manutenção do vínculo com os pais biológicos, em adoção plena no ordenamento atual, com o imediato rompimento desse mesmo vínculo, não basta o reconhecimento jurídico de que o sistema provocou essa ruptura, mas, sim, é indispensável que se observe a existência da plenitude adotiva no mundo dos fatos, isto é, de que houve ruptura fática desse vínculo com a criação de um vínculo entre a adotada e o pai adotivo. 10- Na hipótese em exame, a autora foi adotada pelo avô materno em julho/1984 e ele veio a falecer em maio/1985, ambos os eventos ocorridos na constância da chamada adoção simples, de modo que não houve a transmudação da adoção simples em adoção plena pelo simples fato de, após esses eventos, ter havido uma ruptura constitucional e infraconstitucional para com o modelo adotivo anteriormente vigente. 11- Inexistente a transformação de adoção simples em adoção plena na hipótese em exame, é direito da autora não apenas investigar a sua verdade biológica e ancestralidade, mas também participar da sucessão de seu pai biológico, sob pena de ofensa à isonomia entre os filhos garantido pelo texto constitucional e de reavivar a sepultada ideia de que ainda existiriam filhos de segunda linhagem. 12- Não se aplica à hipótese a tese firmada no REsp 1.477.498/SP diante das diferentes particularidades fáticas existentes na hipótese em julgamento, seja porque a adoção simples se deu por membro da própria entidade familiar, seja porque o rompimento da relação paterno-filial entre adotante e adotado ocorreu imediatamente após a adoção e ainda na vigência da legislação revogada, circunstâncias não verificadas no precedente. 13- Não há que se falar em omissão quanto à base de cálculo dos honorários sucumbenciais quando a questão foi efetivamente examinada pelo acórdão recorrido. 14- Formulada pela parte pretensão de natureza condenatória julgada procedente pela sentença e mantida pelo acórdão, e tendo ambas as decisões judiciais fixado os honorários sucumbenciais, por equidade, porque ínfimo o valor atribuído à causa, não se conhece do recurso especial que impugna o acórdão ao fundamento de que, em verdade, os honorários deveriam ser arbitrados com base em proveito econômico, eis que condenação e proveito econômico são conceitos jurídicos distintos. Aplicabilidade da Súmula 284/STF. 15- Desprovida a apelação interposta pelos réus, os únicos a recorrem da sentença quanto ao mérito e os únicos a quem fora imposta a condenação sucumbencial, impõe-se a majoração da verba honorária em virtude da atividade desenvolvida em grau recursal pelos patronos da autora, na forma do art. 85, § 11, do CPC/15. 16- Recurso especial de ANTONIO e OUTROS conhecido e não-provido, com majoração de honorários; recurso especial de POLIANA e OUTROS parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido, a fim de majorar a verba honorária devida em virtude do desprovimento da apelação. (REsp n. 2.013.399/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023.)  Outra consequência prática de direito intertemporal é que as regras sucessórias são aquelas vigentes ao tempo da morte (abertura da sucessão). Daí se segue que, no caso de sucessões abertas após a vigência do CC/2002, inexiste direito hereditário a filhos adotivos no caso de adoção simples (as ocorridas na vigência do Código de Menores de 1979). É irrelevante que, antes do CC/2002, a adoção simples gerasse direitos hereditários em relação aos pais adotivos, pois inexiste direito adquirido a regime jurídico sucessório. Com o CC/2002, só se defere direito hereditário a filhos adotivos na hipótese de adoção plena. Logo, mortes ocorridas na vigência do CC/2002 atraem a aplicação das regras hereditárias então em vigor. Não se pode considerar que as antigas adoções simples tenham sido convertidas automaticamente em adoções plenas com as mudanças legislativas, sob pena de violação a ato jurídico perfeito. Veja estes julgados do STJ: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - HABILITAÇÃO EM INVENTÁRIO JUDICIAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DO AGRAVANTE. (...) 2. O regime jurídico que regula a legitimidade para suceder é aquele da data da abertura da sucessão. Devem ser aplicadas, portanto, no que couberem, as normas de direito de família vigentes ao tempo da abertura sucessão. Inteligência do art. 1787 do Código Civil de 2002. 2.1 O fato de a recorrida ter sido adotada deve ser interpretado à luz do regime vigente ao tempo abertura da sucessão, independentemente da adoção ter ocorrido sob a égide da legislação anterior, em 1972. Precedentes. 2.2 No caso concreto, ao tempo da abertura da sucessão sub judice (2006), o instituto da adoção estava submetido ao atual regime jurídico, que restringe a adoção à modalidade plena (adoção cria vínculo plenos, irrestritos do adotado com o adotante e seus familiares). Não seria possível, então, dar sobrevida à modalidade de adoção simples, própria do diploma civil revogado, para excluir os direitos sucessórios da recorrida. Súmula 83 do STJ. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp n. 1.150.025/BA, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14/2/2017, DJe de 22/2/2017.)  RECURSO ESPECIAL - PROCEDIMENTO DE INVENTÁRIO - SUCESSÃO LEGÍTIMA E TESTAMENTÁRIA - EXCLUSÃO DE NETAS BIOLÓGICAS - ADOÇÃO SIMPLES REALIZADA POR TERCEIRO SEM PARENTESCO COM A DE CUJUS - TRIBUNAL A QUO QUE MANTEVE A DECISÃO DE EXCLUSÃO ANTE A APLICAÇÃO DAS REGRAS ATUAIS QUANTO AO INSTITUTO DA ADOÇÃO - INSURGÊNCIA DAS EXCLUÍDAS. Hipótese: Discussão acerca da aplicação, à adoção realizada sob a vigência do Código Civil de 1916, do regime atual da adoção, que rompe completamente os vínculos com a família biológica, a inviabilizar a habilitação das adotadas como herdeiras legítimas da avó biológica. 1. Viabilidade de apreciação da violação ao artigo 6º da LINDB por via de Recurso Especial. Alegação de afronta ao direito adquirido por aplicação da lei ao caso concreto, e não por comando legal que determinasse a retroatividade da lei. Precedentes. 2. A capacidade para suceder e o direito à herança são aferidos conforme a lei do tempo da abertura da sucessão, nos termos do artigo 1.787 do Código Civil de 2002. Inexistência de direito adquirido à sucessão. 3. Inexistência de violação a ato jurídico perfeito. A adoção no caso concreto foi feita no intuito de acolher as recorrentes em nova família. Impossibilidade de realizar a adoção em outra modalidade que não a simples, uma vez que o adotante não tinha, em 1977, outra possibilidade legal, considerando as condições das adotadas. 3.1. Não há direito adquirido ao regime anterior de adoção. Conforme a doutrina e a jurisprudência pátrias, institutos ou conjunto de regras podem ser alterados pelo legislador, modificando os efeitos presentes e futuros de atos passados 3.2 Ocorrência da retroatividade mínima ou eficácia imediata das disposições constitucionais sobre Direito de Família. A Constituição determinou, por meio do artigo 227, § 6º, a igualdade entre filhos, mesmo que havidos por adoção. Eficácia imediata das normas constitucionais. 3.3 A aplicação do dispositivo constitucional impede que as recorrentes utilizem o regime anterior da adoção para figurarem como herdeiras da avó biológica. 4. Recurso especial DESPROVIDO. (REsp n. 1.116.751/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 7/11/2016.)  Há, porém, uma advertência a ser feita. Trata-se de casos de adoção ocorridas antes do Código de Menores de 1979, ou seja, antes de ter sido criada a figura da adoção plena e da adoção simples. Nesses casos, só havia um tipo de adoção, que chamamos de adoção standard do CC/1916, a qual era a única devida. Essa adoção standard do CC/1916 não afastava os direitos hereditários em relação aos parentes biológicos, conforme os já revogados arts. 376 e 378 do CC/19166. Aproximava-se ao que o Código de Menores de 1979 veio a batizar de adoção simples, mas não deve ser considerada igual. Isso, porque, antes do Código de Menores de 1979, não havia duas opções de Adoção (a simples e a plena); só existia a adoção standard do CC/1916. Por essa razão, parece-nos correta a tendência do STJ em entender que a adoção standard do CC/1916 (anterior ao Código de Menores de 1979), por ser a única opção disponível à época, deve ser tradada como adoção plena para fins sucessórios no caso de morte dos pais biológicos ocorridas após a entrada em vigor do ECA e do CC/2002. Deve-se, pois, considerar que, após essas novas leis, teria havido uma ruptura do vínculo jurídico com a família biológica. Daí se segue que, no caso de morte dos parentes biológicos, não haverá direito hereditário ao filho que veio a ser adotado antes do Código de Menores de 1979. Seu direito hereditário repousa apenas no caso de falecimentos de parentes adotivos. Veja:  PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. CIVIL. ADOÇÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 [ADOÇÃO OCORREU EM 1969, ANTES, PORTANTO DO CÓDIGO DE MENORES DE 1979]. FALECIMENTO DE ASCENDENTE BIOLÓGICO. DIREITO SUCESSÓRIO. LEI VIGENTE À ÉPOCA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. APLICAÇÃO. EXCLUSÃO LEGÍTIMA DOS ADOTADOS. ART. 227, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE OS FILHOS. INTERPRETAÇÃO CONFORME. 1. Afasta-se a alegada violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. A adoção constituída na vigência do Código Civil de 1916, consoante o disposto nos arts. 376 e 378, não extinguia o vínculo de parentesco natural, preservando, assim, o direito sucessório do adotado com relação aos parentes consanguíneos. 3. Não há direito adquirido à sucessão, que se estabelece por ocasião da morte, pois é nesse momento em que se dá a transferência do acervo hereditário aos titulares, motivo pelo qual é regulada pela lei vigente à data da abertura (art. 1.577 do Código Civil de 1916 e art. 1.787 do Código Civil de 2002). 4. In casu, quando do falecimento da avó biológica, vigia o art. 1.626 do Código Civil de 2002 (revogado pela lei 12.010/2009), segundo o qual a adoção provocava a dissolução do vínculo consanguíneo. Assim, com a adoção, ocorreu o completo desligamento do vínculo entre os adotados e a família biológica, revelando-se escorreita a decisão que os excluíra da sucessão porquanto, na data da abertura, já não eram mais considerados descendentes. 5. A interpretação do art. 227, § 6º, da Constituição Federal, que instituiu o princípio da igualdade entre os filhos, veda que, dentro da família adotante, seja concedido, com fundamento em dispositivo legal do Código Civil de 1916, benefício sucessório extra a determinados filhos que implique reconhecer o direito de participar da herança dos parentes adotivos e dos parentes consanguíneos. 6. Recurso especial desprovido. (REsp n. 1.477.498/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 23/6/2015, DJe de 30/6/2015.)  Direito civil e processual civil. Recurso especial. Família. Adoção de menor. [ADOÇÃO OCORREU EM 1969, ANTES, PORTANTO DO CÓDIGO DE MENORES DE 1959].  Lei vigente. Aplicabilidade. Sucessão. Ordem de vocação hereditária. Legitimidade dos irmãos. - Nas questões que versam acerca de direito sucessório, aplica-se a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão. - As adoções constituídas sob a égide dos arts. 376 e 378 do CC/16 não afastam o parentesco natural, resultante da consangüinidade, estabelecendo um novo vínculo de parentesco civil tão-somente entre adotante(s) e adotado. - Tem, portanto, legitimidade ativa para instaurar procedimento de arrolamento sumário de bens, o parente consangüíneo em 2º grau na linha colateral (irmão natural), notadamente quando, pela ordem de vocação hereditária, ausentes descendentes, ascendentes (naturais e civis), ou cônjuge do falecido. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 740.127/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/10/2005, DJ de 13/2/2006, p. 799.) __________ 1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  (...) § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 2 Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. § 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes. § 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária. 3 O Código de Menores de 1979 (Lei nº 6.697/1979) criou a adoção simples e a adoção plena: os seus arts. 27 a 37 tratavam das duas figuras. Veja:  Subseção V Da Adoção Simples Art. 27. A adoção simples de menor em situação irregular reger-se-á pela lei civil, observado o disposto neste Código. Art. 28. A adoção simples dependerá de autorização judicial, devendo o interessado indicar, no requerimento, os apelidos de família que usará o adotado, os quais, se deferido o pedido, constarão do alvará e da escritura, para averbação no registro de nascimento do menor. § 1º A adoção será precedida de estágio de convivência com o menor, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas a idade do adotando e outras peculiaridades do caso. § 2º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando não tiver mais de um ano de idade. Subseção VI Da Adoção Plena Art. 29. A adoção plena atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Art. 30. Caberá adoção plena de menor, de até sete anos de idade, que se encontre na situação irregular definida no inciso I, art. 2º desta lei, de natureza não eventual. Parágrafo único. A adoção plena caberá em favor de menor com mais de sete anos se, à época em que completou essa idade, já estivesse sob a guarda dos adotantes. Art. 31. A adoção plena será deferida após período mínimo de um ano de estágio de convivência do menor com os requerentes, computando-se, para esse efeito, qualquer período de tempo, desde que a guarda se tenha iniciado antes de o menor completar sete anos e comprovada a conveniência da medida. Art. 32. Somente poderão requerer adoção plena casais cujo matrimônio tenha mais de cinco anos e dos quais pelo menos um dos cônjuges tenha mais de trinta anos. Parágrafo único. Provadas a esterilidade de um dos cônjuges e a estabilidade conjugal, será dispensado o prazo. Art. 33. Autorizar-se-á a adoção plena ao viúvo ou à viúva, provado que o menor está integrado em seu lar, onde tenha iniciado estágio de convivência de três anos ainda em vida do outro cônjuge. Art. 34. Aos cônjuges separados judicialmente, havendo começado o estágio de convivência de três anos na constância da sociedade conjugal, é lícito requererem adoção plena, se acordarem sobre a guarda do menor após a separação judicial. Art. 35. A sentença concessiva da adoção plena terá efeito constitutivo e será inscrita Registro Civil mediante mandado, do qual não se fornecerá certidão. § 1º A inscrição consignará o nome dos pais adotivos como pais, bem como o nome de seus ascendentes. § 2º Os vínculos de filiação e parentesco anteriores cessam com a inscrição. § 3º O registro original do menor será cancelado por mandado, o qual será arquivado. § 4º Nas certidões do registro nenhuma observação poderá constar sobre a origem do ato. § 5º A critério da autoridade judiciária, poderá ser fornecida certidão para salvaguarda de direitos. Art. 36. A sentença conferirá ao menor o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar a modificação do prenome. Art. 37. A adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres. 4 O instituto da adoção do CC/1916 foi, ao longo da história, sendo flexibilizado, pois havia nascido com muito formalismo. Nasceu como uma adoção simples com muitas restrições. Houve até a criação da figura da "legitimação adotiva" pela lei 4.655/1965 nessa marcha de flexibilização. Mas foi só com o Código de Menores de 1979 que se desenhou a adoção plena, que substituiu a legitimação adotiva e que se contrapunha à adoção simples. A adoção simples era a regida pela lei civil e aplica-se a "menor em situação irregular" (art. 27 do revogado Código de Menores de 1979). Já. adoção plena era a que desligava o adotado do vínculo com seus parentes biológicos (art. 29 do revogado Código de Menores de 1979). Sobre o tema, veja este histórico de Hugo Nigro Mazzilli:  A adoção, por qualquer de suas atuais formas, é ficção jurídica que estabelece entre adotante e adotado uma relação de paternidade e filiação. Com as excessivas exigências originariamente previstas no Código Civil de 1916, estava fadada a ser instituto sem a penetração esperada (somente o maior de cinquenta anos sem descendentes legítimos ou legitimados, poderia adotar, e desde que fosse pelo menos dezoito anos mais velho que o adotado; cf. arts. 368 e s.). Mesmo com as modificações trazidas pela lei 3.133/57, ainda se ficou a meio caminho para uma real simplificação (a idade do adotante foi reduzida para trinta anos; a diferença de idades foi atenuada para dezesseis anos; permitiu-se a adoção mesmo se o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, mas sem envolver sucessão hereditária; estipulou-se que ninguém poderia adotar, sendo casado, senão decorridos cinco anos do casamento). Com a lei 4.655/65, pretendeu-se dar um passo maior, criando-se urna forma de adoção mais ampla, então chamada de "legitimação adotiva", pela qual o adotado ficava quase com os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorresse com filho legítimo superveniente à adoção. Foi ainda solução insatisfatória, porque muito formalista e de acanhada utilização. Foi com a lei 6.697/79, que instituiu o Código de Menores, que se trouxe maior progresso na matéria: a) afora a adoção do Código Civil, passou-se a admitir uma forma de adoção simples, autorizada pelo juiz e aplicável aos menores em situação irregular (arts. 27 e 28); b) substituiu-se com vantagem a legitimação adotiva pela adoção plena, com diversas alterações no instituto (arts. 29 a 37). (MAZZILLI, Hugo Nigro. Notas sobre a adoção in Revista Justitia. Ano 52. Vol. 149. Jan./Mar./1990. p. 67). 5 Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela lei 3.238, de 1957) § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) 6 Art. 376. O parentesco resultante da adoção (art. 336) limita-se ao adotante e ao adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais, á cujo respeito se observará o disposto no art. 183, ns. III e V. (...) Art. 378. Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo.
1. Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as ideias centrais deste artigo: 1. Discutimos, neste artigo, se condenação criminal por crime de gênero implica automaticamente a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela bem como a perda de cargo público, à luz do art. 92, § 2º, III, do CP. Enfrentaremos o tema sob três diretrizes interpretativas: (a) tolerância zero com violência de gênero; (b) evitar o efeito reverso da repressão jurídica; e (c) interpretação restritiva para normas sancionadoras. 2. A perda do poder familiar ocorrerá automaticamente com a sentença penal condenatória apenas neste caso: condenações penais pelo cometimento doloso de um dos crimes gravíssimos previstos no parágrafo único do art. 1.638 do CC contra o outro genitor ou contra o filho menor de idade. Nos casos de tutela ou curatela, deve-se aplicar, por analogia, o parágrafo único do art. 1.638 do CC: a extinção automática da tutela ou da curatela só ocorrerá no caso de um dos crimes gravíssimos supracitados terem sido praticados contra a pessoa incapaz ou contra um dos seus genitores. Em qualquer uma dessas hipóteses, é de se admitir que, de modo extremamente excepcional, com olhos no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o juízo criminal ou, em futura ação, o juízo cível afaste total ou parcialmente o referido efeito extrapenal (capítulo 3.3.). 3. Quando houver uma condenação por crime de gênero contra uma mulher, o condenado automaticamente fica impedido de ingressar em cargo ou função públicos ou eletivos (art. 92, § 2º, II III, do CP). Porém, o juiz poderá, a depender do caso concreto, afastar esse efeito automático, desde que o caso concreto assim o justifique com base no princípio da proporcionalidade ou em outros princípios do ordenamento. A perda do cargo ou função públicos ou eletivos não é automática com a condenação criminal (capítulo 3.3.). 2. Introdução Este artigo1 discute se a condenação criminal por qualquer crime de gênero (especificamente crimes em razão da condição do sexo feminino) implica inexoravelmente a perda, pelo criminoso, do poder familiar, da tutela ou da curatela bem como a perda do vínculo com o Poder Público. O debate gira em torno da correta interpretação de recente alteração legislativa promovida no CP - Código Penal pelo Pacote Antifeminicídio (lei 14.994/24), norma sobre a qual Rogério Sanches Cunha, Thimotie Aragon Heemann e Valéria Diez Scarance Fernandes escreveram detalhado artigo2. Referimo-nos ao art. 92, § 2º, III, do CP3, que prevê a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela e a vedação à assunção de cargo ou função públicos ou eletivos, como efeitos automáticos da condenação por crime contra a mulher em razão da condição do sexo feminino. Entende-se como crime contra a mulher em razão da condição do sexo feminino aquele praticado no que chamamos de ambiente de intimidade (violência doméstica ou familiar, a qual é bem definida no art. 5º da lei Maria da Penha - lei 11.340/06) ou aquele praticado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. É a definição do § 1º do art. 121-A do Código Penal4. A reflexão deste artigo é extremamente relevante para a prática. Citamos alguns exemplos hipotéticos de casos cotidianos que podem vir a levantar o debate. Um pai que xinga uma desconhecida com quem teve um entrevero no trânsito comete crime de injúria, sujeito a detenção de um a seis meses (art. 140, caput, Código Penal). Imagine que o juiz venha a entender que o xingamento ocorreu em contexto de "menosprezo ou discriminação à condição de mulher" (nas palavras do inciso II do § 1º do art. 121-A do CP), como na hipótese de uma estúpida associação do gênero à falta de destreza na direção de veículos. Suponha, ainda, que esse pai seja servidor público e tenha um filho de três anos de idade. Daí se indaga: sobrevindo uma sentença penal condenatória, esse pai perderá automaticamente o poder familiar sobre o filho, de modo que essa criança deverá ser colocada em família substituta (quiçá até em uma instituição de acolhimento institucional para adoção caso a criança não tenha nenhum outro familiar)? Indaga-se também: esse pai agressor também perderá automaticamente o cargo público, de modo a perder sua fonte de renda, além de ficar proibido a assumir qualquer função pública até o cumprimento da pena? Uma leitura indevida do art. 62, § 2º, III, do CP - a qual repelimos neste artigo - daria uma resposta positiva. Sob essa ótica equivocada, agressores de mulheres por razão de gênero não poderiam exercer o poder familiar nem qualquer função pública. Mas será essa a melhor interpretação da lei? Deve-se cortar o vínculo de uma criança com seu pai e, em decorrência disso, poder vir a sujeitá-la a adoção em qualquer hipótese de o pai ter xingado uma desconhecida por briga de trânsito em contexto de menosprezo ao gênero feminino? Trago outro caso hipotético (mas comum na prática). Imagine um alto servidor público que pague pensão alimentícia a seu filho, de anterior casamento, de R$ 6.000,00 (20% do seu salário) e pague uma pensão alimentícia à mãe (que lhe é ex-esposa) de R$ 2.000,00. Suponha que, em uma conversa acalorada com a ex-esposa, esse pai ameace agredi-la. Isso configura um crime de ameaça em contexto de violência doméstica, a atrair uma pena de 2 meses a 1 ano e 2 meses e uma ação penal pública sem necessidade de representação da mulher (art. 147, § 1° e 2°, CP). Daí indaga-se: caso sobrevenha uma sentença penal condenatória, esse pai, além de perder o poder familiar, automaticamente perderia o cargo público e, portanto, perderia a fonte de renda que respaldava o pagamento da pensão alimentícia? Uma leitura indevida do art. 62, § 2º, III, do CP daria uma resposta positiva. Esse pai perderia o emprego automaticamente, além de perder o poder familiar. Em consequência, ele não terá mais rendimento para pagar as pensões alimentícias ao filho e à ex-esposa, o que submeterá essas duas pessoas mais vulneráveis aos transtornos da brutal redução de renda. 3. Interpretação adequada para a incapacidade para poder familiar, tutela e curatela 3.1. Diretrizes interpretativas É lugar comum que o ordenamento tem de ser enérgico e implacável contra os autores de violência de gênero, ainda mais no ambiente doméstico e familiar. A tolerância é zero. Todavia, a reação do Direito tem de ser feita com racionalidade e proporcionalidade, até porque o ordenamento jurídico conta com uma margem de erro (que estimamos ser pequena) na apuração dos fatos. Há casos de inocentes que são condenados por não terem conseguido produzir provas perante o juiz. Afinal de contas, ninguém anda com um gravador e uma câmera 24 horas por dia para fazer provas. Trata-se de um efeito colateral inerente ao sistema jurídico-processual, efeito colateral que infelizmente existe, embora tenha de ser sempre combatido mediante aprimoramento das regras processuais. Nesse sentido, a repreensão jurídica tem de ser enérgica, mas razoável. E mais: as sanções jurídicas têm de evitar o agravamento da situação da vítima, que, por vezes, pode vir a ser prejudicada indiretamente com alguma punição exagerada contra o infrator. De fato, em uma sociedade ainda manchada por estruturas sociológicas patriarcalistas, há ainda ex-esposas e filhos dependentes economicamente do homem autor da violência doméstica, sobrevivendo com pensões alimentícias.   Se esse agressor perder a fonte de renda, a pensão alimentícia teria de ser reduzida abruptamente, em total prejuízo indireto às vítimas que dependiam dela. Em uma palavra, deve-se evitar o efeito reverso da repressão jurídica. Por fim, há de atentar para o fato de que, por regra básica de hermenêutica, normas restritivas de direito devem ser objeto de interpretação restritiva. Afinal de contas, se o legislador se vale de uma redação legislativa dúbia ou escorregadia, não há como, pela via interpretativa, alargar semanticamente a norma para endurecer uma punição. Portanto, indicamos as seguintes diretrizes interpretativas a serem adotadas na interpretação do art. 92, § 2º, III, do CP: (1) tolerância zero com violência de gênero; (2) evitar o efeito reverso da repressão jurídica; e (3) interpretação restritiva para normas sancionadoras. 2.2. Adequada interpretação do art. 92, § 2º, III, do CP 2.1. Incapacidade para o poder familiar, a tutela ou a curatela O art. 92, § 2º, III, do CP prevê que, com a condenação por crime de gênero contra a mulher, o criminoso automaticamente sofre este efeito extrapenal: "a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela", nas palavras do inciso II do caput do art. 92 do CP. Em nenhum momento, o legislador referiu-se à "perda", à "destituição" ou à "extinção" do poder familiar, da tutela ou da curatela. Ele apenas aludiu a uma incapacidade para o exercício desses institutos civis de amparo à pessoa vulnerável. Por uma interpretação literal, isso, por si só, já demonstra que a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela não está alcançada pelo dispositivo. O legislador, se quisesse a extinção do poder familiar, teria utilizado os verbetes usualmente empregados nas leis civis, como extinção, destituição ou perda (exemplos: arts. 23 e 24 ECA5). Uma interpretação sistemática caminha no mesmo sentido. De um lado, o § 2º do art. 23 do ECA é textual em afirmar o seguinte: Art. 23. (...) § 2º A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente. (Redação dada pela lei 13.715, de 2018) Especificando essa regra, o parágrafo único do art. 1.638 do CC estatui que a perda do poder familiar poderá ocorrer por ato judicial nos casos de determinados crimes gravíssimos cometidos contra o outro genitor ou contra o filho: Art. 1.638, Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)I - praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)II - praticar contra filho, filha ou outro descendente: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. (Incluído pela lei 13.715, de 2018) Veja que esses esses dispositivos foram incluídos em 2018, pela lei 13.715. Há, portanto, uma ligação umbilical entre eles. De outro lado, os arts. 155 e seguintes do ECA são expressos em disciplinar um procedimento especial para a perda do poder familiar, com prestígio a uma investigação aprofundada daquilo que condiz com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Ora, se o Pacote Antifeminicídio quisesse que qualquer condenação no processo penal por crime de gênero ensejasse automaticamente a perda do poder familiar, ele teria alterado os supracitados artigos do Código Civil e do ECA. Não foi, porém, essa a finalidade da lei. No caso da destituição da tutela ou da curatela, deve-se aplicar, no que couber, o rito especial previsto nos arts. 747 a 763 do CPC - Código de Processo Civil, no que é chancelado pelo art. 164 do ECA. Apesar de os referidos dispositivos aludirem à designação de tutor ou curador, eles devem alcançar também a destituição desse munus. Isso, porque esses procedimentos são estruturados de modo a viabilizar uma investigação probatória voltada a identificar o que é melhor para a pessoa vulnerável. Ora, seria incoerente com o sistema jurídico subverter essa lógica especializada de procedimentos de destituição de poder familiar, de tutela e de curatela, que prestigia uma análise casuística e pontual com olhos no princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. Essa subversão aconteceria se o juízo criminal, por uma lógica cartesiana e linear, em um procedimento de outros objetivos (que é o processo penal), pudesse extinguir o poder familiar, a cutela ou a tutela como efeito automático de uma condenação por crime de gênero contra a mulher. Uma interpretação teleológica deságua no mesmo sentido. A lei, em momento algum, objetiva automaticamente "cortar" o vínculo protetivo de pessoas vulneráveis (menores de idade e outras pessoas incapazes) com qualquer condenação criminal de gênero. E há dois motivos para tanto. Em primeiro lugar, o processo penal não é o espaço adequado para profundas investigações probatórias de direito civis das pessoas vulneráveis, com estudos psicossociais por equipes multidisciplinares especializadas no cuidado de menores de idade e de outras pessoas incapazes. A legislação civil dedica procedimentos específicos para tanto, a tramitar em varas especializadas no tema, especialmente nos casos de crianças e adolescentes, conforme já expusemos acima. Em segundo lugar, uma leitura linear, computadorizada e fria da lei com vistas a "cortar" o vínculo protetivo da pessoa incapaz contraria totalmente o princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e poderia gerar um efeito reverso. Em uma situação mais extrema, uma criança poderia ser colocada para adoção pelo fato de o seu pai ter perdido o poder familiar em razão de um crime de injúria praticado contra uma colega de trabalho, o que seria um despropósito. Diante disso, indaga-se: como deve ser interpretado o art. 92, § 2º, III, do CP? Entendemos que o referido dispositivo deve ser interpretado em conjunto com as hipóteses legais de perda do poder familiar, especialmente os supracitados dispositivos civis (art. 23, § 2º, do ECA e art. 1.638, parágrafo único, CC). Isso significa que a perda do poder familiar ocorrerá automaticamente com a sentença penal condenatória apenas neste caso: condenações penal pelo cometimento doloso de um dos crimes gravíssimos previstos no parágrafo único do art. 1.638 do CC (homicídio, feminicídio, lesão corporal de natureza grave, crime contra a dignidade sexual) contra o outro genitor ou contra o filho menor de idade. Outros crimes de gênero (como uma injúria contra uma desconhecida em menosprezo à condição de mulher) não acarretam automática perda do poder familiar. Nos casos de tutela ou curatela, deve-se aplicar, por analogia, o parágrafo único do art. 1.638 do CC: a extinção automática da tutela ou da curatela só ocorrerá no caso de um dos crimes gravíssimos supracitados terem sido praticados contra a pessoa incapaz ou contra um dos seus genitores. Em qualquer uma dessas hipóteses, é de se admitir que, de modo extremamente excepcional, com olhos no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o juízo criminal ou, em futura ação, o juízo cível (que é mais especializado no tema) afaste total ou parcialmente o referido efeito extrapenal. Pense, por exemplo, na hipótese de uma criança que seja titular de um patrimônio extremamente complexo, que exige altíssima expertise na gestão e que esteja sob a tutela de uma pessoa extremamente técnica nessas questões e que tenha profundo afeto com a criança. Se, eventualmente, o tutor - em embriaguez - vem a atropelar mortalmente o pai biológico dessa criança - perpetrando homicídio doloso -, o juiz poderá eventualmente manter a tutela, ainda que apenas para fins de gestão patrimonial da criança, em atenção ao princípio do melhor interesse da criança. Em matéria de proteção das pessoas incapazes, não se pode adotar raciocínios cartesianos, frios e literais. A casuística é fundamental, sempre com atenção ao princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. 3.2. Proibição de assunção de cargo ou funções públicas ou eletivos A "perda" de cargo ou função públicos ou eletivos não é automática no caso de condenações criminais. Depende de determinação expressa e motivada na sentença penal condenatória. É o art. 92, I e § 1º, do CP. Hipótese diferente é a proibição de assunção de cargo ou função pública ou eletivas. Quando houver uma condenação por crime de gênero contra uma mulher, o condenado automaticamente fica impedido de ingressar em cargo ou função públicos ou eletivos. É o art. 92, § 2º, II III, do CP, o qual é textual em vedar apenas a assunção de cargo ou função públicas ou mandatos eletivos entre o trânsito em julgado e o efetivo cumprimento da pena infligida por crime de gênero. Em nenhum momento, esse dispositivo reporta-se à "perda" do cargo ou função públicos ou eletivos. Daí se segue que, se um servidor público comete um crime de gênero contra uma mulher, ele seguirá com o seu cargo público, salvo se o juiz motivadamente declarar a perda. Se, porém, um desempregado comete um crime de gênero contra uma mulher, ele não poderá assumir nenhum cargo ou função públicas enquanto não for cumprida a pena. Entendemos, porém, o juiz poderá, a depender do caso concreto, afastar esse efeito automático, desde que o caso concreto assim o justifique com base no princípio da proporcionalidade ou em outros princípios do ordenamento. Pense, por exemplo, que o referido desempregado tem um filho com deficiência intelectual que demanda investimentos financeiros elevados com saúde. Suponha que esse desempregado tenha passado em um concurso público. Antes, porém, da nomeação, ele vem a ser condenado, por ter, sob embriaguez, em uma festa, xingado uma mulher com menosprezo ao gênero dela. Suponha que o condenado, quando retornou à sobriedade, foi enfático em tentar se desculpar pela injúria perpetrada. Nesse caso, não nos parece razoável impedir a assunção, pelo desempregado, de um cargo público mediante aprovação em concurso público. Caberia ao juiz afastar esse efeito extrapenal da sentença penal condenatória. 1 Registramos nossos agradecimentos aos amigos e professores Rogério Sanches e Salomão Resedá pelas conversas que me levaram a amadurecer o tema tratado neste artigo. 2 CUNHA, Rogério Sanches; HEEMANN, Thimotie Aragon; FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Novas medidas legislativas no enfrentamento à violência contra a mulher: análise da lei 14.994/24. Disponível aqui. Publicado em 10/10/24. 3 Código PenalArt. 92 - São também efeitos da condenação: I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela lei 9.268, de 1/4/96)a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (Incluído pela lei 9.268, de 1/4/96)b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluído pela lei 9.268, de 1/4/96)II - a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente, tutelado ou curatelado, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código; (Redação dada pela lei 14.994, de 2024)III - a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)III - a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)§ 1º Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença pelo juiz, mas independem de pedido expresso da acusação, observado o disposto no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela lei 14.994, de 2024)§ 2º Ao condenado por crime praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código serão: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)I - aplicados os efeitos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)II - vedadas a sua nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)III - automáticos os efeitos dos incisos I e II do caput e do inciso II do § 2º deste artigo. (Incluído pela lei 14.994, de 2024) 4 Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)Pena - reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos. (Incluído pela lei 14.994, de 2024)§ 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)I - violência doméstica e familiar; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. (Incluído pela lei 14.994, de 2024) 5 Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. (Expressão substituída pela lei 12.010, de 2009) VigênciaArt. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. (Expressão substituída pela lei 12.010, de 2009) Vigência
Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo: Em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual). Logo, em regra, a teoria da causalidade virtual não é admitida no Direito brasileiro; Há, porém, exceções: Casos de disposição legal expressa (exs.: arts. 399, 862 e 1.218, CC); Seja como for, entendemos que a existência de causa virtual eventualmente pode influir no arbitramento da indenização a ser paga pelo autor da causa real, seja porque este só deve responder pelo dano efetivamente provocado, seja porque, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC; A perda de uma chance só é indenizável quando decorrer de uma causa real (o que abrange a chance séria, real e razoável), e não de uma causa virtual (que abrange o dano meramente hipotético). 1. Introdução Quem atira em uma pessoa que, minutos depois, é atropelada mortalmente responde ou não civilmente pela morte? Ou só responde pela lesão corporal, já que a morte decorreu do atropelamento. A resposta a essa questão e a outras similares passa por entender a teoria da causalidade virtual, também chamada de teoria da causalidade hipotética, a qual discute a relevância da causa virtual (ou causa hipotética). 2. Definição Causa virtual (ou causa hipotética) é a circunstância que potencialmente produziria o resultado que, de fato, decorreu de uma causa real posterior. Ex.: Enveneno uma pessoa que, perto de morrer de envenenamento, recebe um tiro fatal. A causa real da morte foi o tiro. Mas, sem ele, a morte certamente ocorreria pelo envenenamento. A causa real (= causa operante) interrompeu os efeitos da causa virtual: Há uma situação de causalidade interrompida. Outro exemplo: "Vamos supor que um homem esfaqueado em órgão vital seja morto por estrangulamento"1. 3. Relevância (ou não) da causa virtual para fins de responsabilidade civil 3.1. Regra geral: Irrelevância No Direito Penal, a regra é a irrelevância da causa virtual para fins de imputação penal, conforme art. 13, § 1º, do CP ("§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou."). Nos exemplos acima, quem envenenou ou esfaqueou não responde pelo crime de homicídio, mas só pelo de lesão corporal. O crime de homicídio é de quem atirou ou estrangulou. No Direito Civil, a tendência doutrinária é similar, especialmente para fins de responsabilidade civil. Salvo disposição legal em contrário, o autor da causa virtual só responde até a ocorrência da causa real. O autor da causa real responde pelo resultado, dada a irrelevância da causa hipotética para tal efeito. Nos exemplos acima, quem praticou o primeiro ato (envenenar ou esfaquear) só responde pela lesão corporal, ao passo que quem praticou o ato final (atirar ou estrangular) responde pela morte. A lógica é a de que a responsabilidade civil só recai, em regra, sobre quem efetivamente causou o dano. Afinal de contas, ninguém pode responder pelo que efetivamente não causou. Essa é a regra geral. Entendemos que, na quantificação da indenização, o juiz deverá levar em conta o dano efetivamente causado. Assim, nos exemplos citados - que envolve o assassinato de uma pessoa moribunda -, o valor da indenização pela morte por dano moral e o valor indenizatório pela lesão corporal antecedente poderão ser arbitrados em importe inferior ao que seria devido no caso de alguém que mata uma pessoa que não estava perto da morte. Além disso, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC2. Esse dispositivo estabelece que o juiz pode reduzir a indenização quando a extensão do dano for manifestamente desproporcional em relação ao grau de culpa. E lembramos que referido dispositivo também se aplica a dano, moral, conforme destacado por Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 196). A solução jurídica é similar se a causa virtual for concomitante ou posterior à causa real: O autor da causa real responde pelo resultado, ao passo que o autor da causa virtual não responde por nada (por nada ter realizado). Há casos em que a causa virtual é posterior à causa real. Ex.1: Mato um cavalo a tiros (causa real), mas, minutos depois, surge um incêndio que ceifa a vida e todos os cavalos do local. O cavalo, se não fosse o tiro, muito provavelmente haveria de morrer de qualquer jeito por conta do incêndio (causa virtual). Ex.2: Há casos em que a causa virtual é concomitante à causa real. Ex.: No exemplo acima, o tiro (causal real) e o incêndio (causa virtual) ocorrem no mesmo momento, mas se consegue comprovar que a vítima já havia falecido com o incêndio quando o tiro a atingiu. Nesses casos, o incêndio (causa virtual) não afastará a responsabilidade do autor do tiro (causa real). Mas o valor indenizatório pode vir a ser inferior ao que seria devido se inexistisse a causa virtual, tudo conforme já expusemos. Assim, em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual), embora possa influir no valor da indenização. Não se confunda com casos de causalidade concorrente (duas ou mais causas que concomitantemente geram o resultado). Aí não há causa virtual, mas só causas reais. A hipótese aí será de responsabilidade solidária dos agentes por se tratar de uma coautoria (art. 942, parágrafo único, CC). Ex.: Vítima de tiro vem a falecer não apenas por causa do tiro, mas também pela conduta dolosa ou culposa do motorista da ambulância, que retardou a chegada da vítima ao hospital por ter preferido fazer uma parada para fazer um lanche no Mc Donald's. 3.2. Exceções Embora a regra seja a irrelevância da causa virtual para fins de responsabilização civil, há exceções. A primeira exceção é no caso de lei expressa nesse sentido. É o que se dá nos casos dos arts. 399, 862 e 1.218 do CC, conforme lembram Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 508). Exemplo: Art. 1.218 do CC. O possuidor de má-fé responde pelo perecimento fortuito da coisa, salvo se provar sua inevitabilidade mesmo se inexistisse a má-fé da posse. Pense em um carro que foi roubado (perecimento fortuito da coisa) e que estava sob a posse de um locatário que se recusara a devolver o bem no prazo contratual. O locatário estava de posse de má-fé. O carro provavelmente não teria sido roubado se tivesse sido devolvido no prazo contratual (a causa virtual). A causa virtual aí é levada em conta na responsabilização. A ideia é a de que, apesar de o resultado (perecimento) ter ocorrido por caso fortuito (causa real), ele poderia ter sido evitado se a coisa estivesse com o legítimo titular (causa virtual). As hipóteses dos arts. 399 e 862 do CC são similares: O devedor em mora ou o gestor de negócios que age contra a vontade manifesta ou presumível do interessado respondem por danos fortuitos, salvo se provar a sua inevitabilidade mesmo se não tivesse havido a irregularidade. 3.3. Situação da perda de uma chance A perda de uma chance é dano indenizável apenas se a chance for séria, real e razoável. Chances meramente hipotéticas não são indenizáveis. Nas palavras de Pablo Stolze  Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, na perda de uma chance, "como se trata da frustração de uma probabilidade concreta de ganho - mas sem que haja a certeza no acerto -, o valor indenizatório deve ser mitigado, ou seja, fixado por proporcionalidade". (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. São Paulo: SaraivaJur, 2023, pp. 46-47). Por isso, não há falar em causa virtual ou hipotética no caso de perda de uma chance indenizável, mas sim de causa real. Ex.: Advogado perde prazo do recurso, o que impede que a parte tenha a chance de vencer o feito diante da existência de jurisprudência pacífica a seu favor. O dano sofrido pela parte é a chance de vitória no feito, e a sua causa é real: A não interposição de recurso consentâneo com a jurisprudência pacífica do tribunal. Se a jurisprudência do tribunal fosse contrária à tese do possível recurso, não haveria aí chance séria, real e razoável de êxito. Logo, o dano sofrido pela parte (a perda da chance de vitória no feito) decorrerá de uma causa hipotética ou virtual, razão por que não é indenizável. Afinal, a teoria da causalidade virtual não é admitida na responsabilidade civil, salvo lei expressa em contrário. 1 FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 506 2 É importante lembrar que concausas preexistentes não afastam a responsabilidade civil, embora possam influir na indenização. É a teoria da responsabilidade pelo resultado mais grave. Quem corta levemente uma pessoa hemofílica responderá pela morte desta. São irrelevantes a concausa preexistente (a hemofilia) e o fato de um leve corte não ser apto a matar uma pessoa não hemofílica. Poderá, porém, o juiz arbitrar um valor menor de indenização. O próprio art. 944, parágrafo único, do CC poderia ser invocado nesse sentido, por permitir reduzir a indenização quando houver manifesta desproporção entre a culpa e o dano (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 509).
Depois de tratar de que se pode chamar de uma propedêutica do Direito Civil Digital1 e dos direitos das crianças e adolescentes relacionados a tal temática2, no propomos, agora, a discorrer rapidamente sobre tema da maior importância, ligado à supressão e ocultação de dados pessoais, em especial nos ambientes digitais. Atualmente, os sistemas que utilizam tecnologias digitais dependem de dados em formato eletrônico, os quais são facilmente coletados, ocupam espaço mínimo e podem ser armazenados com custos cada vez mais reduzidos. Além disso, esses dados permitem replicação e transporte quase instantâneo. Esse cenário transforma a digitalização em um processo que não apenas facilita a coleta e o tratamento de informações, mas também possibilita sua utilização em escala crescente. Como resultado, grandes volumes de dados são coletados, processados e armazenados com uma velocidade antes inimaginável, popularizando expressões como mineração de dados e Big Data, entre outras. Enquanto no passado apenas fatos considerados relevantes eram registrados - primeiro em pedra, depois em madeira e, posteriormente, em papel -, os sistemas atuais capturam praticamente todos os eventos, por mais triviais ou aparentemente insignificantes que possam parecer. Cliques, chamadas, pagamentos, postagens, curtidas, consultas, compras, tempo de visualização e interações diversas são continuamente registrados. Esses dados, por sua vez, não apenas permanecem armazenados, mas tornam-se potencialmente analisáveis, interpretáveis e utilizáveis por sistemas de inteligência artificial e técnicas de mineração de dados cada vez mais avançadas, ampliando significativamente sua relevância e impacto na sociedade contemporânea. Assim, a era digital não apenas registra fatos, mas transforma o próprio conceito de registro, memória e informação. A consequência direta dessa transformação é a criação de um "memorial digital" permanente, onde praticamente nenhum detalhe se perde. Essa nova realidade traz imensos desafios jurídicos, éticos e sociais, especialmente no que concerne à proteção de dados pessoais. E um desses imensos desafios relaciona-se ao debate sobre a possibilidade de ocultar ou até mesmo excluir dados pessoais, trazendo à tona a complexa relação entre memória, identidade, liberdade e transformação.   Nesse ponto é bastante relevante o debate que vem sendo travado em relação ao denominado direito ao esquecimento, visto por parte da doutrina como verdadeiro direito fundamental implícito.3 Na sua essência, visa à definição de situações em que seria exigível, pelo titular, o apagamento de dados sobre sua pessoa que, de alguma forma, possam dificultar ou mesmo impedir o livre desenvolvimento da personalidade. É certo que está diretamente ligado ao direito à identidade, no sentido de sua autoconstrução, pois a divulgação de fatos passados sobre determinada pessoa pode negar-lhe a possibilidade de "[...] evoluir ao acorrentá-lo ao seu próprio passado".4 Assim, ligado ao direito à identidade, o direito ao esquecimento deve ser tido como o direito de ser diferente de si mesmo (tradução nossa),5 no sentido de ser diferente de uma versão anterior e, portanto, menos evoluída, da pessoa (na versão atual). Segundo Sartre, a identidade de uma pessoa não é fixa; ela é moldada continuamente através de escolhas ao longo da vida. Contudo, Sartre também fala sobre o conceito do "olhar do outro", onde a identidade de uma pessoa é fixada e limitada pela percepção dos outros.6 Na era digital, esse "olhar" pode ser entendido como a permanência de informações na internet que, uma vez publicadas, podem ser vistas e interpretadas por outros de maneira que cristalize a identidade de uma pessoa de forma negativa ou restritiva, impedindo a contínua construção da identidade e, consequentemente, de se tornar melhor, mais evoluído do que a versão anterior. Inúmeros outros filósofos poderiam ser citados. Contudo, pela brevidade necessária ao presente ensaio, cabe-nos ainda citar Nietzsche, que defende a ideia de "superar-se a si mesmo", que implica a possibilidade (ou até mesmo necessidade) de abandonar antigos valores, erros e identidades.7 A superação em Nietzsche representa muito mais que um método de desenvolvimento pessoal. Configura-se como uma ontologia da transformação, onde o ser humano é compreendido não como entidade estática, mas como processo permanente de criação e recriação. Obviamente, não se trata de um processo simples, ante o risco de desestruturação, a necessidade de resiliência e o potencial de angústia que toda travessia acarreta. Contudo, esse processo pode ser dificultado (ou até mesmo impedido) pelo reiterado resgate de fatos passados que aprisionam a identidade e a pessoa àquilo que ela deixou de ser (ou que almeja deixar).         Certamente, um caso hipotético, embora verossímil, pode elucidar de forma mais didática a complexidade dos direitos discutidos.8 Imagine-se um jovem bacharel em Direito, recém-diplomado, que se vê subitamente confrontado com uma oportunidade midiática logo após a cerimônia de colação de grau. Durante uma entrevista com um jornalista local, o recém-formado é interpelado sobre o instituto jurídico da "lesão contratual". No auge da euforia acadêmica, o entrevistado evidencia sinais de vulnerabilidade. Diante do questionamento técnico, sua resposta revela-se não apenas imprecisa, mas tecnicamente comprometida, amalgamando conceitos de direito civil de forma manifestamente equivocada. O repórter, percebendo o evidente constrangimento, insiste na pergunta, amplificando o desconforto do jovem jurista. A entrevista, capturada por um cinegrafista amador, rapidamente transpõe os limites locais, disseminando-se vertiginosamente nas redes sociais. Em menos de 24 horas, o vídeo ultrapassa 500 mil visualizações, sendo objeto de escárnio e produções satíricas que ridicularizam o momento de fragilidade intelectual. Anos de dedicação e aprimoramento profissional culminam em sua aprovação em concurso público, assumindo o cargo de magistrado em comarca do interior. Entretanto, o registro digital de seu momento de despreparo ressurge, circulando em grupos de WhatsApp e comunidades jurídicas on-line. Advogados, valendo-se da oportunidade, questionam seu mérito intelectual, utilizando o vídeo como suposto emblema de incompetência. Em audiências, alguns profissionais chegam a fazer provocações veladas sobre lesão contratual, unicamente com o propósito de ironizar o magistrado. A situação impacta profundamente sua trajetória. Cada processo relacionado ao tema evoca memórias do incidente, desencadeando um ciclo de arrependimento e sofrimento psicológico que transcende a esfera profissional. Ora, tal registro digital de um momento de fragilidade acadêmica, aparentemente efêmero e destituído de relevância intrínseca, revela-se um instrumento potencialmente devastador de desconstrução identitária. A exposição perpétua de uma fração momentânea da trajetória individual compromete fundamentalmente os princípios da autodeterminação informativa, na medida em que subtrai do sujeito a capacidade de gestão de sua própria narrativa pessoal. Tal captura tecnológica do instante, cristalizada e reproduzível indefinidamente, opera como mecanismo de violação da dignidade humana, transformando um episódio circunstancial em elemento redutor e estigmatizante da complexa identidade individual, que transcende exponencialmente qualquer registro fragmentário e descontextualizado. A permanência dessa informação nos ambientes digitais representa, portanto, uma modalidade contemporânea de aprisionamento existencial, onde a pessoa se vê refém de um momento específico, destituído de sua evolução, transformação e capacidade de ressignificação pessoal e profissional. Tudo isso nos leva a concluir, de maneira inafastável, que o direito à informação pública deve ser ponderado com outros direitos da personalidade, a fim de que situações como a presente, mas também inúmeras outras em que a informação pública não é (ou mesmo nunca foi) relevante, além, obviamente, de situações em que os dados tratados foram obtidos de forma ilegal, etc., possam ser excluídas ou, ao menos, ocultadas n(d)o ambiente digital. Diante de tal problemática, o projeto de reforma do Código Civil9, de forma bastante acertada, estabelece o direito à exclusão de dados pessoais e o direito à ocultação (desindexação) de dados pessoais. No primeiro caso, o projeto estabelece o seguinte: "Art. À pessoa é possível requerer a exclusão de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis expostos sem finalidade justificada, nos termos da lei. § 1º São suscetíveis de exclusão, nos termos do caput, além de outros, os dados: I - pessoais que deixarem de ser necessários para a finalidade que motivou a sua coleta ou tratamento; II - pessoais cujo consentimento que autorizou seu tratamento tenha sido retirado, ainda que autorizado por lei; III - cujo tratamento foi ou veio a ser objeto de oposição por seu titular; IV - pessoais tratados ilegalmente; V - que devam ser eliminados ao término de seu tratamento; VI - pessoais excessivamente expostos sem finalidade justificada. § 2º O direito à exclusão de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis, de que cuida este artigo, não pode ser exercido enquanto seu tratamento ou divulgação: I - forem relevantes ao exercício da liberdade de expressão; II - forem manifestamente públicos; III - decorrerem do cumprimento de dever legal; IV - forem considerados excluídos do rol daqueles que a lei considera passíveis de exclusão." "Art. A pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado. Parágrafo único. Para os fins deste artigo, são requisitos para a concessão do pedido: I - a demonstração de transcurso de lapso temporal razoável da publicação da informação verídica; II - a ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos; III - a demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes; IV - demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja; V - a presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação; VI - a concessão de autorização judicial. § 1º Se provado pela pessoa interessada que a informação veio ao conhecimento de quem levou seu conteúdo a público, por erro, dolo, coação, fraude ou por outra maneira ilícita, o juiz deverá imediatamente ordenar sua exclusão, invertendo-se o ônus da prova para que o site onde a informação se encontra indexada demonstre razão para sua manutenção. § 2º Consideram-se obtidos ilicitamente, entre outros, os dados e as informações que tiverem sido extraídos de processos judiciais que correm em segredo de justiça, os obtidos por meio de hackeamento ilícito, os que tenham sido fornecidos por comunicação pessoal, ou a respeito dos quais o divulgador tinha dever legal de mantê-los em sigilo." Assim, vê-se que as condições para exclusão de dados correspondem, a desnecessidade para a finalidade original de coleta, a revogação de consentimento prévio necessário para a coleta e tratamento, a oposição do titular dos dados, o tratamento de qualquer forma ilegal de informações e, ainda, a existência de dados pessoais excessivamente expostos sem justificativa. Por outro lado, tal direito é limitado ante a necessidade de preservação de dados relevantes para liberdade de expressão, a manutenção de informações manifestamente públicas, o cumprimento de dever legal e naqueles casos em que os dados são classificados como passíveis de exclusão. Em complemento, permite-se a exclusão permanente dos dados pessoais que importem lesão aos seus direitos de personalidade e que fique demonstrada a irrelevância, de acordo com os parâmetros seguros enumerados, da manutenção da informação. Em complemento, o projeto trata do direito à ocultação (mera desindexação) da seguinte forma: "Art. À pessoa é possível requerer a aplicação do direito à desindexação, que consiste na remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem utilidade ou finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem. Parágrafo único. São hipóteses de remoção de conteúdo, entre outras, as que envolvem a exposição de: I - imagens pessoais explícitas ou íntimas; II - a pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; III - informações de identificação pessoal dos resultados da pesquisa; IV - conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes." No caso da ocultação (ou desindexação), em princípio, não se faz necessária a exclusão dos dados pessoais, bastando unicamente retirar a facilidade de sua localização, especialmente por meio dos motores de busca. Assim, a desindexação representa uma solução tecnológico-jurídica estratégica que preserva o equilíbrio entre o direito à informação e a proteção da dignidade individual. Essa modalidade de tratamento de dados pessoais possui características específicas que a tornam mais dinâmica e menos invasiva que a exclusão completa, pois restringe unicamente a acessibilidade imediata. No julgamento do caso Google Spain, por exemplo, em que se reconheceu o direito à desindexação, entendeu o Tribunal de Justiça da União Europeia que a onipresença do motor de busca Google aumenta os riscos e, consequentemente, os danos potenciais às pessoas10 em contraposição a informação constante no site do jornal local, de difícil acesso sem o uso da "bússola" do buscador. O caso, julgado pelo TJ/UE em 2014, representa um marco fundamental na proteção de dados pessoais no ambiente digital, evidenciando a complexa relação entre o direito à informação e a preservação da intimidade individual. O litígio surgiu a partir de uma demanda apresentada por Mario Costeja González contra o Google e um jornal local espanhol. A questão central residia na permanência de uma antiga notícia sobre leilão de imóvel por dívidas, que continuava acessível através de buscas no motor de pesquisa, mesmo após significativa defasagem temporal. O Tribunal reconheceu aspectos revolucionários na dinâmica informacional contemporânea. Identificou-se que os motores de busca não são meros intermediários passivos, mas agentes que amplificam exponencialmente a visibilidade de informações. A onipresença digital transforma conteúdos locais e circunstanciais em registros globalmente acessíveis, potencialmente causando danos reputacionais desproporcionais. Por fim, o projeto de reforma estabelece o dever dos provedores de conteúdo e mecanismos de busca de criar procedimentos claros e de fácil acesso para que os direitos acima referidos sejam efetivados diretamente, sem a exigência de ação judicial para tanto.   A reflexão sobre a proteção de dados pessoais, especialmente no contexto digital, revela-se indispensável em uma sociedade que testemunha uma transformação avassaladora na forma como memórias, identidades e informações são registradas e acessadas. A era digital, ao redefinir o conceito de registro e memória, trouxe consigo a necessidade de equilibrar a liberdade de expressão e o direito à informação com a proteção da dignidade humana, da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade. Nesse cenário, os direitos à exclusão e à ocultação de dados pessoais emergem como ferramentas fundamentais para garantir que o avanço tecnológico não seja instrumento de perpetuação de desigualdades, estigmas ou constrangimentos, mas sim de promoção do bem-estar e da liberdade individual. O projeto de reforma do Código Civil revela-se altamente criterioso e oportuno ao tratar do tema, estabelecendo parâmetros sólidos e equilibrados para a proteção de direitos fundamentais no ambiente digital. A possibilidade de exclusão de dados, condicionada a critérios bem definidos, como a ausência de necessidade ou finalidade legítima, e o direito à desindexação, como solução menos invasiva, demonstram sensibilidade legislativa e alinhamento com os desafios contemporâneos. Essa abordagem não apenas promove a proteção da intimidade e da identidade, mas também respeita o interesse público e os princípios democráticos que sustentam a liberdade de expressão. Ao configurar tais direitos, o projeto reconhece a centralidade da autodeterminação informativa, permitindo que os indivíduos gerenciem sua narrativa pessoal sem que fragmentos descontextualizados do passado os aprisionem. Além disso, ao exigir que provedores de conteúdo e mecanismos de busca estabeleçam procedimentos claros e acessíveis para a efetivação desses direitos, o texto legislativo reforça a eficiência e a efetividade das garantias, minimizando a necessidade de judicialização e promovendo uma cultura de respeito à dignidade humana no ambiente digital. Por fim, a proposta legislativa vai além de simplesmente remediar problemas individuais; ela configura um marco civilizatório que busca harmonizar os avanços tecnológicos com os valores mais essenciais da humanidade. A disciplina robusta e bem fundamentada desses direitos é um reflexo de uma sociedade que reconhece a importância da memória, mas também a necessidade de permitir que indivíduos se transformem, evoluam e superem as limitações de seus próprios erros e circunstâncias. Trata-se, em última análise, de assegurar que a tecnologia seja ferramenta de emancipação e progresso, e não de opressão e regressão. É, portanto, um passo essencial para construir um futuro digital que respeite, promova e dignifique a complexidade da condição humana. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 MARTINS, Guilherme Magalhães. O direito ao esquecimento como direito fundamental. Civilistica.com, Revista Eletrônica de Direito Civil, Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, p. 1-70, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jan. 2023. 4 Ibid., p. 2. 5 Gomes de Andrade, Norberto Nuno. El olvido: el derecho a ser diferente... de uno mismo: una reconsideración del derecho a ser olvidado. IDP-Revista de Internet, Derecho y Política, Universitat Oberta de Catalunya, Barcelona, España, n. 13, passim, feb/2012. Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2022. 6 Ver a respeito: SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 24. Ed., Petropolis, RJ: Vozes, 2015. 7 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, introdução e notas Saulo Krieger. São Paulo: Edipro, 2020 (livro eletrônico). 8 Considerando a natureza delicada dos direitos discutidos, optou-se pela construção de um exemplo hipotético. Esta abordagem metodológica busca preservar os dados pessoais dos indivíduos eventualmente relacionados a situações análogas, garantindo que a discussão jurídica mantenha seu caráter acadêmico e reflexivo, sem expor ou revitimizar pessoas reais. 9 Disponível aqui. 10 No acórdão assentou-se que: "80. A este respeito, importa, antes de mais, salientar que, como foi declarado nos n.os 36 a 38 do presente acórdão, um tratamento de dados pessoais como o que está em causa no processo principal, realizado pelo operador de um motor de busca, é suscetível de afetar significativamente os direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais, quando a pesquisa através desse motor seja efetuada a partir do nome de uma pessoa singular, uma vez que o referido tratamento permite a qualquer internauta obter, com a lista de resultados, uma visão global estruturada das informações sobre essa pessoa, que se podem encontrar na Internet, respeitantes, potencialmente, a numerosos aspetos da sua vida privada e que, sem o referido motor de busca, não poderiam ou só muito dificilmente poderiam ter sido relacionadas, e, deste modo, estabelecer um perfil mais ou menos detalhado da pessoa em causa. Além disso, o efeito de ingerência nos referidos direitos da pessoa em causa é multiplicado devido ao importante papel desempenhado pela Internet e pelos motores de busca na sociedade moderna, que conferem caráter de ubiquidade às informações contidas numa lista de resultados deste (sic) tipo (v., neste (sic) sentido, acórdão eDate Advertising e o., C-509/09 e C-161/10, EU:C:2011:685, n.o 45)". OBS: Grafia conforme texto original. ([ESPANHA]. Tribunal de Justiça (Grande Secção). Acórdão do Tribunal de Justiça. Dados pessoais - Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento desses dados - Diretiva 95/46/CE - Artigos 2.°, 4.°, 12.° e 14.° - Âmbito de aplicação material e territorial - Motores de busca na Internet - Tratamento de dados contidos em sítios web - Pesquisa, indexação e armazenamento desses dados - Responsabilidade do operador do motor de busca - Estabelecimento no território de um Estado-Membro - Alcance das obrigações desse operador e dos direitos da pessoa em causa - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - Artigos 7.° e 8.°. Google Spain SL; Google Inc. contra Agencia Española de Protección de Datos (AEPD). Mario Costeja González, 13 de maio de 2014. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2023.).
Dando sequência à reflexão sobre a proposta de Reforma do CC especificamente em relação ao Direito Civil Digital iniciada no artigo anterior1, passamos agora a abordar a proteção de crianças e adolescentes nesse contexto. Neste segundo texto, exploraremos como a proposta de legislação civil visa garantir a segurança, a proteção de dados pessoais e o bem-estar de crianças e adolescentes na era digital. Com o avanço da tecnologia e a popularização da internet, crianças e adolescentes estão cada vez mais presentes no ambiente digital. É inequívoco que este público, devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, está significativamente mais vulnerável aos riscos inerentes ao meio digital. Casos emblemáticos como o "Desafio do Apagão", um viral nas redes sociais onde pessoas induzem a própria asfixia até desmaiar. Essa prática perigosa resultou na morte de inúmeras crianças e adolescentes2, gerando, inclusive, ações contra as plataformas pelo fato do algoritmo "recomendar" tal desafio para infantes.3 Mesmo em cenários menos extremos, pesquisas científicas têm evidenciado que a exposição excessiva às telas compromete severamente o desenvolvimento físico, emocional e intelectual das novas gerações. Um dado alarmante revela que, pela primeira vez na história, observa-se uma redução no QI dos filhos em comparação aos pais4. Como alertam os especialistas, "o que impomos às nossas crianças é indesculpável. Sem dúvida, jamais na história da humanidade, uma tal experiência de embrutecimento cerebral foi realizada em tão larga escala." 5 Esse cenário traz à tona a necessidade urgente de garantir a proteção integral desse público vulnerável, assegurando seu melhor e superior interesse conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente6. É fundamental que o espaço virtual seja um ambiente seguro e saudável, promovendo o desenvolvimento e o bem-estar dos jovens usuários. O Anteprojeto de Reforma do CC dedica quatro artigos específicos no Capítulo VI, intitulado "A presença e a identidade de crianças e adolescentes no ambiente digital", que materializam e fortalecem os princípios da proteção integral e do melhor interesse, adaptando-os às especificidades do contexto digital. Vale ressaltar que o Anteprojeto propõe uma proteção mais abrangente e concreta que aquela estabelecida pela LGPD, considerada modesta em relação ao público infantojuvenil, uma vez que esta se concentra primordialmente nas questões de consentimento e controle de dados pessoais7.      Para operacionalizar esta proteção, o Anteprojeto estabelece responsabilidades específicas e bem delineadas aos provedores de serviços digitais. A primeira delas, denominada dever de verificação eficaz da idade, impõe aos provedores a obrigação de implementar sistemas confiáveis para verificação etária dos usuários, impedindo que crianças e adolescentes acessem conteúdos inapropriados para sua faixa etária.  Trata-se de ponto crucial para a proteção dos menores, uma vez que o acesso a conteúdo inadequado pode causar sérios impactos em seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, colocando até mesmo em risco a sua vida e integridade corporal, como demonstrado acima. A exposição prematura a materiais impróprios, como violência explícita, conteúdo sexual ou discurso de ódio, pode resultar em traumas, ansiedade, comportamentos inadequados e uma compreensão distorcida da realidade.  A segunda responsabilidade consiste no dever de assegurar o controle parental efetivo, pelo qual os provedores precisam disponibilizar ferramentas eficazes que permitam aos pais e responsáveis limitar e monitorar adequadamente o acesso dos jovens a determinados conteúdos e funcionalidades no ambiente digital. Embora existam soluções disponíveis no mercado para este fim, frequentemente estas se mostram ineficientes, pouco intuitivas ou de difícil acesso e compreensão pelo público em geral. A imposição deste dever aos provedores, com ênfase em sua eficácia, representa um avanço significativo na proteção integral de crianças e adolescentes no meio digital. Esta obrigação reconhece o papel fundamental dos pais e responsáveis como primeiros guardiões do desenvolvimento saudável dos menores, fornecendo-lhes instrumentos adequados para exercer essa supervisão de forma efetiva no contexto tecnológico atual. Ao estabelecer padrões mínimos de qualidade e usabilidade para estas ferramentas de controle parental, garante-se que a proteção dos menores no ambiente digital não seja apenas uma responsabilidade teórica, mas uma realidade prática e acessível a todas as famílias. A terceira responsabilidade corresponde ao dever de assegurar a proteção dos dados pessoais de crianças e adolescentes, em estrita conformidade com a lei 13.709, de 14/8/18 LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Embora tal dispositivo possa parecer redundante ou trivial à primeira vista, sua inclusão tem relevância jurídica significativa ao reafirmar expressamente a vigência e aplicabilidade das disposições da LGPD neste contexto específico. Esta reiteração normativa serve a múltiplos propósitos: reforça a importância da proteção de dados pessoais de menores como direito fundamental, evita potenciais interpretações que poderiam sugerir derrogação tácita das normas protetivas da LGPD, e estabelece uma ponte clara entre os diferentes marcos regulatórios que compõem o sistema de proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. Assim, garante-se maior segurança jurídica e efetividade na tutela dos direitos dos menores, especialmente considerando sua particular vulnerabilidade no contexto do tratamento de dados pessoais em plataformas digitais. Por fim, foi estabelecido o dever de proteção por design, impondo que se deve proteger os direitos das crianças e adolescentes desde a concepção do ambiente digital, garantindo que, em todas as etapas-desenvolvimento, fornecimento, regulação, gestão de comunidades, comunicação e divulgação-o melhor e superior interesse dos jovens seja observado. Trata-se do reforço na proteção por design estabelecida pela LGPD8 e representa um avanço significativo na tutela dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, pois estabelece que a proteção deve ser considerada desde a concepção dos serviços e plataformas, e não apenas como uma adaptação posterior. Esta abordagem preventiva e estrutural garante que o melhor interesse dos jovens seja incorporado em todas as etapas do ciclo de vida dos serviços digitais - desde o desenvolvimento inicial, passando pelo fornecimento, regulação, gestão de comunidades, até a comunicação e divulgação. Tal princípio reconhece que a proteção efetiva não pode ser uma consideração secundária ou reativa, mas deve estar intrinsecamente integrada à própria arquitetura dos ambientes digitais.  Ao exigir que as plataformas considerem as necessidades e vulnerabilidades específicas dos usuários menores de idade desde o início, este dever promove uma mudança fundamental na forma como os serviços digitais são concebidos e implementados, priorizando a segurança e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes. Esta abordagem proativa não apenas minimiza riscos potenciais, mas também cria um ambiente digital mais seguro e adequado, alinhando-se aos princípios fundamentais da proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela CF/88. E tal dever também é imposto claramente aos criadores de produtos e serviços ligados às tecnologias da informação e comunicação destinados a crianças e adolescentes, uma vez que devem ser concebidos com a garantia de sua proteção integral e a prevalência de seus interesses, o que especificado pelo anteprojeto com a enunciação dos seguintes deveres decorrentes:  Dever de consideração dos direitos e limites das crianças e adolescentes, já que desde a concepção e projeto até a execução, disponibilização e utilização, devem considerar as capacidades e limites das crianças e adolescentes, adotando por padrão opções que maximizem a proteção de sua privacidade e minimizem a coleta e utilização de dados pessoais. Dever de uso de  linguagem adequada, impondo a utilização de linguagem clara, concisa e compatível com a idade dos usuários, facilitando a compreensão e promovendo uma experiência positiva e educativa. Dever de privacidade e segurança, que consiste em assegurar a privacidade e a segurança das crianças e dos adolescentes, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a CF/88 e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Por fim, em uma disposição inovadora, o Anteprojeto proíbe expressamente a veiculação de publicidade em produtos ou serviços de tecnologia da informação destinados a crianças e adolescentes. Esta vedação abrange todas as formas de exibição de produtos ou serviços, incluindo plataformas gratuitas de compartilhamento de conteúdo e redes sociais. É importante ressaltar que o impacto da publicidade nas crianças já foi considerado pelo legislador brasileiro ao estabelecer9, no CDC, que se considera abusiva a publicidade que explora a deficiência de julgamento e experiência das crianças. Ao vedar a publicidade no ambiente digital, o anteprojeto vai além, reconhecendo as peculiaridades e os riscos específicos deste contexto tecnológico. Esta abordagem mais rigorosa se justifica pelas características próprias do meio digital, que potencializam os riscos da publicidade direcionada ao público infantil. No ambiente virtual, as técnicas publicitárias são mais sofisticadas e persuasivas, utilizando recursos interativos, personalização algorítmica e elementos lúdicos que tornam ainda mais difícil para as crianças distinguirem conteúdo comercial de entretenimento. Além disso, a exposição constante e a capacidade de coleta e processamento de dados comportamentais permitem estratégias de marketing altamente direcionadas e potencialmente mais manipuladoras. Portanto, a vedação total da publicidade direcionada a crianças no meio digital representa uma resposta proporcional e necessária para proteger efetivamente este público especialmente vulnerável das práticas comerciais predatórias que se desenvolveram no contexto das novas tecnologias.10 Diante disso, é correto afirmar que o Anteprojeto de Reforma do CC representa um marco significativo na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, estabelecendo uma proposta de arcabouço normativo robusto e abrangente. As disposições demonstram uma compreensão aprofundada dos desafios contemporâneos e das vulnerabilidades específicas do público infantojuvenil no contexto digital. A implementação destes dispositivos, aliada aos mecanismos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de criar um ambiente digital mais seguro e propício ao desenvolvimento saudável das novas gerações. Contudo, o sucesso desta iniciativa dependerá da criação de uma cultura de proteção de dados pessoais, da fiscalização adequada pelos órgãos competentes e da atuação firme do Poder Judiciário.  A proibição da publicidade direcionada ao público infantojuvenil e a imposição de deveres específicos aos provedores de serviços digitais demonstram uma postura assertiva do legislador na proteção dos interesses das crianças e adolescentes. Estas medidas, embora possam enfrentar resistência do mercado, são fundamentais para garantir que o ambiente digital não se torne um espaço de exploração comercial predatória deste público vulnerável. __________ 1 Disponível aqui. 2 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 3 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 4 Conforme: DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2023.   5 Idem, p. 273. 6 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 7 Conforme se vê do art. 14 da LGPD. BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 8 Estabelecido pelo art. 46, § 2º da LGPD, que assim dispõe:  Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. (...). § 2º As medidas de que trata o caput deste artigo deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução. 9 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 10 Ver a respeito: ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Dentre as inúmeras e importantíssimas inovações trazidas pelo anteprojeto de reforma do CC1, uma merece especial destaque: o tratamento jurídico do assim chamado "Direito Civil Digital", inserido no livro VI da proposta apresentada.   O texto é bastante abrangente e foi estruturado em dez capítulos. O Capítulo I estabelece as bases do Direito Civil Digital, incluindo princípios e fundamentos, com foco na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital, bem como na promoção da inovação e acessibilidade. Capítulo II aborda os direitos das pessoas naturais e jurídicas no ambiente digital, enfatizando a proteção de dados, direitos de personalidade, liberdade de expressão e critérios para determinar a licitude dos atos digitais. O Capítulo III define e regulamenta as situações jurídicas digitais, estabelecendo direitos e deveres emergentes das interações digitais. O Capítulo IV assegura o direito a um ambiente digital seguro e transparente, destacando a importância de práticas de moderação de conteúdo que respeitem as liberdades individuais. O Capítulo V detalha o conceito de patrimônio digital, estabelecendo diretrizes para sua gestão e transmissão hereditária, além de abordar o tratamento de dados pessoais no contexto digital. O Capítulo VI foca na proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, exigindo medidas como verificação de idade e garantia de acesso a conteúdos apropriados. O Capítulo VII estipula diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial, enfatizando não-discriminação, transparência e responsabilidade civil. O Capítulo VIII aborda a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente, assegurando que cumpram os mesmos requisitos legais dos contratos tradicionais. O Capítulo IX: Define as modalidades de assinaturas eletrônicas e estabelece os requisitos para sua validade e uso em documentos jurídicos. O Capítulo X estrutura normas para a realização de atos notariais eletrônicos, garantindo sua autenticidade, integridade e confidencialidade, legitimando legislativamente um importante provimento do CNJ surgido durante a pandemia. Na atualidade, a "digitalização da sociedade", decorrente da penetrabilidade das tecnologias digitais, em especial da internet, em praticamente todos os setores da existência humana, ressignificou a expressão "navegar é preciso". De fato, parcela considerável (e crescente) das atividades humanas depende do uso das tecnologias digitais, a ponto de tornar-se impossível pensar a forma de ser e viver atual sem sua utilização. De instrumento, como toda técnica, a internet se tornou o ambiente2, moldando, assim, as condições reais e concretas da existência humana. Luciano Floridi, a partir dessa constatação, cunhou o neologismo "onlife" para designar a forma de vida atual, em que a nova condição humana ocasionou a superação da barreira entre o virtual e o real. Na sua visão, a aceitação das tecnologias da informação e da comunicação pelas pessoas afeta radicalmente a condição humana, via transformação das interações das pessoas consigo mesmas, com os demais e com a natureza (tradução nossa)3.   Este novo paradigma altera consideravelmente as relações sociais e econômicas, criando uma dependência em relação ao tecnicismo digital que permeia praticamente todas as atividades humanas. Nesse contexto, as rápidas transformações econômicas e sociais possibilitadas pela internet permitiram um exercício mais efetivo de uma série de direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à liberdade. Contudo, como toda inovação tecnológica, a transformação digital é ambivalente, trazendo consigo inúmeros riscos a diversos direitos, riscos estes amplificados, primeiro, pelo desequilíbrio de poder entre os detentores das tecnologias digitais, os "Senhores da Informação"4,  e os usuários; segundo, pela penetrabilidade da internet, que, como ressaltado, atrai para o campo digital a maioria dos ambientes sociais5.  O direito, como "saber prático"6,  nessa conjuntura, necessita adaptar-se com o fito de criar instrumentos aptos a analisar e a compreender as transformações tecnológicas e, com isso, regular adequadamente as relações jurídicas decorrentes7. Em outras palavras, a ciência do direito, para servir à sociedade, deve ser sempre atualizada e altamente ligada ao desenvolvimento social, o que inclui - mas não se restringe - os avanços tecnológicos8 digitais. E, sendo o Direito Civil o ramo do Direito que regulamenta as relações cotidianas entre as pessoas, garantindo seus direitos e deveres nas relações privadas, tem urgência em voltar sua atenção, de forma bastante detida, para esse novo "ambiente" da experiência humana. Como dissemos em recente passagem, falando especificamente do tratamento dos dados pessoais mas que pode ser aplicado a totalidade da matéria, "trata-se de um encontro desafiador entre o novo e o velho, entre a era digital e os conceitos tradicionais do Direito Civil9."  Isso em razão de que se está diante de uma realidade complexa que o sistema jurídico enfrenta na atualidade. O encontro entre os conceitos tradicionais do Direito Civil e as inovações trazidas pela era digital representa um dos maiores desafios jurídicos da atualidade. Este embate entre o "velho" e o "novo" se manifesta em diversas áreas fundamentais do Direito Civil, exigindo uma profunda reflexão e adaptação dos princípios jurídicos estabelecidos. No âmbito da personalidade e capacidade jurídica, o ambiente digital introduz complexidades antes inimagináveis. A existência de identidades digitais e avatares questiona os limites tradicionais da personalidade, enquanto a persistência de perfis em redes sociais após a morte do usuário desafia as noções estabelecidas de capacidade jurídica. O caso emblemático da herança digital, onde familiares buscam acesso às contas online de entes falecidos, ilustra vividamente como o mundo virtual está redefinindo conceitos fundamentais do Direito Civil. A concepção tradicional de propriedade e bens também se vê desafiada pela realidade digital. A emergência de bens intangíveis, como criptomoedas e NFTs, questiona a aplicabilidade dos conceitos clássicos de propriedade. Além disso, a proteção da propriedade intelectual em ambientes virtuais, especialmente em relação a conteúdos gerados por usuários em plataformas digitais, apresenta desafios inéditos. A comercialização de terrenos virtuais em metaversos, por exemplo, exemplifica como o valor econômico e a noção de propriedade estão sendo redefinidos no contexto digital. No campo dos contratos, a revolução digital impõe uma revisão profunda dos princípios estabelecidos. A proliferação de contratos eletrônicos e a emergência de smart contracts baseados em blockchain desafiam as noções tradicionais de manifestação de vontade e formalização de acordos. A simples ação de clicar para aceitar os termos de uso de um aplicativo levanta questões complexas sobre a natureza do consentimento e a formação de vínculos contratuais no ambiente digital. A responsabilidade civil, por sua vez, enfrenta desafios sem precedentes na era digital. A atribuição de responsabilidade por danos causados por sistemas de inteligência artificial autônomos ou por conteúdos gerados por usuários em plataformas online desafia os fundamentos tradicionais da teoria da responsabilidade. O caso hipotético de um acidente causado por um veículo autônomo ilustra a complexidade de determinar a responsabilidade em um cenário onde a intervenção humana direta é minimizada. Por fim, a privacidade e a proteção de dados emergem como questões centrais no encontro entre o Direito Civil e o mundo digital. A coleta massiva de dados pessoais, o perfilamento algorítmico e o surgimento do direito ao esquecimento desafiam a concepção tradicional de privacidade como o simples "direito de ser deixado só". O uso generalizado de cookies e rastreadores online para criar perfis detalhados de consumidores exemplifica como as práticas digitais estão redefinindo os limites da privacidade e do consentimento10.  Este panorama de desafios evidencia que o encontro entre o Direito Civil tradicional e a era digital não é apenas um obstáculo a ser superado, mas uma oportunidade única de evolução jurídica. A tarefa que se impõe aos juristas, legisladores e à sociedade como um todo é a de reinterpretar criativamente os princípios fundamentais do Direito Civil. O objetivo é preservar os valores essenciais que têm guiado as relações privadas por séculos, adaptando-os simultaneamente às novas realidades tecnológicas. Este processo demanda um equilíbrio delicado entre a manutenção da segurança jurídica e a flexibilidade necessária para acomodar as rápidas e contínuas mudanças tecnológicas. Em última análise, o sucesso nessa empreitada garantirá que o Direito Civil continue a cumprir seu papel fundamental na regulação das relações privadas, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. A adaptação do Direito Civil à era digital não é apenas uma necessidade prática, mas um imperativo para assegurar que a proteção dos direitos individuais permaneça relevante e eficaz no século XXI. Após mais de 30 anos de quase absoluta ausência de regulação do ambiente digital, período em que muitas foram as tensões e desafios, verifica-se no presente uma crescente regulação mundial, a exemplo da União Europeia e dos Estados Unidos. Neste cenário, a proposta de reforma do CC brasileiro mostra-se não apenas necessária, mas também oportuna. A inclusão do Direito Civil Digital no anteprojeto de reforma do CC representa um marco significativo na evolução do ordenamento jurídico brasileiro. Esta iniciativa reconhece a realidade "onlife" em que vivemos e busca estabelecer um equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais e o fomento à inovação tecnológica. Ao abordar questões cruciais dessa nova realidade, o "novo" CC se propõe a ser um instrumento jurídico atual e eficaz, capaz de enfrentar os desafios da era digital. Desta forma, o Brasil se alinha às tendências internacionais de regulação do ambiente digital, fornecendo maior segurança jurídica para cidadãos e empresas, e promovendo um desenvolvimento tecnológico responsável e ético. Concluída esta breve análise propedêutica, os próximos artigos se dedicarão ao exame minucioso de algumas das principais inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do CC no âmbito do Direito Civil Digital. Exploraremos em detalhes como essas mudanças buscam adaptar nosso ordenamento jurídico às complexidades da era digital.  ___________ 1 Disponível aqui. 2 Umberto Galimberti considera que a técnica, como um todo, se tornou o ambiente que cerca e constitui todos os indivíduos. Tal generalização não é indene de discussões. Contudo, parece não haver dúvida de que a internet exerce efetivamente esse papel. (GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. passim.). Em sentido próximo, Manuel Castells inicia seu livro A galáxia da internet afirmando que "[a] Internet é o tecido das nossas vidas" (CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7). 3 FLORIDI, Luciano. The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era. London: Springer, 2015. p. 2.  4 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. São Paulo: Renovar, 2008.  p. 68. 5 Acerca da ambivalência da internet, esclarece Manuel Castells que "[a] elasticidade da internet a torna particularmente suscetível a intensificar as tendências contraditórias presentes em nosso mundo. Nem utopia nem distopia, a internet é a expressão de nós mesmos através de um código de comunicação específico, que devemos compreender se quisermos mudar nossa realidade". CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 11. 6 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185-188. 7 Acerca da dificuldade de o direito acompanhar, na atualidade, a evolução tecnológica, colhe-se a seguinte passagem: "Os direitos humanos foram forjados no seio de sociedades em que as mudanças ocorreram de forma lenta e gradual, de modo que a ciência jurídica estivesse em condições de as acolher e as acomodar nos conceitos jurídicos correspondentes. Hoje, o grande desafio que se coloca aos operadores do direito e aos próprios cidadãos é o de dispor de categorias de análise e de compreensão desses novos fenómenos". PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. Madrid: Universitas, 2012a. p. 9. Tradução nossa. Texto original: "Los derechos humanos se forjaron en el seno de sociedades en las que los câmbios se producian de manera lenta y paulatina, por lo que la ciencia jurídica se hallaba em condiciones de poder assumirlos e alojarlos en los correspondientes conceptos jurídicos. Hoy, el gran reto que se plantea a los operadores del Derecho y a los propios ciudadanos reside em contar com unas categorias de análisis y de comprensión de esos nuevos fenómenos". (Ibid., p. 9). 8 SAARENPÄÄ, Ahti. Derechos digitales.  In: BAUZÁ REILLY, Marcelo (Directordir.). El derecho de las TIC en Iberoamérica. Montevideo, Uruguay: Ed. LLa Ley Uruguay, 2019. cap. 10, p. 291-326. p. 292. 9 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 10 Ver a respeito: BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 
Qual é a natureza jurídica da Comissão de Representantes, que é obrigatória no caso de incorporação imobiliária? A resposta é que a sua natureza jurídica é de sujeito de direito despersonalizado. Trataremos disso neste artigo. A teoria da personalidade jurídica tem de lidar com situações sui generis que não se encaixam perfeitamente no seu figurino. Cuida-se dos sujeitos de direito despersonalizado. Por conta disso, é equivocado dizer que somente quem tem personalidade jurídica pode ter direitos e deveres. De um lado, a personalidade jurídica é definida como a aptidão de ter direitos e deveres. As pessoas naturais e as pessoas jurídicas detêm personalidade jurídica. De outro lado, o ordenamento Aparecida, de modo excepcional, por imperativo prático-jurídico, viu-se forçado a admitir que determinadas massas patrimoniais ou aglomeração de pessoas possam ter direitos e deveres. É o caso, por exemplo, do espólio, que é uma massa patrimonial que, por razões prático-jurídicas, precisa ser reconhecida como sujeito de direito para, por exemplo, celebrar contratos, ser parte em ações judiciais etc. Com a morte da pessoa natural, o patrimônio desta é indivisível até a partilha entre os herdeiros (art. 1.791 do Código Civil - CC). Enquanto isso, há necessidade de "dar voz" a esse patrimônio, para que, até a concretização da partilha, ele possa praticar atos jurídicos estritamente necessários à conservação e à boa gestão dos objetos e das relações jurídicas do falecido. Por isso, o espólio pode ser parte em processos judiciais e em contratos, por exemplo. Há outros entes despersonalizados, como os fundos de investimento, a massa falida, o condomínio edilício1 etc. A diferença prática entre o sujeito de direito personalizado e o despersonalizado não é um exercício diletante de etiquetagem doutrinária. Gera repercussão prática, conforme já tivemos a oportunidade de detalhar em artigo intitulado "Entes Despersonalizados: Controvérsias jurídicas e lacunas legislativas".2 O sujeito de direito personalizado - que é aquele dotado de personalidade jurídica - sujeita-se a uma legalidade ampla no Direito Privado. Tudo lhe é permitido, salvo o proibido em lei. Por isso, uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica têm aptidão para celebrar qualquer tipo de contrato e praticar qualquer outro ato jurídico. Já o sujeito de direito despersonalizado submete-se a uma legalidade estrita: Tudo lhe é vedado, salvo lei, costumes ou princípios. Esse é o motivo de um condomínio edilício não poder comprar imóveis em outras cidades para fins meramente especulativos, ainda que tenha contado com a unanimidade dos seus condôminos. Ele não tem aptidão de ter direitos e deveres sem conexão estritamente com a sua razão de ser. Condomínio edilício existe para garantir a coexistência dos condôminos, que estão unidos obrigatoriamente por conta do compartilhamento jurídico-arquitetônico das edificações.3 Isso protegeria os condôminos minoritários de um delírio da maioria em aprovar "taxas extras" altíssimas para levar o condomínio a fazer operações desconexas com a finalidade existencial do condomínio edilício, como comprar ações na Bolsa de Valores, "montar uma empresa" etc. Nesse contexto, entendemos que a Comissão de Representantes, apesar do laconismo legal, é um sujeito de direito despersonalizado. Ela, por lei, reúne todos os adquirentes de "imóveis na planta" ou, em palavras mais técnicas, todos os adquirentes de unidades autônomas em regime de incorporação imobiliária. A constituição da Comissão de Representantes é obrigatória no prazo de seis meses do registo da incorporação imobiliária. E será composta, no mínimo, por três membros escolhidos entre os adquirentes. A constituição dá-se por ata de assembleia devidamente registrada no Cartório de Títulos e Documentos (art. 50, caput e § 1º, lei 4.591/64). Como sujeito de direito despersonalizado, a Comissão de Representantes pode ser parte em atos jurídicos que tenham estrita conexão finalística com sua razão de ser. Mas é preciso tomar cuidado: A Comissão de Representantes atua como um síndico do condomínio protoedilício. O condomínio protoedilício é uma espécie de nascituro do futuro condomínio edilício e nasce com o registro da incorporação. Carlos E. Elias de Oliveira e Flávio Tartuce utilizaram essa expressão (condomínio protoedilício) para unificar doutrinariamente diversos nomes empregados pela legislação para se referir ao mesmo sujeito, como estes: Condomínio sobre as frações ideais (art. 32, § 15, da lei 4.591/64) e condomínio por frações autônomas (art. 213, § 10, da lei 6.015/73).4 O condomínio protoedilício também é um sujeito de direito despersonalizado. Diante disso, quando a lei 4.591/64 prevê direitos e deveres à Comissão de Representantes, ela, na verdade, está endereçando seus comandos ao condomínio protoedilício, que será operacionalizado pela Comissão de Representantes (que é o síndico desse tipo de condomínio). Houve certa atecnia da lei 4.591/64, pois ela, em alguns casos, menciona o síndico (no caso, a Comissão de Representantes) quando deveria ter citado o condomínio protoedilício. Essa atecnia, porém, é inofensiva, pois o importante é a tutela dos direitos dos adquirentes das unidades em regime de incorporação imobiliária. Em suma, entendemos que, como parte dos atos jurídicos devidos (como contratos, propositura de ações etc.), o condomínio protoedilício é que deverá figurar como parte, sob a representação da Comissão de Representantes. Sob essa ótica, citamos exemplos. Conforme a lei 4.591/64, a Comissão de Representantes tem direito de exigir do incorporador a entrega trimestral do andamento da obra e, no caso de haver patrimônio de afetação, dos extratos desse patrimônio (art. 31-D, IV e VI; e art. 43, I). Na verdade, a titularidade do direito aí é do condomínio protoedilício, que será representado pelo seu "síndico" (a Comissão de Representantes). Se o incorporador descumprir esse dever, o condomínio protoedilício poderia figurar como parte no polo ativo de uma ação judicial para exigir a entrega desses documentos: a Comissão de Representantes atuará apenas como representante do condomínio protoedilício. Também, à luz do texto legal, a Comissão de Representantes agirá nas hipóteses de destituição do incorporador, de assunção da condução das obras e em outras hipóteses similares (art. 31-F; art. 43; todos da lei 4.591/64). Na verdade, quem praticará os atos jurídicos é o condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes. Há momentos, porém, em que o legislador agiu com a mais adequada técnica. Por exemplo, de modo extremamente técnico, o art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73 prevê que, em procedimentos de retificação imobiliária, será exigida a manifestação do condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes.5 Alertamos que, embora o art. 43, § 3º, II, "c", da lei 4.591/64 faça menção à obtenção do CNPJ pelo condomínio protoedilício por provocação da Comissão de Representantes após a destituição do incorporador, a lei não vedou qualquer obtenção de CNPJ anteriormente. Aliás, entendemos que é dever do Fisco fornecer o CNPJ ao condomínio protoedilício mesmo antes da destituição do incorporador, sempre que houver requerimento da Comissão de Representantes. Os atos infralegais da Receita Federal precisam ser atualizados nesse ponto. Na prática, porém, em grande parte dos casos, não há muita utilidade na obtenção do CNPJ. É que, antes da destituição do incorporador, o papel da Comissão de Representantes concentra-se em basicamente fiscalizar o incorporador e tutelar o direito de propriedade dos adquirentes (como no procedimento de retificação extrajudicial na forma do art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73). O fato é que, mesmo CNPJ, o condomínio protoedilício pode figurar como parte em processos judiciais e em contratos. Afinal de contas, CNPJ não é um conceito de Direito Civil; não define quem pode ter direitos e deveres. CNPJ é apenas um número didático-fiscal, de natureza cadastral, para viabilizar a atividade de fiscalização tributária. Enfim, o condomínio protoedilício é um sujeito de direito despersonalizado; seu "síndico" é a Comissão de Representantes, que também é um sujeito de direito despersonalizado. Quanto à organização interna, a lei 4.591/64 dá liberdade aos adquirentes, que podem eleger um administrador para "assinar" em nome da Comissão de Representantes ou podem até exigir sempre a "assinatura concomitante" de todos os adquirentes na atuação da Comissão de Representantes. Deixaremos, porém, esse debate da organização para outro momento. __________ 1 Há quem sustente que o condomínio edilício é dotado de personalidade jurídica. Deixamos de aprofundar o tema aqui. 2 Disponível aqui. 3 Anotamos que, do ponto de vista prático, nada mudaria se, tal como sugere o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, fosse expressamente reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício com a proibição de que pratique atos alheios à sua finalidade existencial. O texto do Anteprojeto está disponível aqui. 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Disponível aqui. Publicado em 23 de janeiro de 2023. 5 "Art. 213. (...) (...) § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes".
1. Introdução Este artigo discute o teto indenizatório no caso de responsabilidade civil por transporte aéreo internacional. Trata-se de tema relevante por ter sido fruto de harmonização jurídica entre os países signatários da Convenção de Montreal. O tema agitou intensamente a jurisprudência. Mas já podemos enxergar uma orientação estabilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a qual apontaremos neste artigo. Desde logo, cabe um alerta: não trataremos de transporte aéreo nacional, e sim de internacional. O transporte aéreo nacional está fora do âmbito normativo da Convenção de Montreal. Logo, o teto indenizatório abaixo abordado apenas se aplica a transporte aéreo internacional.  Passamos a aprofundar o tema. 2. Indenização em transporte áereo internacional de pessoas e de carga Em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga, a indenização a ser paga pelo transportador sujeita-se ao teto previsto nos arts. 21 e 22 da Convenção de Montreal (decreto 5.910/2006), que sucedeu a Convenção de Varsóvia (Decreto nº 20.704/1931). Segundo o art. 22, itens "2" e "3", dessa Convenção, esse teto pode ser flexibilizado no caso de o dano ter recaído sobre a bagagem do passageiro ou sobre a carga transportada, desde que, no momento da entrega da coisa, tenha sido declarado expressamente o seu valor e tenha sido pago o acréscimo de preço eventualmente cobrado. Os valores dos tetos estão em Direito Especial de Saque (DES), cujo valor, em real, oscila. A conversão pode ser feita no site do Banco Central1. No caso de atraso de voo, o teto indenizatório é de 4.150 DES, o que, em julho de 2005, equivalia a cerca de R$ 31.000,00. Em transporte de bagagem, o limite indenizatório por avarias, perdas ou atrasos é de 1.000 DES, ou seja, cerca de R$ 7.000,00. Para morte ou lesão a passageiros, o teto é de 100.000 DES, ou seja, cerca de R$ 739.330,00. A ideia é, em voos internacionais, dar previsibilidade financeira ao transportador diante de um risco inerente à sua atividade, permitindo-lhe contratar seguro e repassar o gasto com o pagamento do prêmio desse seguro ao preço final cobrado do transportado. Se o cliente quiser uma indenização superior, cabe-lhe fazer a declaração do valor da coisa transportada e pagar eventual acréscimo de preço exigido pelo transportador. Esse acréscimo, na prática, será o repasse do custo adicional com a contratação de seguro. Trata-se de regra adotada pelos diversos países signatários da Convenção de Montreal. Trata-se de convenção importante para saúde financeira das empresas de transporte aéreo, ao permitir o adequado planejamento financeiro mediante a contratação de seguros e a correlata formação do preço final do serviço. Sem essa previsibilidade, as empresas de transporte aéreo ficariam sujeitas a uma situação de imprevisibilidade financeira diante dos diversos valores indenizatórios que poderiam ser arbitrados pelo Poder Judiciário de diferentes países, o que acabaria por inviabilizar a atividade econômico ou por estimular um aumento excessivo do preço do serviço de transporte. Alertamos que o entendimento acima também vale para transporte internacional aéreo de cargas, e não apenas de pessoas (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024). Assim, se uma empresa que contrata o transporte aéreo internacional de carga sem informar o valor dos bens transportados e consequentemente sem pagar eventual acréscimo de preço por conta do seguro não terá direito a indenização por dano material em importe superior ao teto da Convenção de Montreal. O art. 22, itens "2" e "3", dessa convenção só flexibiliza o teto indenizatório para a hipótese de haver essa declaração especial de valor dos bens e eventual pagamento do preço adicional do serviço2. O STF somente afasta o teto indenizatório supracitado em uma hipótese: indenização por dano moral. Isso, porque o art. 22 da Convenção de Montreal não faz qualquer menção aos danos morais. No caso de dano moral, aplicam-se as leis nacionais, inclusive o CDC (STF, Tema 210; RE 1.394.401/SP, Pleno e RE 636.331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25/05/2017). O texto constitucional dispõe expressamente sobre o tema (art. 178, caput, CF). Nesse sentido, o STF admitiu a condenação da empresa aérea Lufthansa ao pagamento de R$ 12.000,00 a título de indenização por dano moral causado pelo atraso de voo e extravio de bagagem em transporte aéreo internacional. Não aplicou o limite de valores das convenções internacionais supracitadas (STF, RE 1.394.401/SP, Pleno). O STJ segue a mesma linha (STJ, REsp 1842066/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 15/06/2020). Embora o julgado acima lide com transporte de pessoas, entendemos que ele também abrange transporte aéreo internacional de cargas. Trata-se de hipótese pouco usual, pois o mais comum é que se fale em dano moral em transporte aéreo internacional de pessoas, em hipóteses de transtornos causados ao passageiro por danos a si ou à sua bagagem. Seja como for, teoricamente, seria possível discutir indenização por dano moral no caso de transporte internacional apenas de carga. Pense, por exemplo, no extravio de uma carga que consista no cadáver de um familiar. Entendemos que, mesmo no caso de transporte internacional de carga, o teto indenizatório da Convenção de Montreal não será aplicável para o dano moral pelos mesmos motivos já citados acima. Afinal, o dano moral não está no âmbito normativo dessa convenção, que só trata de dano material, conforme textualmente afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no seu voto no julgamento do supracitado RE 636.331. Nada impede, porém, que, em relações não consumeristas, as partes, por pacto expresso, imponham um limite de indenização por dano moral no caso de transporte de carga. Afinal de contas, não há motivos para considerar abusiva essa cláusula em transportes feitos por empresas, que, com a cláusula, alocarão os seus riscos. O art. 421-A do CC prestigia a alocação de riscos definida pelas partes. Todavia, em relações de consumo, cláusula que limite a indenização por dano moral deve ser considerada abusiva à luz do art. 51 do CDC, ainda mais por estarmos a tratar de direitos da personalidade. O risco de, por conta de um acidente aéreo, causar a morte ou a incapacidade física de uma pessoa não pode ser limitado por uma cláusula contratual imposta à parte mais vulnerável contratualmente, o consumidor. Cabe um alerta: tudo o que foi exposto acima estende-se contra a seguradora que se sub-rogou nos direitos do segurado que sofreu o dano. Afinal de contas, trata-se de sub-rogação: o direito é igual, mas sob outra titularidade. Suponha que uma empresa contrate o transporte de uma carga. Por cautela, essa empresa, pessoalmente, contrata um seguro para receber o valor integral no caso de extravio. Acontecendo o sinistro, a seguradora pagará à empresa a cobertura contratada e, assim, sub-rogar-se-á nos direitos indenizatórios dessa empresa contra o transportador. Com essa sub-rogação, a seguradora poderá exercer direito de regresso contra o transportador, pleiteando a indenização que seria devida ao segurado. Ora, nesse caso, o teto indenizatório da Convenção de Montreal será aplicado contra a seguradora nesse pleito regressivo. Nesse sentido, em um caso de transporte internacional aéreo de carga, o STF restringiu ao teto indenizatório da Convenção de Montreal o valor a ser pago por uma importante transportadora aérea3 a uma seguradora4 que havia se sub-rogado nos direitos do dono da mercadoria avariada. Na ação de regresso proposta contra a transportadora, a seguradora pleiteava o reembolso do valor de R$ 248.916,22, que ela havia pagado ao dono da mercadoria a título de cobertura securitária. Todavia, o STF endossou o entendimento do TJSP nesse caso e limitou esse reembolso ao teto indenizatório do art. 22, item "3", da Convenção de Montreal (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024; TJSP, Apelação 1103637-14.2018.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Nelson Jorge Júnior, DJe 13/02/2020). 3. Conclusão A pacificação, pelo STF, do tema acerca do limite indenizatória da indenização em transporte aéreo internacional é salutar para dar previsibilidade a esse importante mercado. Na prática, as empresas de transporte aéreo internacional apenas terão de estar preparadas para situações mais excepcionais de indenização por dano moral, já que inexiste teto indenizatório para esse caso. Trata-se, porém, de um risco que já é internalizado pelas empresas. __________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 22, item "2", da Convenção de Montreal: "2.  No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino." 3 O nome da transportadora era Cargolux Airlines Internacional S.A. 4 O nome da seguradora era Seguros Sura S/A.
1. Introdução Suponha uma ação de reconhecimento de união estável. Se o réu vem a falecer no curso da ação, indaga-se: Quem lhe deverá suceder, o espólio ou seus herdeiros? A resposta depende do rastreamento da relação de direito material, dada pelo Direito Civil, visto que a legitimidade processual ad causam é um reflexo. 2. Espólio não é necessariamente o sucessor processual no caso de morte da parte Em regra, o espólio sucede a parte que falece no curso do processo (arts. 110 e 313, § 2º, do CPC1). Isso, porque o espólio é o sujeito de direito despersonalizado que aglomera, em si, todos os direitos e deveres do falecido enquanto não sobrevier a partilha de bens (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil2). Há, porém, exceções. Há casos em, com a morte de uma parte, não necessariamente o espólio será o seu sucessor processual. Eventualmente, o sucessor processual tem de ser seus herdeiros pessoalmente ou até mesmo um terceiro que venha a ter-se tornado o titular do direito sub judice, e não o espólio. Isso, porque a legitimidade processual ad causam tem de espelhar os polos da relação de Direito Material envolvida. O que está em discussão após a morte da parte no curso do processo é saber quem passou a ter - na relação jurídica de Direito Material - a titularidade da res in judicium deducta. O próprio art. 110 do CPC dá respaldo para tal interpretação, ao mencionar que a sucessão processual pode dar-se pelos sucessores do falecido, e não apenas pelo espólio. Esses sucessores devem ser entendidos como as pessoas que passam a integrar a relação de direito material com o falecimento da parte. Em termos didáticos, pode-se dizer que a definição do sucessor processual no caso de morte da parte no curso do processo coincide com a identificação de quem teria legitimidade ad causam caso o feito supostamente tivesse sido ajuizado post mortem. 3. Critério para identificar legitimidade ad causam do espólio: O interesse comunitário do ecossistema sucessório O critério adequado para identificar a legitimidade ad causam do espólio para suceder processualmente o falecido em ações judiciais é a presença do que chamamos de interesse comunitário do ecossistema sucessório. O espólio não tem legitimidade ad causam quando o feito envolver interesse meramente individual de alguns herdeiros. Explica-se. O ecossistema sucessório é composto por todos os envolvidos na sucessão mortis causa, como credores, herdeiros, testamenteiro etc. Para a tutela do interesse comunitário deles, o ordenamento jurídico criou o espólio, um sujeito de direito despersonalizado incumbido de velar, com imparcialidade, por esse interesse comunitário. A estrutura do espólio é desenhada para esse fim. Por isso, o custeio das atividades do espólio é feito com dinheiro do próprio acervo hereditário, como gastos com honorários de advogados e peritos, custas judiciais, eventual pro labore devido ao inventariante etc. Não pode essa estrutura comunitária estar a serviço de interesse meramente pessoal de qualquer dos herdeiros. A energia do inventariante, o patrimônio do monte-mor e os demais elementos da estrutura do espólio não são para a tutela de interesses individuais dos herdeiros, e sim do interesse comunitário de todos os integrantes do ecossistema sucessório. O espólio atua com imparcialidade entre os integrantes do ecossistema sucessório, sem patrocinar o interesse meramente pessoal de nenhum deles: O espólio não é advogado pessoal de nenhum herdeiro. No ponto, de forma bem gráfica, basta lembrar que o inventariante não necessariamente será um herdeiro. Pode ser, por exemplo, um credor ou até mesmo um terceiro nomeado como inventariante dativo (arts. 75, § 1º, e 617 do CPC). Isso demonstra que o espólio tem razão de ser fundada na tutela imparcial do interesse comunitário do ecossistema sucessório. Por isso, não cabe ao espólio interferir nos eventuais litígios entre os herdeiros nem entre estes e outros potenciais herdeiros ou meeiros. Conflitos como esses restringem-se ao campo estritamente pessoal de cada herdeiro; não versam sobre o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Aliás, soaria teratológico que os recursos e a energia do espólio fossem despendidos para proteger um grupo de herdeiros que sejam familiares do falecido e que não queiram reconhecer um terceiro como familiar. 4. Sucessão processual no caso de morte no curso de ações de estado Conforme já realçado, o espólio só sucede processualmente o falecido nas ações que cuidarem de questão de interesse comunitário do ecossistema sucessório. Assim, a título ilustrativo, ações meramente patrimoniais de que o falecido era parte, como eventual ação de indenização ou uma reclamação trabalhista, admitem a sucessão pelo espólio. Cuida-se aí de tutela do interesse comunitário do ecossistema sucessório em resguardar os itens do monte-mor. Já em se tratando de ações de estado, como uma ação de investigação de paternidade, o espólio não detém legitimidade ad causam para suceder processualmente o falecido. Isso, porque esses feitos veiculam interesses meramente pessoais dos herdeiros que são familiares do falecido, e não o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Esses interesses individuais dos familiares do falecido são de ordem patrimonial e existencial. O interesse patrimonial é pelo fato de que o êxito na ação de estado poderá vir a aumentar o número de herdeiros ou a reduzir o monte-mor partilhável diante da existência de uma meação. Nessas hipóteses, o quinhão devido aos demais herdeiros quando da partilha será reduzido, o que denuncia a presença de um interesse patrimonial pessoal dos herdeiros na ação de estado. A entrada de novos herdeiros no ecossistema sucessório pode reduzir a fatia patrimonial devida aos demais herdeiros. O interesse existencial dos familiares diante das ações de estado que existiam contra o falecido relaciona-se com os direitos da personalidade deles. O sucesso na ação de estado poderá alterar a árvore familiar do falecido, com o ingresso de um novo membro da família. Essa mera alteração da composição da árvore genealógica já gera, por si só, impactos existenciais nos demais familiares herdeiros, que estarão vinculados existencialmente com o novo membro. Cuida-se de direito da personalidade dos familiares herdeiros. Igualmente, o bom termo da ação de estado poderá impactar direitos da personalidade do próprio falecido, com possibilidade, inclusive, de abalar negativamente aspectos existenciais dele, ao menos sob a ótica dos demais familiares. Pense, por exemplo, que, com a procedência da ação de investigação de paternidade, fique desmascarada a vida dupla que o autor da herança levava, ostentando, de um lado, a aparência de uma pessoa extremamente leal à sua esposa e vivendo, à furtiva, relacionamentos extraconjugais. Basta imaginar como a viúva se sentiria ao tomar ciência disso. O abalo reputacional aí poderia ir além do âmbito familiar e chegar a uma mancha reputacional social. Imagine, por exemplo, que o falecido era um importante político que edificara sua carreira dentro de uma agenda de defesa intransigente da família e da lealdade matrimonial. O sucesso da ação de investigação de paternidade poderia demolir, de vez, a reputação moralista do autor da herança. O espólio não desfruta de legitimidade ad causam para agir como advogado pessoal de cada herdeiro. Não é um leão de chácara a ser manipulado por herdeiros para combater a eventual entrada de novos integrantes do ecossistema sucessório ou para tutelar direitos da personalidade desses herdeiros.3 Em igual diapasão, retine a jurisprudência do STJ, que é assente no sentido de que os herdeiros familiares do falecido são partes legítimas para ações de investigação de paternidade post mortem, e não o espólio. Confira-se4: "3- Por se tratar de ação de estado e de natureza pessoal, a ação de investigação de paternidade em que o pretenso genitor biológico é pré-morto deve ser ajuizada somente em face dos herdeiros do falecido e não de seu espólio (...)." (STJ, REsp 1.667.576/PR, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, DJe 13/9/19) "1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é essencial, sob pena de nulidade, a integração à lide, nas ações de investigação de paternidade, como litisconsorte necessário, do pai registral, ou de seus herdeiros, caso já falecido." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.734.515/RN, 4ª Turma, rel. min. Raul Araújo, DJe 19/2/19) Idêntico raciocínio deve ser estendido às ações de reconhecimento ou dissolução de união estável existentes contra o falecido. A sucessão processual tem de recair sobre os herdeiros familiares, e não sobre o espólio, porque inexiste aí interesse comunitário do ecossistema sucessório. 5. Quais familiares devem suceder processualmente o falecido nas ações de estado? Os herdeiros familiares são as partes legítimas para suceder processualmente o falecido nas ações de estado. Indaga-se, porém: Que familiares devem ser considerados para tanto? Entendemos que devem ser levados em conta como parte legítima aqueles que, dentro da ordem de vocação sucessória de que trata o art. 1.829 do Código Civil, sejam os contemplados prioritariamente. Se o falecido tiver deixado viúvo e descendentes, eles serão os sucessores processuais do falecido nas ações de estado. Já na hipótese de o falecido não ter deixado filhos nem cônjuge como herdeiros, a legitimidade ad causam para as ações de estado deverá recair sobre os herdeiros colaterais prioritários na ordem de vocação hereditária. 6. Operacionalização processual para a convocação dos sucessores processuais nas ações de estado Do ponto de vista processual, quais são as particularidades processuais na sucessão processual do falecido nas ações de estado? No caso de morte do autor da ação, é dever dos seus próprios familiares pleitearem a sucessão processual, sob pena de eventual extinção do processo (arts. 110 e 313, § 2º, II, CPC5). Já no caso de morte da parte ré em uma ação de estado, o autor da ação deverá buscar identificar esses herdeiros familiares mediante busca de informações em eventual processo de inventário que venha a ser aberto. Lembre-se de que os herdeiros têm o dever jurídico de abrir o inventário no prazo de 2 meses (art. 611 do CPC). Em não havendo a abertura do inventário e não dispondo o autor da ação de documentos comprobatórios de quem são os herdeiros da falecida parte ré, entendemos viável a realização de citação por edital dos possíveis herdeiros por estes estarem em local desconhecido ao autor (art. 256, I, do CPC). Afinal de contas, a não abertura do inventário no prazo legal é um ilícito praticado pelos familiares, e uma das consequências de sua violação é estar sujeito a citações por edital em casos como o citado. O que não se pode admitir, jamais, é que o espólio seja considerado o sucessor processual em ações de estado, como a de reconhecimento ou dissolução de sociedade de união estável, tendo em vista que aí há a predominância de interesse individual e pessoal de cada herdeiro familiar. Não se ignora a existência de um precedente isolado de apenas uma das turmas do STJ admitindo que, no caso de haver apenas herdeiros colaterais, o espólio figurasse no polo passivo de uma ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato/união estável post mortem (STJ, REsp 1.759.652/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 25/9/20). Esse julgado, todavia, nos parece muito pontual e isolado, inapto a contrapor-se à tese ora defendida. Em primeiro lugar, o caso concreto envolvia uma decisão do juiz de primeiro grau que determinou a emenda à inicial para a inclusão de parentes colaterais da falecida como litisconsortes necessários do espólio em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Não se cuidava, portanto, de discussão de sucessão processual pela morte da parte ré em uma ação como essa. Em segundo lugar, o referido precedente é isolado, de apenas uma das turmas do STJ, refletindo uma posição que, a nosso sentir, nos parece precária e que não resistiria a novas reflexões da mesma turma do STJ. Em terceiro lugar, parece-nos que dificilmente o mesmo entendimento seria adotado pela outra Turma do STJ que julga questões de Direito Privado, pois é totalmente inadequado que a estrutura do espólio seja utilizada para o patrocínio de interesses meramente pessoais de herdeiros familiares, em vez de estar a serviço apenas de interesses comunitários do ecossistema sucessório. __________ 1 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. 2 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. 3 Sobre o tema, Conrado Paulino Rosa e o saudoso Cristiano Chaves de Farias dão igual lição em sua obra "Ações de Família na Prática", in verbis: "Por óbvio, somente se faz necessária a sucessão processual quando o óbito ocorre durante o andamento do procedimento. Em se tratando de propositura de ação que verse sobre interesse patrimonial (indenizatória, por exemplo), depois da morte do réu, a legitimidade é do seu espólio, devendo ser representado pelo inventariante, se já houver, ou, não havendo ainda, pelo administrador provisório. Se, contudo, a demanda disser respeito a interesses existenciais (como uma investigação de paternidade post mortem ou uma adoção póstuma), a legitimidade dos herdeiros, e não do espólio." 4 Além dos julgados supracitados, há estes: STJ, REsp 1466423/GO, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 02/03/2016; REsp: 1028503/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 09/11/2010; REsp: 331842/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 10/06/2002; REsp 120622/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 25/02/1998. 5 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
A coluna Civil em Pauta, coordenada por mim e pelo professor Flávio Tartuce, estreia hoje. Seu objetivo é trazer conteúdos teóricos e práticos que sejam úteis à comunidade jurídica e aos cidadãos em matéria de Direito Civil. Não poderíamos inaugurar a Coluna sem tentar colaborar com os nossos irmãos do Rio Grande do Sul no enfrentamento de desafios jurídicos impostos às suas relações privadas. É que o Brasil inteiro segue estarrecido com a catástrofe natural que, ainda hoje, assola mais de quatrocentos e quarenta municípios do Rio Grande do Sul1. Inundações, causadas pelas chuvas e por outros fatores naturais, submergiram grande parte do Estado gaúcho, espalhando mortandade, destruições e devastação2. Inúmeras famílias perderam suas casas e estão atualmente em abrigos improvisados. A destruição alcançou plantações, animais, construções, veículos e outros. No momento em que é escrito este artigo, não há ainda estimativa cronológica para recuperação. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, projeta que só conseguirá reabrir para funcionamento em setembro3. As águas seguem afogando diversos municípios gaúchos. O Governador do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública em todo o território desse gigante Estado da Federação. Trata-se do decreto estadual  57.596, de 1º de maio de 2024, que dispõe: Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1º de maio de 2024. § 1º Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil. § 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado. Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e vigorará pelo prazo de 180 dias.  Em atos posteriores, o Governador do Rio Grande do Sul ratificou a declaração de calamidade pública (decretos estaduais 57.600, de 4 de maio de 2024; e 57.614, de 13 de maio de 2024). Esse cenário de catástrofe causará inúmeros problemas jurídicos nas relações privadas. Exporemos algumas diretrizes para servir de orientação aos nossos irmãos gaúchos na resolução desses problemas. Desde logo, lembre-se que esses impactos aproximam-se aos que perturbaram as relações privadas no ano de 2020 com a pandemia da Covid-19. À época, o risco praticamente letal de contaminação acarretou a paralisação de todo o País por força de medidas restritivas de circulação de pessoas. Diante da semelhança, deixamos uma diretriz jurídica para as relações jurídicas abaladas pela catástrofe natural gaúcha: a aplicação, por analogia, da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), a lei 14.010/20204. De fato, a analogia é uma forma de preenchimento de lacuna legal (art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Igualmente, são aplicáveis, mutatis mutandi, todas as ideias desenvolvidas nos diversos artigos jurídicos que foram publicados durante a pandemia da Covid-19, notadamente na Coluna Migalhas Contratuais (coordenada pelos Professores Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Jr., Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, integrantes da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont)5. É preciso, porém, ter cautela: cada caso concreto tem de ser analisado de modo individualizado. Não se pode generalizar de modo indiscriminado. É preciso verificar em que medida a catástrofe gaúcha impactou efetivamente cada situação particular. Em alguns casos concretos, a catástrofe não gerou qualquer impacto efetivo e significativo. Pense, por exemplo, em um gaúcho, com farto patrimônio em saldo bancário e que more, de aluguel, em Porto Alegre. Suponha que ele tivesse o dever de pagar um boleto bancário de R$ 5.000,00 pela compra de uma geladeira. A inundação de sua casa, em nada, atingiu sua capacidade financeira para pagar esse boleto. No máximo, por conta da indisponibilidade dos serviços de internet e dos serviços bancários, seria possível justificar o seu atraso no pagamento, de modo a afastar a incidência de encargos moratórios. Afinal de contas, a mora do devedor pressupõe um atraso culposo no pagamento (arts. 394 e 396 do Código Civil - CC6). Diante disso, passamos a expor algumas reflexões específicas. Em primeiro lugar, entendemos que, em regra, por aplicação analógica do art. 3º da Lei do RJET7, os prazos prescricionais e decadenciais relativos a situações jurídicas envolvendo moradores das cidades atingidas pela catástrofe devem ser considerados suspensos desde 1º de maio de 2024 (data do supracitado Decreto estadual nº 57.596) até a data em que vier a cessar o estado de calamidade pública (conforme pertinente decreto estadual). Durante esse período, não é razoável punir o morador dos municípios atingidos pela catástrofe com a prescrição ou com a decadência, por absoluta falta de razoabilidade em exigir dele o exercício de seu direito. Se não é humanamente impossível, certamente será extremamente oneroso exigir que esse indivíduo que está lutando para sobreviver em meio à tragédia tenha de adotar condutas de cobrança de crédito ou de exercício de direitos. Acresça-se que o próprio Poder Judiciário gaúcho suspendeu prazos processuais diante do fechamento de diversas unidades jurisdicionais que estão submersas pelas águas da chuva e do rio Guaíba8. Essa regra, porém, pode ser excepcionada, se, no caso concreto, for verificado que o exercício do direito não se tornou demasiadamente oneroso nem inviável. Em segundo lugar, por incidência analógica do art. 10 da Lei do RJET9, também se devem considerar - em regra - suspensos os prazos de usucapião no mesmo interstício temporal. Há, porém, de admitir-se exceção a essa regra a depender do caso concreto, conforme já expusemos. Em terceiro lugar, por analogia aos arts. 15 e 16 da Lei do RJET10, não se deve - em regra - admitir prisão civil por inadimplemento de alimentos familiares nem considerar em marcha o prazo de dois meses previsto no art. 611 do Código de Processo Civil para a abertura de processos de inventários, ao menos enquanto perdurar o estado de calamidade pública na forma dos atos normativos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Em quarto lugar, em matéria contratual, chamamos a atenção de todas as partes para a necessidade de agir com bom senso, sempre buscando um acordo razoável e distribuindo, entre si, os transtornos causados pela catástrofe natural. Afinal de contas, a postura colaboradora das partes de um contrato decorre da boa-fé objetiva. Todavia, na hipótese de não haver acordo, alguns institutos e regras jurídicas devem ser colocados à mesa para reflexão. De um lado, a impossibilidade fortuita superveniente da prestação deve ser levada em conta para permitir a resolução de determinados contratos sem dever de indenização, por força dos arts. 234, 235, 248, 250, 253 e 256 do CC11. Nesse ponto, é forçoso considerar a existência de regras especiais baseadas em similar lógica de justiça. Em locação, por exemplo, o perecimento fortuito da coisa ou a impossibilidade fortuita (ainda que temporária) de utilização da coisa pelo locatário deve ser considerada como uma justa causa para a resolução contratual ou, até mesmo, para a redução do aluguel, sem dever de indenização, conforme art. 567 do CC12. Pense, por exemplo, em pessoas que alugavam um apartamento que, atualmente, está totalmente submerso, sem qualquer viabilidade de utilização plena. De outro lado, a descaracterização da mora por impossibilidade superveniente de o devedor cumprir a obrigação é também ferramenta importante para, em vários casos concretos, afastar a incidência de encargos moratórios e outras consequências decorrentes da mora (arts. 396 e 399 do CC13). Por fim, a superveniência da catástrofe gaúcha pode ter abalado, no caso concreto, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e pode ter frustrado as legítimas expectativas das partes. Certamente, se as partes tivessem previsto que a tragédia sobreviria no curso do contrato, elas certamente teriam colocado cláusulas contratuais específicas. À falta de uma cláusula contratual expressa, o próprio ordenamento jurídico prevê regras supletivas, fruto da vontade presumível do homo medius, tudo conforme uma das lógicas de justiça que subjaz o Código Civil: o princípio da vontade presumível14. Desse modo, os juristas deverão avaliar cada caso concreto para verificar o cabimento da resolução, da revisão contratual ou do emprego de algum meio de defesa de qualquer das partes com base em alguma das seguintes figuras: a) teoria da imprevisão (arts. 317 e 478 do CC); b) doutrina da frustração do fim do contrato15; c) teoria da quebra da base objetiva do contrato, aplicável em relação de consumo, conforme art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor16; d) quebra antecipada do contrato17; e) exceção de inseguridade (art. 477 do CC18); f) exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC19). A propósito do tema, recomendamos aprofundado artigo do professor Flávio Tartuce tratando dos impactos da pandemia da Covid-19 nos contratos20. Esperamos que o bom senso, a boa-fé e a solidariedade presidam todas as relações privadas que foram impactadas pela catástrofe natural gaúcha, de modo que os sujeitos consigam resolver os problemas sem a necessidade de litígios judiciais ou arbitrais. O Direito, porém, disponibiliza esses diversos institutos para acudir situações emergenciais e de calamidade como essas. Trata-se de institutos testados e aprimorados em meio a diversas crises e catástrofes que já acometeram a humanidade ao longo da história. Como costuma dizer o professor Flávio Tartuce, nós, os civilistas, estamos entre os juristas mais antigos do Planeta, com milênios de desenvolvimento de institutos jurídicos que conseguem dar respostas aos problemas sociais atuais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Em 12 de maio de 2024, havia a notícia de 145 mortes (Disponível aqui). 3 Disponivel aqui. 4 Em conjunto com o professor Pablo Stolze Gagliano, tivemos a oportunidade de comentar integralmente a Lei do RJET: (1) GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível aqui; (2) GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus NavigandiTeresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 mai. 2024. 5 Destacamos os artigos publicados a partir de 23 de março de 2020. Disponível aqui. 6 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. 7 Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 8 Sobre o tema: TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes. 9 Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 10 Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil , para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 11 Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos. Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar. Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação. 12 Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava. 13 Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 14 Sobre o princípio da vontade presumível, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023. 15 José Fernando Simão faz aprofundada abordagem da necessidade de pensar na base do contrato, suscitando ideias que também atraem reflexões não apenas acerca da teoria da quebra da base do contrato, mas também da frustração do fim do contrato (SIMÃO, José Fernando Simão."O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Publicado em 3 de abril de 2020). Lembramos que a doutrina da frustração do fim do contrato foi desenvolvida na Inglaterra, ao passo que a teoria da quebra da base do contarto, na Alemanha. Ambas, porém, descendem da cláusula rebus sic standibus, conceito oriundo do direito romano, conforme lembra Reinhard Zimmermann (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017). 16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. 17 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contrato e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Publicado em 17 de março de 2020. 18 Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la. 19 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 20 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Publicado em 27 de março de 2020.