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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
A recuperação judicial é um instituto do direito de insolvência voltado a conferir uma oportunidade à determinada atividade empresarial de superação de uma situação de crise econômica-financeira momentânea. Em abandono ao instituto da concordata, cuja solução era eminentemente legalista e com alta intervenção judicial, o legislador buscou conferir, através da recuperação judicial, uma solução de mercado à superação da crise da empresa, mediante a discussão e eventual aprovação pelos credores do empresário de um plano de soerguimento por ele apresentado. Isso porque a recuperação de uma atividade empresarial necessita de soluções econômicas para que haja possibilidade de sucesso. Depende de escolhas inerentes ao exercício da livre iniciativa e somente aqueles que estão no mercado é que possuem condições de avaliar se as escolhas propostas pelo empresário podem ser suscetíveis de êxito no âmbito do empreendedorismo. Não foi por outra razão que o Senador Ramez Tebet, em seu relatório sobre o PLC 71/2003, que resultou na lei 11.101/2005, elencou como um dos princípios fundamentais do sistema de insolência a participação ativa de credores, verbis: PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS CREDORES. Fazer com que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, em defesa de seus interesses, otimizem os resultados obtidos, diminuindo a possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida. Portanto, a recuperação judicial deve ser considerada um instituto híbrido composto por elementos e questões tanto de ordem econômica como de ordem jurídica. Seu sucesso e o da atividade que busca o soerguimento depende da compreensão dessas características, a fim de que cada qual seja debatida e observada na sua esfera de incidência. O soerguimento de uma atividade depende de um plano realista e consentâneo com elementos de mercado e é dependente do contexto econômico no qual será aplicado. Mas a sua construção deve respeitar os limites legais, de ordem processual e material, existentes no ordenamento jurídico, com vistas à garantia de higidez do procedimento e da livre manifestação de vontade das partes, num ambiente de transparência e supervisão judicial. A jurisprudência é uníssona sobre esse entendimento. Os precedentes dos Tribunais de Justiça do país e do Colendo Superior Tribunal de Justiça ressoam ser dos credores a titularidade da análise de viabilidade da atividade empresarial, para fins de recuperação judicial, competindo ao Poder Judiciário apenas o controle sobre os aspectos de legalidade do plano votado, sem poder se imiscuir nos aspectos econômicos discutidos. O problema enfrentado nos dias atuais é a escorreita depuração sobre quais seriam elementos de ordem econômica e quais seriam elementos de ordem legal, para fins de controle do plano votado. A jurisprudência já tem alcançado diversas definições, mas o dinamismo da atividade empresarial sempre proporciona novos desafios a serem apreciados. A consequência desse processo de depuração ainda em construção são as inúmeras discussões levadas ao Poder Judiciário, sob a tese de que se tratariam de aspectos de legalidade do plano, quando, na realidade, configurariam questões de ordem econômica em seu sentido puro ou, ainda, questões que podem se revestir de caráter econômico e jurídico ao mesmo tempo. E ainda vivemos um cenário de certa imprevisibilidade sobre o âmbito de incidência de um dirigismo judicial acerca do plano votado, pois muitas dessas questões são interpretadas ora como de ordem legal, ora como de ordem econômica, não existindo completa definição sobre os limites de uma intervenção estatal nesse processo negocial. Com os fenômenos do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo houve uma profunda alteração na hermenêutica das regras de direito privado, através de um viés de busca da igualdade material em contraposição à antiga concepção de constitucionalismo liberal, abandonando os dogmas de individualismo e absenteísmo estatal para inserção de metodologias de um dirigismo comunitário liderado pelos poderes estatais voltando a visão do direito para um conteúdo mais social, no sentido de se exigir dos titulares de um determinado direito a observância do cumprimento de sua função social, mediante baldrames axiológicos de eticidade, socialidade e operabilidade. Entretanto, a desmedida intervenção estatal na ordem econômica, sob os mais variados aspectos, impede o desenvolvimento do mercado e dificulta o exercício do empreendedorismo, ocasionado, em consequência, diminuição dos benefícios sociais decorrentes da atividade empresarial, como a geração de empregos, arrecadação de recursos para o Estado, a manutenção e a criação de novas relações comerciais, a inserção de melhores produtos e serviços no mercado pela livre concorrência entre atividades. Sobrevém, então, a Lei da Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica, cujo escopo é a melhora do ambiente para o exercício de atividades econômicas no país. Segundo a exposição de motivos da MP 881, de 2019, convertida na lei 13.874/2019: Por meio da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP, datada de 11 de abril de 2019, a Medida Provisória (MPV) nº 881, de 2019, foi justificada pela necessidade urgente de afastar a percepção de que, no Brasil, o exercício de atividades econômicas depende de prévia permissão do Estado. Esse cenário deixaria o particular sem segurança para gerar emprego e renda. E daí decorre o fato de o Brasil figurar "em 150º posição no ranking de Liberdade Econômica da Heritage Foundation/Wall Street Journal, 144º posição no ranking de Liberdade Econômica do Fraser Institute, e 123º posição no ranking de Liberdade Econômica e Pessoal do Cato Institute". A liberdade econômica, continua a EMI, é fundamental para o desenvolvimento de um país, ainda mais no caso do Brasil, que atualmente está mergulhado em crise econômica. Estudos envolvendo mais de 100 países a partir da segunda metade do século XX comprovam essa relação entre a liberdade econômica e o progresso. A MPV empodera o particular e insurge-se contra os excessos de intervenção do Estado, com vistas a estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico. A lei 13.874/2019 buscou proporcionar a melhoria do ambiente negocial e de mercado em nossa economia de livre iniciativa, cujos preceitos possuem efeito vinculante aos entes federativos e imposição de interpretação e aplicação sistêmica das normas da Lei, mediante o estabelecimento do entendimento de que a intervenção do Estado nas atividades regidas pela livre iniciativa deve ocorrer somente em casos de imprescindibilidade, prestigiando-se, no mais e em maior medida, a liberdade de vontade e de atuação dos agentes. Por se tratar de uma declaração de direitos, atribui-se ao sujeito privado o direito subjetivo de conteúdo determinado (disciplina jurídica mais precisa e determinada - fornecimento de soluções específicas), oponível diretamente ao Estado, para o livre exercício de atividades econômicas, respeitados os limites de boa-fé e do cumprimento da função social do direito respectivo, propondo, outrossim, um dirigismo estatal sobre a livre iniciativa mais otimizado e menos denso. Um importante critério hermenêutico trazido pela lei está no brocardo IN DUBIO, PRO LIBERTATEM. Isso porque temos a cultura de interpretar em sentido oposto ao da liberdade, com entendimentos muitas vezes restritivos e formalistas que repercutem até mesmo no exercício do direito privado pelos agentes econômicos, através de uma "postura de prudência" para justificar a tomada de uma decisão, sob a falsa premissa de se respeitar o ordenamento constitucional. Pela adoção de tal critério hermenêutico, deve ser abandonada essa posição entendendo que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado. No âmbito da recuperação, a aplicação da lei 13.874/2019 pode funcionar como importante critério hermenêutico na depuração sobre quais são as questões efetivamente de natureza econômica, nas quais deve prevalecer a autonomia da vontade, e quais são as questões de natureza jurídica que devam ser enfrentadas pelo Poder Judiciário. E, no âmbito da autonomia de vontade, importante rememorar o judicioso voto do Eminente Ministro Moura Ribeiro nos autos do REsp 1.532.943-MT, acerca da prevalência da vontade coletiva oriunda da deliberação em AGC sobre as vontades individuais, assim vernaculamente posto: A vinculação do plano a todos os credores, tanto os que expressaram sua anuência como aqueles que não concordaram com as deliberações da AGC, é destacada por HUMBERTO LUCENA PEREIRA DA FONSECA e MARCOS ANTÔNIO KOHLER: [...] a nova Lei enfatiza o soerguimento de empresas viáveis que estejam passando por dificuldades temporárias, a fim de evitar que a situação de crise culmine com a falência. Nesse sentido, é extinta a ineficiente concordata e criado o instituto da recuperação judicial, que tem como principal característica o oferecimento aos credores de um plano de recuperação que, na prática, envolverá negociações e concessões mútuas , além de providências e compromissos do devedor visando a persuadir os credores da viabilidade do plano. Esse plano deverá ser aprovado pela maioria dos credores em assembleia, e a decisão vinculará não só os que expressamente anuírem, mas também os que votarem contrariamente (A nova lei de falências e o instituto da recuperação extrajudicial. Texto para discussão 22. Consultoria Legislativa do Senado Federal. Brasília, abril/2005 - sem destaque no original). No mesmo sentido é a doutrina de PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO: O direito das empresas em crise tem como uma de suas características básicas o fato de reger relações em que se situa, de um lado, o devedor, e de outro a coletividade dos credores. [...] Ora, como se trata de uma coletividade, e, em especial, de uma comunhão, não pode deixar de existir um meio específico para a expressão da vontade comum. Aplica-se, para tanto, o princípio da maioria , consagrado no direito societário, e também no direito público quando prevê a eleição majoritária. Assim, nas matérias submetidas à deliberação assemblear, a manifestação do órgão faz-se em obediência ao resultado da votação, prevalecendo a maioria, atendidos os requisitos exigíveis. Manifesta-se, desse modo, pela assembleia geral, a vontade coletiva dos credores. No dizer de Marlon Tomazette , de modo semelhante, a assembleia geral das sociedades anônimas, nos regimes instituídos pela LRE, "como órgão de deliberação, a assembleia tem a competência de expressar a vontade da massa de credores, isto é, a vontade coletiva interpretada como vontade unitária do grupo, vinculando inclusive credores ausentes (O Plano de Recuperação e o Controle Judicial da Legalidade. In Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais: RDB, v. 16, n. 60, abr./jun. 2013 - sem destaque no original). Portanto, em contraposição ao sistema anterior, em que não havia possibilidade de negociação, se descortina um sistema que prima pela composição das partes por meio do voto em assembleia. E esse novel sistema não teria eficácia sem a vinculação dos credores às deliberações majoritárias. Logo, apenas em aspectos de legalidade, como o Colendo Superior Tribunal de Justiça também já decidiu em outras oportunidades, é que eventual situação não se sujeitará aos termos do plano aprovado, devendo prevalecer a regra de submissão de todos à vontade coletiva formada pela votação resultante da AGC. Outro ponto que não pode ser desconsiderado no âmbito da recuperação judicial, em virtude da sua natureza econômica, são os poderes econômicos existentes e, por vezes divergentes, revelados nas pessoas dos credores que buscam recuperar os investimentos feitos na atividade empresarial. E tais poderes econômicos irão se mostrar conforme a natureza do crédito sujeito e o vulto do investimento realizado na empresa. Assim, alguns credores podem assumir alguma posição de superioridade em relação a outros, como decorrência natural dos investimentos por eles realizados ou por negociações mais promissoras que lhes garantiram uma condição mais vantajosa no ambiente de negociação da recuperação judicial. É importante que essa dinâmica seja preservada em respeito à confiança dos investidores no sistema. Certamente aquele que intenciona maior volume de investimentos numa atividade empresarial espera o retorno econômico de suas ações e, caso enfrente uma situação de crise do seu parceiro comercial, terá a legítima expectativa de preservar seu poder de negociação no plano a ser apresentado, na proporção dos investimentos realizados ou das garantias que detém, presumindo-se a boa-fé nas relações predecessoras que lhe conferiram tal posição econômica. O que deve ser coibido pelo Poder Judiciário é o abuso de determinado poder econômico, que poderá se revelar por uma imposição irracional de sua vontade contra a possibilidade concreta de soerguimento da atividade, assim reconhecida pelos demais credores, ou mediante a imposição de sacrifícios desproporcionais ao devedor e aos demais credores em posição menos vantajosa, para o atendimento exclusivo de um direito descurado de sua função social por macular as finalidades contidas no art. 47 da lei 11.101/2005. Todas essas considerações são importantes porque a prática tem demonstrado que muitas discussões envolvendo questões de legalidade na análise do plano envolvem os pontos acima mencionados e que nem sempre são trazidos com um rigor na revelação de sua real natureza jurídica. Não raro, muitas situações são trazidas ao Poder Judiciário sob a roupagem da discussão de um aspecto de legalidade quando, na realidade, tal postura busca pressionar o devedor em determinada negociação ou aumentar a vantagem de um poder econômico de menor expressão frente aos demais numa determinada negociação . Todas essas demandas existem e merecem a devida atenção para evitar um dirigismo judicial sobre o ambiente de negociação sem justa causa para tal interferência, na medida em que a vontade coletiva da AGC pressupõe uma organização legal própria para sua composição, constante do art. 45 da lei 11.101/2005 e fundado em situações anteriormente consolidadas pelas relações comerciais construídas entre o empresário em crise e seus credores. Tais realidades não podem ser desprezadas e fazem parte do conjunto que compõe o processo de recuperação judicial. Embora ainda não analisada no âmbito de apreciação de planos votados em AGC, a Lei das Liberdades Econômicas pode funcionar como importante instrumento de depuração da intervenção judicial no processo de negociação entre o devedor e seus credores, privilegiando a liberdade da manifestação de vontade, o que já é visto inclusive nas situações envolvendo transações entre credores trabalhistas e consumeristas em face de seus devedores nas respectivas jurisdições, reservando a atuação judicial apenas para as hipóteses de clara violação de dispositivos legais de ordem pública ou evidente prejuízo ocasionado por abuso de direito. Ao comentar a interpretação dos negócios jurídicos à luz da Lei 13.874/2019, Paula A. Forgioni1 assim dispõe, verbis: 5. As liberdade econômicas não são apenas um "poder agir", mas também a garantia de poder agir. Se a livre-iniciativa é constitucionalmente amparada, à empresa está outorgada a garantia de atuar conforme seus interesses, respeitados os limites postos pela própria Constituição e pelas Leis [princípio da legalidade]. Ao mesmo tempo, as faculdades advindas das liberdades constitucionais não são atribuídas aos agentes para que eles possam "fazer o que quiser", mas para viabilizar o adequado funcionamento do mercado, gerando riquezas, impostos, empregos e bem-estar social. ... Nesse prisma, o princípio da legalidade é fundamental para a organização do sistema econômico. As liberdades econômicas constitucionais devem ser lidas em conjunto com o princípio da legalidade, por serem verso e reverso da mesma medalha. A empresa é livre para agir, para empreender. Contudo, essa liberdade é limitada pela Lei; à empresa é facultado organizar-se e contratar, desde que o faça dentro de parâmetros preestabelecidos pelo ordenamento jurídico. Nenhum agente "será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" [cf. Art. 5º, II, da Constituição Federal]. Para a empresa, o texto normativo é, ao mesmo tempo, limite e garantia de sua liberdade.  A recuperação judicial deve ser compreendida como componente do universo do exercício de livre-iniciativa e o seu resultado assemblear consistente na aprovação do plano pelos credores é reconhecido por ter natureza jurídica contratual, razão pela qual a forma de interpretação acima citada cabe perfeitamente quando da aplicação do instituto e, como dito alhures, já vem sendo reconhecida pela jurisprudência, devendo apenas o Poder Judiciário aprimorar a devida depuração sobre o que é aspecto de legalidade a ser por ele enfrentado e o que é questão atinente aos aspectos econômicos da recuperação judicial, a qual deverá circunscrever-se às deliberações entre devedor e credores, privilegiando-se, neste ponto, a liberdade inerente à autonomia de vontade sem vícios. __________ 1 Comentários à Lei da Liberdade Econômica. Lei 13.874/2019. Coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo.Thomson Reuters Brasil. 2019. Páginas 366 e 367.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O conceito de filial e de UPI. 2.1. Utilidade da cisão parcial para criação de UPI. 3. Exclusão da sucessão na alienação de UPI na recuperação judicial. 3.1. Responsabilidade por sucessão na cisão parcial - a regra do direito societário. 3.1.1. Prevalência da regra da não sucessão pelo critério da especialidade. 3.2. Sucessão tributária na cisão parcial e na transferência de estabelecimento. 3.2.1. Irrelevância da forma adotada na criação da UPI para garantir a blindagem contra a sucessão tributária. 4. Conclusões. 1. Introdução O objetivo deste trabalho é tratar da alienação em processo de recuperação judicial de Unidade Produtiva Isolada ("UPI") que tenha origem em cisão parcial, bem como da aplicabilidade à alienação da UPI assim criada, das normas do Código Tributário Nacional ("CTN") introduzidas pela Lei Complementar nº 118/2005 e da Lei nº 11.101/2005 ("LFR") que afastam a sucessão do adquirente de filiais ou UPIs nas obrigações do devedor. A possibilidade de venda de estabelecimentos e UPIs livres de sucessão, inclusive tributária e trabalhista, é fator relevante para atrair interessados na aquisição, o que se reflete na valorização do ativo e viabiliza o atingimento do escopo da recuperação judicial, indicado no artigo 47 da LFR1. A valorização do ativo contribui para o soerguimento do devedor em recuperação judicial, tanto quando os recursos obtidos são direcionados ao pagamento de credores, como quando são direcionados a investimentos nas atividades remanescentes, conforme a estratégia econômica negociada entre o devedor em recuperação judicial e os seus credores. Além disso, a sobrevivência de estabelecimentos ou UPIs alienados na titularidade do adquirente, como empresa que se destacou da alienante, também atende o escopo da recuperação judicial indicado no artigo 47 da LFR, porque o que LFR protege não é o empresário, mas a atividade empresária, que cumpre a sua função social, gerando empregos e riquezas. 2. O conceito de filial e de UPI Não é qualquer alienação no processo de recuperação judicial que afasta a sucessão do adquirente nas obrigações do devedor. Somente na transferência de filial ou de UPI é que o adquirente terá a proteção da aquisição livre de responsabilidade pelas dívidas do devedor em recuperação judicial. Daí a relevância de se buscar conceitos, cuja dificuldade decorre exatamente da falta de definição legal desses institutos2. A filial pode ser considerada uma parcela do estabelecimento, mas com a característica definida por Alberto Caminã Moreira, de "unidade autônoma de negócios somente sob a ótica econômica"3. O Código Civil define estabelecimento, como sendo "todo complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária"; a filial seria uma parcela desse estabelecimento principal, mas, evidentemente, sem existência de personalidade jurídica própria4. O grande problema está na definição de UPI, porque esse conceito não é jurídico, mas sim econômico. Destacando a relevância da ótica econômica, Alberto Caminã Moreira ressalta: "tanto a filial como a unidade produtiva isolada são aquelas que, desmembradas do estabelecimento originário, poderão continuar operando empresarialmente na produção de bens e serviços; é uma forma de preservação de ativos produtivos, de racionalização e reorganização na administração da empresa devedora, de preservação de empregos etc. em consonância com o disposto no art. 47. É uma preservação parcial da empresa nas mãos de outro empresário. Uma indústria de bebidas, por exemplo, pode manter várias unidades produtivas; a alienação de uma das plantas industriais, unidade produtiva isolada, não configura a alienação do estabelecimento comercial, mas de parte dele"5. 2.1. Utilidade da cisão parcial para criação de UPI Conforme ensinamento do Professor Bulhões Pedreira, a função da cisão é dividir uma sociedade, com a transferência de parcela ou parcelas do seu patrimônio para outra ou outras sociedades criadas no procedimento de cisão6. A cisão parcial é, portanto, instituto de grande valia na criação de UPI em processo de recuperação judicial e poderia ser utilizada em casos como, por exemplo, o Parmalat, em que um mesmo estabelecimento tinha várias linhas de produção independentes, como a produção de leite, biscoitos, massas etc. Nesses casos de estabelecimento com diversas linhas de produção, ou de empresa com diversos estabelecimentos, é possível através da cisão parcial criar uma sociedade composta por uma ou algumas linhas de produção, ou por um ou alguns estabelecimentos do devedor. 3. Exclusão da sucessão na alienação de UPI na recuperação judicial Um dos grandes avanços da LFR é a permissão de alienação na recuperação judicial de filiais ou de parte de estabelecimentos sem que o adquirente responda pelas obrigações do devedor, inclusive as tributárias, anteriores à data da alienação. A exclusão da sucessão em quaisquer obrigações do devedor em recuperação judicial, inclusive trabalhista e tributária está prevista no parágrafo único do artigo 60 da LFR e no § 1º, II, do art. 133 do CTN, nos termos seguintes: LFR: Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei. CTN: Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional e continuar a respectiva exploração, sob firma ou nome individual, responde pelos tributos relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato: (...) § 1º O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: (...) II - de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. A distinção relevante consiste no fato de que o art. 133 do CTN afasta a sucessão tributária em processo de recuperação judicial; o art. 60 da LFR é mais restritivo, pois exclui a sucessão apenas nas alienações aprovadas no plano de recuperação. Apesar, de sutil, essa diferença tem gerado enorme perplexidade, pois é frequente a alienação judicial de ativos durante a recuperação judicial sem que tenham sido objeto do plano de recuperação. Por isso surge a seguinte dúvida: a alienação judicial de bens ou direitos não afastaria a sucessão tributária, pelo simples de fato de não ter constado do plano de recuperação? Não obstante a aparente complexidade da questão, na realidade a solução é simples, pois, em se tratando de norma geral de direito tributário, prevista no art. 146, III, da Constituição da República7, deve prevalecer a norma do CTN. Como a atual regra do art. 133 do CTN refere-se genericamente à alienação de filial ou unidade produtiva em processo de recuperação judicial, sem referência expressa à aprovação no plano, parece claro que deve prevalecer a interpretação da norma da lei complementar, que vincula o legislador ordinário nas matérias de sua competência. Ou seja, o inciso II do art. 133 do CTN aplica-se a todas as alienações de filial ou UPI, por uma das modalidades previstas no art. 142 da LFR, independentemente de terem constado do plano de recuperação judicial. 3.1. Responsabilidade por sucessão na cisão parcial - a regra do direito societário O Professor Bulhões Pedreira, analisando a questão referente à sucessão, lembra que no caso de cisão, a sociedade que absorve parcelas de patrimônio sucede a cindida nos direitos e obrigações que compõem a parcela de patrimônio transferida, e não em todo o patrimônio da sociedade cindida. Todavia, a lei 6.404/1976 ("LSA") contém, no § 1º do art. 229 e no art. 2338, normas especiais sobre a sucessão da sociedade cindida que asseguram, tanto na cisão parcial quanto na total, que a sucessão de parcelas de patrimônio tenha - do ponto de vista da garantia dos credores - o mesmo efeito da sucessão universal; e o parágrafo único do art. 233 somente admite a modificação desses efeitos se não houver oposição dos credores: "art. 233 - (omissis) Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá se opor à estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de noventa dias da data da publicação dos atos da cisão." 3.1.1. Prevalência da regra da não sucessão pelo critério da especialidade No regime da LSA, nos casos de cisão parcial, com delimitação dos direitos e obrigações transferidos para a sociedade criada na cisão parcial e estipulação de ausência de solidariedade com a companhia cindida, a vontade individual do credor que manifestar oposição à estipulação impedirá que a exclusão de responsabilidade produza efeitos em relação ao seu crédito. Mas a possiblidade de o credor exercer os seus direitos individualmente só existe enquanto o devedor é solvente, situação que se altera na crise da empresa, como lecionam João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli, Rodrigo Tellechea: "A situação se transforma com a instauração de um dos regimes de crise: com eles, impõe-se o concurso de credores e o princípio da igualdade (par conditio creditorum). Os credores passam a exercer seus direitos coletivamente e decisões majoritárias podem ser impostas à minoria9." Na nova situação, inaugurada com o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial, os credores reunidos em assembleia passam a desempenhar papel fundamental no destino da empresa. A assembleia geral de credores ("AGC") é um órgão vital no sistema da recuperação judicial, pois tem por atribuição deliberar sobre a aprovação, rejeição ou modificação do plano apresentado pelo devedor, nos termos do art. 35, I, "a", da LFR10. É nela que os credores decidem o destino no devedor, optando pela manutenção ou pelo desaparecimento da sociedade devedora11, exercendo os seus direitos coletivamente e decidindo pelo princípio majoritário. Assim, no caso de o plano de recuperação judicial aprovado pela AGC prever a criação de UPI através de cisão parcial e sua alienação na forma do art. 60 da LFR, livre de sucessão do adquirente em obrigação do devedor, será de todo irrelevante eventual oposição manifestada individualmente por credor à disposição do protocolo de cisão delimitando a responsabilidade da sociedade criada através de cisão, porque no regime da empresa em crise os credores exercem os seus direitos coletivamente. Dessa forma, a vontade da maioria, manifestada na AGC obriga todos os credores, inclusive aqueles que eventualmente tenham votado contra o plano ou se manifestado individualmente, com apoio na LSA, contra a delimitação da responsabilidade da sociedade criada através de cisão parcial. Esse é um caso em que o aparente conflito entre a LFR e a LSA resolve-se pelo critério da especialidade em favor da LFR, que rege a relação da empresa em crise com os seus credores. A LFR inovou em relação ao crédito decorrente da legislação do trabalho, ao submetê-lo à recuperação judicial. Com isso, os credores trabalhistas exercem os seus direitos coletivamente na AGC, o que tem como consequência o afastamento da sucessão nas obrigações decorrentes da legislação do trabalho se a alienação da UPI estiver prevista no plano de recuperação judicial, nos termos do parágrafo único do art. 60 da LFR12. Na relação jurídico-tributária o sistema é outro, porque a obrigação tributária decorre da lei e isso tem consequências importantes como a não sujeição do crédito tributário à recuperação judicial e a inoponibilidade ao credor de tributos das deliberações da AGC. 3.2. Sucessão tributária na cisão parcial e na transferência de estabelecimento O CTN não cuida da sucessão tributária no caso de cisão. Foi a LSA que tratou pela primeira vez da cisão, regulando nos arts. 233 e 234 os direitos dos credores na cisão13. Cabe, portanto, verificar se o art. 132 do CTN, concernente à sucessão tributária em casos de transformação, fusão e incorporação societárias, seria aplicável também no caso de cisão, tendo em vista a omissão do CTN sobre o tema, ensejando controvérsias na seara do Direito Tributário. De um lado, pode ser citada a lição Ricardo Lobo Torres no sentido de que a "responsabilidade [prevista no art. 132] se estende ainda aos casos de cisão, figura jurídica que apareceu posteriormente à publicação do CTN14." Em sentido contrário, Luciano Amaro entende que "falta uma disciplina geral sobre responsabilidade tributária na cisão, e não se pode eleger responsável sem lei expressa (CTN, art. 121, parágrafo único, II)"15. Penso que esta é a melhor orientação. 3.2.1. Irrelevância da forma adotada na criação da UPI para garantir a blindagem contra a sucessão tributária Mesmo reconhecendo a polêmica acerca da aplicação do art. 132 do CTN nos casos de cisão, a questão tem contornos específicos se examinada da ótica da recuperação judicial. A segurança jurídica que o legislador pretendeu dar aos negócios jurídicos no âmbito da recuperação judicial (art. 133, § 1º, do CTN), afastando a sucessão tributária, permite concluir que a Lei Complementar 118/2005 teve como prioridade a criação dessa proteção na recuperação judicial, que justifica uma interpretação da questão referente à cisão parcial, se realizada no âmbito da recuperação judicial, no sentido de afastar a sucessão, nos casos em que a cisão parcial precede a alienação, sendo utilizada como meio de criação de uma UPI. Esse é o entendimento de Vanilda Fátima Maioline Hin, quando ela, referindo-se à cisão de parcela do patrimônio correspondente a estabelecimento do devedor, conclui: "temos, nessa hipótese, situação que se amolda à prevista no art. 133, caput, do Código Tributário Nacional, porque: (i) a sociedade que recebeu a parcela cindida do patrimônio adquiriu o estabelecimento correspondente a essa parcela; e (ii) o art. 133, caput, diz que é sucessor quem adquire, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial, ou profissional. Submetida a hipótese à norma prevista no caput do art. 133 do Código Tributário Nacional, incidirá também a norma do § 1º, que afasta a sucessão tributária na alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada de empresa em processo de recuperação judicial, o que viabiliza a transferência do estabelecimento sem o seu passivo tributário, que continuará a ser de responsabilidade da sociedade cindida"16. Em benefício do entendimento de que § 1º, II, do art. 133 do CTN aplica-se na alienação de UPI, em processo de recuperação judicial, criada através de cisão parcial, deve ser considerado que tal disposição contém exceção à regra da sucessão tributária estabelecida no caput do mesmo artigo, que trata da alienação a qualquer título de estabelecimento ou fundo de comércio e da qual não pode ser desvinculada. A cisão parcial pode ser utilizada para constituir uma sociedade de propósito específico, para subsequente alienação de suas ações. Aí a UPI seria as ações da sociedade constituída por cisão parcial. Nessa hipótese, deve-se considerar também que a proteção contra a sucessão incide na alienação da UPI. A alienação - o ato protegido - ocorre após a constituição da UPI e o legislador não fez qualquer exigência relacionada à forma de constituição da UPI ou a atos societários que antecedem a alienação da UPI para conceder a proteção contra a sucessão. Por fim, os argumentos da doutrina e da jurisprudência no sentido de que o CTN não tratou da cisão no art. 132 por ser posterior à LSA caem por terra diante da superveniência da Lei Complementar 118/2005, que não se limitou a regular questões tributárias na falência e na recuperação judicial, tendo tratado de outras matérias, como por exemplo, a alienação de bens em fraude à execução. Assim, persistindo a omissão no CTN sobre a responsabilidade na cisão, estando a matéria sujeita à reserva de lei complementar, nos termos do art. 146, III, da Constituição da República, não há como excluir a aplicação do § 1º do art. 133 do CTN na alienação no processo de recuperação judicial de UPI que foi criada através de cisão parcial. 4. Conclusões A UPI pode ser definida como parcela do estabelecimento ou parte dos estabelecimentos do devedor empresário em recuperação judicial que, mesmo destacada do todo, permanece capaz de desenvolver atividade empresária de forma independente. Diante desse conceito, o instituto da cisão parcial é de grande valia na criação de UPI em processo de recuperação judicial, porque permite a criação de uma sociedade composta por uma ou algumas linhas de produção, ou por um ou alguns estabelecimentos do devedor. Um dos grandes avanços da LFR é a permissão de alienação na recuperação judicial de filiais ou de UPIs sem que o adquirente responda pelas obrigações do devedor, inclusive as tributárias, anteriores à data da alienação. O parágrafo único do art. 60 da LFR - que afasta a sucessão na alienação de UPI se prevista no plano de recuperação judicial - regulando a relação do devedor em recuperação judicial e seus credores que têm voz e voto na AGC, entre eles os credores trabalhistas, afasta a norma do direito societário que permite ao credor opor-se à exclusão da responsabilidade da sociedade criada por cisão parcial por dívidas anteriores à cisão, pelo critério da especificidade e em razão da prevalência da comunhão de interesses dos credores manifestada na AGC. À relação jurídico tributária, sujeita à reserva de lei complementar, não se aplicam as disposições da LSA sobre sucessão na cisão parcial. Nos casos em que seria possível atribuir à sociedade criada por cisão parcial a qualidade de sucessora da sociedade cindida, com base no caput do art. 133 do CTN, a sucessão na alienação da UPI na recuperação judicial é excluída pelo § 1º do mesmo dispositivo. A proteção contra a sucessão garantida pelo § 1º do art. 133 do CTN se aplica à alienação da UPI no processo de recuperação judicial, independentemente da forma utilizada para sua constituição, já que o legislador não estabeleceu restrições relacionadas a atos societários que antecederam a venda. O art. 132 do CTN não regula cisão parcial e sem tenha sido regulada em lei complementar é impossível imputar responsabilidade tributária ao adquirente da UPI criada através de cisão parcial, já que a matéria está sujeita à reserva de lei complementar. __________ 1 Art. 47 - A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 2 Nesse sentido é a autorizada lição de Eduardo Secchi Munhoz ao frisar que "A primeira dificuldade diz respeito às expressões 'filiais ou unidades produtivas isoladas', empregadas no caput do art. 60. Nesse passo, o legislador não adotou a melhor técnica, na medida em que as referidas expressões não possuem um significado jurídico próprio". (SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio A de Moraes (coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 298-299). 3 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (coord.). Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 404. 4 Sobre o conceito de atividade econômica organizada impõe-se a leitura do artigo do Professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa em PAIVA, Luiz Fernando Valente (coord.) Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 71-94. 5 Ob. cit., p. 404. 6 LAMY FILHO, Almeida; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1.769, v. II. 7 "Art. 146 - Cabe à lei complementar: (....) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, (...)". 8 Art. 229. (...) "§ 1º Sem prejuízo do disposto no art. 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato de cisão: no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. (...) Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão." 9 Conforme SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de Empresas e Falência, Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina Brasil, 2016, p. 183. 10 "Art. 35 - A assembleia geral de credores terá por atribuições deliberar sobre: I - na recuperação judicial: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor;" 11 Sobre a assembleia geral de credores leia-se o magnifico estudo do Professor Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França. Temas de direito societário, falimentar e teoria da empresa. São Paulo: Malheiros, 2009, p.7-26. 12 Nesse sentido a orientação do Tribunal Superior do Trabalho: "RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. AQUISIÇÃO DE UNIDADE PRODUTIVA ISOLADA (UPI) DE EMPRESA EM PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUCESSÃO TRABALHISTA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. No que diz respeito à sucessão trabalhista prevista nos artigos 10 e 448 da CLT, esta Corte Superior, na esteira do entendimento consolidado pelo STF no julgamento da ADI 3934/DF, tem se posicionado no sentido de que o objeto da alienação na recuperação judicial está livre de qualquer ônus, nos termos preconizados pelo artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/2005. Isso porque o aludido artigo, ao dispor sobre a alienação prevista no plano de recuperação judicial, desonera o arrematante de unidades produtivas isoladas, não havendo falar em sucessão dos créditos trabalhistas. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. (RR-20100-66.2016.5.04.0781, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 14/02/2019). 13 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Ob. cit., p. 1.748. 14 Curso de Direito Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar. 2002, p. 236. 15 AMARO, Luciano, Direito Tributário Brasileiro, São Paulo. Saraiva, 10ª Edição, 2004, p. 315. 16 Ob. HIN, Vanilda Fátima Maioline. Responsabilidade Tributária na Falência e na Recuperação Judicial. In: SANTOS, Paulo Penalva (coord.). A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas - Lei 11.101/2005. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 470.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa A pandemia tem causado grande impacto no funcionamento das empresas brasileiras. De acordo com a "Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas1", realizada em junho pelo IBGE, 522 mil empresas fecharam desde o início da pandemia. Em relação às empresas que se mantiveram em funcionamento, 70% relataram efeitos negativos da pandemia nas suas atividades, 34,6% demitiram funcionários, sendo que, dentre as empresas que reduziram seus quadros, 29,7% cortaram mais da metade dos postos de trabalho. De acordo com os dados divulgados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged, o Brasil perdeu 1.198.363 vagas de trabalho formal no primeiro semestre de 2020. A gravidade da situação é revelada pela comparação com o primeiro semestre de 2019, quando foram criados 408 mil postos de trabalho formal. Diante desse panorama, há um consenso de que as empresas precisam de auxílio para que consigam atravessar esse momento de crise aguda e para que continuem a gerar empregos, tributos, produtos, serviços e riquezas, que são essenciais para a recuperação da economia brasileira. As principais economias mundiais são dotadas de sistemas de insolvência empresarial e oferecem às empresas devedoras o acesso ao processo de recuperação judicial, como forma de auxilia-las a superar a crise. Essa é, sem dúvida, uma forma efetiva de se preservar empregos, negócios, produtos, serviços e circulação de riquezas em geral. O Brasil também possui um sistema de insolvência empresarial que prevê a recuperação judicial de empresas como ferramenta de superação da crise. Entretanto, deve-se considerar que o Poder Judiciário brasileiro já opera no limite de sua capacidade de absorção de demandas. Segundo Nota Informativa divulgada em 17/07/2020 pela Secretaria de Pesquisa Econômica do Ministério da Economia (Choques Adversos do Covid-19: mobilidades do trabalho e do capital na atual conjuntura - A importância de legislações mais eficientes de falência e que estimulem a dinâmica no mercado de trabalho), espera-se que, num cenário de choque moderado, sejam ajuizadas 1.896 pedidos de recuperação judicial no Brasil. Há, portanto, um fundado receio de que o aumento significativo do ajuizamento de recuperações judiciais no Brasil possa causar o "colapso" do Poder Judiciário, que não teria condições de absorver esse grande volume de processos complexos num curto espaço de tempo. Daí o paradoxo da recuperação judicial em tempos de pandemia: a recuperação judicial é um mecanismo eficaz para ajudar as empresas a superar a crise, mas o aumento de casos de recuperação empresarial poderá colapsar o funcionamento da Justiça, fazendo com que os processos judiciais, inclusive os de recuperação empresarial, não tenham andamento célere e eficaz. Como neutralizar esse paradoxo? A primeira resposta correta é o estímulo à negociação extrajudicial como meio alternativo à jurisdição estatal. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recentemente uma Recomendação para que os Tribunais de Justiça instalem CEJUSCs empresariais que servirão como palco para que negociações prévias aconteçam, evitando-se o ajuizamento de ações complexas, como as ações de recuperação de empresas. Vale destacar que o CNJ chama a atenção para a necessidade de estruturação adequada dos CEJUSCs empresariais. O ato normativo destaca a necessidade de capacitação específica em matéria empresarial e remuneração adequada dos mediadores/conciliadores, bem como a possibilidade de utilização de câmaras privadas de negociação e mediação devidamente cadastradas pelos Tribunais. Entretanto, apenas a criação dos CEJUSCs empresariais pode não ser suficiente para o enfrentamento dessa crise, considerando a falta de estímulos para que os agentes de mercado cheguem a um acordo voluntário. Segundo dados revelados pela 5a edição da pesquisa do Sebrae2 o número de empresas que possuem dívidas em atraso e sem solução cresceu de 33% (na 2a ediçao) para 40% (na 5a edição). Por outro lado, apenas 18% das empresas que buscaram financiamento bancário tiveram êxito. Ainda segundo o Sebrae, apenas 12% das micro e pequenas empresas conseguiram renegociar suas dívidas. Os dados mostram que a negociação prévia sem os incentivos adequados pode apresentar resultados aquém de todo o seu potencial, mormente num período de crise aguda no qual o espaço de negociação é naturalmente limitado pela fragilidade econômica de devedores e também de credores. Os melhores resultados pressupõem a criação de incentivos legais que potencializem as negociações, como a criação de proteções semelhantes àquelas disponíveis aos devedores que estão em recuperação judicial. Analisando-se os sistemas de insolvência empresarial das economias mais relevantes do mundo, é possível identificar que são dois os estímulos mais efetivos para induzir negociação entre credores e devedores, no contexto de uma reestruturação empresarial: a ordem judicial de stay (suspensão de execuções contra a devedora) e o acesso a fontes alternativas de financiamento pelas devedoras (principalmente o financiamento na modalidade DIP). Ocorre que, no sistema brasileiro de insolvência, o stay e o financiamento DIP são medidas que os devedores conseguem obter somente a partir do ajuizamento da ação de recuperação judicial. A solução para o paradoxo parece ser, então, conceder aos devedores essas proteções do sistema de insolvência, mas sem obriga-los a ajuizar um pedido de recuperação judicial. Vale dizer, deve-se criar um sistema em que o devedor possa ficar protegido por uma ordem judicial de stay e ter acesso ao financiamento DIP durante uma negociação prévia, antes mesmo de ajuizar um pedido de recuperação judicial. Essa é, aliás, a tendência de algumas das mais relevantes economias da Europa e da Ásia. A França, o Reino Unido e Singapura, por exemplo, criaram ou aperfeiçoaram mecanismos de pré-insolvência empresarial que têm como objetivo antecipar a proteção necessária para incentivar a negociação prévia de forma efetiva. Segundo Aurélio Gurrea-Martinez3, vive-se atualmente a "era da pré-insolvência". Os mecanismos de pré-insolvência são ações judiciais desburocratizadas e que exigem atuação mínima do Poder Judiciário. São procedimentos de "toque leve", nos quais o Poder Judiciário apenas concederá a ordem de stay (presentes os requisitos objetivos previstos em lei) e garantirá a transparência necessária para que os credores financiem a recuperação da devedora, recebendo vantagens e proteções consideráveis em contrapartida. Dessa forma, o Poder Judiciário criará o ambiente necessário para que as negociações aconteçam no palco próprio, qual seja, nos CEJUSCs Empresariais. Percebe-se que os mecanismos de pré-insolvência aumentam a capacidade de absorção dessas demandas simplificadas pelo Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, oferecem às empresas a proteção necessária para que as negociações prévias ocorram de maneira mais eficaz. Ademais, os mecanismos de pré-insolvência previnem o ajuizamento de centenas de outras ações relacionadas ao inadimplemento da devedora em razão da ordem de stay e da coletivização da solução desses conflitos. Vale destacar o recente Corporate Insolvency and Governance Act 2020, em vigor desde 20 de junho de 2020 no Reino Unido. Os britânicos, além dos mecanismos já existentes, com destaque para o Light-Touch Administration (LTA), criaram mais um novo mecanismo de pré-insolvência denomiado Moratorium. O novo mecanismo da Moratorium concede às empresas uma possibilidade de se reestruturar, protegidas por uma ordem de stay, mas sem a necessidade de terem de ajuizar as ações tradicionais de insolvência empresarial. Basicamente, concede-se à devedora uma proteção do stay por 20 dias úteis (podendo ser prorrogado ou reduzido) mediante a demonstração de que suas atividades foram afetadas pela crise da pandenia (com utilização de um critério de avaliação flexível - more likely than not), possibilitando que se inicie uma negociação coletiva com os credores. Dessa forma, concede-se à empresas uma opção mais fácil, barata e menos burocrática para que possam obter a reestruturação, preservando-se a funcionalidade do Poder Judiciário, na medida em que evitam-se ajuizamentos de ações altamente complexas. É chegada a hora no Brasil de pensarmos nos mecanismos de pré-insolvência como forma de resolvermos, na esteira das melhores experiências mundiais, o paradoxo da recuperação judicial em tempos de pandemia. __________ 1 IBGE. 2 Agência Sebrae. 3 The Future of Reorganization Procedures in the Era of Pre-Insolvency Law.
terça-feira, 21 de julho de 2020

A hipoteca judicial e o concurso de credores

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira Notável acórdão foi proferido pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial de São Paulo, no julgamento do agravo de instrumento nº 2020462-46.2020.8.26.0000, com relatoria do Desembargador Pereira Calças. Foi examinado recurso contra decisão proferida em habilitação de crédito em processo de falência de uma construtora. Consta que o credor celebrou contrato de compra e venda de um imóvel, que mais tarde rescindiu. Ao não conseguir reaver o dinheiro que já havia pago, promoveu a respectiva ação, julgada procedente. A particularidade e a razão de toda a discussão é a seguinte. Ao obter a sentença de procedência, o autor fez o seu registro no Registro de Imóveis, e, então, com isso, caracterizou a chamada hipoteca judiciária1. Munido da sentença e do registro dela no álbum imobiliário, requereu a classificação do seu crédito na classe do artigo 83, II, da lei 11.101/05, o que foi rejeitado em primeiro grau, que classificou o crédito como quirografário (art. 83, VI). O recurso de agravo foi acolhido, para reconhecer a garantia real do crédito. O acórdão está amplamente fundamentado, com abundante citação doutrinária, e com a maestria de sempre do desembargador relator. O caso desperta interesse porque a hipoteca judiciária é instituto de pouco uso entre nós e o resultado do julgamento dá-lhe uma importância prática relevante. É preciso considerar que houve notável modificação legislativa a respeito da hipoteca judiciária, instituto razoavelmente controvertido. Já se disse que a hipoteca judiciária é uma excrescência, uma aberração2, tendo sido rejeitada em outros países porque "A sentença não pode criar meios de garantir o direito do credor; ela deve limitar-se a reconhecê-lo e declará-lo de acordo com os princípios: é esta a missão do juiz quando expede o decreto judicial"3. Seja como for, a hipoteca judicial está presente em nosso ordenamento jurídico desde as Ordenações Filipinas, passando pela lei 1.237, de 24/09/1864 (primeira lei hipotecária do Brasil, art. 3º, § 12, bastante preocupada com a especialização da hipoteca, para superar as críticas à chamada hipoteca geral então reinante), Decreto 169-A, de 19/01/1890 (artigo 3º, §11), que é a segunda lei hipotecária brasileira. O Código Civil de 1916, no artigo 824, disciplinou a matéria, que foi também objeto de cuidado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973. O Código de Processo Civil de 2015 inovou completamente a matéria, como veremos. Tal como disciplinada pelo artigo 824 do Código Civil de 1916, é certo que essa hipoteca não assegurava preferência do credor. Por isso a doutrina dizia que esse instituto não passava de "um preventivo de fraude, e nada mais"4. O artigo 824 do Código Civil de 1916 autorizava essa conclusão: "Compete ao exequente o direito de prosseguir na execução da sentença contra os adquirentes dos bens do condenado; mas, para ser oposto a terceiros, conforme valer, e sem importar preferência, depende de inscrição e especialização". Para a hipótese de o condenado alienar os seus bens, o registro da sentença condenatória assegurava ao credor o direito de sequela5. A definição de Clóvis Bevilaqua6 não deixa dúvida sobre a limitação da hipoteca judicial ao direito de sequela: "Hipoteca judicial, segundo já ficou indicado, é o vínculo real, que a lei faz nascer da sentença condenatória, sobre os bens do executado, para o efeito de responderem pela execução da sentença, caracterizando-se por ser mero direito de sequela, sem preferência, mas dependendo a sua eficácia de especialização e inscrição. É uma forma de hipoteca legal". O Código de Processo Civil de 1939, no artigo 284, pouco esclarecia a respeito: "Quando, em virtude de sentença, recair sobre os bens do condenado hipoteca judiciária, a respectiva inscrição será ordenada pelo juiz, mediante mandado, na forma da lei civil". Para Pedro Batista Martins7, autor do Código de Processo Civil de 1939, "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil". Influenciado por esse pensamento, pouco esclareceu sobre o significado da norma em questão8. A redação era um tanto confusa, pois não é a sentença que recai sobre os bens do condenado; a lei se limitava a autorizar o ingresso da sentença condenatória no registro de imóveis, por meio do procedimento registrário da especialização, que representará a hipoteca prevista no Código Civil. Já o Código de Processo Civil de 1973 trouxe redação muito superior, mas ainda com o acanhado alcance da hipoteca judicial ou judiciária, em atenção à disposição material do Código Civil de 1916, que continuava em vigor por ocasião de sua edição. O artigo 466 do Código de Processo Civil de 1973 estava assim redigido: "A sentença que condenar o réu no pagamento de uma prestação, consistente em dinheiro ou em coisa, valerá como título constitutivo de hipoteca judiciária, cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma prescrita na lei de Registros Públicos". A lei processual limitava-se a criar um efeito da sentença, anexo (Pontes de Miranda) ou secundário (Liebman), como esclareceu a doutrina. A sentença não constituía a hipoteca, pois o beneficiário da sentença condenatória podia ou não levá-la ao registro de imóveis. O registro e a necessária especialização da hipoteca é que a constituía. O efeito da hipoteca judiciária continuava previsto no Código Civil. Insista-se que o Código de 1973 falava em hipoteca judiciária, sem esclarecer o seu alcance, que só seria descoberto com a leitura do artigo 824 Código Civil de 1916, que excluía, expressamente, o direito de preferência. O Código Civil de 2002 não reproduziu norma com o teor do artigo 824 do CC de 1916. E então fez surgir a dúvida. Apesar de prevista no CPC/73, a hipoteca judiciária teria desaparecido? Ou ela continuou no sistema jurídico? Continuou com o mesmo significado do Código de 1916? Maria Helena Diniz defendeu a subsistência da hipoteca judiciária ao conjugar o artigo 466 do CPC de 1973 com o artigo 2.043 do Código Civil de 2002, que estabelece o seguinte: "Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constante de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código". Como esse dispositivo não tem o condão de repristinar o direito de sequela que o Código Civil de 1916 outorgava à hipoteca judiciária, esse artigo do Código Civil também se presta a interpretação oposta à propugnada pela ilustre Professora. É possível afirmar que o Código Civil de 2002 não incorporou a hipoteca judiciária, e, portanto, a lei de natureza processual perdeu a sua referência. Os eminentes Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira9, afirmaram que, doravante, a hipoteca judiciária produzia o direito de preferência, por aplicação do artigo 1.422 do Código Civil. Essa interpretação, não obstante a autoridade dos autores, também se ressente de problemas. A hipoteca judiciária é uma espécie de hipoteca legal, e as previsões do Título X do Código Civil, capítulo I, sob a rubrica das disposições gerais, cuidam da hipoteca convencional. O artigo 1.419 fala em "bem dado em hipoteca", o artigo 1.420 prevê que só aquele que pode alienar pode hipotecar. Já o artigo 1.421 cuida da indivisibilidade da hipoteca, que pode ser afastada por disposição expressa, o que também acentua o caráter contratual do dispositivo. O artigo 1.423 dispõe sobre anticrese, que depende de avença entre as partes. O artigo 1.424 fala em contratos de hipoteca. O artigo 1.425, I, dispõe sobre vencimento antecipado da dívida se o bem dado em segurança se deteriorar. O artigo 1.427 começa estatuindo salvo cláusula expressa. Todas essas hipóteses envolvem, sem dúvida, a hipoteca convencional. O artigo 1.422 do Código Civil, nesse contexto, restringe-se à hipoteca convencional. Tanto que o artigo 1.489, ao disciplinar a hipoteca legal começa estatuindo que "a lei confere hipoteca", arrolando, em seguida, as diversas hipóteses. Isto é, somente a lei expressa institui a hipoteca legal, e não uma inferência extraída da disciplina da hipoteca convencional. O Código de Processo Civil acabou por inovar completamente a matéria, cuidando de assunto de direito material10. O artigo 495, § 4º, estabelece que "a hipoteca judiciária, uma vez constituída, implicará, para o credor hipotecário, o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro". Jamais a hipoteca judiciária, em nosso direito, teve esse direito de preferência11, agora instituído por meio de um código de processo. Para o autor deste escrito, há dúvida sobre a sobrevivência da hipoteca judiciária no período que vai da vigência do CC 2002 à vigência do CPC de 2015. Vale retomar a lição de Pedro Batista Martins acerca do CPC de 1939: "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil". Cumprindo a missão própria de um código de processo, a hipoteca judiciária, tanto no CPC de 1939 como no CPC de 1973, mantinha conexão e dependência do instituto de direito material12. Como a hipoteca judiciária não mais foi mantida a partir do CC de 2002, desapareceu, correlatamente, a sua disciplina processual. É esse o ponto, de direito intertemporal, que chama a atenção no acórdão da Câmara Reservada. Consta do acórdão que a sentença foi registrada na matrícula do imóvel em 13/5/2003, e que a falência ocorreu em 1/11/2007. Nessa circunstância, por ocasião da constituição da hipoteca judiciária, estavam em vigor o Código Civil de 2002, que suprimira a hipoteca judiciária, e o CPC de 1973, que a mantinha, porém, sem lhe especificar o alcance. Até essa data, pode-se sustentar que não havia, entre nós, a hipoteca judiciária com o direito de preferência. O CPC de 1973, no artigo 466, referia-se a um direito material cujo significado - direito de sequela - havia sido revogado. A lei 6.015/73, por seu turno, em nada nos auxilia na solução do problema, pois se limita a autorizar o registro da hipoteca judicial (art. 167, I, 2), assim como autoriza o registro do dote (I, 17). O acórdão do TJSP tomou posição e entendeu presente o direito de preferência antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, na linha do quanto preconizado por prestigiada doutrina. Pode ser que o processo de falência ou mesmo o processo de recuperação judicial venha a representar o estímulo para que a hipoteca judiciária receba incremento no seu uso, pois é inegável a vantagem que tem o credor ao se enquadrar na ordem do artigo 83, II, da lei 11.101/05 ou na classe do artigo 41, II, da mesma lei. De outra parte, como muitos devedores têm inúmeras demandas judiciais, pode ocorrer uma abundância de registros de sentença condenatória, pois os credores certamente serão atraídos pela vantagem que a lei lhes oferece. Isso pode alterar a correlação de forças nos processos de recuperação judicial; pode ensejar discussão sobre o alcance da preferência decorrente da hipoteca judiciária no confronto com a hipoteca convencional, entre outras sutilezas que a prática é prodiga no suscitar. A hipertrofia do Código de Processo Civil, ao instituir preferência creditória, poderá causar alguma perplexidade. Por exemplo. Um acidente com duas vítimas. Ambas ajuízam ação indenizatória, separadamente. Uma obtém sentença favorável e registra a sentença, obtendo a hipoteca judiciária. Outra, vê julgado improcedente o pedido em primeiro grau e recorre. Enquanto isso, o devedor ajuíza a ação de recuperação judicial. O recurso daquele que fora derrotado é provido. Agora, porém, o registro do acórdão, com a finalidade de obter a hipoteca judiciária poderá até ser questionada. A solução para ambos os credores poderá não ser equânime. Uma outra situação. As duas vítimas do acidente promovem ação, que é distribuída a varas diferentes. Em um órgão jurisdicional a sentença é prolatada antes da outra, o que é comum; ambos os vencedores promovem, a seu tempo, o registro da sentença. A demora da prestação jurisdicional impõe, no âmbito da execução singular, tratamento distinto para cada um dos credores, cuja situação de direito material é idêntica, pois a demora na prolação da sentença implica a demora na obtenção do registro e da respectiva hipoteca judiciária. Por certo, no âmbito dos processos da empresa em crise, esses problemas e outros mais surgirão, cabendo aos tribunais encontrar a solução mais equânime. __________ 1 Como esclarece Ricardo Dip, a sentença condenatória está em potência para a hipoteca judiciária. Ela depende de especialização e registro. Não há hipoteca judiciária automática, tão só por força da sentença considerada como um fato. É esse fato levado a registro que institui a hipoteca judiciária. Como escreveu Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 20, Rio de Janeiro, p. 152, a sentença é um título, assim como o credor que obteve do devedor a escritura de hipoteca. "Tem título, falta-lhe o direito real". A eficácia anexa é um direito formativo gerador, e é pré-gravame. 2 Orlando Gomes, Direitos Reais, 10ª ed.Rio de Janeiro, Forense,1988, p. 360. Para Pedro Batista Martins, autor do Código de Processo Civil de 1939, "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil", cf. Comentários ao Código de Processo Civil, v. III. Rio de Janeiro, Forense, 1942, p. 333. 3 Dídimo da Veiga, Direito Hypothecário. Rio de Janeiro, Laemmert Editores, 1899, p. 133. 4 Amílcar de Castro, obra citada, p. 90. Para José Carlos Barbosa Moreira escreveu que a hipoteca judiciária "tem a função de garantir ao credor vitorioso a proficuidade da execução que eventualmente precise instaurar contra o devedor". 5 Tito Fulgêncio, Direito Real de Hipoteca, v. I, 2ª ed. Atualização de José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 219: "É a sequela, único efeito, virtude, força da hipoteca judiciária, significando que sujeita ope legis os bens imóveis do condenado, e, por vínculo rela, à execução da sentença, pode o exequente persegui-los onde estiverem, penhorá-los, excuti-los". 6 Direito das Coisas, v. II, 5ª ed. Atualização de José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro, Forense, s/d, p. 209. 7 Comentários ao Código de Processo Civil, v, V,5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 465. 8 Alfredo de Araújo Lopes da Costa, Direito Processual Civil Brasileiro, v. IV, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, estuda a fraude à execução e, ao examinar a responsabilidade de terceiro por dívida alheia, inclui a previsão do artigo 824 do Código Civil de 1916, após reproduzir o disposto nas Ordenações, Livro III, 84, 14:'O que tiver bens de raiz que valham o conteúdo da condenação, não os poderá alhear durante a demanda, mas logo ficarão hipotecados por esse mesmo feito e por esta ordenação, para pagamento da condenação'. Uma hipoteca sem preferência, apenas reduzida à sequela. Tal como no art. 824 do Código Civil. (itálicos do original). 9 Curso de Direito Processual Civil, v. 2, 5ª ed. Salvador, Juspodium, 2010, p. 374. 10 É curiosa a opção do legislador, que fez questão de derrogar normas do Código Civil, tidas como de natureza processual. Aparentemente, pretendia deixar cada código com sua própria missão, mas acabou por invadir a seara civilista. 11 Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, na 10ª ed. da obra já citada, afirmam que o CPC 2015 resolveu omissão legislativa do CPC de 1973 e dizem que "foi uma homenagem à coerência do sistema". Aludem ao artigo 1.422 do Código Civil. É questionável que o artigo 1.422 do Código Civil seja a fonte do direito de preferência da hipoteca judiciária. Cláudia Haidamus Perri, citada por Sérgio Shimura, Arresto Cautelar, 3ª ed., p. 349, nota 25, afirma que a falta de previsão da hipoteca judiciária no CC de 2002, e porque o art. 466 do CPC de 1973 não contém qualquer expressão equivalente a sem importar preferência, ter-se-ia a hipoteca judiciária nas mesmas condições das demais hipotecas. Isto é: quando a lei civil afasta a hipoteca judiciária, a lei processual a promove a patamares mas elevados... 12 Não vem ao caso, para este estudo, a velha discussão sobre o caráter processual ou não da hipoteca.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Sob a promessa de que ninguém terá uma lesão a seu direito sem uma solução estatal, a CF/88 reservou ao Poder Judiciário papel destacado na proteção à cidadania. O acesso à ordem jurídica justa resultou em uma multiplicidade de demandas. No ano passado foram propostas mais de 28 milhões de ações. A Magistratura tem alta produtividade, mas nossa despesa com o serviço judiciário é alta, se comparada com a de outros países. Há algo de errado no acesso à Justiça de forma descontrolada. Sem prejuízo de mudanças legislativas como a introduzida no processo trabalhista e que resultou em queda expressiva de demandas, e sem entrar na discussão acerca dos incentivos econômicos para uma desjudicialização dos conflitos, nota-se que a jurisprudência dos Tribunais Superiores passou a ser mais rigorosa na análise do interesse de agir, concluindo que o direito de acesso à Justiça deve ser responsável. A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo para análise" (Recurso Extraordinário 631.240). Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça passou a decidir que o consumidor não tem direito de exigir a exibição do instrumento contratual em juízo sem previamente ter solicitado o documento diretamente à agência bancária (REsp. 1.349.453). A releitura do princípio do acesso à Justiça pelos Tribunais Superiores foi acompanhada de modificações legislativas recentes (CPC e lei 13.140/2015) que enfatizaram a necessidade de solução adequada aos conflitos, não só pelo Poder Judiciário, mas também com o apoio da mediação e da conciliação. Nos termos do artigo 3º, § 2º do CPC: "§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados pelos juízes, advogados, defensores e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial". Como enuncia o art. 3º., parágrafo 3º do CPC, não há apenas um dever ético do advogado em estimular a solução consensual dos conflitos - por meio da efetiva negociação do devedor com seus credores antes do ingresso em juízo -, mas uma imposição legal. Embora o conciliador e o mediador possam ser atores relevantes na cena judicial, é preciso enfatizar a necessidade de uma nova visão acerca do acesso à Justiça, quando se trata de medidas colocadas à disposição do devedor para superação de sua crise econômica, especialmente neste momento trágico de pandemia da Covid-19. Muitas renegociações têm sido realizadas sem necessidade de qualquer recurso ao Poder Judiciário, pois os agentes econômicos perceberam que ajustar os contratos é a medida mais sensata. Nada mais correto porque, em um regime baseado na livre iniciativa econômica, quem tem o poder de vincular-se a outros agentes, assumindo obrigações, também tem a responsabilidade de buscar soluções para o reajuste das obrigações assumidas, adaptando-as aos tempos de pandemia. É importante ressaltar que a valorização da autonomia privada na solução da crise econômico-financeira é o modelo adotado desde 2005 pela lei 11.101. Aos diretamente afetados pela crise foi atribuído o papel de decidir acerca da melhor forma de superá-la, após uma negociação dos credores com o devedor, que resultará na aprovação ou rejeição do plano de recuperação. Porém, e aqui impõe-se a releitura do direito de acesso à Justiça no direito das empresas em crise, é preciso que o devedor que se apresenta ao Poder Judiciário demonstre ter iniciado tratativas extrajudiciais com seus credores, envidado esforços na negociação, realizado propostas razoáveis, e, além disso, que as medidas adotadas não foram suficientes para a negociação avançar e resultar em acordo que permita a superação da crise. É preciso atribuir-lhe o ônus de demonstrar, com documentos que acompanham a petição inicial, que necessita da proteção judicial para concluir o processo negociado de solução da crise já iniciado. Ademais, como a lei 11.101/2005 oferece ao devedor a opção da recuperação extrajudicial - mecanismo muito mais rápido e barato, e, portanto, mais eficiente para a solução da crise - cabe a ele igualmente demonstrar que o seu recurso à recuperação judicial se deve à impossibilidade de utilizar o meio menos oneroso. A recuperação extrajudicial, infelizmente, tem sido pouco utilizada, porém é um instrumento que pode oferecer segurança aos agentes econômicos. As lacunas legislativas a respeito de "stay period" e alienação de UPI podem ser supridas pelas normas aplicáveis à recuperação judicial. A exclusão dos créditos trabalhistas, previstas em 2005, foram superadas pelas alterações legislativas posteriores que valorizaram a autonomia da vontade dos trabalhadores na resolução dos contratos, redução de jornada e de salário. Temos mecanismos legais e adequados para a solução das crises e devemos utilizá-los. Não havendo, no âmbito privado, uma solução que possa ser implantada sem o risco de determinado credor dissidente impedir a solução coletiva mais vantajosa, então cabe ao devedor e aos credores aderentes um esforço qualificado na negociação, para a obtenção de adesão de mais de 3/5 e o uso da recuperação extrajudicial, meio menos oneroso e mais rápido para a solução da crise. E apenas em caso de insuperável necessidade, devidamente justificada, quando incapaz de obter uma adesão da grande maioria dos credores, mesmo tendo se empenhado na negociação, o devedor poderá se valer da recuperação judicial, por ser o meio mais oneroso aos credores, ao Estado, e à sociedade. Não podemos continuar, nos próximos meses e anos, repetindo o mesmo proceder dos quinze anos de vigência inicial da lei 11.101/2005. Advogados, assessores financeiros, empresários, bancos e sindicatos, além do Poder Judiciário, devem fazer um esforço coletivo para potencializar o uso da recuperação extrajudicial, reservando a recuperação judicial apenas aos casos de efetiva necessidade.
Texto de autoria de Carlos Alberto Garbi Em continuação à primeira parte deste artigo, agora pretendemos abordar outros pontos do novo regime italiano para o tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades. Aponta-se na doutrina italiana para a omissão do novo diploma a respeito das situações envolvendo grupos de sociedades caracterizados por intensa confusão patrimonial e organizativa entre as diversas sociedades integrantes, e grupos de sociedades constituídos sob a direção e coordenação de uma holding1. A questão da holding assume enorme interesse no tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades, porque o controle do grupo pode ser exercido por uma holding constituída como sociedade de capital, ou por uma holding individual, ou ainda por uma sociedade de fato ou por uma pessoa ou grupos de pessoas físicas. O controlador do grupo integra o grupo e por isso não pode ficar ao largo do processo que envolve a recuperação do grupo ou a sua liquidação. Essa questão tem sido também levantada na Itália em razão da redação dúbia e tímida que se deu à definição de grupo no CODICE. É necessário, de outra parte, ao admitir o tratamento da insolvência do grupo de sociedades, que a lei imponha o dever de transparência e informação analítica sobre a estrutura do grupo e sobre as relações das sociedades e seus vínculos, obrigação que mais avulta quanto aos grupos de fato, que representam a maioria ou a quase totalidade deste fenômeno2. Essa obrigação ocorre também quando o processo é promovido por uma única sociedade em relação de grupo, permitindo-se não só avaliar a possibilidade de comprometimento de outras sociedades do grupo e a responsabilidade interna das sociedades, como também a possibilidade do uso de outros meios alternativos para superamento da crise. Bem se poderia dizer que o dever de boa-fé basta para impor esta obrigação, mas a expressa disposição legal tem outro efeito. Um regime adequado aos grupos de sociedades na insolvência passa, nos casos de liquidação ou falência, não só pelas medidas propriamente de liquidação adequadas ao fenômeno plurissocietário, mas também pelo provimento de poderes ao administrador judicial para a propositura de eventual ação revocatória de atos e contratos intragrupo, necessário a prevenir ações do controlador do grupo em prejuízo da sociedade falida e em benefício de outra integrante do grupo. Passa, ainda, pela fixação de período suspeito mais amplo neste caso, em razão da natureza das relações envolvendo as sociedades. No CODICE esse período pode chegar a cinco anos (art. 290). Outro problema diz respeito à possibilidade dessa revocatória ser dirigida a uma sociedade que não está sujeita a liquidação, mas é integrante do grupo e foi beneficiada ou participou do ato ou negócio realizado em prejuízo da sociedade insolvente, ou nos casos em que o controle da sociedade é exercido por um holding ou por uma pessoa ou grupo de pessoas físicas. É preciso dotar a Lei de um regime de responsabilização do controlador do grupo, especialmente do grupo de fato, pelos atos de gestão praticados em violação aos princípios da correta gestão societária e da respectiva ação, no caso de liquidação ou falência, que não tem o alcance da ação revocatória. Não se pode transcurar, ainda, das hipóteses de responsabilidade solidária da sociedade controladora do grupo quando se verifique uma relação de grupo que se pode definir como de domínio total. São os casos de participação integral no capital da sociedade em liquidação (ex. subsidiária integral, sociedade unipessoal) ou de participação expressiva (mais de 90% do capital), ou ainda de controle total sobre a insolvente, assegurado por outro meio. Há outras questões envolvendo o grupo de sociedades na insolvência, especialmente em relação ao plano de recuperação. A lei deve oferecer flexibilidade para a realização de operações contratuais e reorganizativas das sociedades em relação de grupo, bem como operações de transferência de recursos intragrupo, e, também, a possibilidade de se decidir pela liquidação de uma e a continuidade de outra (art. 285). Também é necessário pensar na constituição do Comitê de Credores, e na nomeação do Administrador, quando existem planos unitário ou distintos, mas interligados, para as sociedades do grupo. Uma das questões mais interessantes, sem dúvida, é a possibilidade de apresentação de um plano unitário para as sociedades em relação de grupo, admitida pelo CODICE (art. 284.1.). Essa possibilidade abre a discussão sobre a forma de submeter a aprovação do plano unitário de recuperação à votação dos credores. A Lei italiana preferiu o critério da votação separada por sociedade envolvida e só considera o plano aprovado quando a proposta para cada uma das sociedades é aceita pelos respectivos credores. No entanto, aplicou o princípio da estabilidade do plano, impedindo a sua anulação ou resolução se a causa respectiva ocorrer em relação somente a uma das sociedades envolvidas (art. 286.7.) O plano unitário deverá respeitar a separação patrimonial das sociedades em relação de grupo, de forma que não é permitido neste caso a consolidação substancial. Prevê a lei italiana a possibilidade de oposição à homologação, em certas situações, de credores e sócios minoritários de uma sociedade singular em razão de operações que, previstas no plano de recuperação do grupo, poderão trazer a eles prejuízos por afetar a sociedade com a qual têm relações (art. 285). A oposição só terá acolhimento se da operação não se demonstrar que o benefício pode superar a vantagem compensativa. Há, portanto, um juízo pragmático de resultados, muito semelhante àquele que costuma ser considerado pelas decisões norte-americanas em face do Bankruptcy. Essa vantagem compensativa deve ser entendida como vantagem para o grupo de sociedades, e não exclusivamente para a sociedade singular observada. Essa interpretação decorre da admissibilidade de um plano unitário que compreende naturalmente a possibilidade de operações intragrupo e da busca de uma solução da crise que seja global, para todo o grupo. A questão mais difícil neste caso diz respeito a uma antiga discussão sobre as compensações necessárias nas relações de grupo, que acabou sendo acomodada (e não se pode dizer resolvida) pela chamada doutrina Rozemblum3, para a qual a compensação deve ser vista de forma mais abrangente e não apenas como contrapartida de um ato isolado. É, sem dúvida, uma das questões mais difíceis. Não se justifica impor prejuízo a uma sociedade singular, mesmo quando em benefício de todo o grupo, sem a devida compensação, que poderá ocorrer e ser compreendida, como referido, de forma mais abrangente e não apenas no plano de recuperação. A homologação do plano, em qualquer caso, unitário ou separado e interligado, dependerá da sua idoneidade, o que significa que deve representar para os credores um resultado melhor do que aquele que seria obtido com a liquidação da sociedade. É um princípio de larga aplicação nos processos de insolvência e que foi adotado expressamente pela lei italiana. O CODICE não cuidou de um tema que no Brasil tem se apresentado, inclusive em projetos de Lei, que é a questão da consolidação substancial. Foi criticado pela timidez. É um tema que não está previsto, igualmente, no Regulamento Europeu. Não é uma matéria fácil. Existem grupos de sociedades nos quais se verifica que não é observada a separação patrimonial entre as sociedades integrantes. Há confusão de patrimônio, uso em comum de recursos humanos e materiais, coincidência de gestores, mesma sede das sociedades e dificuldade até de identificação do controle. Esta promíscua relação das sociedades impede ou dificulta a organização de um plano de recuperação para as sociedades singulares em relação de grupo, assim como dificulta a adoção de medidas necessárias à recuperação no âmbito do grupo. Por forte influência norte-americana, admitiu-se raros casos na jurisprudência brasileira de consolidação substancial, permitindo-se que o grupo seja visto como uma unidade patrimonial, sem distinção de massas, para organizar um só plano de recuperação. Esta solução não está imune a toda sorte de críticas, porque fere frontalmente o princípio fundamental do direito societário de separação patrimonial, mas pragmaticamente, não obstante a irregular situação na qual as sociedades se encontram, vale o esforço para admitir um plano desta natureza se for possível oferecer ao conjunto de credores uma solução melhor do que a liquidação. Existem outras situações, e não só a confusão patrimonial, a suscitar a consolidação substancial, mas o nosso propósito foi abordar nesta oportunidade somente alguns aspectos interessantes do CODICE DELLA CRISI DI IMPRESA E DELL'INSOLVENZA, que podem ser aproveitados no nosso direito a respeito da insolvência nos grupos de sociedades. As questões aqui suscitadas revelam que o tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades não deve ser feito somente a partir da inclusão, por lei reformadora, de dispositivos em favor da consolidação processual e substancial. Outras questões decorrentes podem ser também contempladas para não deixar incompleto o trabalho reformador. O modelo italiano, concebido em estágio avançado dos estudos do Direito da Insolvência na Europa, oferece boas soluções que podemos aproveitar. __________ 1 A respeito consultar o artigode Giuliana Scognamiglio "La crisi e l'insolvenza dei gruppi di società: prime considerazioni critiche sulla nuova disciplina", publicado na Rivista Telematica "Orizzonti del Diritto Commerciale", Fascicolo 3|2019. 2 É uma obrigação prevista no CODICE: Art. 289 Domanda di accesso e obblighi di informazione e collaborazione 1. La domanda di accesso a procedure di regolazione della crisi o dell'insolvenza presentata da un'impresa appartenente ad un gruppo deve contenere informazioni analitiche sulla struttura del gruppo e sui vincoli partecipativi o contrattuali esistenti tra le societa' e imprese e indicare il registrodelle imprese o i registri delle imprese in cui e' stata effettuata la pubblicita' ai sensi dell'articolo 2497-bis del codice civile. L'impresa deve, inoltre, depositare il bilancio consolidato di gruppo, ove redatto. In ogni caso il tribunale ovvero, successivamente, il curatore o il commissario giudiziale possono, al fine di accertare l'esistenza di collegamenti di gruppo, richiedere alla CONSOB o a qualsiasi altra pubblica autorita' e alle societa' fiduciarie le generalita' degli effettivi titolari di diritti sulle azioni o sulle quote ad esse intestate. Le informazioni sono fornite entro quindici giorni dalla richiesta. 3 Essa doutrina, que ficou conhecida nos anos oitenta pelo famoso caso Rozemblum na França, e pelo caso Tetrafin na Itália, já nos anos noventa. Sustenta que a desvantagem da sociedade dependente não pode ser examinada isoladamente, mas deve ser valorada em razão das vantagens que derivam do fato de pertencer ao grupo, colhidas pela sociedade dependente. O balanço entre os sacrifícios e vantagens deve ser valorado no conjunto de relações entre a sociedade dependente e a sociedade dominante. Essa doutrina foi expressamente adotada pela reforma italiana de 2003 e prevalece na França. A desvantagem não corresponde a um dano e por isso a teoria não cuida de compensar o dano com um lucro. São desvantagens que se compensam com vantagens ou benefícios. Entende-se que o dano só ocorre quando a desvantagem não for compensada a tempo.
Texto de autoria de Carlos Alberto Garbi A lei 11.101/2005 introduziu no Direito brasileiro um novo modelo para o tratamento da crise e da insolvência das sociedades empresariais. Influenciada pelo direito estrangeiro, especialmente norte-americano, criou uma solução negociada entre o devedor e credores para superar a crise econômica-financeira da empresa, deslocando o centro decisório do Juiz para os credores. Só tivemos oportunidade de testar a lei a partir da crise econômica de 2008, e mais intensamente, a partir de 2014, quando vivemos o início de uma crise política com reflexos na economia. O resultado não foi satisfatório quanto à recuperação das empresas. É sabido que a maior parte das empresas que recorreu ao processo judicial de recuperação não voltou ao mercado nas condições anteriores e muitas sucumbiram. Há vários problemas com a lei em vigor, o que motivou um movimento para a sua reforma. Nesse sentido algumas tentativas foram feitas. As mais recentes são registradas no Governo Temer e agora, com a crise pandêmica, pelo Projeto emergencial de autoria do Deputado Hugo Leal (Proj. 1.297/2020), já aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal. Um dos pontos que tem sido objeto desse movimento de reforma diz respeito ao tratamento da crise e da insolvência no âmbito dos grupos de sociedades. Não temos no direito brasileiro uma disciplina societária adequada para os grupos de sociedades, fenômeno cada vez mais presente na vida das sociedades empresárias e que oferece, pela sua complexidade, muitos desafios aos juristas. A lei brasileira (lei 6.404/76) tentou regular os grupos de sociedades formalmente constituídos, ignorando os grupos de fato, que são a imensa maioria. E não há nenhum regime legal para os grupos de sociedades na crise e na insolvência, não obstante o trabalho construtivo da jurisprudência. O legislador brasileiro ainda não olhou com atenção para o fenômeno plurissocietário e a jurisprudência pouco se ocupa de distinguir as possíveis formas de coligação societária, incluindo a maior parte delas, sem critério maior, em uma noção abrangente de grupo econômico, o que tem causado distorções. A preocupação com a crise das empresas e a insolvência tem ocupado nos últimos anos a atenção da maior parte dos países ocidentais, verificando-se um intenso movimento de renovação legislativa nos países do civil law. Recentemente a União Europeia aprovou a Diretiva 2019/1023, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (sobre reestruturação e insolvência). Pouco antes, entrou em vigor na Europa o Regulamento 2015/838, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, que dedicou parte da sua atenção aos grupos de sociedades, estabelecendo medidas de coordenação dos processos de insolvência envolvendo sociedades em relação de grupo. Não foi além da "coordenação" dos processos, cuja autonomia e separação foram mantidas. Em razão das normativas do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, os países-membros procuraram adaptar a sua legislação. A Itália aprovou recentemente, pelo decreto legislativo 14, de 12 de maio de 2019, por força da Lei Delegada nº 155, de 19 de outubro de 2017, o CODICE DELLA CRISI DI IMPRESA E DELL'INSOLVENZA ("CODICE"), que regula de forma inovadora, no direito italiano, a insolvência no âmbito do grupo de sociedades, e que deverá entrar em vigor em 1 de setembro de 20211. O propósito desta breve abordagem é apontar as medidas legislativas adotadas neste novo diploma, que poderiam ser aproveitadas no Direito brasileiro, restringindo-se o exame ao tratamento da crise e da insolvência nos grupos de sociedades. E o interesse pela reforma italiana não está apenas no fato de que é o mais moderno diploma europeu sobre o tratamento da insolvência, mas está igualmente na influência que o direito comercial italiano e europeu tem sobre o Direito brasileiro. A reforma italiana, no que diz respeito ao grupo de sociedades, seguiu duas diretrizes: de um lado, se permitiu o tratamento unitário dos diversos procedimentos concursais das sociedades integrantes do grupo, que no CODICE são a concordata preventiva, o acordo de reestruturação de dívidas e a liquidação judicial, quando esta unidade for vantajosa para os credores; de outro lado, se reforçou a necessidade de manter distintas as massas ativas e passivas das sociedades em relação de grupo, não obstante a gestão unitária do procedimento2. Um primeiro ponto a chamar a atenção diz respeito à adoção, para efeito do tratamento de insolvência, de uma definição flexível de grupo de sociedades, que pode acomodar as mais variadas formas em que se apresenta esse fenômeno, fundada na ideia, que tem prevalecido, de que a relação de grupo se caracteriza pela existência de direção e coordenação unitárias, seja o grupo participativo ou contratual, paritário ou não3. Essa flexibilidade considera, corretamente, as múltiplas formas de organização dos grupos de sociedades, que não podem ser reduzidas a um só tipo ou modelo para o tratamento da insolvência. Já tivemos oportunidade de defender, em investigação que fizemos em sede acadêmica, ainda não publicada, que o conceito de grupo de sociedades para efeito de tratamento da insolvência pode ser mais abrangente, e menos rígido, do que ele é no campo societário. Esse foi o caminho seguido pela Lei italiana. Há uma tendência de ver nas Leis de Insolvência uma espécie de microssistema que labora conceitos próprios e flexíveis. O legislador moderno, brasileiro e europeu, sempre cuidou nos últimos anos da insolvência em diplomas separados, o que sugere e autoriza modelar noções adequadas ao melhor tratamento da matéria em favor de uma relativa autonomia que vem sendo reconhecida ao Direito de Insolvência. É o que, de certa forma, tem se verificado em recentes decisões dos Tribunais no Brasil com o alargamento da definição de empresário para admitir o uso da recuperação judicial em favor de produtores rurais e associações, o que se tem feito por um esforço de interpretação. Cabe registrar que o Projeto de Lei do Deputado Hugo Leal referido amplia ainda mais esta definição para alcançar os "agentes econômicos". Outro ponto relevante se encontra na possibilidade de apresentação de um plano unitário de recuperação ou de liquidação, bem como na possibilidade de apresentação de planos paralelos, mas interferentes ou interdependentes, para cada uma das sociedades em relação de grupo, assegurando-se, em ambos os casos, a plena autonomia e separação patrimonial entre as sociedades. Essa possibilidade, admitida pela Lei Italiana, não encontra paralelo no direito brasileiro, não obstante contar com o apoio de boa doutrina. Os projetos de modificação da lei em vigor no Brasil contemplam essa possibilidade. Há um aspecto substancial na relação de grupo que não tem sido levado em consideração no tratamento das questões relacionadas à crise das empresas, e especialmente nos processos de recuperação judicial, que é justamente a característica mais distintiva da relação de grupo, qual seja a existência de uma direção unitária. Evidentemente, não se pode esperar para o superamento da crise do grupo que as decisões não sejam tomadas de forma unitária. Separar as sociedades do grupo ou afastar as sociedades dos seus controladores, e os respectivos planos de recuperação, é medida que contraria a própria existência e a natureza do grupo de sociedades e que se revela desfuncional no tratamento da crise, sem prejuízo da separação das massas patrimoniais societárias. Em outras palavras, não se reproduz na fase de crise ou insolvência a mesma unidade de direção que caracteriza o grupo de sociedades e, muito frequentemente, se nega a possibilidade do Grupo governar a crise no processo de recuperação, impondo-se soluções separadas para cada uma das sociedades. Impede-se, quase sempre, que a sociedade controladora ou holding possa continuar a exercer o poder de direção que sempre existiu no grupo de sociedades, e quando ela própria se vê envolvida, também se nega a ela a prerrogativa de dirigir outras sociedades do grupo em favor do superamento da crise. Em favor de uma interpretação voltada ao modelo de sociedade singular, se anula a possibilidade de uma solução global da crise para o grupo. A flexibilidade que se defende para a definição de grupo é também a flexibilidade que se deve dotar a Lei para o tratamento da crise no âmbito dos grupos de sociedades, permitindo-se a solução unitária para o grupo - processo unitário, com o máximo de coordenação compatível com a separação das massas patrimoniais. Também deve ser aberta a possibilidade de levar somente uma das sociedades do grupo ao processo de recuperação, quando essa solução representar medida de maior eficiência e resultado. O CODICE atuou nesse sentido. Na segunda parte deste artigo vamos abordar a questão do controlador e da holding nos processos de recuperação e liquidação, bem como da consolidação processual e substancial e respectivos procedimentos. *Carlos Alberto Garbi é pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre Pela PUC/SP. Professor da FMU/SP. Advogado, consultor, parecerista e desembargador aposentado do TJ/SP. __________ 1 O Decreto-legge n. 23/2020 prorrogou a entrada em vigor do novo CODICE de agosto de 2020 a 1° de setembro de 2021, em razão da pandemia. O novo CODICE está sujeito a modificações corretivas e integrativas até 14 de agosto de 2022 (Legge 8 marzo 2019, n. 20 (Gazz. Uff. 20 marzo 2019, n. 67). A Lei italiana utilizou de boa técnica de aprimoramento legislativo e determinou a entrada em vigor de poucos dispositivos, de menor relevância, em até trinta dias, e deixou um período maior, de dois anos, para a vigência por inteiro do novo regime, prevendo modificações legislativas de correção e integração. 2 Giuseppe Fauceglia. Il Nuovo Diritto Della Crisi e Dell'Insolvenza. Torino : G. Giappichelli Editore, 2019, p.213-214. 3 O CODICE definiu o grupo de sociedades no seu art. 2.1. "h": «gruppo di imprese»: l'insieme dele societa', delle imprese e degli enti, escluso lo Stato, che, ai sensi degli articoli 2497 e 2545-septies del codice civile, sono sottoposti alla direzione e coordinamento di una societa', di um ente o di una persona fisica, sulla base di un vincolo partecipativo o di um contratto; a tal fine si presume, salvo prova contraria, che: 1) l'attivita' di direzione e coordinamento di societa' sia esercitata dalla societa' o ente tenuto al consolidamento dei loro bilanci; 2) siano sottoposte alla direzione e coordinamento di una societa' o ente le societa' controllate, direttamente o indirettamente, o sottoposte a controllo congiunto, rispetto alla societa' o ente che esercita l'attivita' di direzione e coordinamento.
Texto de autoria de Marcelo Sacramone O projeto de lei 1.397/2020 visa a alterar pontualmente a legislação falimentar diante de um novo contexto social: uma pandemia que assola o mundo todo, com um isolamento social que já dura meses e o perigo cada vez mais iminente de uma crise econômica de proporções assustadoras. O PL, aliás, é temporário. Sua proposta é a de possuir um caráter transitório, até 31 de dezembro deste ano, justamente para "acomodar o impacto econômico da pandemia causada pelo coronavírus sobre empresas em dificuldades econômicas"1. Ele foi aprovado no último dia 21/05/2020 e segue, agora, para deliberação pelo Senado Federal. A intenção do PL - na mesma linha que a de tantos outros que vêm surgindo nos últimos anos para atualizar a lei 11.101/2005 - certamente é a de otimizar a eficiência do processo de recuperação judicial, ainda que nestes períodos sombrios de pandemia e isolamento social. É praticamente fato notório que o tempo é inimigo dos empresários em crise (mesmo durante a recuperação judicial), e contra ele todos os sujeitos do processo devem travar uma luta incessante2 - acrescida, agora, da preocupação com o coronavírus. Nada obstante, boas intenções não bastam para uma solução adequada. É preciso uma análise bastante atenta dos possíveis efeitos que a alteração legal pode causar num mercado já enfraquecido e na dinâmica dos agentes econômicos, devedores e credores, todos afetados, em pequeno ou maior grau, pela pandemia. Há de se lembrar que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, decreto-lei 4.657/1942) foi alterada em 2018 e, com a inclusão dos artigos 20 e seguintes, passou a prever o que vários já chamam de um consequencialismo jurídico no ordenamento pátrio. Nenhuma autoridade (das esferas administrativa, controladora e judicial, nos dizeres da lei) pode decidir "sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Além disso, a Lei de Liberdade Econômica, em seu art. 5º, exige que qualquer edição ou alteração de ato normativo editado por órgão da administração pública federal devam ser precedidas da realização de análise de impacto regulatório. Ambos os dispositivos legais não fazem referência ao poder legislativo. Em boa lógica, contudo, é no mínimo prudente que alterações legais sejam feitas após um exame cauteloso de suas consequências ou efeitos, sob pena não apenas de os objetivos pretendidos não serem alcançados, como de agravar a situação justamente daquilo que se pretendia proteger. Metáforas simplesmente não garantem que os resultados pretendidos serão obtidos. A primeira delas é que se pretende adequar o "relógio financeiro ao relógio econômico" para se permitir que mercado se recupere. Ainda que absolutamente nenhum número tenha sido produzido, ou discutido, o projeto vai no sentido absolutamente oposto do pretendido. Para permitir que o devedor, mas não o mercado, se recupere, o projeto possibilita que os agentes econômicos deixem de pagar seus débitos por 120 dias, ao menos. O "período de suspensão legal" de pelo menos de 30 dias (art. 5º) e o período de negociação preventiva (que permite suspensão por mais 90 dias - art. 6º) não impõem nenhuma contrapartida ou ônus ao devedor. Cria-se, assim, um incentivo a que todo devedor se utilize efetivamente dessa verdadeira moratória de 120 dias, em que expressamente as multas não podem ser exigidas, as garantias não podem ser excutidas, os contratos não podem ser resilidos, assim como os créditos não podem ser executados. Decerto a saúde financeira do devedor seria beneficiada. Contudo, o projeto parece esquecer que o financiamento do devedor é feito às custas de outro agente econômico, o credor também afetado econômica e financeiramente pela pandemia. Pelo projeto, o credor é compelido a financiar, sem análise do risco e sem eventualmente condições financeiras, o devedor inadimplente. Como consequência, o projeto pode suspender a circulação de riquezas, comprometer o fluxo de pagamentos e, por fim, tornar o próprio credor um devedor também inadimplente, com o aprofundamento da crise já existente. Outra metáfora comumente utilizada ao versar sobre o projeto é seu intuito de "achatar a curva de demanda" das recuperações judiciais e impedir o colapso do judiciário. Não se mensurou, entretanto, sequer o impacto da crise econômica e qual sua repercussão nos pedidos de recuperação judicial. Suas disposições, contudo, vão no sentido diametralmente oposto. O projeto estende a negociação coletiva a todos os agentes econômicos e não se restringe ao conceito de empresário. A alta demanda, criada pelo próprio projeto, é direcionada ao Judiciário numa data certa e única para todos os agentes: o término dos primeiros 30 dias de período de suspensão. Isso porque a negociação preventiva, incentivada pela Lei a milhões de agentes econômicos, é inexplicavelmente um processo judicial no projeto de lei, ainda que voluntário. Sua alternativa judicial exigirá o olhar insone do juiz sobre questões de legitimidade para a negociação preventiva, como o status de agente econômico, a queda do faturamento, débitos submetidos, etc. A desjudicialização de atividades mais burocráticas, ou que possam ser resolvidas de forma consensual, é uma realidade crescente no direito brasileiro - inventário e divórcio são bons exemplos de procedimento que podem se desenvolver de forma bem mais célere e barata em cartórios, extrajudicialmente. Não há motivo para não aplicar essa lógica também ao direito das empresas em crise. Em um período de incertezas, como é o presente, quem tem as melhores condições de saber o que é melhor para as empresas em dificuldade é o próprio mercado. Logo, na inexistência de razões em contrário, é mais adequado deixar a ele a responsabilidade por tomar tais decisões, ao passo que o Poder Judiciário permanece inerte, firme em sua nobre missão de garantir o acesso à ordem jurídica justa apenas depois que o mercado falhar em adjudicar uma solução adequada para a crise que já se aproxima. O projeto, nesses termos, não endereça os principais problemas e que exigem aprimoramento na legislação de insolvência, como a agilização do processo de liquidação de empresas, aumento da segurança para venda de bens, definição de hipótese factível para que o empresário individual falido, mas de boa-fé, possa voltar a empreender, ou limita temporalmente a responsabilidade dos sócios como incentivo a empreender. Sem absolutamente nenhuma mensuração das regras propostas, o projeto não apenas pode não combater os efetivos problemas a serem enfrentados pela crise econômica que deve advir da Covid-19 como pode provocar justamente o seu aprofundamento, com sua disseminação a todos os agentes do mercado. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 1/6/2020. 2 Ver: WAISBERG, Ivo; SACRAMONE, Marcelo; NUNES, Marcelo Guedes; CORRÊA, Fernando, Judicial Restructuring in the Courts of São Paulo - Second Phase of Insolvency Monitor (Recuperação Judicial no Estado de São Paulo - 2ª Fase do Observatório de Insolvência) (April 26, 2019). Disponível em SSRN: aqui ou aqui, p. 45.
Texto de autoria de Andre Roque Diante da grave crise sanitária da Covid-19 pela qual passa o mundo, com evidentes impactos para a economia brasileira - especialmente diante do fechamento do comércio e das restrições a diversas atividades econômicas -, uma das principais preocupações do Poder Público se voltou à preservação das empresas. Nessa direção, foi apresentado o PL 1.397/2020, de iniciativa do Dep. Hugo Leal (PSD/RJ), recentemente aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado para apreciação do Senado Federal. Referido projeto, em síntese, busca disciplinar o regime emergencial de prevenção à insolvência. Referido projeto, com vigência limitada a 31 de dezembro de 2020, estabelece, entre suas principais medidas, a estruturação de um procedimento de negociação preventiva, com prazo máximo de 90 dias corridos, desde que o devedor comprove "redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) de seu faturamento, comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, o que será verificado e devidamente atestado por profissional de contabilidade". Apresentado o pedido de negociação preventiva, ocorrerá a suspensão, também pelo prazo de 90 dias corridos, de execuções contra o devedor que tenham por objeto obrigações vencidas após 20 de março de 2020, ressalvados créditos de natureza estritamente salarial e de contratos firmados ou repactuados após 20 de março de 2020. Ainda, durante esse período, o devedor será beneficiado, com o afastamento de multas de mora previstas em contrato ou decorrentes do inadimplemento de obrigações tributárias, ficando vedadas: (i) a excussão judicial ou extrajudicial das garantias reais, fiduciárias e fidejussórias contra o devedor e terceiros garantidores; (ii) a decretação de falência; e (iii) a resilição unilateral de contratos bilaterais, sendo considerada nula qualquer disposição contratual nesse sentido, inclusive de vencimento antecipado. Esgotado o prazo de 90 dias corridos, o procedimento será encerrado, independentemente do desfecho das negociações. Caso requerida recuperação judicial ou extrajudicial, o período de suspensão já usufruído pelo devedor no âmbito do procedimento de negociação preventiva será descontado do período de standstill de 180 (cento e oitenta) dias estabelecido pela lei 11.101/05 para a recuperação judicial ou extrajudicial. Finalmente, entre outras medidas relevantes estabelecidas pelo Projeto de Lei em análise, nos termos aprovados pela Câmara, podem ser destacadas as seguintes: a) a inexigibilidade das obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores, pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contados da vigência da nova lei; b) a autorização para que seja apresentado, dentro do prazo de 120 (cento e vinte) dias, contados da vigência da nova lei, novo plano de recuperação judicial ou extrajudicial, tenha ou não sido homologado o plano original em juízo, com direito a novo período de standstill; c) no plano de recuperação extrajudicial, a redução do quórum de credores que o assinarem de 3/5 para a metade mais um dos créditos de cada espécie por ele abrangidos; d) a majoração do limite mínimo para a decretação da falência fundada em impontualidade do devedor de 40 (quarenta) salários mínimos para R$ 100.000,00 (cem mil reais); e e) na recuperação judicial de microempresas e empresas e pequeno porte, o plano poderá prever o pagamento dos créditos por ele abrangidos em até 60 (sessenta) parcelas mensais, corrigidos pela Selic, com o primeiro pagamento, no máximo, em 360 (trezentos e sessenta) dias após ser formulado o pedido de recuperação. Não se duvida dos propósitos louváveis do Projeto de Lei, relacionados à preservação das empresas e dos empregos frente aos nefastos efeitos da pandemia. Contudo, causam preocupação os termos com que referida proposta legislativa acabou sendo aprovada na Câmara dos Deputados. Como já apontado em outro texto que tivemos a oportunidade de escrever, a respeito do ônus da argumentação especificada nas demandas revisionais que têm por pano de fundo a Covid-19, "é preciso separar o joio do trigo - ou seja, as demandas minimamente plausíveis das ações judiciais oportunistas. Em meio a uma crise de espectro amplo como a que se apresenta, não é difícil imaginar que alguns a utilização como cortina de fumaça para que seja chancelado em juízo o seu inadimplemento"1. Nesse sentido, admite o Projeto de Lei que qualquer "agente econômico", entendido este como "a pessoa jurídica de direito privado, o empresário individual, o produtor rural e o profissional autônomo que exerça regularmente suas atividades" (art. 2º, § 1º), dê início ao procedimento de negociação preventiva, bastando para isso apenas que comprove redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) de seu faturamento, comparado com a média do último trimestre correspondente no exercício anterior. Tal previsão é insuficiente para afastar eventuais demandas oportunistas. Primeiro, porque não se exige a demonstração de efetivo desequilíbrio patrimonial, que pode simplesmente não ter se verificado, em que pese a queda de faturamento. Basta pensar, nessa direção, no devedor que consegue reduzir suas despesas no mesmo patamar ou até maior que sua redução de faturamento ou na empresa que havia espontaneamente optado por reduzir suas atividades tradicionais para concentrar seus recursos em nova atividade que lhe pareça contar com maior potencial de crescimento. Segundo, não se exige a demonstração de causalidade da queda de faturamento, que pode decorrer de má gestão da empresa ou de outras circunstâncias que nada têm a ver com o cenário de pandemia. Seria absurdo, por exemplo, que um supermercado se valesse desse procedimento se ele não teve o seu funcionamento comprometido. Terceiro, não se prevê nenhuma sanção para o devedor que, de má-fé, lança mão do procedimento de negociação preventiva para suspender indevidamente a ação de seus credores. Caso o Projeto de Lei venha a entrar em vigor em sua última versão, há o risco de que inúmeros procedimentos oportunistas de negociação preventiva venham a inundar o Poder Judiciário, trazendo insegurança jurídica, com impactos sistêmicos imprevisíveis no risco-país e na taxa de juros, entre outros indicadores econômicos. Quarto, parecem excessivas a vedação indiscriminada à excussão de garantias contra os terceiros garantidores - que podem ter extenso patrimônio pessoal, decisivo para a concessão do crédito para a empresa em crise - durante o período de negociação coletiva e a previsão de inexigibilidade das obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores. Ainda que tais medidas possam, no caso concreto, serem convenientes, deveria o Projeto de Lei exigir alguma demonstração mínima de sua necessidade, sob pena de legitimar eventuais comportamentos oportunistas. Ao que parece, o Projeto de Lei em análise se preocupou apenas com um dos lados da relação - o devedor -, sem se atentar para os possíveis impactos trazidos pela pandemia para o credor e, principalmente, para o mercado de crédito. Para que seja concedido o crédito, é preciso que o credor tenha ciência dos riscos a que se submete, o que não se compatibiliza com o risco de que sejam ajuizadas demandas judiciais oportunistas, ao arrepio dos objetivos perseguidos pelo legislador. Não se nega, em absoluto, a possibilidade de intervenção estatal nas relações jurídicas privadas, mas ela deve ser realizada com parcimônia e sempre se atentando para os diversos interesses em jogo. Se a preservação da atividade econômica é um dos valores a serem tutelados pelo ordenamento jurídico, não é menos verdadeiro que a recuperação de crédito e a segurança jurídica não podem ser desprezadas, como condições essenciais para possibilitar a recuperação econômica de nosso país. Por hoje, ficamos por aqui. Até a próxima! __________ 1 Andre Vasconcelos Roque, O ônus da argumentação especificada nas demandas revisionais com base na Covid-19. Migalhas, disponível aqui. Acesso em 23/5/2020.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho A Constituição Federal garantiu aos juízes vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, em nome de um bem maior e em prol da cidadania: a solução dos conflitos com independência. O juiz não está obrigado a seguir este ou aquele entendimento, deste ou daquele Tribunal, exceto em situações excepcionais, como a da súmula vinculante enunciada pelo Supremo Tribunal Federal. O juiz deve estar equidistante das partes, ouvir os litigantes, oferecer-lhes oportunidades de produzir provas e proferir o seu julgamento, de acordo com a interpretação adequada da lei, apta a melhor solucionar o conflito. É comum, no Direito, que não haja uma adesão absoluta e geral de toda a comunidade jurídica quanto à melhor aplicação da lei para a solução de determinado conflito, sendo uma constante a existência de pontos de vista contrários e respeitáveis. Por isso mesmo, a lei protege os magistrados contra medidas judiciais ou administrativas que busquem puni-lo por eventual interpretação que faça de um dispositivo legal. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que, em não havendo impropriedade ou excesso de linguagem, ao magistrado não pode ser cerceada sua liberdade de julgar com independência. A Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB já ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da denominada "Lei de Abuso de Autoridade" porque interferiria na independência do julgador na sua missão de julgar. Nessa linha da raciocínio, cabe aos juízes de falências e recuperações judiciais, com equilíbrio e serenidade, no exercício de sua relevante missão constitucional, ponderar todos os aspectos envolvidos no cumprimento de um plano de recuperação. Liberar um devedor do pagamento de obrigações, sem prova da real incapacidade de cumprimento do plano, pode repercutir de forma grave na situação financeira dos credores, a ponto de falirem, com maior dano econômico-social. Pode ocorrer que um devedor em recuperação judicial integre um dos segmentos econômicos que aumentaram as vendas com as medidas de combate à pandemia da Covid-19. É de se perguntar: podem os credores, diante de uma elevação extraordinária da receita de 50% dessa recuperanda, pedir que o deságio de 25% constante do plano aprovado seja reduzido? Ou que a dívida retorne à condição originária? Há casos de devedores em recuperação com as portas fechadas e com produtos consignados. Não seria razoável permitir que parte dos prejuízos dos produtores fosse reduzido, permitindo-lhes a restituição de parte dos produtos, a fim de que pudessem se valer de outros canais de vendas? Também há devedoras que já estavam com seus planos descumpridos e cuja decretação de falência tornou-se inevitável, não havendo como evitar-se a continuidade de um negócio que consome recursos mês a mês em detrimento de credores que aguardam a satisfação de seu crédito há muito tempo. O juiz tem como seu auxiliar o administrador judicial, que, na fiscalização das atividades da devedora, pode ser intimado para apresentar um relatório acerca da realidade econômico-financeira decorrente das medidas sanitárias de combate à pandemia e o impacto no cumprimento do plano. O juiz poderá ouvir os credores e tomar alguma medida urgente ou não, e convocar ou não a assembleia geral de credores, mas sempre atento à realidade para a qual a professora Paula Forgioni chamava a atenção: "a empresa não existe sozinha, mas somente na relação com outras empresas e com os adquirentes de seus produtos e serviços".
Texto de autoria de Luiz Dellore Introdução A assembleia geral de credores (AGC) é ato de grande importância para a recuperação judicial. Nesse momento, os credores (divididos em 4 classes), se reúnem para deliberar sobre matérias de interesse comum e, em especial, para a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora. O assunto já foi enfrentado por mim, em coautoria, nesta coluna. Em um 1º texto, apresentou-se uma visão geral acerca do que ocorre em uma AGC1, ao passo que em um 2º texto, o tema foi aprofundado, especialmente quanto ao direito de voto e o que acontece quando há cenários distintos para votação (principalmente em virtude de liminares proferidas às vésperas da AGC)2. Neste momento, o texto trata da possibilidade de uma AGC ser realizada de maneira virtual. 1) Da previsão legal Não há previsão, na lei 11.101/2.005 (a Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF), de uma assembleia realizada por meio online. Assim, de uma maneira geral, as assembleias são realizadas presencialmente, em locais que vão variar de acordo com o porte da assembleia: desde uma pequena sala de reunião em um escritório (quando há poucos credores) até mesmo um ginásio esportivo ou galpão de exposição (quando há muitos credores). Em raras situações, havia notícias de AGCs realizadas de maneira virtual3. Em projeto de lei para alterar a LRF, passa a existir previsão legal expressa de AGC por meio eletrônico. 2) A pandemia covid-19 Eis que 2020 chegou e, em março, a pandemia estava entre nós. Como é notório, passamos a conviver com quarentena, distanciamento social, prazos suspensos4 e Judiciário fechado. Nesse contexto, o que fazer com os processos de RJ (cujos prazos não são processuais, segundo decidido pelo STJ5) e, especialmente, as AGCs? O CNJ editou, no final de março, recomendação acerca de diversos aspectos relativos às recuperações judiciais e falências6. Dentre as recomendações, constou expressamente que as AGCs presenciais deveriam ser suspensas, mas que autorizada a realização de reuniões virtuais quando isso for necessário para a manutenção das atividades empresariais da devedora e início dos pagamentos aos credores. Ou seja, o CNJ - no âmbito de sua atividade de administração do Judiciário - editou ato normativo no sentido de expressamente autorizar AGCs virtuais em virtude da pandemia do coronavirus. 3) Análise de caso: A AGC da Odebrecht Possivelmente um dos primeiros casos após a pandemia e a resolução do CNJ, houve a designação de AGC virtual no processo relativo à recuperação judicial da construtora Odebrecht7. Nessa RJ, logo após o início da pandemia, houve decisão no sentido de que a AGC seria realizada por meio virtual. Vale destacar o seguinte, da decisão do juiz JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO: "(...)defiro o pedido de continuidade de realização da AGC do Grupo Odebrecht a ser realizado em ambiente virtual, com a metodologia e os protocolos estabelecidos pelo administrador judicial, nos termos de sua petição de fls. 29.048/29.053, devendo o auxiliar do Juízo engendrar todos os esforços para manutenção da transparência do ato e da higidez da manifestação de vontade dos credores." Diante dessa decisão, houve interposição de agravo de instrumento por alguns credores8 e, ao decidir o efeito suspensivo, o TJSP, por meio do relator Des ALEXANDRE LAZZARINI, afirmou o seguinte: "No tocante ao ambiente virtual, não se verifica qualquer irregularidade em sua realização, desde que o sistema funcione durante toda a reunião (o que só poderá conhecer após a realização do conclave), permitindo que todos possam exercer seu direito de voz e voto, com amplo acesso aos documentos apresentados durante a AGC. (...) defiro parcialmente a liminar pleiteada, a fim de proibir qualquer deliberação na AGC do dia 31/03/2020, incluída a deliberação sobre a consolidação substancial, podendo, porém, iniciarem-se os debates, com manifestação dos credores, possibilitando, assim, esclarecimentos sobre o novo plano apresentado, além da designação de sua continuidade. Nova assembleia, com a finalidade de deliberação, não deverá ocorrer em prazo inferior ao de 20 dias corridos (e não sujeitos a suspensão dos prazos processuais decorrentes da COVID 19), contados a partir da AGC de 31/3/2020". Ou seja, decidiu-se que (i) não havia problema na realização de AGC online, mas (ii) deveriam ser observados os prazos mínimos previstos em lei para a convocação (art. 36 da LRF). Diante dessa decisão, optou-se por realizar a AGC apenas após o prazo indicado pelo relator. Com isso, foi realizada apenas uma AGC virtual, já para deliberação. Assim, a administradora judicial providenciou o sistema necessário para isso. Os credores com direito de voto tiveram um acesso específico, com possibilidade de participação em chat para fins de votação. De seu turno, ainda houve a possibilidade, para aqueles que assim solicitaram, de participar como ouvintes (logo, sem a possibilidade de interação ou voto, por certo), mediante um link para a transmissão via youtube. A AGC contou com participação de credores, debates, esclarecimentos e votações. Os resultados das votações, por exemplo, foram expostos da seguinte forma: A AGC durou mais de 6 horas - longo, mas nada muito distinto daquilo que ocorre em uma AGC usual, e possivelmente mais rápido que se fosse um encontro não virtual. Assim, pode-se dizer que reproduziu, em grande parte, aquilo que se vê uma assembleia presencial. E, ao menos nessa AGC específica, não houve nenhum problema mais grave de tecnologia - como por exemplo ocorreu em sessão virtual de julgamento do STF9. Portanto, sob uma perspectiva formal e analisando exclusivamente a realização da assembleia por meio eletrônico, o saldo é positivo. 4) E após o fim da pandemia? AGCs virtuais seguirão sendo possíveis? Como já mencionado, não há previsão legal, na LRF, para a realização de AGCs virtuais10. Sendo assim, passada a quarentena, seria possível falar-se em realização de assembleias online? Ou somente se houver alteração legislativa isso será possível? Por óbvio que há mais de uma resposta a essa questão. Mas, em meu entender, a resposta é afirmativa, por diversas razões. A uma, pois não há vedação expressa na LRF a respeito de uma AGC online, nem obrigação expressa de que a AGC seja presencial. A duas, porque no momento da edição da lei, a tecnologia que temos hoje não existia; ou seja, com a brutal evolução dos aplicativos de comunicação, em pouco tempo a transmissão de vídeo e áudio mudaram completamente11, o que permite maior confiabilidade e estabilidade às comunicações eletrônicas e possibilidade de realização de encontros por meio virtual. A três, pelos princípios processuais da cooperação, economia processual, celeridade e duração razoável do processo, uma AGC virtual é preferível a uma AGC presencial. Isso porque traz ganhos de tempo para todos (evitando deslocamento entre cidades, estados e países - ou, no caso de grandes cidades como SP ou RJ, mesmo na própria cidade), economia para a recuperanda (evitando custos elevados de locação de espaço para realização da AGC) - e, consequentemente, ganhos para todos os credores e numa atitude colaborativa entre todos. Assim, dentre outros, considerando esses três motivos, entendemos que, mesmo sem alteração legislativa, é possível a realização de uma AGC online12. E, por certo, todos os requisitos para a AGC previstos em lei devem ser observados, como por exemplo prazo mínimo para a sua convocação - o que, como já exposto, foi o que motivou a concessão de liminar em agravo de instrumento no caso concreto analisado no tópico anterior. Ademais, compete ao administrador judicial (i) garantir um ambiental adequado virtual para o número de credores da RJ, (ii) possibilitar que os credores com mais dificuldades tecnológicas (possivelmente os credores da classe I - trabalhistas) tenham acesso à AGC e (iii) que no caso de problemas técnicos, a AGC seja suspensa e/ou adiada, de modo que não haja prejuízo à vontade dos credores. Tudo, é claro, sob a supervisão e eventual correção de rumos do magistrado, se e quando provocado pelas partes interessadas. E, por óbvio, nada obsta que haja lei regulamentando a AGC virtual. Mas não se trata de algo obrigatório. Situação semelhante a essa se verificou no passado, em relação à penhora online. Quando surgiu o sistema o sistema Bacen-Jud, não havia previsão legal acerca disso. O debate se instalou na doutrina e jurisprudência, com entendimentos para ambos os lados, no sentido da possibilidade sem lei ou obrigatoriedade de lei para que permitida a penhora online. Após muita discussão, a jurisprudência firmou-se pela possibilidade da penhora online mesmo sem lei - mas posteriormente isso foi incorporado ao CPC. Esse pode ser um paradigma para a AGC virtual; afinal, a tecnologia que traz ganhos ao trâmite processual não deve ser limitada. Conclusão A AGC é dos mais importantes momentos do procedimento da recuperação judicial, senão o mais relevante. Ainda que não haja previsão legal de AGC virtual, com a pandemia do Covid-19, estão ocorrendo assembleias virtuais, com o apoio e estímulo do CNJ. Após o fim da pandemia, parece-nos que as AGCs virtuais podem e devem prosseguir, ainda que não haja alteração legislativa. Isso porque a AGC virtual não é vedada pela lei, a tecnologia hoje existente permite isso e princípios processuais estimulam isso. Além disso, a AGC ser virtual ou presencial é mais uma questão de forma do que de fundo - tal qual, no passado, o debate em relação à penhora ser física ou online. Vejamos como se portará a jurisprudência em relação a isso quando, finalmente, a pandemia e o distanciamento social forem passado. *Luiz Dellore é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Visiting Scholar na Syracuse University e Cornell University (EUA). Professor de Direito Processual do Mackenzie, Escola Paulista do Direito e Saraiva Aprova. Advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-assessor de ministro do STJ. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). __________ 1 Em coautoria com Andressa Borba Pires. 2 Com a mesma coautora. 3 Como por exemplo no caso da Zamin Mineradora, em processo que tramitou em SP (1088747-75.2015.8.26.0100) e a mineradora exercia atividades no Amapá, conforme decidido pelo juiz PAULO FURTADO. Nesse caso, a AGC foi realizada de forma presencial em SP, mas com transmissão e possibilidade de intervenção e voto em Macapá (fls. 15118: "Visando a ampla divulgação da solenidade haverá transmissão ao vivo em Macapá, via videoconferência, a ser realizada no Auditório da Ordem dos Advogados do Brasil do Amapá (OAB/AP), situado na Rua Binga Uchôa, 26, Central, Macapá/AP, CEP. 68900-090, tanto na primeira convocação (dia 15/08/2019) como na segunda convocação (dia 22/08/2019)". 4 Acerca do tema, conferir. 5 Sobre o assunto. 6 O texto por ser conferido aqui. 7 A decisão foi proferida pelo magistrado JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO, que inclusive tratou do assunto AGC virtual em coluna anterior. 8 AI 2057008-03.2020.8.26.0000 e AI 2055988-74.2020.8.26.0000, por exemplo. 9 A respeito. 10 No projeto de reforma da lei, existe essa possibilidade, com a inclusão de um parágrafo no art. 39: "§ 4º Qualquer deliberação prevista nesta Lei, para ocorrer por meio de assembleia geral de credores, poderá ser substituída, com idênticos efeitos, por: I - termo de adesão firmado por tantos credores quantos satisfaçam o quórum de aprovação específico, nos termos estabelecidos no art. 45-A; II - votação realizada por meio de sistema eletrônico que reproduza as condições de tomada de voto da assembleia geral de credores; ou III - outro mecanismo reputado suficientemente seguro pelo juiz e que venha a ser proposto pelo credor interessado". O projeto pode ser acessado aqui. 11 Nesse exato sentido, o professor e magistrado JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO, na já mencionada coluna anterior: "A lei 11.101/2005 não previu a possibilidade de realização de AGC em ambiente virtual de maneira expressa. Contudo, devemos compreender que no momento de sua edição não havia disseminação tão maciça e segura dos meios de comunicação eletrônicos, decorrente da evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, fruto do dinamismo do mercado e das atividades empresariais". 12 No final de texto anterior sobre AGC (muito antes do Covid-19) já iniciamos a defesa dessa posição: "Assim, as formalidades da AGC podem e devem ser repensadas para, por exemplo, se colher eletronicamente os votos dos credores, de forma a conferir maior praticidade e economicidade ao ato, evitando-se deslocamentos e custos desnecessários para sua realização".
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho A pandemia relativa ao coronavírus covid-19 promoveu tremenda reviravolta na vida social em nível mundial. A despeito de debates sobre o grau de intensidade que deva prevalecer acerca das medidas de isolamento social, é fato que a reclusão das pessoas em suas casas importou severa diminuição na circulação de riquezas, de natureza empresarial, financeira e consumerista, com impacto direto e imediato em nível micro e macroeconômico. Como bem sintetizado por Cássio Cavalli1: É consabido que diversas empresas passam por grave crise financeira decorrente da interrupção de cadeias de suprimento e da redução abrupta de demanda. O faturamento de muitas empresas sofreu uma acentuada redução, sem que, no entanto, as suas obrigações fossem suspensas. Há um monumental descompasso entre o tempo econômico e o tempo financeiro, conforme a síntese de Lawrence Summers descrita pelo site da Bloomberg: "o tempo econômico parou por causa da pandemia, mas o relógio financeiro continuou a girar. Pagamentos de juros, aluguéis e outras obrigações ainda se vencem, mas o dinheiro para arcar com eles secou". O resultado desse descompasso é a crise empresarial de proporções épicas que estamos para enfrentar. Para algumas empresas, o problema será exclusivamente financeiro. Tão-logo vencida a pandemia, cadeias de suprimento tornarão a funcionar e a demanda retornará. Para estas empresas, é fundamental que sejam adotadas medidas de alívio financeiro que possibilitem que as suas agendas de pagamento sejam sincronizadas com o tempo econômico de seus faturamentos. Ninguém espera que empresas sejam fechadas pelo fato de que a terra parou de uma só vez. No Dia da Marmota não se vencem boletos dos meses seguintes. Além da crise financeira, outras empresas poderão enfrentar problema mais grave após vencermos a pandemia, pois a demanda por certos produtos ou serviços pode não se reestabelecer, dando origem a crises econômicas. Nesse caso, muitas empresas não terão como pagar suas dívidas e terão que fechar suas portas. Os impactos dessas falências serão sentidos por toda a economia. Os Poderes da República vêm adotando medidas extraordinárias voltadas a mitigar a crise econômica, buscando proporcionar, o tanto quanto possível, a conservação das estruturas econômicas existentes e dos empregos e, também, para evitar o colapso das relações comerciais e civis, com fomento à continuidade de contratos vigentes. Isso pode ser visualizado através da injeção de recursos financeiros ou mediante propostas legislativas de disciplina de relações jurídicas nesta situação de anormalidade vivida em nosso meio social. Especificamente em relação ao sistema de insolvência, ao lado dos profícuos debates e ideias surgidos no meio jurídico, há de se destacar a propositura do PL 1397/2020 pelo Deputado Hugo Leal, voltado a instituir medidas de caráter emergencial mediante alterações, de caráter transitório, de dispositivos da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005; que somente terão vigência até 31 de dezembro de 2020, ou enquanto estiver vigente o decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020 (reconhecimento do estado de calamidade pública em razão da pandemia causada pelo covid-19), além de outras providências2. Seu escopo é a manutenção das estruturas econômicas existentes, privilegiando-se a via negocial para a solução da crise econômico-financeira experimentada pela retração do volume de transações, através de procedimento de jurisdição voluntária, de modo a se impedir a proliferação do ajuizamento de demandas judiciais contenciosas, que somente produziria a pulverização de entendimentos jurídicos diversos sobre temas semelhantes e colapsaria o já assoberbado Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, também atento à crise econômica resultante da anormalidade social imposta pela pandemia do covid-19, editou a Recomendação 63, de 31 de março de 2020, contendo diretrizes voltadas a auxiliar os juízos com competência para decidir questões afetas a recuperações judiciais e falências na interpretação da lei 11.101/20053. Mesmo que a solução de lege ferenda acima mencionada venha a ser implementada no ordenamento jurídico e de posse da Recomendação do Conselho Nacional de Justiça voltada aos processos de insolvência, ainda assim os operadores do direito enfrentarão dificuldades e desafios para a aplicação da lei 11.101/2005, diante do dinamismo dos fatos que se apresentarão no cotidiano do meio empresarial e forense. O que ora se propõe é uma mera reflexão sobre a leitura e compreensão de ferramentas já existentes, sejam elas normativas lato sensu, sejam de ordem extrajurídicas, a fim de que soluções possam ser construídas com o objetivo de se conferir plena efetividade à ratio essendi dos institutos da falência e da recuperação judicial, sem qualquer pretensão de esgotamento do tema e com a mente aberta à críticas construtivas que possam surgir, afastando-se as maléficas consequências do efeito Dunning-Kruger. Muitas vezes, ao aprofundarmos os estudos e discussões sobre determinados temas, acabamos por esquecer conceitos básicos e fundantes do próprio sistema, seja de ordem geral ou de algum microssistema jurídico existente. Ao olharmos para nossa Constituição Federal, quando há o tratamento sobre a ordem econômica, a eleição do Poder Constituinte foi pela economia de livre mercado, que deveria servir como instrumento para assegurar a dignidade da existência das pessoas, tendo como valores fundamentais, dentre outros, a propriedade privada, cujo exercício deve ser sempre limitado pelo cumprimento de sua função social4. A função social, por sua vez, é uma cláusula geral pelo fato do seu conteúdo possuir um conceito indeterminado. Conceitos indeterminados, segundo José de Oliveira Ascensão5: Os conceitos indeterminados trazem orientações formais. São formais, no sentido que não trazem imediatamente uma solução. É necessário que o intérprete, à luz delas, valore o caso concreto, para que a solução se torne visível. Assim, quando se fala em justo impedimento ou na diligência de um bom pai de família, dá-se um critério valorativo, nos termos do qual será possível depois verificar o que no caso concreto consista num justo impedimento ou representa a diligência devida. Mas para a valoração da função social ou de outros conceitos indeterminados não precisamos recorrer ao subjetivismo de cada operador do direito. De proêmio se faz necessária a análise da própria ordem jurídica vigentes e das regras devidamente positivadas, as quais podem funcionar muito bem como o parâmetro valorativo da cláusula geral que se pretende aplicar no caso concreto. Em outras situações, entretanto, existe a necessidade de se promover uma releitura dos termos da lei, a fim de que seu texto continue a alcançar os fatos da vida para os quais ela foi criada. Segundo Caio Mario da Silva Pereira6: A interpretação da lei, como processo mental de pesquisa de seu conteúdo real, permite ao jurista fixá-lo tanto em relação com a forma do comando coetâneo de seu aparecimento como ainda nas situações que o desenvolvimento das atividades humanas venha a criar, inexistentes quando de sua elaboração, porém suscetíveis de subordinação à sua regra em tempo ulterior. Essa pesquisa de vontade legal, que, de tão importante e construtiva, não falta quem classifique como última fase da elaboração normativa, sob o fundamento de que a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, ou dela extrai, afina em essência com o conceito valorativo da disposição, e conduz o direito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditados há anos, há décadas, há séculos, e que hoje subsistem somente em função do entendimento moderno dos seus termos. Na verdade, só o esforço hermenêutico pôde dar vida ao nosso Código Comercial, publicado em 1850 e revogado - parcialmente - somente pelo Código Civil de 2002, diante da complexidade da vida mercantil de nosso dias; só pela atualização do trabalho do intérprete é possível conceber-se o vigor do Código Napoleão, que vem de 1804, ou a sobrevivência dos Cânones da Constituição Americana de 1787. É o que ocorre com a lei 11.101/2005, que foi fruto de percepção da comunidade jurídica e do Poder Legislativo à época, sobre a necessidade de profunda alteração das normas do direito de insolvência, que já não mais se mostravam adequadas para solucionar as questões apresentadas ao Poder Judiciário. No próprio relatório do Substitutivo do PLC 71/20037, o Senador Ramez Tebet reconheceu a necessidade de mudança da legislação de insolvência do país, que já não mais atendia às necessidades da sociedade e da economia, verbis: O PLC nº 71, de 2003, tem por objetivo ab-rogar e substituir a atual Lei de Falências, posta em vigor pelo quase sexagenário Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, que, muito embora tenha, por seus reconhecidos méritos, servido durante tanto tempo à disciplina da matéria, não é mais adequado às necessidades da sociedade e da economia brasileira, dadas as numerosas e profundas alterações que ocorreram nas práticas empresariais no Brasil e no mundo nas últimas seis décadas É muito comum na prática forense a ocorrência de lacunas na lei e até mesmo a necessidade de alterações legislativas de temas afetos ao direito empresarial, justamente pela velocidade com que as atividades empresariais introduzem novas realidades e práticas no mercado. A própria lei 11.101/2005 é objeto de trabalho de alteração pontual em seus termos na tramitação do substitutivo do PL 10.220/18 em discussão na Câmara dos Deputados. Em que pese o trabalho de aprimoramento legislativo, o fato é que a lei 11.101/2005 necessita sempre de uma interpretação lógica, ontológica, teleológica e extensiva de seus termos, com a conformação de seu texto à realidade imposta pelo dinamismo da atividade empresarial e econômica, trabalho já realizado pela jurisprudência como forma de maximizar a utilização dos instrumentos legais dispostos para melhor atender aos reclamos sociais e de mercado. Nesse passo, o entendimento que deve ser extraído dos termos da lei 11.101/2005 deve estar em consonância com a sua própria essência, com o sistema jurídico vigente, com os avanços tecnológicos e o dinamismo do mercado, a fim de que os institutos preconizados na lei de insolvência possam ter o alcance necessário para funcionar como instrumento legítimo de resolução de questões pelo Poder Judiciário. O Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto no julgamento do REsp 1.337.989, forneceu importante entendimento sobre o processo hermenêutico da lei 11.101/2005, assim vernaculamente posto: Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto. Com as medidas de isolamento social, não obstante a produtividade do Poder Judiciário e o seu pleno funcionamento através de procedimentos remotos, em caráter de home office, diversos atos de processos de recuperação judicial e de falência precisaram ser obstados, diante da impossibilidade de comparecimento presencial para a sua realização. Um dos maiores exemplos é a realização de assembleias gerais de credores. Muitas estavam em vias de acontecer e outras em fase de continuidade do conclave. Mas com as determinações governamentais de isolamento social, a regra geral foi a paralisação de tais eventos. Todavia, existem determinadas atividades que necessitam da conclusão do seu processo de negociação para, em caso de aprovação do plano, haja possibilidade de concretização da retomada do soerguimento, através da reestruturação da atividade e da entrada de novos recursos resultantes dos meios escolhidos para o processo de recuperação da empresa. A lei 11.101/2005 não previu a possibilidade de realização de AGC em ambiente virtual de maneira expressa. Contudo, devemos compreender que no momento de sua edição não havia disseminação tão maciça e segura dos meios de comunicação eletrônicos, decorrente da evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, fruto do dinamismo do mercado e das atividades empresariais. Diante de todos esses elementos, mister se conferir aos termos legais atinentes à AGC o melhor alcance que se compatibilize com os objetivos da lei 11.101/2005, notadamente no que tange ao instituto da recuperação judicial e aos seus objetivos estatuídos no art. 47 do aludido diploma legal. A realização da AGC em ambiente virtual é medida que se coaduna com o respeito às medidas de distanciamento social promulgadas pelos órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, sem prejuízo da busca pelo soerguimento da atividade por meio da continuidade da discussão e votação do PRJ apresentado pelas recuperandas. Isso porque, na atualidade, existem diversas plataformas digitais seguras que possibilitam a plena participação de credores e ouvintes, com instrumentos que garantam o direito de voz e de obtenção dos esclarecimentos necessários às negociações, além de possibilitar a colheita hígida dos votos lançados para o cômputo do quórum previsto nos arts. 42 e 45 da lei de regência, conforme a espécie a ser votada. A própria comunicação entre os credores é facultada nas plataformas aplicadas, sem prejuízo da utilização dos meios de comunicação dispostos a qualquer do povo, acessíveis através de smartphones e comumente utilizados nas assembleias presenciais, seja por chamada telefônica, seja por aplicativos de envio de mensagem. E outro ponto para se refletir quando os tempos de normalidade retornarem é a maior democratização que as assembleias virtuais podem proporcionar, sobretudo quando existirem credores em localidades distantes dos juízos recuperacionais, uma vez que com o processo digital e a possibilidade de atuação plena de maneira remota na AGC, haverá maior inclusão de credores com menor poder econômico, os quais poderão participar de maneira direta na defesa de seus interesses e no destino da recuperação judicial, pelo menor custo que se imporá para sua inclusão no conclave, sempre com respeito ao princípio 9 do relatório do Senador Ramez Tebet, sobre o PLC 71/2003: PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS CREDORES. Fazer com que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, em defesa de seus interesses, otimizem os resultados obtidos, diminuindo a possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida. Os recursos tecnológicos também podem ser aplicados para outros atos dos processos de falência e de recuperação judicial. Acesso às autoridades judiciárias, constatações prévias8 também poderão ser feitas remotamente através dos meios tecnológicos colocados à disposição de todos. Neste último caso, além da análise documental poder ser realizada através de comunicações virtuais, a própria visita ao estabelecimento, num primeiro momento, também poderia ser realizada por intermédio de recursos de câmeras e até o uso de drones, sempre respeitadas as normas administrativas para operação de aeromodelos9 e as normas de inviolabilidade de domicílio. A virtualização é uma realidade atualmente. Com o recrudescimento do desenvolvimento dos meios tecnológicos, permitindo a maior aproximação das pessoas, com menor custo e ampliando a gama de eventos que podem ser realizados sem a necessidade da presença física. Um exemplo que pode ser citado são as inspeções virtuais realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça nos Tribunais de Justiças das unidades federativas10. Tais avanços tecnológicos também devem ser aproveitados para os institutos da falência e da recuperação judicial, até mesmo para proporcionar maior alcance e efetividade de seus termos, através da comprovação dos benefícios da utilização das ferramentas aliado ao trabalho hermenêutico para a manutenção da vivacidade do texto da lei. É certo que em cada caso as particularidades da espécie devem ditar a utilização de novos recursos em maior ou menor medida. Mas enquanto novas soluções de lege ferenda ainda não surgem, compete a nós, operadores do direito, com os instrumentos de que dispomos hoje, buscar a maior efetividade possível das regras do sistema de insolvência, de modo a amalgamar todos os interesses envolvidos, o devido processo legal, as necessidades e demandas de mercado e as evoluções tecnológicas existentes. __________ 1 O Brasil deve ou não adotar novas regras para enfrentar a crise econômica? 2 PL 1397/2020. 3 CNJ. 4 CF, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II - propriedade privada; III - função social da propriedade; 5 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral. Relações e Situações Jurídicas. 2ª edição. Saraiva. 2010. Página 145. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil. Teoria geral do Direito Civil. 30ª edição, atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro. Forense. 2017. Página 165. 7 Clique aqui. 8 Sobre o tema constatação prévia em processos de recuperação judicial: Daniel Carnio Costa e Eliza Fazan. Constatação Prévia em Processos de Recuperação Judicial de Empresas. O Modelo de Suficiência Recuperacional. Editora Juruá. 2019. 9 Drones. 10 V. Portaria 26, de 23 de março de 2020.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos O legislador foi bem feliz ao indicar no artigo 47 lei 11.101/2005 o objetivo da recuperação judicial, que é o de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". A regra, como leciona o Ministro Luis Felipe Salomão, "é buscar salvar a empresa, desde que economicamente viável1. O objetivo indicado no artigo 47 da lei 11.101/2005 coincide com fundamentos, objetivos fundamentais e princípios que têm sede constitucional, como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os objetivos de erradicar a pobreza reduzir desigualdades sociais, enunciados nos artigos 1º e 3º da Constituição da República Federativa do Brasil2 e reafirmados no artigo 170 como princípios da atividade econômica3. Em razão do status constitucional de que goza o princípio da preservação da empresa, o Poder Judiciário, na solução das muitas controvérsias surgidas na aplicação da lei 11.101/2005, no âmbito do processo de recuperação judicial, passou a sopesar os valores envolvidos em cada caso concreto, levando em consideração os objetivos da recuperação judicial, prestigiando, assim, o interesse público primário do Estado, que não é coincidente com o interesse arrecadatório da Fazenda Pública, conforme a doutrina de Renato Alessi4, e, entre nós adotada, dentre outros por Celso Antonio Bandeira de Mello5. Exemplo de caso de aparente antinomia de normas da lei 11.101/2005, resolvido no âmbito da recuperação judicial e pelo juízo da recuperação judicial é o do cabimento ou não do prosseguimento de execução fiscal no stay period ou após a aprovação do plano de recuperação judicial, já que o crédito tributário não está sujeito à recuperação judicial6. No âmbito da recuperação judicial, os juízos, dando-se por competentes para decidir sobre a matéria, tem resolvido a questão no sentido de que a suspensão das ações e execuções contra o devedor em recuperação judicial não alcançam as execuções fiscais que tenham por objeto a cobrança de crédito tributário. Contudo, os atos de constrição de bens e direitos da empresa em recuperação judicial dependem de prévia autorização do juízo da recuperação judicial, porque tais atos podem inviabilizar o processo de soerguimento, antes da concessão da recuperação judicial, ou afetar o plano, comprometendo a capacidade do devedor de cumpri-lo. Por sua vez, os Juízos onde se processam execuções fiscais, também dando-se por competentes, passaram a resolver a mesma questão mediante interpretação literal do § 7º do artigo 6º da lei 11.101/20057, para atender a justa expectativa das Fazendas Públicas de arrecadar os seus tributos, em detrimento da não menos justa expectativa da empresa em dificuldade de superar a crise, manter-se viva no mercado, e, assim, cumprir a sua função social, com geradora de empregos, riquezas e tributos que ordinariamente revertem aos cofres públicos. Essa diversidade de orientações e entendimentos tem motivado o ajuizamento de conflitos positivos de competência, medida processual regulada nos artigos 951 a 959 do Código de Processo Civil ("CPC"), cabível se verificado conflito positivo ou negativo de competência, conforme definidos nos incisos I e II do artigo 66 do CPC. O Superior Tribunal de Justiça ("STJ") tem competência originária para julgar os conflitos de competência entre quaisquer tribunais ou entre tribunal e juiz a ele não vinculado, nos termos do artigo 105, I, "d", da CRFB, ressalvada a competência originária do Supremo Tribunal Federal, para os casos de conflito que envolva Tribunais superiores. Não foram e não são poucos os conflitos positivos de competência ajuizados perante o STJ, com fundamento na existência de conflito positivo de competência entre o juízo de execução fiscal em curso perante a Justiça Federal e o juízo da recuperação judicial, vinculado à Justiça Estadual comum, em razão da prática, pelo juízo da execução fiscal de atos de contrição de bens do patrimônio de empresa em recuperação judicial, capazes de inviabilizar o processo de soerguimento. No STJ, esses conflitos de competência vinham sendo distribuídos ora à Primeira Seção, ora à Segunda Seção, competentes, respectivamente, nos termos do Regimento Interno (RISTJ), para o julgamento dos feitos relativos a matérias de direito público e de matérias de direito privado, incluindo falência e recuperação judicial. Ambas as Turmas se davam por competentes para o julgamento do conflito de competência e, além da diversidade de entendimentos quanto à competência interna, instaurou-se divergência na solução mérito do conflito de competência. Com efeito, a jurisprudência da Primeira Turma do STJ, interpretando literalmente o § 7º do artigo 6º da lei 11.101/2005, orientou-se no sentido de que os efeitos da recuperação judicial não alcançam os créditos tributários, razão pela qual não havia obstáculo ao prosseguimento da execução fiscal, com a prática, pelo juízo da execução de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa em recuperação judicial. Já a Segunda Turma do STJ, prestigiando o princípio da preservação da empresa, que, como visto, tem status constitucional, orientou-se no sentido de que as execuções fiscais não são suspensas, mas a competência para a prática de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa recuperanda é do juízo da recuperação judicial. Em razão dessa diversidade de entendimentos, no CC 120.432-SP, o Relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira propôs e a Segunda Seção, por unanimidade, acolheu questão de ordem e afetou à Corte Especial do STJ a definição do órgão fracionário competente para julgamento de conflitos de competência entre juízos da recuperação judicial e juízos da execução fiscal, vinculados a tribunais diversos. No julgamento da questão de ordem no do CC 120.432-SP, a Corte Especial, por unanimidade, decidiu competir à Segunda Seção o julgamento de conflito de competência entre o Juízo da recuperação judicial e o Juízo da execução fiscal em curso perante a Justiça Federal. No julgamento do mérito, a Segunda Seção, por unanimidade, no julgamento do Agravo Regimental no CC 120.432-SP, manteve a orientação que vinha sendo adotada no sentido de que compete ao juízo da recuperação judicial a prática de atos de constrição contra bens do patrimônio da recuperanda: "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSOS DE EXECUÇÃO FISCAL E DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. QUESTÃO DE ORDEM. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO. EDIÇÃO DA LEI N. 13.043, DE 13.11.2014. PARCELAMENTO DE CRÉDITOS DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA MANTIDA. 1. Compete à SEGUNDA SEÇÃO processar e julgar conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, seja pelo critério da especialidade, seja pela necessidade de evitar julgamentos díspares e a consequente insegurança jurídica (Questão de Ordem apreciada nestes autos pela CORTE ESPECIAL em 19.9.2012). 2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de constrição e de alienação de bens sujeitos à recuperação submetem-se ao juízo universal. 3. A edição da Lei n. 13.043, de 13.11.2014, por si, não implica modificação da jurisprudência desta Segunda Seção a respeito da competência do juízo da recuperação para apreciar atos executórios contra o patrimônio da empresa. 4. No caso concreto, destaca-se ademais que o deferimento da recuperação judicial e a aprovação do correspondente plano são anteriores à vigência da Lei n. 13.043/2014. 5. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 120.432 - SP, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJE 19/12/2016). A Corte Especial do STJ revisitou o tema da competência para julgamento de conflitos entre juízos vinculados a tribunais diversos, no caso de um dos juízos suscitados ser juízo em que se processa execução fiscal e o outro o juízo recuperacional, no CC 153.998 - DF, suscitado pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o objetivo de limitar a competência da Segunda Seção, como exposto na decisão que suscitou o conflito: "Em suma, faço tais considerações para demonstrar a necessidade de que a questão seja novamente enfrentada no âmbito desta Corte Especial, evidentemente num caso concreto que isso seja possível, para excluir da competência da Segunda Seção os casos em que a discussão restringe-se ao prosseguimento da execução fiscal (ainda que com penhora determinada), sem pronunciamento do juízo da recuperação judicial acerca da incompatibilidade da medida constritiva com o plano de recuperação judicial. Nessa hipótese, há apenas um incidente no âmbito da execução fiscal, que atrai a competência da Primeira Seção. Por outro lado, havendo pronunciamento do juízo da recuperação judicial (no sentido de que a penhora inviabiliza o plano de recuperação judicial), impõe-se reconhecer a existência de incidente no âmbito da recuperação judicial, o que atrai a competência da Segunda Seção". No julgamento do CC 153.998 - DF, concluído no dia 18 de dezembro de 2019, a Corte Especial do STJ, por maioria, decidiu que compete à Segunda Seção o julgamento dos conflitos juízo onde se processa a recuperação judicial e o juízo onde se processa a execução fiscal, nos termos o voto da Ministra Nancy Andrighi. Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi identificou a controvérsia, registrando que o tema assume contornos mais complexos, porque a execução fiscal atrai a competência da Primeira Seção, enquanto a recuperaçao judicial atrai a competência da Segunda Seção. No voto, fazendo ponderação dos valores envolvidos, com ênfase no sistema estabelecido na lei 11.101/2005, e ao objetivo indicado no seu artigo 47, de proteger a empresa em dificuldades, de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores", a Ministra Nancy Andrighi reafirmou a posição da Corte Especial, no sentido da competência da Segunda Seção, para qualquer caso de conflito de competência entre juízo recuperacional e juízo da execução fiscal, com base no critério da especialidade e para evitar julgados díspares. A confirmação da orientação antes adotada no julgamento da Questão de Ordem no CC 120.432-SP, pela Corte Especial do STJ representa grande contribuição para a segurança jurídica e estabilidade das relações sociais, contribuindo, inclusive para viabilizar a busca de soluções consentâneas com a realidade no que respeita a questão do equacionamento do passivo tributário. __________ 1 Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, Editor Gen/Forense, 4ª Edição, pág. 24. 2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (.....) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: II - garantir o desenvolvimento nacional. III - erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (....) 3 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade; (....) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; 4 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 2ª ed. Milano, Giuffrè, 1958, pp 179-178. 5 "Outrossim, a noção de interesse público, tal como expusemos, impede que se incida no equívoco muito grave de supor que o interesse público é exclusivamente um interesse do Estado, engano, este, que faz ressalvar fácil e naturalmente para a concepção simplista e perigosa de identifica-lo com quaisquer interesses da entidade que representa o todo (isto é, o Estado e demais pessoas de Direito Público interno). Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público." (Destaque do original). (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 32ª ed. São Paulo, Malheiros, 2014, pp 65-66) 6 CTN, art. 187 - A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. 7 Art. 6º - A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (.....) § 7º - As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Desde o início da vigência da lei 11.101/05 surgiram diversas teorias que tentam explicar e otimizar os resultados do sistema brasileiro de insolvência. Da mesma forma, tornou-se frequente a importação de soluções estrangeiras, notadamente norte-americanas, para os problemas vivenciados nos anos de aplicação das ferramentas de insolvência criadas pela legislação pátria. As teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus são, por exemplo, algumas das teorias por mim desenvolvidas e que tentam explicar as finalidades do sistema de insolvência brasileiro. A perícia prévia (constatação prévia), o critério tetrafásico de controle judicial do plano e a gestão democrática de processos são outros exemplos de minhas criações jurisprudenciais que visam otimizar os resultados do sistema brasileiro de insolvência. Entretanto, não obstante a existência dessa gama de novidades (batizadas de "novas teorias"), uma delas será o objeto de análise nesse trabalho: a gestão democrática de processos de insolvência. Objetiva-se, nesse espaço, demonstrar que a gestão democrática de processos é uma teoria/metodologia que otimiza os resultados do sistema de insolvência brasileiro, estando em total sintonia com os seus fundamentos de existência e de acordo com os valores tutelados pela falência e recuperação judicial de empresas no Brasil. Inicialmente, é importante frisar que a interpretação das regras legais de um sistema de insolvência empresarial, para que seja útil e adequada, deve sempre observar pertinência com os objetivos maiores desse sistema e com os valores por ele tutelados. Da mesma forma, a criação de mecanismos jurisprudências de ajustes na aplicação das regras legais não pode destoar dos valores informativos do sistema como um todo. Assim, a criação de novas teorias e a importação analógica de soluções estrangeiras para os problemas brasileiros devem sempre estar atentos à compatibilidade com os fundamentos do sistema brasileiro de insolvência. Nesse contexto, esse artigo demonstrará que a técnica da Gestão Democrática de Processos1 é criação jurisprudencial compatível com os fundamentos do sistema brasileiro e de grande valia para que seus objetivos maiores sejam cumpridos, tutelando-se eficazmente os valores que informaram a edição da lei 11.101/05. Para tanto, se faz necessário identificar os fundamentos normativos do sistema de insolvência brasileiro, bem como seus objetos de tutela, contextualizando a evolução do pensamento jurídico desde os debates normativos ocorridos nos EUA no século XX, até o estabelecimento das ferramentas brasileiras criadas pela lei 11.101/05 (falência e recuperação de empresas). É sabido por todos os que atuam na área da insolvência empresarial que o modelo brasileiro de recuperação de empresas se inspirou no modelo criado pelo Código de Insolvências dos EUA. Entretanto, principalmente em tempos de mudanças legislativas na regulação da insolvência empresarial no Brasil, é importante destacar que os valores que inspiraram o modelo norte-americano não são os mesmos que determinam a aplicação dos institutos da falência e da recuperação de empresas no Brasil. É preciso ter atenção quando se pretende aplicar analogicamente no Brasil os institutos criados pela legislação e pela jurisprudência norte-americana. O Brasil superou o dualismo pendular - movimento já descrito por Fábio Konder Comparato - desvinculando-se da dualidade de tutelas de interesses de credores e devedores e optando por estabelecer como vetor de aplicação dos institutos da insolvência empresarial a tutela do interesse social, considerando esse interesse prevalecente sobre os interesses das partes diretamente envolvidas na crise da empresa (credores e devedores). No Brasil, o modelo de insolvência não é puramente pró-credor, nem puramente pró-devedor. Busca-se compatibilizar os diversos interesses envolvidos na crise da empresa, inclusive os interesses sociais, de modo a tutelar de forma prevalente a preservação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Nesse sentido, a fim de demonstrar os fundamentos do sistema de insolvência brasileiro, se faz necessário explicar a evolução das abordagens filosófico-normativas que já foram objeto de muitas discussões nos EUA. Confira a íntegra da coluna. __________ 1 Costa, Daniel Carnio. Jornal Carta Forense, de 4/11/2014. Disponível aqui.
terça-feira, 3 de março de 2020

Insolvência de sociedades cooperativas

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira As sociedades cooperativas acham-se disciplinadas, essencialmente, pela Lei 5.764/71, e conta com aspectos referidos tanto no Código Civil, no parágrafo único do art. 982, como na lei 8.934/94, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades afins, artigo 32, II. Segundo o Código Civil, a cooperativa é sociedade simples (parágrafo único do art. 982), e não se sujeita à falência1 por expressa previsão do art. 4º da lei 5.764/71. À luz do Código Civil, a conclusão seria a mesma, pois, de regra, a sociedade simples não se sujeita à falência por não exercer atividade empresarial. Ainda que a doutrina veja na cooperativa uma verdadeira empresa, e, certamente, em algumas situações, ela realmente o é, o certo é que não se cogita, entre nós, da falência de sociedade cooperativa. A lei 11.101/05 disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, sem que se possa incluir, entre os legitimados a tais institutos, a cooperativa. A cooperativa, não obstante seus elevados propósitos, com fundamento na mutualística, pode envolver-se em crise econômica e financeira, a ponto de não mais conseguir atuar na consecução de seus objetivos. Isto é: a cooperativa pode tornar-se insolvente. Examinar o regime jurídico da insolvência da cooperativa é o propósito deste breve estudo, limitada à sua liquidação. Portanto, não será feita referência à recuperação judicial. Tampouco será feita referência à insolvência de cooperativa de crédito, que é regida pela Lei Complementar. A insolvência de cooperativa dependente de autorização do Estado para funcionar, como as cooperativas que oferecem ao mercado planos de saúde, também não são referidas neste artigo. A lei 5.764/71, que define a política nacional de cooperativismo, instituiu, para funcionamento das cooperativas, autorização estatal, com possível apreciação pelo Conselho Nacional de Cooperativismo (artigos 17 a 20). Esse controle representava o controle de acesso do ato constitutivo ao registro público (Junta Comercial), sem o qual a cooperativa não adquiria personalidade jurídica nem atuava regularmente. Como desdobramento do controle estatal sobre o funcionamento da cooperativa, o artigo 75 instituía um regime de liquidação extrajudicial, verbis: "A liquidação extrajudicial das cooperativas poderá ser promovida por iniciativa do respectivo órgão executivo federal, que designará o liquidante, e será processada de acordo com a legislação específica e demais disposições regulamentares, desde que a sociedade deixe de oferecer condições operacionais, principalmente por constatada insolvência". Em essência, tratava-se de uma liquidação forçada da cooperativa. Essa liquidação extrajudicial tinha a natureza de falência administrativa. O agente do decreto de liquidação extrajudicial era o Poder Público - o órgão executivo federal - e a lei estatuía, preferencialmente, um prévio regime de intervenção (§1º do art. 75), por certo na crença de que haveria como debelar a crise da cooperativa. Essa liquidação extrajudicial era governada de acordo com a legislação específica, e essa legislação, à época, por certo, era um conjunto de disposições que foi revogado pelo artigo 57 da lei 6.024/74 (esse artigo relaciona as leis expressamente). Ao lado desse decreto de liquidação extrajudicial, forçado e expropriatório, havia outro, de caráter voluntário, fruto de deliberação da assembleia geral dos cooperados. A Constituição Federal de 1988 eliminou, do direito brasileiro, qualquer interferência estatal nas cooperativas. Segundo o artigo art. 5º, XVIII, a criação de cooperativas independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento. Com a proibição de prévia autorização estatal, desapareceu a base de apoio para o decreto de liquidação extrajudicial. A premissa do decreto de liquidação extrajudicial é a presença de alguma forma de controle por parte do estado, especialmente a autorização para funcionamento, que, no caso das cooperativas, desapareceu. A ordem constitucional de 1988 não recepcionou nem a prévia autorização de funcionamento, nem a liquidação extrajudicial prevista no artigo 75, na medida em que lhe retirou a premissa de sustentação. Portanto, até aqui, tem-se que estão afastados dois regimes concursais: a) a falência; b) a liquidação extrajudicial forçada. Sobram para aplicação: a) liquidação voluntária (também conhecida como liquidação ordinária), por deliberação dos sócios, fora do âmbito do Poder Judiciário; b) liquidação judicial a pedido de associados; c) liquidação judicial a pedido de credor. Podem os associados deliberar a dissolução da cooperativa. Com isso, no seio social, delibera-se o encaminhamento para a liquidação do ente jurídico, e, no âmbito privado, tudo haverá de acontecer, como a venda dos bens e pagamento dos credores. Isto é: os sócios (de sociedade empresária e de sociedade simples), os associados (de associação2), os cooperados (de cooperativa), podem deliberar, em assembleia geral, pela dissolução e posterior liquidação da sociedade. Quem cria um ente social também está investido das prerrogativas destinadas ao desfazimento dos vínculos3, com a lembrança de que a extinção do ente não é instantânea. Após a dissolução, há um mergulho no procedimento de liquidação. Essa liquidação ordinária (extrajudicial), porém, precisa ser bem entendida. Em primeiro lugar, ela não tem a natureza de execução forçada; em segundo lugar, embora levada a efeito pelo liquidante, que passa a ser um órgão do ente social (de sociedade, associação ou cooperativa), é feita no interesse dos associados, observando-se que o liquidante tem o dever de, em primeiro lugar, pagar os credores, e, em seguida, com eventuais sobras, distribui-las aos sócios ou associados. A lei 5.764/71, no que concerne à dissolução e liquidação contém regime análogo ao previsto nos artigos 1.102-1.112 do Código Civil, e artigos 208-218 da lei 6.404/76. Para se evitar confusão desnecessária, é preciso ter isso em consideração. Porém, não é disso o que cogitamos neste estudo. Queremos centrar nossa preocupação no regime judicial de insolvência de cooperativa. O artigo 64 da Lei das Cooperativas prevê o seguinte: "Quando a dissolução da sociedade não for promovida voluntariamente, nas hipóteses previstas no artigo anterior, a medida poderá ser tomada judicialmente a pedido de qualquer associado ou por iniciativa do órgão executivo federal". A iniciativa do órgão federal, como vimos, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, de sorte que remanesce a legitimidade de qualquer associado para o decreto de liquidação judicial. Esse artigo 64 só prevê a liquidação judicial a pedido de qualquer associado. Ademais disso, toda a disciplina da liquidação, constante na Lei das Cooperativas, está relacionada à liquidação ordinária, ou extrajudicial, como se queira. Nada se fala a respeito da liquidação judicial e a norma aplicável subsequentemente à decisão do juiz que acolhe o pedido de liquidação, seja ao rito, seja ao direito material aplicável. Por essa razão, há muito tempo a jurisprudência discute sobre a aplicação de alguns aspectos da lei de falências no regime da liquidação judicial de cooperativas. Há razoável divergência a respeito, que encerra grave insegurança jurídica. A liquidação judicial a pedido dos associados e a liquidação judicial a pedido de credores de cooperativa, ao que tudo indica, leva à formação de processos de natureza distinta. Embora seja controvertida a possibilidade de pedido de insolvência civil (disciplinada nos artigos 748 a 786-A do CPC de 1973, que estão em vigor por força do disposto no artigo 1.052 do CPC 2015) formulado pelo credor4, entendo que ele é plenamente possível, pois a sociedade cooperativa, como sociedade simples (ainda que desenvolvendo atividade empresarial) enquadra-se na previsão do art. 786 do CPC/73. A insolvência civil forma concurso de credores, sem a menor dúvida, e, como processo concursal, envolve a arrecadação de todos os bens do ativo, convocação de credores e respectivo pagamento, em rateio, segundo ordem de pagamento. Com base no direito de ação, o credor pode postular a tutela concursal do Estado-Juiz, que não está excluída por lei. Uma vez admitida a insolvência civil de cooperativa, a pedido de credor, não há mais dúvida sobre qual seja o regime jurídico aplicável, que é a disciplina do CPC/73. Porém, voltando ao ponto objeto de nossa preocupação na elaboração deste artigo. Qual o regime aplicável à liquidação judicial decorrente de pedido formulado por associado da cooperativa, direito que é assegurado pelo artigo 64 já mencionado5. O capítulo XI da Lei das Cooperativas é omisso a respeito. Essa liquidação judicial é a mesma liquidação ordinária da cooperativa, agora sob as vestes de um processo judicial? Ou é aplicável a lei concursal ampla, que é a lei de falências? Ou haveria ainda outro regime a ser aplicado? Já se decidiu, em São Paulo, que se aplica a lei de falências por analogia6.Determinou-se a suspensão da execução contra cooperativa sob o fundamento de que se trata de execução coletiva. Todavia, também já se afastou o caráter de execução coletiva, sob o fundamento de que se trata de ação de conhecimento7, e, então, não se admitiu a suspensão de execução contra a cooperativa em liquidação judicial. O STJ8, inicialmente, admitiu a suspensão da execução contra cooperativa em liquidação judicial sob o fundamento legal de que se aplicam o artigo 71 da lei 5.764/719 e o artigo 762 do CPC/7310, que está no capítulo da insolvência civil. Também aplicou a lei de falências de 1945 para pedido de restituição11. O Supremo Tribunal Federal12 manteve decisão proferida pelo Tribunal de Alçada Civil do Rio Grande do Sul, assim ementada: "Não é inconstitucional a sustação de ações contra a cooperativa em liquidação. Simetria desta interpretação com a do art. 18, letra a, da lei 6.024/74". Veja-se que a lei da liquidação extrajudicial de instituição financeira (que forma liquidação forçada de ativos!) foi utilizada para dar sustentação à suspensão de execução contra cooperativa em liquidação extrajudicial, de caráter voluntário. Há uma certa incompreensão do sistema nessa fundamentação. Do exame da jurisprudência, pode-se extrair uma conclusão aparentemente segura. A liquidação judicial de cooperativa forma concurso de credores13. Dada a especialidade da lei 5.764/71, deve ser seguido o rito nela previsto para fins de se proceder à liquidação. Em linhas gerais, o procedimento de liquidação contempla arrecadação de bens, alienação e satisfação dos credores, que são alvo de convocação geral. Assim, ao liquidante incumbe arrecadar14 os bens, livros e documentos da sociedade, inventariar ativo e passivo, convocar credores e devedores15, realizar o ativo16 para saldar o passivo (incisos do art. 68). Merece destaque o artigo 71 da lei 5.764/71: "Respeitados os direitos dos credores preferenciais, pagará o liquidante as dívidas sociais proporcionalmente e sem distinção entre vencidas ou não". Esse comando é bastante importante. Em primeiro lugar, só em concurso de credores é que se pagam dívidas vencidas ou não. O vencimento antecipado, decorrente da sentença de quebra, é uma técnica utilizada para igualar todos os credores num só momento e ensejar a exigibilidade da dívida. Não fosse assim, o credor submetido a termo ou condição não poderia sequer participar, tempestivamente, do concurso. Em segundo lugar, a lei manda pagar os credores segundo uma proporção. Essa proporção dar-se-á segundo as forças de cada crédito; tal qual na falência. Em terceiro lugar, esse artigo 71 faz expressa referência aos credores preferenciais, assunto típico de concurso de credores. A graduação de credores só existe em concurso; é a graduação que permite que diversos credores concorram ao crédito. Assentada a premissa de que há concurso de credores na liquidação judicial de cooperativa, e sendo esse concurso uma execução concursal forçada, a suspensão das execuções contra ela, problema corriqueiramente enfrentado pela jurisprudência, é inexorável, decorre da natureza desse regime e até prescinde de expressa previsão legal. Não há necessidade de se invocar, por analogia, regras diversas do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que aplicáveis à espécie na sua ontologia. Há, contudo, uma previsão, na Lei das Cooperativas17, sobre suspensão das execuções. O alcance do dispositivo é limitado à liquidação ordinária (ao se referir à ata da deliberação, não deixa dúvida sobre isso). Essa mesma suspensão não ocorre na execução intentada contra uma sociedade anônima em liquidação ordinária, por exemplo, à falta de expressa previsão legal (vide artigos 206 a 218 da lei 6.404/76); tampouco o Código Civil prevê suspensão de ações nos artigos 1.102 a 1.112, que disciplina a liquidação de sociedades. Aliás, contra a sociedade anônima ou sociedade limitada em liquidação ordinária, é cabível a execução e o pedido de falência, por exemplo. A previsão do artigo 76 é excepcional, pois a liquidação ordinária atua no seio social, privadamente18, sem caráter forçado. O STF no julgamento do RE 232098 decidiu que não se exclui da apreciação do Poder Judiciário a liquidação, ainda que extrajudicial, e reconheceu que a suspensão da execução pelo prazo de um ano não ofende o disposto no artigo 5º, XXXV, da CF. Esse artigo 76, enquistado na liquidação ordinária, tem, por certo, a finalidade de aguardar a realização do ativo e pagamento dos credores19, o que tornaria, em tese, desnecessária a providência judicial do credor. Nesse contexto, a suspensão é razoável, com a seguinte observação: esse dispositivo é inaplicável à liquidação judicial, que forma concurso de credores, de natureza forçada, e ao qual todos os credores devem concorrer, em razão do chamamento editalício, ressalvada a Fazenda Pública. No âmbito da execução concursal forçada, a suspensão das ações é inevitável. Outro aspecto relevante da deficitária estrutura legal da insolvência de cooperativas. A jurisprudência do STJ tem vários precedentes que dizem que a liquidação judicial "não contempla o benefício de exclusão das multas e dos juros moratórios"20. A Constituição Federal determina o estímulo ao cooperativismo (art. 174, §2º). Veja que a sociedade empresária em falência vê paralisada a contagem dos juros21. Já a sociedade cooperativa vê aumentar o seu passivo. A solução é incongruente. Adstrita a previsão do artigo 76 à liquidação ordinária, que já é uma excepcionalidade, de duvidosa constitucionalidade até, no âmbito da liquidação judicial os juros não deveriam ser contados. É da essência do concurso de credores a necessidade de estabilização do passivo em determinado instante, o que é inviável com a contagem permanente de juros. Outro problema que fica por resolver é o seguinte. Qual é a ordem em que devem ser atendidos os credores preferenciais a que alude o artigo 71 da Lei das Cooperativas. Aplica-se a lei falimentar? Aplica-se a preferência da lei civil, como determina o artigo 769 do CPC/73 em relação à insolvência civil? Trata-se de mais uma severa omissão da lei, que desorienta completamente o intérprete. Um último ponto. A lei é omissa sobre a suspensão ou interrupção do curso do prazo prescricional em face da cooperativa em recuperação judicial, assunto sempre presente nas normas sobre concurso de credores. Neste rápido apanhado, procurei demonstrar que a sistemática em vigor, acerca da liquidação das cooperativas, é muito ruim, e gera diversos problemas práticos. A liquidação judicial a pedido de qualquer associado, nos termos do vigente artigo 64 da lei 5.764/71, não conta com disciplina legal satisfatória22, e, embora seja lugar comum, é necessária modificação legislativa. __________ 1 Apesar de não se sujeitar à falência, a cooperativa exerce atividade empresarial, pois atua produzindo bens e serviços para o mercado. Nesse sentido, Waldírio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 268-270; do mesmo autor, As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 178-179; Rachel Sztajn, Código Civil comentado, v. XI. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008, p. 142-143; Ronie Preuss Duarte, Teoria da empresa à luz do Código Civil brasileiro. São Paulo: Método, 2004, p. 101. Em sentido contrário, Walfrido Jorge Warde Júnior, Tratado de direito empresarial, v. I. 2ª ed., Coord. Modesto Carvalhosa. São Paulo: RT, 2019, p.147-149. Sobre o caráter societário da cooperativa (que alguns consideram uma associação), vide a resenha de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial. Das sociedades, v. II, 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2019, p. 46-47, esp. nota 76. Para Haroldo Verçosa, Curso de direito comercial, v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 546, "as cooperativas ficam a meio caminho entre as sociedades civis e as sociedades empresárias, cabendo-lhes a natureza jurídica de ente híbrido, ou de sociedade sui generis...". Friedrich Kübler, Derecho de Sociedade, 5ª ed., trad. espanhola. Madrid: Fundación Cultural del Notariado, p. 245, afirma que a cooperativa é um "empresário formal", pois opera no mercado com sua própria denominação social. 2 O Código Civil também é lacônico sobre a dissolução de associações, prevendo, apenas, no artigo 61, o destino do remanescente do patrimônio líquido. 3 "O termo 'dissolução', na tradição do direito societário, designa todos os modos, anormais e também normais, como se extingue uma sociedade por causas supervenientes ao negócio contratual", segundo afirma Walter Moraes, Sociedade Civil Estrita. São Paulo: RT, 1987, p. 332; "Os institutos da dissolução, assim como da liquidação e o da extinção, constituem partes integrantes da disciplina jurídica do direito societário, e dizem respeito ao processo final de existência das sociedades", como ensina Waldírio Bulgarelli, As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica, p. 180. O artigo 2516 do Código Civil italiano, como norma de reenvio, remete a liquidação das cooperativas à liquidação das sociedades anônimas. Advertiu Antonio Brunetti, Trattato del diritto delle società, v. 3. Milano: Giuffrè, 1950, p. 484, que a liquidação coata, que é a liquidação extrajudicial forçada, nada tem que ver com a liquidação voluntária. Como a lei brasileira contém disciplina voltada, à época, para a liquidação extrajudicial forçada, que não foi recepcionada pela Constituição Federal, o corpo normativo remanescente dá margem a algum vacilo interpretativo na aplicação da liquidação voluntária e mesmo da liquidação judicial, objeto destas linhas. 4 O extinto 1º TACSP, por meio da 8ª Câmara, na Apelação 769.907-2, j. 26/9/1999, rel. Juiz Manoel Mattos, admitiu o pedido de insolvência civil formulado pelo antigo Banespa - Banco do Estado de São Paulo S/A. em face da Cooperativa Agrícola de Cotia. Em sentido contrário, Emanuelle Urbano Maffioletti arrola, no seu artigo A insolvência das cooperativas no Brasil e reflexões sobre a liquidação extrajudicial, nota 13, página 314, arrola precedentes que não admitiram o processamento da insolvência civil de cooperativas. 5 É possível o pedido de liquidação judicial de cooperativa ainda que ela já esteja submetida a liquidação ordinária, por vontade dos sócios. Todavia, o TJSP, por meio da 3ª Câmara, na Apelação 0006938-20.2005.8.26.0201, j. 4/10/2011, decidiu que falta de interesse de agir ao associado. Entendeu-se que se trata de "matéria a ser apresentada e debatida na assembleia dos associados". 6 "Suspensão do processo. Execução por título extrajudicial. Executada em regime de liquidação judicial. Possibilidade. Cooperativas que, com o advento da nova ordem constitucional, não mais se sujeitam aos institutos da intervenção e da liquidação extrajudicial. Artigo 5.º, XVIII e XIX, da Constituição Federal. A dissolução judicial deve, por analogia, observar a legislação falimentar. Execução individual ajuizada anteriormente ao decreto judicial de dissolução que, portanto, afasta a vis attractiva do juízo universal da Comarca de Mogi das Cruzes. Possiblidade do credor habilitar-se no juízo da execução coletiva, observadas as regras dos artigos 762 do CPC e 71 da Lei 5.764/71. Permanência da execução no juízo a quo, com a determinação de suspensão do seu curso. Agravo provido para esse fim" (1º TACSP, 4ª Câmara, AI 1.028414-3, j.14/8/2002, rel. Juiz Rizzatto Nunes). 7 "Execução por título extrajudicial. Pedido de adjudicação do bem penhorado. Indeferimento, em virtude de ter sido decretada liquidação judicial da cooperativa executada. Decretação em mera ação ordinária ajuizada por alguns credores. Impossibilidade. Inexistência de previsão legal acerca da universalidade do juizo para então concorrerem todos os credores do devedor comum. Adjudicação que não pode ser obstada. Recurso provido". Do corpo do acórdão consta o seguinte: "Não é o que ocorre com aquela ação em trâmite na comarca de Mogi das Cruzes, que constitui apenas ação ordinária movida por um número limitado de credores. Não é uma execução contra devedor insolvente, não é uma falência, nem é um procedimento de liquidação previsto nos artigos 655 e seguintes do Código de Processo Civil de 1939. Portanto, inadmissível que terceiros estranhos sejam por ela atingidos". (1º TACSP, 12ª Câmara, AI 1.020.286-7 , j. em 4/9/2001, rel. Juiz Andrade Marques). 8 STJ, 2ª Seção, CC 32687, j. 8/8/2001, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar: "Conflito de competência. Liquidação judicial. Execução trabalhista. Devem ser remetidos ao juízo universal da insolvência, onde tramita a liquidação de sociedade cooperativa, os processos de execução individual, inclusive de crédito de natureza trabalhista, salvo se designado dia para praça ou leilão, caso em que a remessa será do produto dos bens. Art. 71 da Lei 5764/71; art. 762 do CPC. Conflito conhecido e declarada a competência do juízo da 4ª Vara Cível de Mogi das Cruzes, São Paulo". No mesmo sentido, CC 28996, j. 24/4/2000, DJ 12/6/2000, rel. Min. Nancy Andrighi: "Liqüidação judicial. Concurso universal de credores. Submissão dos créditos trabalhistas. Necessidade. A execução de crédito trabalhista deve ser feita no juízo em que se processa a liqüidação de cooperativa, sendo necessária a sua habilitação ao juízo universal. Exegese do art. 23, caput, da Lei de Falência. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 4ª Vara Cível de Mogi das Cruzes-SP, o Suscitante". 9 "Respeitados os direitos dos credores preferenciais, pagará o liquidante as dívidas sociais proporcionalmente e sem distinção entre vencidas ou não". 10 "Ao juízo da insolvência concorrerão todos os credores do devedor comum". 11 3ª Turma, RESP 1317749, j. 19/11/2013, rel. Min. João Otávio de Noronha. 12 RE 218351, rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. 6/5/02, DJ DATA-05/08/2002. 13 Decide o STJ: "Na linha dos precedentes desta Corte Superior de Justiça, compete ao Juízo universal da insolvência, em que se processa a liquidação de sociedade cooperativa, proceder à reunião e ao julgamento dos créditos advindos de execuções individuais, inclusive de crédito de natureza trabalhista, salvo se designado dia para praça ou leilão, caso em que a remessa será do produto dos bens. Precedentes.2. Agravo interno desprovido. (AgInt nos EDcl na PET no CC 158.595/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/06/2019, DJe 01/07/2019). Esse julgado faz referência aos precedentes CC 32687". 14 A arrecadação é própria dos processos concursais. 15 Essa convocação viabiliza a habilitação de crédito. Ela está presente no artigo 99, parágrafo único da lei 11.101/05, no artigo 22 da lei 6.024/74 e no art. 761, II, do CPC/73. 16 É a dicção do art. 139 da lei 11.101/05. 17 Art. 76. A publicação no Diário Oficial, da ata da Assembleia Geral da sociedade, que deliberou sua liquidação, ou da decisão do órgão executivo federal quando a medida for de sua iniciativa, implicará a sustação de qualquer ação judicial contra a cooperativa, pelo prazo de 1 (um) ano, sem prejuízo, entretanto, da fluência dos juros legais ou pactuados e seus acessórios. Parágrafo único. Decorrido o prazo previsto neste artigo, sem que, por motivo relevante, esteja encerrada a liquidação, poderá ser o mesmo prorrogado, no máximo por mais 1 (um) ano, mediante decisão do órgão citado no artigo, publicada, com os mesmos efeitos, no Diário Oficial. Para Waldírio Bulgarelli, As Sociedades Cooperativas e a sua disciplina jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 185, esse dispositivo assume caráter imperativo, atuando de pleno direito. 18 Qualquer liquidação ordinária se desenvolve no âmbito privado, e não há mal algum que assim seja. Registra-se, todavia, o pensamento de Emanuelle Urbano Maffioletti, para quem a "liquidação conduzida sem processo administrativo [não recepcionado, diga-se, pela Constituição Federal] ou judicial - pode afetar a imparcialidade da liquidação..." (A Insolvência das Cooperativas no Brasil e Reflexões sobre a Liquidação Extrajudicial. Artigo na coletânea Direito Empresarial. Estudos em homenagem ao Professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa. São Paulo: Editora IASP, 2015, p. 322). 19 Para Waldírio Bulgarelli, "Tendo presente, portanto, que a Liquidação é um processo complexo e geralmente demorado, é que se pode entender também, a imposição legal de que fiquem suspensas as ações judiciais contra a cooperativa pelo prazo de um ano...", cf. As sociedades cooperativas, p. 184. Mauro Rodrigues Penteado, Dissolução e liquidação de sociedades. Brasília: Brasília Jurídica, 1995, p. 108, nota 207, transcreve trecho de outra obra de Bulgarelli, segundo a qual a suspensão importante, original e oportuna. Parece que o festejado especialista no direito cooperativo se referia à liquidação extrajudicial forçada, pois faz referência a decisão do Incra, BNH ou Banco Central. Ora, na liquidação extrajudicial forçada, não há dúvida da necessidade de suspensão de todas as execuções. 20 AgRg no REsp 808.241/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 17/06/2009; REsp 921.280/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 25/03/2009; (AgRg nos EDcl no REsp 799.547/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 21/05/2009; (AgRg no Ag 1385428/MG, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe 13/09/2011, entre outros. 21 No caso da liquidação judicial da Cooperativa Agrícola de Cotia, é vacilante a jurisprudência do TJSP sobre o termo ad quem da contagem de juros. Para contar até a data da liquidação: Apelação Cível 9000012-79.1999.8.26.0361, 9ª Câmara, j. 23/02/2016, Relator Des. Theodureto Camargo, por aplicação subsidiária da lei de falências. Para contar juros até a data de pagamento: da mesma Câmara, Apelação 9000009-27.1999.8.26.0361,j. 10/0-9/2013, rel. Des. Antonio Vilenilson. É gravíssima a situação, pois, no mesmo processo, critérios diferentes são utilizados. 22 Aliás, a rigor, a liquidação judicial de sociedades em geral desapareceu do direito brasileiro, pois, com o Código de Processo Civil de 2015, foram definitivamente revogados os artigos 655 a 674 do CPC de 1939, que ainda estavam em vigor e disciplinavam o assunto.
Texto de autoria de Alexandre Demetrius Pereira Uma das modificações mais recentes no Direito Penal Pátrio ocorreu com o advento da lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada de pacote anticrime, a qual, dentre outras providências, modificou dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal. Dentre as modificações mais importantes, destaca-se o chamado acordo de não persecução penal (ANPP), instrumento que privilegia a justiça penal negociada, buscando a solução de conflitos referentes à criminalidade de médio porte com a aplicação mais célere de medidas penais distintas da pena privativa de liberdade. Passaremos a discutir neste breve artigo algumas especificidades do acordo de não persecução penal com relação aos crimes falimentares. Dos pressupostos do acordo de não persecução penal Os requisitos essenciais do acordo de não persecução penal se encontram dispostos no art. 28-A do CPP, dentre os quais: 1. Não seja caso de arquivamento do inquérito policial; 2. Tenha o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal; 3. A infração penal não deve ter como meio a prática de violência ou grave ameaça e deve ter pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; 4. O acordo de não persecução deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Além dos requisitos supracitados, o §2º do art. 28-A do CPP, ainda revela outros pressupostos para que o acordo possa ocorrer: 1. Não seja cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; 2. Não seja o investigado reincidente ou inexistam elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; 3. Não ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e 4. Não seja caso de crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou de crimes praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. Em havendo acordo, poderão ser propostas pelo Ministério Público as seguintes condições: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. Vistos os requisitos e as condições do acordo nos termos definidos na lei 13.964/19, analisaremos no tópico seguinte a aplicação do instituto aos crimes falimentares. Peculiaridades do ANPP em relação aos crimes falimentares: pena e unicidade O acordo de não persecução é plenamente aplicável aos crimes falimentares, com algumas pequenas exceções e adaptações. Duas questões particulares devem ser vistas: o cabimento do ANPP em relação à pena dos tipos penais falimentares e a questão do ANPP em confronto com a unicidade aplicável a esses delitos. Dos crimes definidos na lei 11.101, no tocante à pena, a maioria admite a aplicação do ANPP, pois tais delitos possuem como regra pena mínima inferior a 4 (quatro) anos. Há, entretanto, uma exceção importante, no tocante ao crime de fraude a credores com causa de aumento de pena, conforme definição do art. 168, § 2º, da lei 11.101/05 (contabilidade paralela), uma vez que, possuindo este pena mínima de 3 (três) anos e causa de aumento de pena de 1/3, acabará por acarretar pena mínima de 4 (quatro) anos, inviabilizando a aplicação do instituto. Cumpre salientar que o § 1º do art. 28-A do CPP expressamente consigna que: "Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto". Dessa forma, incidente a causa de aumento aludida, inaplicável o ANPP ao crime ora tratado. Outra aparente exceção à aplicabilidade do acordo encontra-se no delito definido no art. 178 da lei 11.101/05 (omissão dos documentos contábeis obrigatórios). Nesse caso, o acordo não se encontra obstado em virtude de a pena mínima ultrapassar o patamar definido no art. 28-A, mas pelo fato de que, cominada pena máxima de 2 anos, cuida-se de crime ao qual, em tese, é aplicável a transação penal. Desse modo, o autor dos fatos fará jus, ao menos antes de se cogitar do ANPP, à proposta de transação penal, afastando-se, num primeiro momento, a aplicação do acordo, por força do art. 28, §2º, I, do CPP. Para resumir o que relatamos até aqui, trazemos a tabela seguinte sobre a aplicabilidade do ANPP em relação a cada tipo penal falimentar definido na lei 11.101/05: Outro problema interessante sobre a aplicabilidade do ANPP aos crimes falimentares é a questão da unidade ou unicidade do crime falimentar. Esse vetusto princípio, verdadeira particularidade dos delitos falimentares, considerado por muitos uma ficção jurídica, preconiza que, em havendo concurso de crimes envolvendo exclusivamente crimes falimentares, deve-se aplicar somente a pena do crime falimentar mais grave. Conquanto criticado pela mais moderna doutrina, o princípio da unidade ou unicidade do crime falimentar é ainda aplicado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo na vigência da lei 11.101/05 (vejam-se os acórdãos de julgamento do REsp 1.617.129-RS, Min. Sebastião Reis Júnior, do HC 94.632/MG, Min. Og Fernandes e do HC 56.368, Min. Gilson Dipp). A questão que se coloca é saber se, havendo concurso de crimes falimentares cuja soma ou exasperação de penas resultem em pena mínima de quatro anos, seria aplicável a unicidade do crime falimentar para que, considerando somente a pena do crime mais grave (esta inferior a quatro anos), entenda-se cabível o ANPP na hipótese. Para responder essa questão, devemos analisar novamente a jurisprudência do STJ, pois, ainda que admita a aplicação da unicidade, referido tribunal não tem admitido que, para análise da pena concernente ao cabimento de benefícios penais análogos ao ANPP (transação penal e suspensão condicional do processo), a unicidade seja utilizada para reduzir a pena teoricamente aplicável, antes do momento da sentença. Nesse sentido: HC 26126 / SP HABEAS CORPUS 2002/0175898-4 Relator(a) Ministra LAURITA VAZ (1120) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 18/11/2003 Data da Publicação/Fonte DJ 15/12/2003 p. 332 Ementa: HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. CONCURSO MATERIAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. INAPLICABILIDADE ANTES DA SENTENÇA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 243 DO STJ. 1. Constitui óbice inarredável o fato de haver concurso material de crimes (arts. 186, inciso VI, e 188, inciso VIII, do Decreto-lei n.º 7.661/45), cujas penas mínimas cominadas em abstrato são, respectivamente, de 6 (seis) meses e 1 (um) ano, perfazendo um somatório acima da restrição legal, que é de 1 (um) ano. Incidência do verbete sumular n.º 243 desta Corte. 2. A unidade dos crimes falimentares, ressalte-se, fictícia, de criação doutrinária, e altamente questionável, já caracterizaria uma benesse ao agente, aplicável somente ao final da instrução criminal, por ocasião da prolação da sentença. Não pode servir, também, para, contornando o comando legal (art. 89 da Lei n.º 9.099/95), vencer uma restrição objetiva à suspensão condicional do processo, outro benefício instituído pela lei. 3. É improcedente o pedido alternativo de remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, porquanto a hipótese de aplicação analógica do disposto no art. 28 do Código de Processo Penal ocorre quando há divergência entre o Juiz e o Promotor de Justiça acerca do oferecimento do benefício, o que não é o caso dos autos. 4. Ordem denegada EDcl no AgRg no Ag 698820 / RJ EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2005/0128694-1 Relator(a) Ministro GILSON DIPP (1111) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 02/02/2006 Data da Publicação/Fonte DJ 06/03/2006 p. 430 Ementa: CRIMINAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL DO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRADIÇÃO E OBSCURIDADE. AUSÊNCIA. EMBARGOS REJEITADOS. I. O benefício do sursis processual é inaplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso formal, material ou em continuidade delitiva quando o somatório ultrapassar um ano. II. Não há contradição no acórdão que deixa clara a aplicação da Súmula 243 do STJ, pois, não obstante o princípio da unicidade dos crimes falimentares, o mesmo não pode ser utilizado como forma de beneficiar mais uma vez o agente, de modo a ensejar a concessão da suspensão condicional do processo. III. Ausente qualquer obscuridade no acórdão, que faz incidir a Súmula 07 desta Corte para as alegações de ausência ou não de dolo e de desvio de bens. IV. Embargos rejeitados. Se a unicidade do crime falimentar não é aplicável antes da sentença para viabilizar benefícios penais como a suspensão condicional do processo, pela mesma razão entendemos inaplicável referido instituto para possibilitar, também antes da sentença, a proposta de acordo de não persecução penal. Dessa forma, se o concurso de crimes falimentares resultar em pena mínima igual ou superior a quatro anos, incabível será a proposta de acordo de não persecução penal. Em conclusão O acordo de não persecução penal, em tese, tem ampla aplicabilidade aos crimes falimentares, com exceção da forma qualificada do crime de fraude a credores (contabilidade paralela), cuja pena mínima será superior ao permitido em lei. Também encerra exceção, por motivo distinto, o crime de omissão de documentos obrigatórios, uma vez que a este último terá aplicação prioritária do instituto da transação penal, que afasta, num primeiro momento, a incidência do ANPP, nos termos do art. 28, §2º, I, do CPP. No tocante à unicidade do crime falimentar, entendemos que, embora referido princípio continue a ser aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça em termos gerais, a jurisprudência do STJ não vem permitindo que sua aplicação ocorra antes da sentença para a concessão de benefícios penais análogos ao ANPP. Pela mesma razão, entendemos inaplicável a unicidade para fim de admitir proposta de acordo de não persecução penal.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A recuperação judicial e as ações de despejo

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A Lei de Recuperação de Empresas e Falência procurou criar ambiente institucional para que o empresário devedor pudesse negociar com seus credores uma solução para superar a crise econômico-financeira que acometia sua atividade. Para que essa negociação coletiva fosse incentivada, a LREF estabeleceu o período de suspensão na recuperação judicial. Deferido o processamento da recuperação judicial, todas as ações e execuções em face do empresário em recuperação judicial são suspensas pelo prazo de 180 dias como forma de evitar as constrições de ativos e os comportamentos oportunistas de retirada de bens indispensáveis à restruturação da atividade do devedor e que, inclusive, poderiam comprometer a satisfação da coletividade dos próprios credores. Controverte a jurisprudência, entretanto, se essa determinação de suspensão é aplicável às ações de despejo e se a locatária em recuperação judicial, mesmo inadimplente com os alugueis, continuaria a poder usar e gozar da coisa locada. Para parte dos precedentes1, apenas o crédito seria sujeito à recuperação judicial, mas não o direito de retomada do bem pelo locador. O inadimplemento das obrigações anteriores à distribuição do pedido, ainda que submetesse o crédito à recuperação judicial, não impediria o direito de o credor exercer o direito de propriedade sobre o bem e despejar o locatário em crise. Para essa corrente, em virtude da proteção ao direito de propriedade, a ação não seria suspensa, tampouco o mandado de despejo dela decorrente. Não há, contudo, qualquer exceção na LREF quanto a essas ações. Pela regra geral do art. 6º da lei, são suspensas todas as ações e execuções em face do devedor justamente para se permitir a este negociar com seus credores a melhor solução para a superação da crise econômico-financeira que acomete sua atividade. Não são suspensas apenas as ações e execuções referentes a créditos não sujeitos à recuperação judicial, pois, com o crédito não poderá ser novado pelo instituto, não se justifica a suspensão do direito de o credor perseguir a satisfação de seu crédito. Tampouco são suspensas as ações ilíquidas, assim tratadas aquelas que não permitem a imediata constrição de bens do devedor, com prejuízo a todos, seja pela falta de certeza quanto à obrigação devida, seja pela falta de certeza em relação ao montante. A ação de despejo figura exatamente nesse contexto. A simples apuração do montante dos alugueis ou encargos devidos, ou mesmo a apuração de eventuais outras violações contratuais, não exigirá sua suspensão em razão do deferimento do processamento da recuperação judicial. Ainda que o montante possa depender apenas de cálculo aritmético e permita a imediata execução, a cobrança dos alugueis cumulativa com pedido de rescisão da locação e despejo exigiria sentença condenatória e mandamental após a apuração do quantum debeatur e do an debeatur. Dessa forma, não poderia ser caracterizada como demanda por quantia líquida para fins de suspensão, eis que não permitiria a imediata constrição dos ativos, embora decerto as medidas constritivas liminares fiquem suspensas pela exigência de preservação da empresa durante o stay period, desde que fundamentadas em obrigações não satisfeitas anteriores à recuperação judicial. O prosseguimento regular da ação de despejo não significa, todavia, que o mandado de despejo não poderá ser suspenso. Após o reconhecimento do descumprimento contratual da locação, com a procedência do pedido de despejo e por ocasião da expedição do mandado, que conterá o prazo de 30 dias para a desocupação voluntária, a ação poderá ser suspensa. Fundamentado o pedido de despejo em inadimplemento anterior à distribuição do pedido, o crédito se submete à recuperação judicial e será novado nos termos do plano aprovado. Pela novação determinada pela LREF, ainda que condicional ao cumprimento das obrigações previstas para satisfação no período de dois anos após a concessão, a obrigação anterior não satisfeita deixa de existir e será substituída pela obrigação prevista no plano e que contou com a anuência dos credores. Concedida a recuperação judicial e novadas as obrigações, assim, não há mais inadimplemento do devedor ou fundamento para o despejo pelo locador. Por consequência, não se justifica permitir ao credor manter o comportamento individual de retomar o bem em detrimento da negociação coletiva e que permitiria a superação da crise em benefício de todos. Referida posição não prejudica seu direito de propriedade. O próprio titular do direito vinculou-se voluntariamente à obrigação de conservar a posse e o gozo do locatário a menos que houvesse o descumprimento do contrato. Pela possibilidade de concessão da recuperação judicial, a novação substitui a obrigação descumprida por outra prevista no plano e aprovada pela coletividade2. Ressalte-se que poderá ocorrer a suspensão do mandado de despejo, e não deverá. A suspensão do mandado de despejo apenas ocorrerá se decorrente de descumprimento de obrigação existente antes da distribuição do pedido de recuperação judicial, haja vista que os créditos dela decorrentes poderão ser novados pelo plano de recuperação. Caso o despejo seja motivado pelo término do período de locação, rescisão do contrato de trabalho ou descumprimento de obrigações existentes apenas após a distribuição do pedido de recuperação judicial, como referidas obrigações não se sujeitam à recuperação judicial, não haveria razão para submeter esses credores à suspensão. A recuperação judicial não obrigaria à manutenção do contrato de locação caso seu prazo já tenha se findado ou mesmo a manutenção do contrato de trabalho que dele seja fundamento, de modo que a retomada do bem não se submeteria a qualquer suspensão, mesmo que o bem locado fosse imprescindível ao desenvolvimento da atividade empresarial. Desta forma, apenas com a diferenciação entre a data das obrigações descumpridas e entre a apuração do descumprimento e o efetivo mandado de despejo é que se poderá compreender a regra de suspensão das ações de despejo diante da recuperação judicial dos locatários. __________ 1 STJ, Segunda Seção, AgRg no CC 133.612-AL, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 14.10.2015; STJ, Segunda Seção, CC 122.440/SP, Rel. Min. Raul Araújo, dje 15.10.2014; TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2200533-14.2018, Rel. Des. Maurício Pessoa, j. 10/12/2018; TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado, AI 2157100-91.2017, Rel. Des. Antonio Nascimento, j. 26.04.2018; TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, AI 2053598-44.2014, Rel. Des. Gilberto Leme, j. 29.04.2014; TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, AI 0343932-53.2009, Rel. Des. Luís de Carvalho, j. 03.02.2010. 2 Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2043646-02.2018, Rel. Des. Azuma Nishi, j. 23.05.2018; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2044673-54.2017, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 13/9/2017.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque e Rodrigo Pereira Cuano Para iniciar mais um novo ano nesta coluna, nada melhor do que falarmos sobre o que vem por aí: as últimas novidades da reforma da lei 11.101/05. Com efeito, tema que tem ganhado corpo nos últimos meses são as propostas de alteração na lei 11.101/2005 ("LRF"), tendo sido inclusive aprovado pela Câmara dos Deputados ao final de outubro de 2019, em sessão deliberativa extraordinária, o requerimento 2763/19, que prevê regime de urgência para apreciação do PL 6.229/05, que tramita em conjunto com o PL 10.220/18, do Poder Executivo, e que objetiva reformular a referida lei. Em novembro de 2019, foi proferido parecer em Plenário pelo relator, dep. Hugo Leal (PSD-RJ), concluindo pela aprovação da matéria na forma do substitutivo ao PL 6.229/05, em anexo ao parecer. Referido substitutivo foi objeto de longo debate "com o Conselho Nacional de Justiça, com o Superior Tribunal de Justiça, com o Ministério da Economia, com a Confederação Nacional do Comércio, com a Federação Nacional dos Bancos, com os trabalhadores, com as varas empresariais de estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco", conforme destacado pelo relator do projeto1. No entanto, além do aperfeiçoamento da lei, necessário se faz que a sua interpretação pelos profissionais do Direito - e, notadamente, pelos tribunais - seja uniforme, já que múltiplas possibilidades de interpretação, acarretam insegurança jurídica e, consequentemente, instabilidade econômica. Conforme bem destacado pelo professor Marcos Lisboa, "do ponto de vista econômico, a legislação falimentar tem como objetivo criar condições para que situações de insolvência tenham soluções previsíveis, céleres e transparentes, de modo que os ativos, tangíveis e intangíveis, sejam preservados e continuem cumprindo sua função social, gerando produto, emprego e renda."2 A lei, portanto, deve criar um ambiente que permita a reorganização das empresas em crise com a preservação da (i) manutenção da fonte produtora, (ii) do emprego dos trabalhadores e (iii) dos interesses dos credores, com vistas à preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica. Vale observar: não se deve, sem qualquer justificativa, mudar as regras do jogo, o que acarretaria indevida instabilidade e insegurança jurídica, com prejuízo não apenas às empresas em crise, mas a todos os agentes que atuam no mercado, devido à elevação dos riscos e outros custos de transação. É importante destacar que o Banco Mundial, em recente relatório divulgado, classificou a legislação brasileira quanto ao "índice de eficiência do regime da insolvência"3 com 13 pontos em uma escala de 0-16, o que é positivo e demonstra que a lei é enforceable. No entanto, quando avaliamos a classificação da taxa de recuperação4 em centavos de dólar, observamos que o indicador é extremamente baixo quando comparado a outros países, tanto da América Latina quanto da OCDE. Nesse sentido, a título de ilustração, São Paulo apresenta uma taxa de recuperação de 18.2 centavos para cada dólar, enquanto que na OCDE ela está em 70.2 (382% superior) e na América Latina & Caribe a taxa é de 31.2 (111% superior). Confira-se: Tabela extraída do Projeto Doing Business do Banco Mundial (ano 2018/19):5 Referida discrepância pode ser explicada, dentre outros fatores, em razão da instabilidade, insegurança jurídica e falta de previsibilidade quanto à interpretação da lei, o que, vale observar, não é uma característica exclusiva da recuperação de crédito em nosso país - em que pese os esforços do atual Código de Processo Civil na estruturação de um sistema de precedentes vinculantes e no reforço do papel paradigmático a ser desempenhado pelos tribunais superiores.6 Tal circunstância corrobora com o fato de o Brasil continuar a ter um dos maiores spreads do mundo. Conforme Marcel Balassiano e Vitor Vidal, em estudo publicado no Blog do IBRE, "se adotarmos uma agenda em que o debate econômico deveria ir abordando pontos que podem trazer bem-estar à sociedade, devemos considerar a questão do CP superada e entrar em outro de tamanha importância para a redução do spread bancário: o de garantias de crédito e recuperação judicial."7 Essa conclusão decorre do fato de que, conforme mencionado anteriormente, temos uma taxa de recuperação de crédito bastante reduzida. Segundo o levantamento realizado, "no Brasil em 2018, para cada dólar de calote em empréstimos apenas 0,13 cents era recuperado quando realizado a execução de dívida. Valor abaixo da média mundial de 0,34 cents, e bem menor de países como o Japão, que tem o menor spread bancário do mundo e a maior taxa de recuperação, de 0,92 cents para cada dólar. Este fato mostra como a segurança jurídica em caso de calote afeta diretamente os custos administrativos para emprestar".8 O que se almeja, portanto, é que além do aperfeiçoamento técnico da lei, sendo louváveis algumas das propostas de alteração apresentadas, tenhamos maior previsibilidade quanto às decisões judiciais sobre o tema, sendo de salutar importância que o Superior Tribunal de Justiça, na qualidade de guardião da legislação infraconstitucional venha a direcionar essas orientações. Enfim, espera-se que a vindoura reforma traga maior segurança jurídica, evitando-se, conforme constou do parecer do anteprojeto da LREF, que as "múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos". Em síntese, os nossos votos de ano novo para o tema da recuperação judicial e falência são que não se mudem as regras no meio do jogo. _____________ 1 Clique aqui. Consulta em 20/01/2020 2 LISBOA, Marcos de Barros. Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 3 Esse índice é a soma de 4 componentes: Índice de administração dos bens do devedor, Índice de procedimento de reorganização, Índice de participação de credor e Índice de eficiência regime da insolvência. 4 A taxa de recuperação calcula quantos centavos em cada dólar as partes reivindicadoras (credores, autoridades tributárias e funcionários) podem recuperar de uma empresa insolvente. 5 Clique aqui. Consulta em 20.1.2020. 6 Confira-se: "Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. (...). Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados". 7 "A parcimônia com o mercado de crédito", de autoria de Marcel Balassiano e Vitor Vidal, publicada no clique aqui. Consulta em 20.1.2020. 8 "A parcimônia com o mercado de crédito", de autoria de Marcel Balassiano e Vitor Vidal, publicada no clique aqui. Consulta em 31/10/2019 _____________ *Rodrigo Pereira Cuano é advogado em São Paulo, especialista em direito processual civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com cursos de extensão em reestruturação e recuperação de empresas pela FGV Direito, Escola Paulista da Magistratura, OAB/SP e IBAJUD e em direito digital aplicado pela FGV Direito.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Nesta última coluna do ano de 2019, que coincide com o término do mandato do desembargador Pereira Calças à frente da presidência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, vale a pena rememorar brevemente a trajetória deste grande magistrado, professor e administrador na área de falência e recuperação judicial, em razão dos resultados que alcançou. Quando a lei 11.101/2005 entrou em vigor, o Tribunal de Justiça de São Paulo era presidido pelo desembargador Luiz Elias Tâmbara, que, pioneiramente, instalou duas varas especializadas na comarca de São Paulo, e uma Câmara Especial no Tribunal de Justiça, para julgarem em primeiro e em grau de recurso os processos de falência e de recuperação judicial. O desembargador Pereira Calças foi um dos primeiros integrantes desta Câmara, ao lado de Romeu Ricupero, Elliot Akel, Boris Kauffmann, Lino Machado, Araldo Telles e Sidnei Benetti, e seus votos conferiram seguro norte aos profissionais atuantes nos primeiros processos de falência e recuperação judicial. O sucesso da especialização foi tamanho que, em 2011, novamente de forma pioneira, o Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo o desembargador José Roberto Bedran à frente da presidência, decidiu instalar duas Câmaras Empresariais, doravante não apenas com competência para as causas de insolvência, mas também de direito societário, propriedade industrial, franquia e ações relativas a arbitragens. O desembargador Pereira Calças passou então a integrar a 1ª Câmara, ao lado de Francisco Loureiro, Teixeira Leite, Ênio Zuliani, Maia da Cunha e Romeu Ricupero, cuja atuação destacada passou a colocar em dúvida a preferência pela arbitragem na solução de lides empresariais. Depois de mais de 10 anos com atuação profícua na jurisdição empresarial, em 2006 o desembargador Pereira Calças elegeu-se para a função de Corregedor Geral da Justiça de São Paulo, durante o biênio 2017-2018. Empenhado em aperfeiçoar a Justiça paulista, convenceu seu pares de que a comarca de São Paulo, onde são julgadas as maiores lides societárias e de propriedade industrial, deveria contar com varas especializadas em matéria empresarial. E mais. Sensibilizado com a demora na solução de processos disciplinados pelo decreto-lei 7.661/45 em varas cíveis, pois os juízes tinham que se dedicar a outras causa igualmente relevantes, complexas e trabalhosas, o então Corregedor também propôs a redistribuição dos processos a uma nova Vara. Em dezembro de 2017, sob a presidência do desembargador Paulo Dimas, foram instaladas mais três unidades jurisdicionais no Fórum João Mendes Jr.: 2 varas empresariais, com competência para julgar as lides societárias, de propriedade industrial, franquia e relativas a arbitragem; e a 3ª. Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca da capital, que recebeu todos os processos de concordata e falência que tramitavam nas 40 varas cíveis. Hoje, é patente o êxito destas medidas, quer para a solução das lides empresariais e dos processos de falência regidos pelo decreto-lei 7.661/45, que agora são julgados por juízes com competência exclusiva, quer para a resolução mais ágil dos processos em trâmite nas Varas Cíveis. Também deve ser destacada outra medida que o então Corregedor Pereira Calças implementou, ainda em 2017: a digitalização dos processos de falência de recuperação judicial distribuídos até o fim de 2013, que tramitavam no formato tradicional, em papel. Contando com o apoio dos administradores judiciais, bem como das áreas técnicas do Tribunal de Justiça de São Paulo, os autos físicos foram convertidos em digitais e o processamento passou a ser eletrônico, com ganho de tempo e recursos para todos os interessados nos processos. Eleito em 2017 para a presidência do Egrégio Tribunal de Justiça, no biênio 2018-2019, o desembargador Pereira Calças continuou a implementar medidas adequadas ao aperfeiçoamento da jurisdição empresarial em São Paulo. Determinou a realização de estudo de mapeamento de competência das três Varas de falências e recuperações judiciais da capital, para o estabelecimento de número adequado de servidores para os ofícios judiciais. E se desde 2012 já havia projeto de lei destinado à criação de varas regionais no Estado de São Paulo, foi em junho de 2018 que o Presidente Pereira Calças encaminhou à Assembleia Legislativa proposta de alteração da organização judiciária que foi aprovada. Neste dezembro de 2019, de forma pioneira, foram instaladas a 1ª e a 2ª. Varas Regionais Empresariais da 1ª Região Administrativa Judiciária, com competência territorial regional abrangente das Comarcas da Grande São Paulo e com competência material ampla, incluindo falências, recuperações judiciais, direito societário, propriedade industrial, franquia e conflitos relacionados à arbitragem (cf. Resolução 824/2019 do TJ/SP, com a redação que lhe foi conferida pela resolução 825/2019). O sucesso das medidas de especialização da jurisdição empresarial foi tão grande em São Paulo que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça recomendou aos Tribunais de Justiça a especialização nos demais tribunais. Diante do empenho e da dedicação do desembargador Pereira Calças, não só na arte de julgar as lides empresariais, mas também em melhorar a estrutura de funcionamento da Justiça Empresarial, só nos resta dizer: Por tudo isso, muito obrigado!
Texto de autoria de Luiz Dellore Como já exposto em colunas anteriores, quando na primeira lista de credores1 não houver um crédito ou este crédito for menor, deverá o interessado apresentar, respectivamente, habilitação ou divergência2. Essa peça será apresentada ao administrador judicial (AJ) e, quando de sua apreciação, não há a fixação de honorários advocatícios a título de sucumbência. Mas, quando da apresentação da segunda lista de credores, pelo AJ, se o credor não concordar com o valor ou classificação, poderá apresentar impugnação de crédito, perante o juiz. Nesse caso, há sucumbência, no tocante à condenação em honorários advocatícios? A resposta é positiva, conforme pacífica jurisprudência de nossos tribunais. Nesse sentido, colhe-se do informativo de jurisprudência 527/STJ o seguinte julgado (grifos originais): TERCEIRA TURMA DIREITO PROCESSUAL CIVIL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA HIPÓTESE DE IMPUGNAÇÃO AO PEDIDO DE HABILITAÇÃO DE CRÉDITO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. São devidos honorários advocatícios na hipótese em que apresentada impugnação ao pedido de habilitação de crédito em recuperação judicial. Isso porque a apresentação de impugnação ao referido pedido torna litigioso o processo. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.062.884-SC, Quarta Turma, DJe 24/8/2012; e AgRg no REsp 958.620-SC, Terceira Turma, DJe 22/3/2011. REsp 1.197.177-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/9/2013. Apesar de isso ser pacífico, vez ou outra não há a fixação de honorários na impugnação, o que faz com que a parte interessada, por óbvio, tenha de recorrer para obter a fixação dos honorários. Mas é algo isolado, usualmente ocorrendo com magistrados que não estão familiarizados com o procedimento da recuperação judicial ou falência. Sem maiores dificuldades, isso será fixado pelo Tribunal. Mas a polêmica que existe se refere a qual é a base de cálculo para a fixação desses honorários sucumbenciais. Deve o juiz tomar por base o valor do crédito impugnado ou a fixação deve ser de forma equitativa, ou seja, em um valor fixo sem considerar o valor discutido na impugnação? A jurisprudência, nesse particular, flutuou. Muitos julgados apontavam que os honorários, nesse caso, não deveriam guardar relação com o valor debatido na impugnação. Ou seja, independentemente de se discutir na habilitação R$ 100 mil ou R$ 1 milhão, deveria haver uma fixação de honorários em um mesmo valor, digamos, R$ 10 mil. Nesse sentido, há inúmeros acórdãos de tribunais estaduais, por todo o Brasil. Também há julgados nesse sentido no STJ, como a seguir se demonstra, em que uma impugnação de milhões teve fixação de honorários de forma equitativa, em poucos mil reais (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO JULGADA PROCEDENTE. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. QUANTUM IRRISÓRIO PARA A DEMANDA. MAJORAÇÃO QUE SE IMPÕE. DECISÃO MONOCRÁTICA MANTIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. O valor fixado de R$ 3.000,00 (três mil reais) não se mostrou adequado a remunerar corretamente os advogados dos agravados, sobretudo diante da retificação do quadro geral de credores para incluir crédito de R$ 11.191.600,41 (onze milhões, cento e noventa e um mil, seiscentos reais e quarenta e um centavos), o que implica em maior responsabilidade do causídico, razão pela qual deve ser mantida a decisão agravada que majorou a verba honorária para R$ 15.000,00 (quinze mil reais). 2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1612327/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 14/08/2017) Porém, a jurisprudência do STJ não é mais nessa linha. Ainda que não haja julgamento repetitivo ou súmula, colhe-se de decisões recentes dessa Corte Superior o entendimento no sentido de fixar a sucumbência a partir do valor discutido na impugnação, apresentada na RJ ou falência. O ponto de partida para esse entendimento é o REsp 1746072/PR, que não tratou especificamente de recuperação judicial ou falência. Nesse recurso especial, a 2ª Seção do STJ (que reúne a 3ª e 4ª Turmas, ou seja, que define as questões de direito privado), definiu que a regra é a fixação com base no valor da causa, apenas excepcionalmente existindo a fixação por estimativa. Nesse sentido, no informativo de jurisprudência 645/STJ, de abril de 2019, encontra-se o seguinte (grifos nossos): Processo REsp 1.746.072-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. Acd. Min. Raul Araújo, por unanimidade, julgado em 13/02/2019, DJe 29/03/2019 Ramo do Direito DIREITO PROCESSUAL CIVIL Tema Honorários advocatícios. Juízo de equidade. Regra subsidiária (art. 85, § 8º, do CPC/2015). Esgotamento da regra geral (art. 85, § 2º, do CPC/2015). Obrigatoriedade. Destaque O juízo de equidade na fixação dos honorários advocatícios somente pode ser utilizado de forma subsidiária, quando não presente qualquer hipótese prevista no § 2º do art. 85 do CPC. Ou seja, existindo valor debatido em juízo, esse será a base de cálculo para a fixação dos honorários, em atenção ao comando do CPC3. A partir desse julgado, do início de 2019, a jurisprudência do STJ passou a rumar no sentido da fixação dos honorários tendo por base de cálculo o valor objeto da impugnação de crédito. Nesse sentido, vejamos as decisões mais recentes sobre o tema das duas turmas de direito privado - que, por certo, indicam a tendência prevalente neste momento no STJ. Da 3ª Turma, reproduzimos o seguinte julgado (grifos nossos): RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCIDENTE DE IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. IMPROCEDÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. FIXAÇÃO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. CPC/2015. NORMA VIGENTE NA DATA DA PROPOSITURA DO INCIDENTE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CRITÉRIO EQUITATIVO AFASTADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. O recurso especial debate a aplicação do critério equitativo para fixação de honorários advocatícios de sucumbência no julgamento de incidente de impugnação de crédito em processo de recuperação judicial, diante das regras do atual Código de Processo Civil. 2. O novo Código de Processo Civil introduziu, na disciplina da fixação dos honorários advocatícios sucumbenciais, ordem decrescente de preferência de critérios para fixação da base de cálculo dos honorários, na qual a subsunção do caso concreto a uma das hipóteses legais prévias impede o avanço para a categoria seguinte. 3. As alterações reduzem a subjetividade do julgador e incrementa a responsabilidade das partes com a atribuição de valor à causa, ao restringir as hipóteses de cabimento do critério de fixação por equidade, restritas agora às causas: em que o proveito econômico for inestimável ou irrisório ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo (art. 85, § 8º). 4. Embora a improcedência de incidente de impugnação de crédito em processos concursais (recuperacional ou falimentar) não resulte, necessariamente, em exoneração da obrigação de pagamento pelo devedor, é inegável a existência de valor econômico do resultado da disputa. 5. No caso concreto, o incidente teve como único objetivo verificar se o crédito devia ou não ser submetido aos efeitos da recuperação judicial, de modo que o proveito econômico direto não é mensurável. Todavia, o apontamento do valor atribuído à causa é certo e determinado, devendo este ser o critério utilizado, nos termos preconizados pelo atual sistema processual. 6. Recurso especial provido. (REsp 1821865/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 1/10/2019) Analisando o inteiro teor, encontra-se o seguinte (grifos nossos): No caso dos autos, o banco recorrido apresentou impugnação à relação de credores, na qual pleiteava a exclusão de seu crédito no valor de R$ 3.929.421,49 (três milhões, novecentos e vinte e nove mil, quatrocentos e vinte e um reais e quarenta e nove centavos) dos efeitos da recuperação judicial das recorrentes, atribuindo ao valor da causa o valor total da dívida. Esta impugnação foi integralmente rejeitada pelas instâncias ordinárias e, inicialmente, fixados honorários advocatícios em 10% sobre o valor da causa, vindo a ser reduzido para R$ 2.000,00 (dois mil reais) em julgamento de aclaratórios pelo Juízo de primeiro grau. (...) Com esses fundamentos, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para fixar os honorários advocatícios de sucumbência em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, sendo este percentual suficiente e adequado para remunerar a atividade advocatícia desenvolvida nos autos da impugnação ao crédito. Da 4ª Turma, destaque para o seguinte acórdão (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO DA PARTE ADVERSA. INSURGÊNCIA RECURSAL DO AGRAVADO. 1. Nos termos do entendimento jurisprudencial adotado por este Superior Tribunal de Justiça, é impositiva a condenação em honorários de sucumbência quando apresentada impugnação ao pedido de habilitação de crédito em sede de recuperação judicial ou falência, haja vista a litigiosidade da demanda. 2. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que os honorários advocatícios só podem ser fixados com base na equidade de forma subsidiária, quando não for possível o arbitramento pela regra geral ou quando inestimável ou irrisório o valor da causa (REsp 1746072/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/02/2019, DJe 29/03/2019). 3. Agravo interno desprovido. (AgInt nos EDcl no AREsp 1496551/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/10/2019, DJe 23/10/2019) Do inteiro teor, no que é importante para o debate, extrai-se o seguinte: No caso dos autos, depreende-se claramente o valor do bem jurídico envolvido na lide, qual seja R$ 415.621,24 (quatrocentos e quinze mil, seiscentos e vinte e um reais e vinte e quatro centavos) - fl. 20, (e-STJ) -, o qual corresponde ao valor da causa. Não se vislumbra, assim, nenhuma das hipóteses previstas no § 8° do artigo 85 do CPC/15 e autorizativas da fixação dos honorários por apreciação equitativa. (...) De rigor, portanto, a manutenção da decisão ora agravada, a qual, em consonância com a orientação jurisprudencial adotada por esta Colenda Corte sobre a matéria, fixou os honorários advocatícios sucumbenciais em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa. Reitere-se que ainda não há súmula ou repetitivo acerca do tema. Mas as Turmas de direito privado do STJ parecem ter fixado que a base de cálculo, na impugnação de crédito no âmbito da RJ ou falência, é o valor debatido nos autos. Ainda que seja na casa de milhares ou milhões de reais, como apontam os dois julgados acima reproduzidos. Resta verificar o que ocorrerá em uma impugnação na casa das centenas de milhões ou mesmo na casa de bilhões de reais - sendo certo que existem impugnações nesses valores. De qualquer modo, devem as partes estar cientes de mais esse risco quando litigam no âmbito de uma impugnação. __________ 1 Clique aqui para ter uma visão geral do procedimento de uma RJ e entender as diversas listas. 2 Acesse aqui para entender a distinção entre habilitar, divergir ou impugnar. 3 Acerca do tema, conferir, de minha autoria, os comentários ao art. 85, § 2º do CPC (Teoria Geral do Processo: Comentários ao CPC 2015. 3. ed. São Paulo: Grupo Gen, 2019).
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho O Brasil ainda enfrenta severas consequências da crise econômica vivida desde os idos de 2014 como pode ser visualizado nos números da taxa de desemprego ainda em níveis alarmantes, e do desempenho do setor produtivo do país, ainda aquém do esperado para os mais diversos setores produtivos. Entretanto, esse cenário proporcionou o amadurecimento do sistema de insolvência brasileiro, notadamente o instituto da recuperação judicial, diante do aumento do ajuizamento dessas ações por todas as unidades da federação, o que permitiu o desenvolvimento de muitas teses e o questionamento de diversos institutos. Um dos assuntos sobre os quais há intensa discussão é conceito de bens de capital essenciais à atividade em recuperação judicial, diante da previsão contida na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, em cujo texto se confere uma proteção ao devedor em recuperação judicial diante de créditos não sujeitos ao feito recuperacional. De proêmio, não podemos esquecer que a competência para deliberar sobre bens essenciais da recuperanda é do Juízo da recuperação judicial, consoante jurisprudência do STJ. Cito os seguintes precedentes sobre o tema: (AgRg no CC 143.802/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 19/04/2016); (AgRg no RCD no CC 134.655/AL, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/10/2015, DJe 03/11/2015); (REsp 1298670/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/5/2015, DJe 26/6/2015) Já para a definição de bem de capital, por ora, existe precedente do STJ no REsp 1.758.746/GO da lavra do Min. Bellizze, no qual se estabeleceu uma conceituação restrita sobre o tema, cuja ementa segue assim transcrita, verbis: RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO DE CRÉDITO/RECEBÍVEIS EM GARANTIA FIDUCIÁRIA A EMPRÉSTIMO TOMADO PELA EMPRESA DEVEDORA. RETENÇÃO DO CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE PELO JUÍZO RECUPERACIONAL, POR REPUTAR QUE O ALUDIDO BEM É ESSENCIAL AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA, COMPREENDENDO-SE, REFLEXAMENTE, QUE SE TRATARIA DE BEM DE CAPITAL, NA DICÇÃO DO § 3º, IN FINE, DO ART. 49 DA LEI N. 11.101/2005. IMPOSSIBILIDADE. DEFINIÇÃO, PELO STJ, DA ABRANGÊNCIA DO TERMO "BEM DE CAPITAL". NECESSIDADE. TRAVA BANCÁRIA RESTABELECIDA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A lei 11.101/2005, embora tenha excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, acentuou que os "bens de capital", objeto de garantia fiduciária, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, permaneceriam na posse da recuperanda durante o stay period. 1.1 A conceituação de "bem de capital", referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva. Para esse propósito, deve-se inferir, de modo objetivo, a abrangência do termo "bem de capital", conferindo-se-lhe interpretação sistemática que, a um só tempo, atenda aos ditames da lei de regência e não descaracterize ou esvazie a garantia fiduciária que recai sobre o "bem de capital", que se encontra provisoriamente na posse da recuperanda. 2. De seu teor infere-se que o bem, para se caracterizar como bem de capital, deve utilizado no processo produtivo da empresa, já que necessário ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário. Constata-se, ainda, que o bem, para tal categorização, há de se encontrar na posse da recuperanda, porquanto, como visto, utilizado em seu processo produtivo. Do contrário, aliás, afigurar-se-ia de todo impróprio - e na lei não há dizeres inúteis - falar em "retenção" ou "proibição de retirada". Por fim, ainda para efeito de identificação do "bem de capital" referido no preceito legal, não se pode atribuir tal qualidade a um bem, cuja utilização signifique o próprio esvaziamento da garantia fiduciária. Isso porque, ao final do stay period, o bem deverá ser restituído ao proprietário, o credor fiduciário. 3. A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária - bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa. 4. Por meio da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito (em que se transfere a propriedade resolúvel do direito creditício, representado, no último caso, pelo título - bem móvel incorpóreo e fungível, por natureza), o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede "seus recebíveis" à instituição financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá apoderar-se diretamente do crédito ou receber o correlato pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante). Nesse contexto, como se constata, o crédito, cedido fiduciariamente, nem sequer se encontra na posse da recuperanda, afigurando-se de todo imprópria a intervenção judicial para esse propósito (liberação da trava bancária). 5. A exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo "bem de capital". Isso porque a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade (angariar fundos, pagamento de despesas, pagamento de credores submetidos ou não à recuperação judicial, etc), além de desvirtuar a própria finalidade dos "bens de capital", fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial. 6. Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period. 6.1 A partir de tal conceituação, pode-se concluir, in casu, não se estar diante de bem de capital, circunstância que, por expressa disposição legal, não autoriza o Juízo da recuperação judicial obstar que o credor fiduciário satisfaça seu crédito diretamente com os devedores da recuperanda, no caso, por meio da denominada trava bancária. 7. Recurso especial provido. (REsp 1758746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018) Da leitura do julgado, foi considerada necessária a presença de três requisitos para que o bem seja considerado "de capital", a saber: a necessidade de estar inserido na cadeia de produção; de estar na posse da recuperanda em razão de sua corporificação e; de poder ser restituído ao final do stay period ao credor fiduciário. Fixadas essas premissas, no aludido julgado o STJ não considerou o bem móvel dinheiro como apto a ser classificado como bem de capital da recuperanda, justamente por não deter a posse da coisa e por ele não poder ser restituído ao final do stay period justamente por se classificar como bem consumível. Entretanto, com todas as vênias ao posicionamento transcrito, entendo que a questão merece uma reflexão diversa, em face de determinados elementos não trabalhados no precedente mencionado e à luz da superação do dualismo pendular como vetor de interpretação das regras do sistema da lei 11.101/2005. Estamos vivendo uma realidade cada vez mais intensa de virtualização das coisas, fato também cada vez mais presente na organização dos fatores de produção do meio empresarial e nas transações e operações do sistema financeiro mundial. Diversas atividades empresariais hoje são desenvolvidas e exploradas quase que exclusivamente através de ambiente virtual, no qual o empresário age profissionalmente com a organização dos fatores de produção na busca do lucro, sem se valer de bens corpóreos para o exercício da empresa. Seus ativos compreendem plataformas tecnológicas, know-how especializado para atuação no ambiente virtual e os recebíveis oriundos da exploração da atividade. As operações e transações do mercado financeiro global também estão sofrendo sensível impacto com o fenômeno da desmonetização, através da criação de novas tecnologias que permitem a criação de moedas virtuais e pelo recrudescimento do volume de transações eletrônicas envolvendo pagamentos de obrigações e transferência de ativos sem a utilização de papel-moeda. De fato, as pessoas estão se desvencilhando da utilização do papel-moeda para migrarem cada vez mais para as transações eletrônicas. Os meios eletrônicos de circulação de ativos possuem as vantagens de trazer maior comodidade e segurança no dia a dia das pessoas, além de possibilitar maior transparência nas operações pela facilidade de rastreamento das transações, evitando-se atos de evasão fiscal. Esse movimento de virtualização do exercício de empresa e de circulação de ativos demanda uma releitura de institutos tradicionais do direito civil e empresarial conferindo impacto direto na leitura da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, sob a ótica da isonomia e da própria ideia de preservação da empresa, nos termos do art. 47 do aludido diploma legal. Ao se aplicar o entendimento proposto no REsp 1.758.746, diversas atividades empresariais de relevo estarão excluídas da proteção prevista na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, tão somente pelo fato da operação ser realizada em ambiente virtual, impedindo que bens essenciais à atividade, dentre eles os recebíveis, possam permanecer à disposição do empresário, pela ausência de corporificação desses bens e pela restrita leitura conferida ao instituto da posse, criando-se uma distinção injustificável entre empresas regularmente exploradas. Além da deletéria desigualdade criada a se prevalecer o conceito restrito de bem de capital, é necessário termos em mente que o conceito de posse sobre ativos monetários não pode mais estar atrelado à corporificação do bem, diante do aumento das transações eletrônicas envolvendo a circulação de dinheiro. Isso porque a disponibilidade de ativos pode ser exercida a qualquer momento pelo seu titular através de acesso aos instrumentos de internet banking, aplicativos de telefone celular ou até mesmo pela utilização de cartões magnéticos pelos meios de operações de crédito e débito, cada vez mais acessíveis em nível global. De mais a mais, ainda que se sustente a impossibilidade de restituição do dinheiro ao final do stay period pelo fato do bem ser consumível, diferentemente de uma máquina ou qualquer outro bem não consumível, não se pode olvidar que há renovação dos recebíveis pela perenidade dos pagamentos realizados pelos devedores da recuperanda no decurso de tempo. Assim, ao final do período de suspensão das ações e execuções contra a devedora, os recebíveis continuarão a existir e a garantia poderá ser exercida no momento oportuno sem prejuízo ao proprietário fiduciário. Na realidade, ao se permitir o uso indiscriminado da trava bancária, o que se proporcionará é o risco de paralisação da atividade pelo sufocamento financeiro resultante do impedimento de acesso ao dinheiro e, consequentemente, de cessação da garantia outrora ofertada, pois a empresa não mais existirá e os recebíveis serão extintos antes mesmo da satisfação total do débito existente junto ao credor fiduciário. Ao se considerar a existência de atividades empresariais engendradas predominantemente em meios virtuais ou de prestação de serviços que possuem ativos essenciais exclusivamente em meios virtuais, somada à uma releitura do conceito de posse sobre bens existentes em sistemas eletrônicos, permite-se a subsunção dos recebíveis da recuperanda no conceito de bem de capital, justamente porque inseridos na cadeia de produção através da composição do fluxo de caixa, pela possibilidade do exercício imediato de posse através dos meios eletrônicos à disposição de uso e porque poderá haver a perenidade da garantia diante da continuidade dos pagamentos que serão feitos à recuperanda, restituindo-se ao credor fiduciário, ao final do stay period, a possibilidade de realização da trava bancária na hipótese de inadimplemento da obrigação principal. Essa visão sobre o tema está em consonância com a proporcionalidade buscada pela superação do dualismo pendular na recuperação judicial, a fim de que os benefícios sociais gerados pela atividade sejam mantidos, afastando-se a visão restritiva de mera proteção de credores ou devedor, conforme o caso. No paradigmático REsp 1.337.989, o Eminente Ministro Luis Felipe Salomão bem delineou um importante vetor interpretativo da lei 11.101/2005, assim vernaculamente posto: Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto. Desse modo, a aplicação da lei 11.101/2005, no tocante ao instituto da recuperação judicial, deve atentar para a teoria da superação do dualismo pendular proposta por Daniel Carnio Costa e reconhecida no V. Acórdão do recurso especial acima mencionado, verbis: Agora, pela teoria da superação do dualismo pendular, há consenso, na doutrina e no direito comparado, no sentido de que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se acolher aquela que buscar conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial Isso porque a viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas, os quais devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial. Nesse sentido, o termo "retirada do estabelecimento", diante das circunstâncias inerentes às atividades virtuais ou de bens armazenados em meios eletrônicos somado ao vetor de interpretação constante do REsp 1.337.989, deve ser entendimento como impedimento à realização da garantia durante o stay period, justamente permitir que atividades empresariais virtuais ou de prestação de serviços também sejam alcançadas pela proteção constante da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005. Por isso, a melhor interpretação da ressalva trazida pelo art. 49, §3º, da lei 11.101/2005 deve ser no sentido de garantir a plenitude da busca da superação da crise empresarial, para vedar a discriminação de atividades empresariais regulares atuantes nos meios virtuais ou que somente possuam bens de produção essenciais situados em ambientes eletrônicos estendendo-lhes, também, a proteção de manutenção dos bens essenciais à atividades durante o stay period, tudo com o escopo de se preservar os benefícios sociais da atividade empresarial.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos I - A problemática dos créditos da Fazenda Pública na recuperação judicial O objetivo deste artigo é analisar a problemática dos créditos da Fazenda Pública na recuperação judicial à vista de novas perspectivas. A primeira delas é por meio do instituto da transação trazido pela Medida Provisória 899, de 16 de outubro de 2019. A segunda são reflexos tributários no processo de recuperação de empresas trazidos pelo Substitutivo de Plenário ao Projeto de lei 6.229/2005 de relatoria do Deputado Hugo Leal. Cabe destacar que há vinte e seis outros projetos de reforma da lei falimentar que foram apensados a este projeto de lei. O termo "Créditos da Fazenda Pública" abrange os créditos de natureza tributária (impostos, as taxas e as contribuições) e também os créditos não tributários, como as multas de natureza administrativa, impostas pelo Poder Público. A lei 11.101/2005, trouxe grande avanço ao indicar no artigo 47 o objetivo da recuperação judicial, que é viabilizar "a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Tal objetivo coincide com a noção de interesse público primário, visto que é do interesse coletivo que a atividade econômica prospere, gere empregos e recolha impostos. Desde a edição da atual Lei de Falências e da lei complementar 118/2005, os empresários brasileiros enfrentam desafios quanto à regularidade do crédito público no processo de recuperação judicial. No início, a legislação falimentar e o CTN dispunham que "leis especiais" (de cada um dos entes) instituiriam parcelamentos especiais para empresas em recuperação judicial. Todavia, a apresentação de certidão de regularidade fiscal, revelou-se impraticável, por não editadas as leis instituindo o parcelamento especial. Isso levou a jurisprudência a consolidar-se no sentido da inexigibilidade da apresentação de certidões fiscais, enquanto não editadas leis especiais de parcelamento para empresas em recuperação judicial, por ser o parcelamento direito da empresa em recuperação judicial. No âmbito Federal tentou-se resolver o problema por meio da lei Federal 13.043/2014, que introduziu o artigo 10-A à lei 10.522/2002, instituindo parcelamento, para empresa em recuperação judicial, com prazo de 84 meses e escalonado, com a fixação percentuais reduzidos para as parcelas a serem pagas nos primeiros anos. Contudo, a nova não resolveu o problema, porque exige a consolidação todas as dívidas tributárias do devedor e a renúncia ao direito de discuti-las. A lei Federal 13.043/2014 (e diversas leis estaduais e municipais) não foram capazes de proporcionar os meios que viabilizassem o equacionamento do passivo tributário das empresas em recuperação judicial - o que é condição econômica para o êxito na superação da crise. A análise das leis que foram editadas dispondo sobre parcelamento especial destinado a empresas em recuperação judicial mostra que não houve efetivo comprometimento dos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e municípios) com o soerguimento da empresa, mas, apenas, a preocupação com o interesse arrecadatório do fisco, nem sempre coincidente com o interesse primário do Estado, de manter a fonte produtora. Diante deste cenário é que surgiram a Medida Provisória 899 de 2019 tratando do instituto da transação e projetos de lei visando reformar a lei falimentar brasileira, incluindo alguns aspectos tributários. II - A transação instituída pela MP 899/2019 A Medida Provisória 899 editada em 16 de outubro de 2019 regulamenta, de forma inédita, o artigo 171 do CTN estabelecendo parâmetros para que a União e entidades da administração pública federal indireta transacionem com o fim de extinguir litígios relativos a créditos públicos. Podem ser objeto de transação créditos não judicializados, administrados pela Receita Federal do Brasil e dívida ativa e tributos da União cobrados pela Procuradoria da Fazenda Nacional (§ 3º do artigo 1º). Em relação aos créditos de titularidade de autarquias de fundações federais - e aí entram as agências reguladoras - inscritos na dívida ativa, cobrados pela Procuradoria Geral da União a possibilidade de transação depende da edição de ato do Advogado Geral da União (inciso III do § 3º do art. 1º da MP). Há, na Medida Provisória aspectos extremamente positivos. Um deles é a norma expressa afastando a possibilidade de atribuição aos agentes públicos que tenham participado do processo de composição do conflito, judicial ou extrajudicialmente, de responsabilidade civil, administrativa, criminal e perante órgãos de controle interno e externo, salvo quando agirem com dolo ou fraude para obter vantagem para si ou para ou outrem. Outro aspecto bem relevante é a introdução de norma que indica mudança de rumo na forma de atuação do agente público, com a atribuição de parcela de discricionariedade para buscar a alternativa de solucionar individualmente casos concretos (transação individual) ou de grupos (transação por adesão). Contudo, em alguns pontos a MP 899/2019 foi bem tímida, como por exemplo, quando proíbe a redução do principal inscrito na dívida ativa da União, de determinadas multas por infração à legislação tributária e de multas de natureza penal. Além disso, limitou bastante a discricionariedade do agente público ao determinar, como regra, que a quitação da dívida se dê em até 84 meses da data da transação, com redução de até 50% do valor total dos créditos transacionados (§ 3º, I e II, do artigo 5º), ou, no caso de pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, no prazo de 100 meses e redução de até 70%. Outro ponto negativo, é a previsão da possibilidade da Fazenda Pública requerer a convolação de recuperação judicial em falência, ou ajuizar requerimento de falência, em caso de rescisão da transação (artigo 8º, II). Trata-se de medida que não contribui para que o contribuinte tenha a necessária confiança para fazer uso da transação como meio de resolver suas pendências com o fisco, abrindo mão da chance do êxito na discussão de tese jurídica, no caso da no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica. III - Os projetos de lei de reforma da lei 11.101/2005 e da legislação tributária pertinente Por sua vez, o Substitutivo ao projeto de lei 6.299/2005, aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, contém normas inovadoras e que mostram o inequívoco comprometimento do legislador na busca de solução para a crise da empresa. Em relação ao passivo tributário, o Substitutivo tratou do equacionamento do passivo tributário, no seu artigo 5º, que altera a lei 10.522/2002, dando nova redação ao artigo 10-A e acrescenta os artigos 10-B e 10-C. Em resumo, foram estabelecidas condições especiais de parcelamento dos débitos para com a Fazenda Nacional (artigos 10-A e 10-B) e como alternativa ao parcelamento a possibilidade de transação (artigo 10-C). No concernente às alternativas de parcelamento oferecidas, é bem positiva a possibilidade de liquidação de até 30% dos débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil com créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL ou com outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, já que, com isso, não há comprometimento do caixa. O aspecto negativo é a faculdade atribuída à Procuradoria da Fazenda Nacional de requerer a convolação da recuperação judicial e falência, no caso de exclusão do devedor do parcelamento. É o mesmo problema existente na MP 899/2019, acima mencionada. O Substitutivo inova também ao prever a possibilidade do devedor, até a juntada do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, submeter à Procuradoria da Fazenda Nacional proposta de transação indicando parâmetros a serem observados na formalização da transação. A transação é aplicável também aos créditos de qualquer natureza das autarquias e fundações públicas federais. Como o legislador federal não tem competência para dispor sobre créditos tributários e não tributários dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o Substitutivo prevê a possibilidade de que tais entidades da federação, por lei de iniciativa própria, autorizem a transação em relação aos respectivos créditos1. O Substitutivo estabelece parâmetros a serem observados na transação, dentre eles, destacam-se (i) prazo máximo de 100 meses para quitação da dívida (aumentado para 120 meses, no caso microempresa ou pequena empresa), (ii) limite máximo para reduções de 70%, e (iii) observância dos percentuais médios de alongamento de prazos e de descontos previstos no plano de recuperação judicial. Por fim, outra questão digna de nota são os efeitos tributários da redução das dívidas obtida em negociação bem-sucedida. Os descontos obtidos na renegociação de dívidas são considerados receita e, por isso, tem impacto tributário relevante na apuração do Imposto de Renda ("IR/PJ") e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL"), em razão do limite de 30% para compensar o lucro de um exercício com o prejuízo fiscal acumulado2. Os descontos são considerados receita na apuração da base de cálculo de tais contribuições. Considerando os graves efeitos da tributação dos ganhos obtidos pelas empresas que recorrem à recuperação judicial, em especial aquelas tributadas com base no lucro real e que tem prejuízo fiscal acumulado, conclui-se que uma das mais relevantes inovação trazidas no Projeto de lei 6.229, de 2005 está no acréscimo do artigo 50-A à lei 11.101/2005. O dispositivo acrescido prevê que, na hipótese de renegociação de dívidas no âmbito de processo de recuperação judicial, os ganhos obtidos pelo devedor, não serão computados na base de cálculo da CONFINS e da Contribuição para o PIS/PASEP e, ainda permite a compensação dos ganhos com o prejuízo fiscal do IRPJ e bases negativas da CSLL sem o limite de 30%. Percebe-se que o artigo 50-A do PL é medida salutar e de efeito imediato. IV - Conclusão Em síntese, a previsão de transação fiscal, prevista na MP 889/2019 e o PL relatado pelo Deputado Hugo Leal representam um avanço em relação ao equacionamento das questões tributárias na recuperação judicial. A realidade tem demonstrado que os entes da Federação devem ter um efetivo comprometimento com o soerguimento da empresa, e não apenas a preocupação com o interesse arrecadatório, que não coincide com o interesse primário do Estado que é a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. __________ 1 No âmbito estadual, merece destaque a Lei Estadual n. 8.502, de 30 de agosto de 2019, do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a transação e o parcelamento de débitos fiscais de devedores em recuperação judicial. 2 O STF, ao julgar o RE 591.340 ficou a seguinte tese em repercussão geral: "É constitucional a limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL" (Tema 117).
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa O Conselho Nacional de Justiça aprovou, por unanimidade, no último dia 8/10/2019 (298ª Sessão Ordinária) três atos normativos referentes à recuperação de empresas e falências. São três recomendações que visam tornar mais eficiente a atuação do Poder Judiciário nos processos que tratam da insolvência empresarial. As recomendações aprovadas são frutos dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho criado pela Portaria 162/2018, pelo presidente do CNJ e do STF ministro Dias Toffoli, por iniciativa do conselheiro Henrique Ávila, e que é presidido pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão. O Grupo de Trabalho foi criado para estudo e implementação de boas práticas na gestão de processos de insolvência empresarial e é composto por algumas das maiores autoridades nos temas de falência e recuperação judicial de empresas no Brasil. A primeira recomendação aprovada pelo Plenário do CNJ diz respeito à Constatação Prévia. Ficou reconhecido de forma unânime pelo Conselho Nacional de Justiça que a constatação prévia da regularidade/completude da documentação apresentada pela devedora e das reais condições de funcionamento da empresa são medidas de inegável utilidade para a adequada e racional gestão desses processos de insolvência empresarial. A recomendação oferece aos magistrados um modelo de constatação prévia fortemente baseado no procedimento de perícia prévia aplicado desde 2011 na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. Segundo a recomendação da Constatação Prévia, logo após a distribuição do pedido de recuperação empresarial, poderá o magistrado nomear um profissional de sua confiança, com capacidade técnica e idoneidade para promover a constatação das reais condições de funcionamento da empresa requerente e a análise da regularidade e da completude da documentação apresentada juntamente com a petição inicial. A remuneração do profissional deverá ser arbitrada posteriormente à apresentação do laudo, observada a complexidade do trabalho desenvolvido. O magistrado deverá conceder o prazo máximo de cinco dias para que o perito nomeado apresente laudo de constatação das reais condições de funcionamento da devedora e de verificação da regularidade documental, decidindo em seguida, sem a necessidade de oitiva das partes. A constatação prévia consistirá, objetivamente, na análise da capacidade da devedora de gerar os benefícios mencionados no art. 47, bem como na constatação da presença e regularidade dos requisitos e documentos previstos nos artigos 48 e 51, todos da lei 11.101/2005. Não preenchidos os requisitos legais, o magistrado poderá indeferir a petição inicial, sem convolação em falência. Caso a constatação prévia demonstre que o principal estabelecimento da devedora não se situa na área de competência do juízo, o magistrado deverá determinar a remessa dos autos, com urgência, ao juízo competente. A segunda recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça diz respeito à criação das Varas Especializadas Regionais. O Grupo de Trabalho analisou e adotou estudos que demonstram que Varas especializadas em recuperação empresarial e falência são significativamente mais eficientes na condução de processos afetos à matéria do que varas de competência cumulativa. Nesse sentido, e com base em análises estatísticas realizadas pela Associação Brasileira de Jurimetria, o CNJ recomendou "a todos os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios que promovam a especialização de varas em Recuperação empresarial e falência nas comarcas que receberam a média anual de 221 casos novos principais e incidentes relacionados à matéria, dos quais pelo menos 30 pertencentes às classes "Falência de Empresários, Sociedades Empresariais, Microempresas e Empresas de Pequeno Porte" ou "Recuperação Judicial", considerados os últimos três anos". Note-se que, segundo os estudos estatísticos, os incidentes dos processos de insolvência (como impugnações de crédito) também devem ser computados na contagem da média de casos novos. Na hipótese de a Comarca não possuir números suficientes para ter uma Vara especializada em falência e recuperação judicial, a recomendação autoriza que sejam somados os números de distribuição de casos novos (principais e incidentes) de Comarcas contíguas situadas em uma mesma circunscrição ou região administrativa ou de Comarcas com até 200 quilômetros de distância entre si. A especialização de Vara em recuperação empresarial e falência com competência regional poderá ocorrer sem prejuízo da manutenção da competência das Varas especializadas preexistentes na região, às quais também poderá ser atribuída competência regional. Por fim, em relação às varas especializadas, nota-se que a recomendação autoriza, de forma excepcional, a inclusão de processos empresariais nas Varas de recuperação empresarial e falência em caso de haver disparidade na demanda de processos de uma mesma Comarca. É importante destacar que os estudos demonstram que a mistura de processos empresariais com processos de insolvência (falência e recuperação judicial) não favorece a prestação jurisdicional eficiente. De toda forma, sendo essa uma última alternativa, ainda assim é preferível do que se ter processos de falência e recuperação judicial em varas de competência geral cumulativa. Há, portanto, uma evidente gradação na recomendação do CNJ: devem ser criadas Varas especializadas em falência e recuperação judicial nas Comarcas em que os números mínimos de distribuição forem atingidos. Caso não exista demanda suficiente, somam-se os números de Comarcas pertencentes à uma mesma região ou de Comarcas distantes entre si até 200 quilômetros para criação das Varas de falência e recuperação Judicial regionais. Como última hipótese, e no intuito de viabilizar a especialização onde não exista demanda suficiente, autoriza-se a soma de processos empresariais juntamente com processos de falência e recuperação judicial. A terceira e última recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça diz respeito ao uso da mediação em processos de falência e recuperação empresarial. Nesse sentido, o CNJ recomenda a todos os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de Varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, nos termos da lei 13.105/2015 e da lei 13.140/2015, o uso da mediação, de forma a auxiliar a resolução de todo e qualquer conflito entre o empresário/sociedade, em recuperação ou falidos, e seus credores, fornecedores, sócios, acionistas e terceiros interessados no processo. A recomendação ainda exemplifica hipóteses de aplicação da mediação em processos de falência e recuperação empresarial, esclarecendo o cabimento dessa forma alternativa de solução de conflitos nos incidentes de impugnação de crédito, na negociação do plano de recuperação judicial, no caso de disputa entre acionistas da empresa devedora, dentre outros. É importante destacar que a recomendação veda a utilização de mediação para definição de classificação de créditos. Por fim, a recomendação estabelece critérios para escolha e atuação do mediador, vedando ao Administrador Judicial a acumulação das funções de mediador no mesmo processo onde já atua na administração judicial. As recomendações do CNJ representam um grande avanço na gestão dos processos de insolvência empresarial e, por essa razão, carregam a esperança dos aplicadores do direito no atingimento da maior eficiência no trato das questões relacionadas à crise da empresa. Os estudos do Grupo de Trabalho do CNJ continuam em franca evolução, aguardando-se, em breve, a edição de novos atos normativos que colaborarão com a melhor gestão dos processos de insolvência. Sigamos nessa evolução!
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A prescrição frequentemente é objeto de disciplina especial nas leis falimentares1. A razão dessa disposição na lei concursal, afastada daquela prevista na lei geral civil, justifica-se pelos efeitos desencadeados pela quebra no direito dos credores, especialmente a suspensão das ações em tramitação contra o devedor falido e a inviabilidade da promoção de ações fundadas em direito líquido, que devem passar pela habilitação de crédito. Os dispositivos legais referidos na nota 1 cuidam só de um aspecto da prescrição nos processos concursais, que é aquele relativo às obrigações pecuniárias de responsabilidade do devedor. Dois regimes existem para disciplinar a matéria: o que consagra efeito interruptivo da prescrição à habilitação de crédito (ou, enfim, a qualquer ato, ainda que sem esse nome, representativo de pretensão de recebimento de direito em face do devedor falido, no respectivo processo concursal) e o que declara desde logo suspensa (ou interrompida) a prescrição por força da sentença declaratória de falência. Seguem o primeiro regime Alemanha2, França3, Itália4, Argentina5e México6, por exemplo. Esse regime na verdade obedece à regra geral. A iniciativa do credor, de sair da inércia e comparecer ao processo concursal, é que dá azo à interrupção da prescrição7. Espanha8 e Portugal9 seguem, hoje, outro regime, segundo o qual a sentença declaratória produz o efeito em relação à prescrição. É o ato judicial, independentemente de qualquer iniciativa do credor, que desencadeia efeito em relação à prescrição. O artigo 6.º, "caput", da lei 11.101/05 cuida da matéria, para dizer que a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição. Seguimos, portanto, o regime da península ibérica. O artigo 6º, inciso I, na redação que se pretende introduzir na lei 11.101/05, continua a consagrar o efeito suspensivo do curso prescricional pelo só efeito da declaração da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial. Até aí, não há novidade. Ocorre que se acrescenta um dispositivo com o seguinte teor: O credor deverá apresentar pedido de habilitação ou reserva de crédito em no máximo três anos a contar da data de publicação da sentença que "decretar a falência". Alcançando apenas a falência, essa previsão contrasta com a ideia de suspensão até aqui vigente, que segue até o encerramento do processo falimentar. A marcação de prazo para a habilitação de crédito ou pedido de reserva é mais compatível com a ideia de interrupção do curso da prescrição do que com a ideia de suspensão. Parece que o uso da palavra suspensão não está correto. Assegurado ao credor o prazo de três anos para exercer o direito de ajuizar a habilitação de crédito, tem-se que a sentença declaratória de falência interrompe o prazo prescricional, que volta a correr, agora pelo prazo de três anos, qualquer que seja a pretensão titularizada pelo credor. Na prática falimentar, chegamos a ver uma habilitação de crédito apresentada 18 anos após a declaração de falência. Isso é uma anomalia. É preciso conferir à sentença declaratória de falência o efeito interruptivo do prazo prescricional. Assim compreendido o fenômeno, ter-se-á uma boa contribuição para a não eternização dos processos falimentares. Por certo a proposta andaria mais afeiçoada aos institutos relativos à prescrição se preferisse a interrupção à suspensão, noções essas que já estão consolidadas em nosso direito, mas que a legislação falimentar teima em ignorar. __________ 1 Art. 23, § 4.º, do decreto 917, de 21/10/1890: "A prescrição ficará interrompida..."; art. 50 da lei 2024, de 17/12/1908: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 50 do decreto 5746, de 9/12/1929: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 47 do Decreto-Lei 7661, de 21 de junho de 1945: "Durante o processo da falência fica suspenso o curso de prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido". A insolvência civil, disciplina no Código de Processo Civil, é processo autônomo, forma concurso de credores, e disciplina a prescrição no artigo 777: "A prescrição das obrigações, interrompida com a instauração do concurso universal de credores, recomeça a correr no dia em que passar em julgado a sentença que encerrar o processo de insolvência". Outra lei que disciplina concurso de credores é a lei 6.024, de 13/3/1974, que cuida da intervenção e liquidação extrajudicial de instituição financeira. O artigo 18, "e", prevê, como efeito do decreto de liquidação extrajudicial, a "interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição". 2 Código Civil, § 209, 2, que prevê a interrupção da prescrição pela "apresentação de pretensão em falência". Para Enneccerus-Nipperdey, Tratado de derecho civil, tomo I, parte II, trad. da 39ª Ed. alemã por Blas Perez González, Barcelona, Bosch, 1950, p. 531, equipara-se à interposição de demanda o "comparecimento ao concurso" e, por isso, o efeito interruptivo. 3 A declaração do credor equivale a uma ação e tem o efeito de interromper a prescrição até a extinção do processo coletivo (Code de Commerce, 99.ª ed., Chaput-Rontchevsky, Paris, Dalloz, 2004, p. 840-841, nota ao art. 621-43; Georges Ripert, Tratado elemental de derecho comercial, v. IV, Buenos Aires, TEA, 1955, n. 2.708, p. 327. 4 Art. 2943 do Código Civil c.c. artigo 94 da Lei Falimentar. 5 Art. 32 da lei 24.522/95: "El pedido de verificación produce los efectos de la demanda judicial, interrumpe la prescripción e impide la caducidad del derecho y de la instancia". A doutrina esclarece que a verificação de créditos se assemelha a uma demanda judicial, ainda que não o seja, mas produz o efeito de interromper a prescrição. Assim, Roberto Garcia Martinez, Derecho concursal, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997, p. 138. Pedro Figueroa Casas, Derecho concursal, org. de Adolfo A.N. Rouillon, Buenos Aires, La ley, 2004, p. 240, diz que a interrupção da prescrição é "consequência lógica da proibição de iniciar ações judiciais contra o falido". Cabe acentuar, entretanto, que a consequência lógica levaría à adoção do criterio da lei brasileira - efeito automático da sentença de quebra e não de ato do credor. 6 Articulo 134.- Interrumpen la prescripción del crédito de que se trate: I. La solicitud de reconocimiento de crédito aun cuando ésta no cumpla con los requisitos establecidos en el articulo 125 del presente ordenamiento o sea presentada de manera extemporánea; II. Las objeciones que por escrito se realicen respecto de la lista provisional. III. La sentencia de reconocimiento, graduación y prelación respecto de los créditos incluidos en ella, o IV. La apelación respecto de los créditos cuyo reconocimiento se solicite. 7 Piero Pajardi-Vittorio Colesanti, Codice del fallimento, 3.ª ed., Milano, Giuffrè, 1997, p. 566: "Corretamente, o efeito interruptivo da prescrição vem coligado à apresentação de uma demanda de admissão ao passivo (voltada a tutelar o direito do credor) e não à declaração de falência do devedor (que é destinada a provocar a execução concursal geral)". Gustavo Bonelli-Virgilio Andrioli, Il Fallimento, v, I, 3.ª ed., Milano, Francesco Vallardi, 1938, n. 284, p. 644, explica que a substituição do falido pelo administrador judicial é ipso jure e sem solução de continuidade. Por isso, não produz nenhuma suspensão do curso do prazo da prescrição das relações ativas ou passivas do falido. A suspensão decorre da "insinuazione nel passivo". O autor chama de errônea a suspensão da prescrição por força da sentença de quebra. 8 Art. 60 da Ley Concursal 22/2003. Segundo a doutrina de Fernando Juan Y Mateu, "a interrupção da prescrição é um efeito automático da declaração de concurso, vinculado exclusivamente a dita declaração (...) A interrupção da prescrição é um efeito que se produz ope legis, sem necessidade de que o juiz o ordene expressamente na decisão de declaração do concurso, que se produz à margem das vontades do devedor e dos credores; e se produz sem necessidade de atuação alguma nesse sentido por parte da administração concursal", in Comentario de La ley concursal, tomo I, Coord. de Ángel Rojo e Emilio Beltrán, Madrid, Civitas, 2004, p. 1112. 9 Art. 100 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
terça-feira, 24 de setembro de 2019

O fim da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone Diversos projetos de lei têm sido apresentados ao Congresso Nacional para alterar a Lei de Insolvência Brasileira. Com o entendimento de que os interesses dos credores não eram os únicos a serem afetados por uma crise do empresário devedor e de que a concordata era instrumento insuficiente ao empresário para a superação da crise, a lei 11.101 foi em 2005 promulgada. Dentre seus objetivos, orientava-se pela preservação da atividade empresarial, pois, nas palavras do senador Ramez Tebet, autor do relatório apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos à época sobre o Projeto, "gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento social do país". Essa preservação da atividade empresarial, em benefício de todos os envolvidos, foi estruturada por meio de dois sistemas: a recuperação e a falência. Diante de uma crise econômico-financeira temporária e reversível, permitiu-se ao empresário devedor, por meio do instituto da recuperação, negociar com os seus credores uma solução comum para a superação da crise que acometia a atividade. A preservação da atividade empresarial viável sob a condução do empresário, orientada por um plano de recuperação judicial negociado com os credores, poderia resultar na maior satisfação de todos os interessados. A postergação injustificada de uma liquidação forçada de uma empresa economicamente inviável sob a condução do devedor, contudo, apenas protelaria sua falência e consumiria os recursos escassos. Inviável a condução da empresa pelo devedor, a decretação da quebra, com a imediata alienação dos bens, permitiria a preservação da empresa por meio da arrematação dos bens do falido por outros empresários, que passariam a desenvolver a atividade de forma mais eficiente e em benefício de toda a coletividade. Passados 14 anos de vigência da lei, todavia, tais objetivos não têm sido satisfatoriamente alcançados. Em estudo realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Insolvência da PUC/SP (NEPI), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), foi constatado que, embora 72,1% dos planos de recuperação judicial tenham sido aprovados pela Assembleia Geral de Credores, apenas 18,2% dos processos de recuperação judicial efetivamente conseguiram se encerrar sem a decretação da falência pelo cumprimento ao menos das obrigações vencidas nos dois primeiros anos, ainda que o plano mediano de pagamento das obrigações quirografárias seja de aproximadamente 10 anos. Se a recuperação judicial aparenta não permitir a concessão da recuperação apenas aos empresários com atividades economicamente viáveis, a falência também não tem sido eficiente a permitir a maximização do valor dos ativos e da satisfação dos interesses dos credores. Conforme estudo de Jupetipe, Martins, Mário e Carvalho, os processos de falência duraram, em média, 9,2 anos, com alienação de bens que resultou em perda de valor de 46,84% e ressarcimento aos credores de apenas 12,4% do montante devido. A lei 11.101/05, pelos resultados objetivamente colhidos até então, decerto, precisa de pontuais ajustes. Dentre as últimas alterações propostas ao Projeto de lei 6.229/2005, várias são pertinentes a tornar mais eficiente o procedimento de insolvência. Destacam-se as alterações no procedimento de verificação de crédito, com a limitação temporal às habilitações retardatárias e a formação do quadro geral de credores provisório; a desburocratização das publicações das convocações; a proteção ao investidor; a célere liquidação dos bens no procedimento falimentar, com determinação de prazo ao administrador judicial e previsão de valor mínimo escalonado de alienação. A inserção da proposta de alteração ao art. 56 da lei 11.101/05, à revelia da comunidade acadêmica e dos aplicadores, contudo, poderá colocar tudo a perder. Nos termos do dispositivo da proposta, diante da rejeição do plano de recuperação apresentado pelo devedor, permite-se a apresentação de plano alternativo pelos próprios credores, com a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados. A despeito dessa possibilidade de propositura, não foram inseridos qualquer parâmetros a exigirem que o empresário devedor requeira as medidas de reestruturação, nem foi permitido que os credores, ainda que possam apresentar plano alternativo, possam requerer o ingresso em recuperação do devedor em crise. A proposta de alteração da lei, sem maiores estruturações ou quaisquer análises, pode criar incentivo perverso. Ao permitir que o plano de recuperação judicial seja apresentado pelos próprios credores, sem que possam também requerer a recuperação do devedor ou sem que haja parâmetros para que esse seja compulsoriamente submetido ao procedimento, desincentiva a negociação entre devedor e credor na busca de uma solução comum. Mais que isso, incentiva os credores a rejeitarem quaisquer propostas apresentadas pelo devedor como condição para apresentarem o próprio plano de recuperação judicial a ser por eles próprios aprovado. A circunstância de a propositura do plano alternativo implicar a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados não freia o comportamento estratégico dos credores. Apenas fará com que a maioria dos credores, de modo ainda mais oportunista, aprove plano de recuperação judicial por ela proposto em detrimento dos próprios credores minoritários e detentores das garantias pessoais. Nesse cenário provável, com o risco de afastamento da condução de sua própria empresa e a possibilidade de confisco dos seus ativos pelos próprios credores à sua revelia e sem que haja absolutamente qualquer parâmetro que obrigue o empresário devedor a requerer as medidas de restruturação ou a elas se sujeitar, o comportamento esperado do empresário devedor será o de mitigar seu risco e maximizar sua utilidade. Mesmo em crise econômico-financeira, o empresário devedor simplesmente optará por não ingressar com o pedido de recuperação. Sem processo, as diversas alterações benéficas propostas pelo projeto de lei 6.229/2005 não terão onde ser aplicadas e, pior, o empresário brasileiro continuará sem ter um instituto adequado para que possa superar a crise financeira que acomete sua atividade e que permitiria o desenvolvimento econômico nacional.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Um dos principais ramos na economia brasileira é o agronegócio, o qual abrange todos os processos e atividades sociais relacionados com a agricultura e a pecuária - incluindo não apenas as atividades no campo, mas também, por exemplo, a fabricação de máquinas e equipamentos agrícolas. Sua importância é inegável para o nosso país, representando cerca de um terço do PIB brasileiro1. Como não poderia deixar de ser, tal atividade econômica também pode, eventualmente, estar envolvida em processos de recuperação judicial. Ao lado das pessoas jurídicas, poderia o produtor rural - mesmo sendo uma pessoa física - ingressar com pedido de recuperação judicial? A resposta é positiva: nos termos do art. 971 do Código Civil, o "empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode (...) requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro". Verifica-se, portanto, que para que o produtor rural seja considerado empresário, deve promover o seu registro, observado o prazo mínimo de dois anos de exercício regular da atividade (art. 48, lei 11.101/2005). E a qualidade de empresário é indispensável para que possa ser deferido o pedido de recuperação judicial (art. 1º da lei 11.101/2005). Dessa constatação, abrem-se algumas questões polêmicas. Primeiro: deve a certidão comprobatória do registro ser apresentada já com a petição inicial da recuperação judicial ou se admite o registro posterior ao ajuizamento? A indagação foi respondida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.193.115, em que se decidiu, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), que o "deferimento da recuperação judicial pressupõe a comprovação documental da qualidade de empresário, mediante a juntada com a petição inicial, ou em prazo concedido nos termos do CPC 284 [de 1973], de certidão de inscrição na Junta Comercial, realizada antes do ingresso do pedido em Juízo, comprovando o exercício das atividades por mais de dois anos, inadmissível a inscrição posterior ao ajuizamento"2. Em síntese, portanto, a inscrição do produtor rural no registro civil deve ser anterior ao pedido de sua recuperação judicial. Prevaleceu a tese de que, muito embora a atividade empresária possa se caracterizar independentemente de registro, o art. 48 da lei 11.101/2005 exige que essa atividade seja regularmente exercida para que se possa ingressar com o pedido de recuperação judicial. Segundo: o registro promovido pelo produtor rural possui caráter meramente declaratório ou constitutivo? A razão de ser dessa indagação é que, por vezes, o produtor rural promove o seu registro pouco antes da apresentação em juízo do pedido de recuperação judicial. Se o registro tiver caráter declaratório, não haverá problema nessa conduta, bastando que o produtor comprove que vinha exercendo sua atividade há pelo menos dois anos - ainda que na maior parte desse lapso temporal não estivesse inscrito como empresário. Por outro lado, se o registro ostentar caráter constitutivo, o produtor somente poderá lançar mão do pedido de recuperação judicial após dois anos contados do registro. Trata-se, portanto, de questão com inegável interesse prático. O assunto é bastante controvertido e o STJ ainda não se pronunciou definitivamente sobre o tema. Em sede doutrinária, curiosamente, há enunciados aprovados em eventos organizados pelo Conselho da Justiça Federal conflitantes. Confira-se:  Natureza declaratória do registro(III Jornada de Direito Comercial)  Natureza constitutiva do registro(III Jornada de Direito Civil)  Enunciado 96 A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.  Enunciado 202 O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção.  Enunciado 97 O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.   Igualmente, na jurisprudência também se encontram posicionamentos conflitantes. No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, tem predominado a tese de que o registro possui caráter declaratório, conforme levantamento realizado de 8.6.2005, data do início da vigência da lei 11.101/2005, até 30.3.20193: No STJ, o panorama é ainda incerto. O tema chegou a ser objeto de proposta de afetação de recursos repetitivos em 2017 (Proposta de Afetação no REsp 1.684.994/MT), rejeitada sob o fundamento de que não havia precedentes do STJ sobre a matéria, devendo-se aguardar o amadurecimento do debate sobre o tema naquele tribunal. Até o momento, existem alguns pronunciamentos em sede de Tutela Provisória em Recurso Especial, notadamente do Min. Marco Buzzi, asseverando que o registro em questão teria caráter constitutivo4. Trata-se, contudo, de decisões monocráticas, que não necessariamente refletem o entendimento do STJ a respeito da questão. A matéria está sob discussão no âmbito do Recurso Especial 1.800.032, cujo julgamento pela Quarta Turma se iniciou em 4.6.2019. O ministro Marco Buzzi, reafirmando o caráter constitutivo do registro já manifestado em decisões monocráticas anteriores, negou provimento ao recurso especial dos produtores rurais, dele divergindo o ministro Raul Araújo, que dava provimento ao recurso. Atualmente, o julgamento está suspenso, com pedido de vista ao Min. Luis Felipe Salomão. Trata-se de julgamento paradigmático, em que ingressaram como amici curiae a Federação Brasileira de Associações de Bancos - FEBRABAN e a Sociedade Nacional de Agricultura. Houve, ainda, pedidos de ingresso do Instituto de Direito de Recuperação de Empresas - IDRE (indeferido por ausência de representatividade nacional), bem como da ABIOVE - Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (ambos indeferidos porque formulados quando já iniciado o julgamento pelo colegiado). Espera-se que, em breve, o Superior Tribunal de Justiça possa definir sua posição quanto ao tema. Independentemente da tese a ser acolhida, o mais importante é que se saiba com antecedência as regras do jogo, e a consolidação da jurisprudência sobre a recuperação judicial do produtor rural consiste em importante passo nessa direção. Abraços, e até a próxima! __________ 1 PACHECO, Alessandro Mendes et al. A importância do agronegócio para o Brasil - revisão de literatura, Revista Científica Eletrônica de Medicina Veterinária, Ano X, n. 19, jul. 2012. (Acessado em 9/9/2019). 2 REsp 1193115/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 07/10/2013. 3 Fonte: TRENTINI, Flavia et al. A recuperação judicial do empresário rural na jurisprudência do TJ/SP. Conjur (Acessado em 9/9/2019). 4 Entre outros, STJ, AgInt no TP 1918, julg. 21.5.2019 e TP 1923, julg. 8/4/2019.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Os tempos atuais, de intensa movimentação para a alteração da lei 11.101/2005, provocam reflexões a respeito de terem sido ou não alcançados os objetivos do Projeto de Lei Complementar 71/2003, relatado pelo senador Ramez Tebet, e que deu origem à nossa lei em vigor: 1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Em matéria de segurança jurídica, um objetivo buscado pela nossa lei e que necessariamente passa pela atuação dos Tribunais, hoje os credores garantidos não têm certeza quanto à extensão de seus direitos pois têm sido homologados os planos de recuperação com previsão de liberação de garantias reais sem anuência do próprio credor. Há vários casos em que se constata a falta de proteção a trabalhadores, em oposição ao objetivo da lei, pois muitas recuperandas realizam demissões em massa sem pagamento de verbas rescisórias e depois apresentam planos com previsão de contagem do prazo de pagamento de 1 ano a partir da decisão de concessão da recuperação, agravando a situação dos credores de verbas de natureza alimentar. A participação ativa dos credores, por sua vez, é um objetivo que poderia ser alcançado com a instituição de comitê de credores, mas este órgão poucas vezes é instalado nas recuperações judiciais. A desburocratização da recuperação de ME/EPP certamente é um objetivo não alcançado e deve ser proposto um processo mais barato e menos burocrático, talvez extrajudicial ou com uma fase de mediação. O almejado rigor na punição de crimes falimentares ficou no plano legal, sem efeito prático, pois raras as condenações e raríssimas as condenações com réus cumprindo pena privativa de liberdade. Portanto, muitos objetivos não foram alcançados e mesmo assim a propõe-se a alteração da lei. Quanto aos quatro primeiros objetivos, certamente algumas empresas viáveis se recuperaram e tantas inviáveis faliram, mas a nossa lei não define precisamente o que é crise econômico-financeira, o que permite a empresários que não estejam em crise o uso indevido da recuperação. Também é possível a algum devedor alegar estar em crise, porém objetivamente sem capacidade de seguir na condução do negócio e de superar a crise, e ainda assim terá acesso à recuperação. A melhor forma de evitar que a recuperação seja desvirtuada é a adoção de critérios objetivos para a definição da crise e da viabilidade. Assim como o artigo 94 da lei 11.101/2005 estabelece objetivamente quem terá a falência decretada, deveria ser incorporado ao nosso sistema uma objetiva definição de crise, como, por exemplo, mediante a adoção de certos índices financeiros, assim como deveria haver critérios indicativos da insolvência do devedor, como o inadimplemento reiterado de impostos e encargos sociais. Em acréscimo, e tendo em vista que as propostas de mudança legislativa têm se encaminhado para a realização de uma perícia antes da decisão de processamento da recuperação, sugere-se que a análise preliminar seja feita para a constatação da real situação da devedora e com duplo objetivo: a) constatação da existência ou não de crise - caso não seja constatada a crise por meio de perícia, o juiz indeferirá a petição inicial. Com isso não haverá o uso da recuperação com o objetivo de retardar pagamentos e prejudicar credores; b) constatação ou não da situação falimentar - caso constatada a inviabilidade da devedora por meio da perícia, o juiz decretará a falência, e não simplesmente indeferirá a petição de inicial da recuperação judicial, como ocorre atualmente. A decretação da falência não devolverá o empresário inviável ao mercado, com prejuízo aos demais agentes econômicos. Além disso, permitirá a apuração das responsabilidades dos sócios e administradores. Cuidando ainda da fase inicial do procedimento de recuperação judicial, e considerando que a perícia prévia normalmente é realizada por quem atua como administrador judicial, podendo representar custos excessivos para a devedora, poderia ser feita uma simples constatação por 2 Oficiais de Justiça nas recuperações judiciais de pequenas e médias empresas, não integrantes de grupos econômicos, que são menos complexas. Caso constatado o normal funcionamento da devedora, a presença de estoques e o efetivo exercício de atividade pelos empregados, deveria o juiz dispensar a perícia e deferir o processamento da recuperação judicial. O procedimento de recuperação judicial, como enunciado acima, também deveria ser célere e eficiente. Porém, a falta de juízos especializados e de estrutura adequada no serviço judiciário não permite a almejada celeridade. A par disso, credores financeiros são concentrados e participam da maioria das recuperações, exigindo que as alterações dos planos possam ser submetidas aos seus órgãos internos de aprovação com tempo adequado para deliberação. Suspensões de assembleias-gerais de credores (AGCs) tornaram-se comuns, retardando o processo de aprovação do plano. Aprovado o plano, a lei estabelece um prazo de fiscalização do cumprimento por até 2 anos, totalmente divorciado das previsões contidas nos planos, muitos deles com obrigações por prazos muito além do biênio legal. A suspensão das AGCs deve ser limitada. Deliberações por escrito devem ser permitidas. O processo deve ser encerrado assim que aprovado o plano e concedida a recuperação, duas providências que podem tornar o processo mais rápido, barato e eficiente. Em resumo, as propostas de alteração na lei 11.101/2005 deveriam ser precedidas de uma avaliação do efetivo cumprimento dos objetivos traçados pelo projetista da lei em vigor, bem como da discussão sobre medidas aptas a tornar o processo mais barato e mais rápido, especialmente para pequenas e médias empresas. Além disso, se a recuperação e a falência devem se destinar, respectivamente, a empresas viáveis e inviáveis, é preciso que a legislação estabeleça critérios objetivos e passíveis de controle pelo Poder Judiciário desde o início do procedimento.
Texto de autoria Luiz Dellore e Christiane Barozi Porto Matias Introdução: o contexto onde se insere o debate Inúmeros aspectos que envolvem a recuperação judicial (RJ) têm sido palco de debates cada vez mais acirrados na doutrina e na jurisprudência, como se percebe por exemplo dos diversos textos desta coluna1. Um dos motivos para tanto é o crescimento do número de recuperações nos últimos anos, o que vem suscitando a necessidade de se buscar, cada vez mais, o melhor resultado útil do processo para todos os envolvidos: recuperandas, credores e sociedade. É compreensível que cada parte defenda com afinco seus próprios interesses, sempre se utilizando dos dispositivos legais de modo a tentar obter os resultados mais positivos para si, que levem às menores perdas e prejuízos possíveis. Assim, as negociações acerca do plano de recuperação são sempre movimentadas, recheadas de reuniões e posicionamentos diversos entre as partes envolvidas, muitas vezes se estendendo por um longo prazo. E isso pode levar à inviabilização do soerguimento de uma empresa potencialmente recuperável, assim como à diminuição (ou inexistência) da possibilidade de pagamento (ainda que mínimo) dos credores. A classificação das garantias (e sua submissão ou não à recuperação judicial) é ponto que sempre demanda específica análise e retificações frequentes, mesmo que a Lei de Recuperação Judicial (lei 11.101/2005), em seu art. 83, já discipline o assunto. O aperfeiçoamento das garantias, bem como a comprovação do efetivo cumprimento dos requisitos essenciais para tanto, são habitualmente alvo de inúmeros questionamentos. E grande parte dessas discussões são voltadas à garantia fiduciária, a qual não se submete à recuperação judicial. Previsão legal: a garantia fiduciária não se submete à RJ A garantia fiduciária é classificada como extraconcursal para efeito de identificação perante a recuperação judicial. É o que disciplina o § 3º do art. 49 da lei (grifos nossos): "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". Em outras palavras, pela previsão legal, nenhum bem da empresa em recuperação que seja objeto de alienação fiduciária, arrendamento ou reserva de domínio, será alcançado pela recuperação. Portanto, pela letra da lei, não deveria haver maior discussão quanto a isso. Assim, a forma mais usual para que um credor não tenha seu crédito submetido à recuperação judicial é se valer da garantia fiduciária, seja de bens móveis ou imóveis. Contudo, é certo que essa previsão muitas vezes desagrada as empresas em recuperação e outros credores que não dispõem de garantias fiduciárias. Com isso, a (extra)concursalidade da dívida garantida por alienação fiduciária é objeto de frequentes debates e embates no Judiciário. Em nosso entender, a forma de se modificar a extraconcursalidade da garantia fiduciária é a alteração legislativa, valendo lembrar que estão em debates alterações da Lei de Recuperação e Falência. Porém, infelizmente, no Brasil muitas vezes se deixa de lado o caminho da alteração legislativa e se parte para a tentativa de uma "interpretação criativa" (em inúmeros casos claramente contra legem) mais favorável à parte interessada. É o que ocorre em relação à garantia fiduciária na RJ. Assim, o movimento das empresas em recuperação é usual na linha de tentar descaracterizar a garantia extraconcursal. Isso já foi tratado em artigo anterior nesta coluna2, onde se expôs parte dessa evolução e se destacou as idas e vindas acerca do assunto, apontando que, ao final, o STJ acaba por firmar e ratificar exatamente o que diz a lei, ou seja, certificando que a garantia fiduciária não se sujeita à RJ. Mas o texto anterior tratou do tema da cessão fiduciária sob a perspectiva da falta de registro; agora a análise se dá também em relação à necessidade de se individualizar os títulos. A (des)necessidade de registro e de identificação dos títulos objeto da cessão fiduciária de crédito: a posição do STJ Ultrapassada a questão do reconhecimento da extraconcursalidade da garantia fiduciária, a discussão jurídica passou a girar em torno da (i) necessidade ou não do registro do contrato, especialmente em relação a bens móveis (por exemplo, em relação a crédito) e (ii) da necessidade ou não de exata indicação dos títulos dados em garantia fiduciária. Inúmeras recuperandas passaram a defender a tese de que a ausência de registro e/ou de identificação precisa dos títulos objeto da chamada "trava bancária" teriam como consequência a reclassificação do crédito como concursal quirografário, e não extraconcursal. Portanto, se o credor fiduciário não registrasse, por exemplo, cada uma das notas promissórias ou recebíveis dados em garantia3, não se estaria diante de uma garantia fiduciária. Essa tese chegou a prevalecer em tribunais intermediários, em favor das empresas em recuperação4. E, por certo, a questão chegou ao STJ. No momento, já está sedimentada a posição de que a ausência de registro não afeta a extraconcursalidade. Merece destaque o seguinte caso, constante do informativo 578/STJ (REsp 1.412.529-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 2/3/2016, grifos nossos): "Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor". Mas, e em relação à necessidade de se indicar de forma pormenorizada os títulos objeto da cessão fiduciária de crédito? A 3ª Turma, em importante precedente deste ano, bem decidiu acerca da desnecessidade de indicação de cada título, exatamente considerando o dinamismo e velocidade típicos desse mercado. No informativo 646/STJ, a questão foi assim sintetizada (REsp 1.797.196-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/4/2019, grifos nossos): "Na cessão fiduciária de direitos creditórios, para a perfectibilização do negócio fiduciário, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, o crédito objeto de cessão e não os títulos representativos do crédito. No voto condutor desse recurso, o relator ressaltou que, por ocasião da realização da cessão fiduciária, é absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido sequer tenha sido emitido (como é o caso da cessão de recebíveis), o que inviabilizaria a sua determinação no próprio contrato. Isto porque a cédula de crédito bancário admite que a cessão fiduciária respectiva recaia sobre um crédito futuro, ainda não performado (cf. art. 31 da lei nº 10.931/04)5. Em nosso entender, absolutamente correta essa interpretação. Caso contrário, simplesmente inviável a cessão fiduciária de crédito: deve-se indicar precisamente qual o crédito, mas não quais os títulos representativos desse crédito. Porém, vale destacar que a questão ainda não está definida. O tema está, no momento, em debate no âmbito da 2ª Seção do STJ (que reúne as duas turmas desse Tribunal que tratam do direito privado, a 3ª e 4ª Turmas), no REsp. nº 1.629.470, segundo noticiado pelo Migalhas6. Esse REsp teve origem na 4ª Turma, mas foi afetado para ser julgado na 2ª Seção, com a finalidade de que a questão seja pacificada. Até o momento, foram apenas dois votos, de um total de nove: a Ministra Relatora Maria Isabel Gallotti votou no sentido de considerar o crédito extraconcursal (em linha com a decisão proferida pela 3ª Turma e acima mencionada), ao passo que o Ministro Luís Felipe Salomão abriu a divergência7. Trata-se, sem dúvidas, de relevante caso a ser acompanhado e que possivelmente fixará a tese no âmbito do STJ. Até lá, temos instabilidade a respeito do tema. De qualquer forma, conveniente mencionar que, mesmo diante dessa indefinição no STJ, há diversos casos de concessão de efeito suspensivo a recursos especiais de credores que discutem essa tese. Isso de modo a obstar o levantamento, pelas recuperandas, de valores objeto de cessão fiduciária de créditos e que, nos tribunais de origem, foram liberados por falta de registro ou de individualização dos títulos cedidos8. Em síntese, para nós o imprescindível é que os créditos sejam identificáveis, conforme determinado pelo art. 18, IV, da lei 9.514/97. Porém identificação do crédito não significa total "especificação" do título, o que é inadmissível, sob pena de se inviabilizar a própria operação, com a obrigação de que os títulos (ainda inexistentes9 ou não performados) tenham as mesmas exigências dos direitos creditórios que representam. Esperamos, em prol da segurança jurídica e desenvolvimento da atividade econômica, que a questão seja assim pacificada pelo STJ. *Christiane Barozi Porto Matias é especialista em Direito Empresarial pela UEL. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação de crédito, especialmente recuperação judicial e falência. __________ 1 Para conhecer todos os textos já publicados, acesse. 2 Nesse sentido, conferir, de um dos autores desta coluna, texto de julho de 2018. 3 Isso, do ponto de vista prático, é algo inviável, dada a dinâmica e velocidade das relações empresariais - o que já foi reconhecido pelo STJ, como adiante se exporá. 4 Por exemplo, a Súmula 60 do TJSP, no sentido da necessidade de registro: "A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor". Frise-se que súmula desse mesmo TJ deixa clara a possibilidade de alienação fiduciária para direitos de crédito: "Súmula 59: Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária". 5 No informativo 646/STJ consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista macro: "Dos termos dos arts. 18, IV, e 19, I, da lei 9.514/1997, ressai que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal - o que, por si, obsta a adoção de uma interpretação judicial ampliativa - cede a uma questão de ordem prática incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato. Registre-se, inclusive, que a lei 10.931/2004, que disciplina a cédula de crédito bancário, é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido)". De seu turno, da ementa do acórdão consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista micro: "(...)6. Na hipótese dos autos, as disposições contratuais estabelecidas pelas partes não deixam nenhuma margem de dúvidas quanto à indicação dos créditos cedidos, representados por duplicatas físicas ou escriturais - sendo estas, por sua vez, representadas pelos correlatos borderôs, sob a forma escrita ou eletrônica -, os quais ingressarão, a esse título (em garantia fiduciária), em conta vinculada para esse exclusivo propósito. 7. A duplicata virtual é emitida sob a forma escritural, mediante o lançamento em sistema eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda mercantil/prestação de serviços (no caso, as próprias recuperandas), responsável pela higidez da indicação. 8. É, portanto, a própria devedora fiduciante que alimenta o sistema, com a emissão da duplicata eletrônica, que corporifica uma venda mercantil ou uma prestação de serviços por ela realizada, cuja veracidade é de sua exclusiva responsabilidade, gerando a seu favor um crédito, a permitir a geração de um borderô (o qual contém, por referência, a respectiva duplicata), remetida ao sacado/devedor. Já se pode antever o absoluto contrassenso de se reconhecer a inidoneidade desse documento em prol dos interesses daquele que é o próprio responsável por sua conformação. O pagamento, por sua vez, ingressa na conta vinculada, em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomada pela empresa fiduciante, não pairando nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa), nos moldes exigidos pelo art. 18, IV, da lei 9.514/1997". 6 STJ debate cessão fiduciária na recuperação judicial do grupo da Drogaria São Bento. 7 Mais detalhes no andamento do recurso no STJ. 8 Como exemplo, o efeito suspensivo ao REsp nº 1.815.823, concedido no STJ nos seguintes termos: "A plausibilidade jurídica do direito invocado está presente mormente no que tange à alegação de desconformidade do acórdão recorrido com a orientação desta Corte a respeito da desnecessidade de discriminação e especificação dos títulos objeto da cessão fiduciária. (...) No que concerne ao perigo de dano, está evidenciado pela determinação contida no acórdão recorrido de restituição de elevada soma (e-STJ fls. 727-728), cujo valor histórico alegado seria de aproximadamente R$ 54 (cinquenta e quatro) milhões de reais (e-STJ fl. 789). Nesse contexto, o deferimento do pedido de tutela provisória é de rigor, para o fim de conferir efeito suspensivo ao recurso especial, com a consequente suspensão dos efeitos do acórdão recorrido, até ulterior deliberação desta Corte Superior. Desse modo, DEFIRO o pedido de tutela provisória para conferir efeito suspensivo ao recurso especial, nos termos da fundamentação acima, até o julgamento do recurso". Maiores informações podem ser obtidas no andamento do recurso. 9 Vale ressaltar que a cessão fiduciária de direito creditório futuro (e passível de determinação) é expressamente autorizada pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil.
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho Com o advento da Constituição Federal de 1988 o Ministério Público assumiu importante papel como função essencial à Justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna. Para o exercício de importantes funções, a Constituição da República outorgou à instituição autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento (art. 127, § 2º, da CF), e aos seus membros diversos predicamentos de poder (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio - art. 128, § 5º, inciso I, CF), com o escopo de garantir a independência funcional no desempenho das suas atribuições. Como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal. A atuação do Ministério Público se dá tanto na condição de parte (art. 177 do CPC), quando atua com o titular da ação penal ou quando propõe ação civil pública na defesa dos direitos transindividuais (ainda que em sede de legitimidade extraordinária) ou como fiscal da lei (art. 178 CPC), condição na qual assume a posição de interveniente processual buscando zelar pela aplicação do ordenamento no interesse da sociedade. Especificamente no âmbito do direito de insolvência (lei 11.101/2005), houve o veto ao art. 4º da lei que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta". Muitas foram as razões dadas pela doutrina especializada para justificar o veto, prevalecendo a posição de que a intervenção pontual do Ministério Público nos demais dispositivos já existentes na lei 11.101/2005 conferiria celeridade processual aos processos de recuperação judicial e falência e não banalizaria a intervenção ministerial no sistema de insolvência, haja vista a desnecessidade de sua participação em todos os termos dos três processos de insolvência (recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência). A título de exemplo, remanesceram no texto da lei 11.101/2005 os seguintes dispositivos que reclamam a participação do Ministério Público: art. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º. De toda forma, a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deve ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos. Mas qual é esse interesse público? Como defini-lo para delinear o que seria passível de defesa pelo Ministério Público? Clássica é a definição atribuída a Renato Alessi (Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano - 1960) com a antiga bipartição entre interesse público primário e secundário. Em breve síntese, o interesse público primário seria o interesse geral da sociedade propriamente dito, sintetizado nas aspirações de justiça, segurança e bem estar social. Já o interesse público secundário seria a atuação do Estado como pessoa jurídica que é e que não poderia se chocar com o interesse público primário, justamente pela necessidade do próprio Estado, através de seus poderes e órgãos, buscar servir e atender as aspirações daqueles que se encontram em seu território. Como se pode perceber do quanto até aqui exposto, embora inegável a importância da participação do Ministério Público no sistema de insolvência, o fato é que carecemos de uma melhor sistematização objetiva sobre o âmbito e os limites de suas atribuições. Tal fator ocasiona insegurança jurídica, na medida em que, embora os membros do Ministério Público sejam comprometidos com suas atribuições institucionais, a atuação de tal órgão estatal acaba por se subordinar a um subjetivismo inevitável dos componentes dos respectivos quadros, pelas próprias características pessoais inerentes a cada indivíduo e, consequentemente, a uma pulverização de práticas sem qualquer uniformidade sistemática de atuação. Em outras palavras, em muitas situações semelhantes ou o membro do Ministério Público não atua, por entender não estar presente interesse público para funcionar no processo, ou atua tão somente para cientificar-se do ocorrido ou, ainda, atua de maneira mais intensa no processo, fornecendo subsídios para o enfrentamento da questão. Em todos esses exemplos, há perfeita justificativa para as posições adotadas, mas é inegável que o componente de subjetivismo influencia sobremaneira a intervenção ministerial no processo de insolvência e essas diferentes formas de atuação para uma mesma situação semelhante é uma quadra desfavorável à segurança jurídica que se espera do sistema de justiça. Mas como conciliar a necessidade de se estabelecer critérios mais objetivos de atuação do Ministério Público sem ferir sua independência funcional? Ainda que possamos recorrer ao próprio ordenamento jurídico para buscar uma sistematização mais objetiva na atuação do Ministério Público nos processos de insolvência, não podemos desconsiderar a existência de diversas cláusulas gerais existentes (normas de conteúdo intencionalmente aberto em sua semântica para permitir a maior porosidade do sistema jurídico frente às situações advindas do dinamismo social), as quais também não impedem o caráter de subjetivismo na atuação estatal, no momento de interpretação da norma a ser aplicada. Diante de tal quadra, em boa hora o advento da lei 13.655, de 25/4/2018, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto. De acordo com a exposição de motivos do projeto de lei 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/2018: A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil. Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente. Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela Lei 13.655/2018, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona: A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental. Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial". Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público. Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza. Perfeitamente aplicável os preceitos da lei 13.655/2018 à atuação do Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira. A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais. Logo, imprescindível que ao Ministério Público também se imponha as obrigações constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Jamais deve ser buscado qualquer meio ou instrumento voltado a sufocar a independência funcional da atuação do Ministério Público, uma vez que qualquer ação nesse sentido se revestirá de inconstitucionalidade material, diante da importância constitucional atribuída expressamente a tal órgão de Estado. Todavia, o aprimoramento do sistema de insolvência também deve abarcar uma atuação mais objetiva do Ministério Público nos processos de recuperação judicial, extrajudicial e de falências, justamente para o alcance da tão almejada segurança jurídica no âmbito da lei 11.101/2005. A adoção dos mandamentos da lei 13.655/2018, que inseriu novos dispositivos na LINDB são plenamente compatíveis com a lei 11.101/2005, não somente para o Poder Judiciário, mas, também, aos membros do Ministério Público, na medida em que proporcionará maior transparência e objetividade de atuação, sem qualquer cerceamento de suas atribuições funcionais e sempre respeitando a busca da defesa do interesse público objetivado por tão importante instituição nacional.  
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos Sumário: 1. Introdução - 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. A relação contratual por prazo indeterminado - 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil - 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão - 5. Conclusão. 1. Introdução O presente artigo tem por objetivo examinar a possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para a empresa em recuperação judicial. A prática empresarial demonstra que, dependendo das circunstâncias, ao celebrar um contrato uma sociedade empresária pode ficar em situação de dependência econômica em relação à outra parte contratante. E isso é mais acentuado em contratos pactuados com cláusula de exclusividade, o que é frequente em contratos de distribuição. Assim sendo, a rescisão do contrato pode comprometer relevantemente as finanças da sociedade, se não houver tempo suficiente para que esta amortize os investimentos realizados para a execução do contrato. Também é comum encontrar, nessa relação obrigacional, contratos celebrados formalmente por prazo determinado, mas sendo renovados por vários anos consecutivos. Nesse caso, a não renovação do contrato interromperia fatalmente as atividades da sociedade em recuperação, tornando insuperável a sua crise econômico-financeira. Deste modo, questiona-se: pode, por exemplo, a sociedade em recuperação judicial requerer judicialmente a prorrogação desse contrato de distribuição? Caso positivo, qual o período razoável para tal prorrogação? 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. a relação contratual por prazo indeterminado Para investigar se a relação contratual das partes era por prazo determinado ou por prazo indeterminado, faz-se necessária a utilização da boa-fé, tanto na sua função interpretativa quanto na sua função limitadora do exercício de direitos abusivos. Isto é, se a conduta das partes indica que a relação era por prazo indeterminado ou não. Importa destacar que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem, de acordo com o artigo 112 do Código Civil. Deste modo, a existência de cláusula expressa não é suficiente para concluirmos que os pactos tinham prazo certo, devendo ser investigada a vontade das partes ao celebrar o ajuste. Deste modo, é necessário identificar no caso concreto indícios de que a relação entre as partes funcionava por tempo indeterminado. Por exemplo, sucessivas renovações ao longo de muitos anos, continuidade da prestação de serviço após o fim do período contratual e a subsequente celebração de novo instrumento com efeitos retroativos, inclusão de novos serviços, prorrogação do contrato por período exíguo etc. Em muitos casos, a celebração de diversos contratos em caráter sucessivo mascara a intenção de colocar em vantagem a parte mais forte na relação contratual, pois esta pode terminar a relação contratual a qualquer tempo. Para a outra parte, ainda que também possua tal direito, a situação de dependência econômica decorrente do contrato desaconselha a rescisão, pois ficaria numa situação econômica difícil. Deste modo, deve-se privilegiar a real intenção das partes, ainda que esta venha não a corresponder à literalidade do contrato. A busca da vontade real deve ocorrer em relação a todas as disposições do pacto, incluindo o prazo do contrato e a sua abrangência. 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil O Código Civil de 2002 estabelece restrições ao poder de livre denúncia de contratos. Entretanto, discute-se em doutrina se o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil seria aplicável somente aos contratos por prazo indeterminado ou se este poderia também ser aplicado aos contratos por prazo certo. A melhor corrente doutrinária entende que o dispositivo legal também poderia ser utilizado nos contratos por prazo determinado, em algumas hipóteses. No entanto, se dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos, conforme disposto no art. 473 do Código Civil. Nesta segunda hipótese, a lei é clara em condicionar os efeitos da denúncia à concessão de prazo compatível com os investimentos. A ratio leges é permitir que o contratante amortize os investimentos realizados ao longo do tempo. Antes da concessão desse prazo, o contrato não pode ser rescindido unilateralmente. Na maioria das vezes, o abuso de direito ocorre quando o contratante exerce a denúncia do contrato com aviso prévio ínfimo, principalmente quando sua relação contratual com o contratado tenha durado longos anos, gerando confiança recíproca e maior integração entre ambas empresas. Também é comum a ruptura do contrato sem a concessão de nenhum aviso prévio, contrariando o disposto no parágrafo único do art. 473 Código Civil. Nessas hipóteses, o rompimento abrupto do contrato se revela abusivo e, assim, ilícito, como o STJ já teve a oportunidade de se manifestar1. A importância do aviso prévio razoável na denúncia em contratos, como por exemplo, de distribuição se justifica, pois o distribuidor precisa de tempo para amortizar os custos de seus investimentos, principalmente quando o contrato possui cláusula de exclusividade. Sem a concessão deste prazo, o revendedor não poderia se organizar para liquidar o seu estoque e dispensar os seus empregados ou, se quiser continuar no mesmo ramo de atividade, se reinserir no mercado mediante a distribuição de produtos de outro fabricante. Na hipótese de o fabricante tentar rescindir abruptamente o contrato, cabe ao distribuidor requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Destas duas possibilidades, deve-se, quando possível, prestigiar a execução específica da obrigação (a concessão de mais prazo contratual) ao invés da conversão da obrigação em perdas e danos. No direito das obrigações, a conversão em perdas e danos é sempre medida excepcional, quando a obrigação principal não puder ser satisfeita. O STJ tem precedentes no sentido da possibilidade de o Poder Judiciário impedir a resolução do contrato antes de decorrido prazo razoável para a amortização dos investimentos feitos2. Nesse contexto, a lei 11.101/2005 dispõe, no art. 47, que "a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Assim, a recuperação judicial interessa não apenas à empresa em crise, mas aos credores, aos empregados (que manterão os seus empregados), ao fisco e à coletividade como um todo. Portanto, todos devem cooperar para o soerguimento da empresa, inclusive eventualmente sacrificando seus interesses individuais em prol do interesse coletivo. O art. 47 da LRF é um norte interpretativo para guiar a operacionalidade da recuperação judicial. Na interpretação dos preceitos legais, deve-se, sempre que possível, prestigiar a solução que melhor garanta a recuperação da empresa. A solução que não apenas prestigia, mas, em verdade, viabiliza o soerguimento empresarial, é a prorrogação dos contratos. Contudo, esta prorrogação não pode ser eterna, sob pena de se violar a liberdade de contratar das partes. A prorrogação é temporária, estritamente pelo tempo necessário para que a parte amortize os seus investimentos. 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão A lei não prevê quanto tempo é necessário para que os investimentos sejam amortizados. A análise desta questão depende, evidentemente, do exame da situação concreta das partes. De igual modo, em sendo o contrato provisoriamente prorrogado, a lei não determina em que momento o juiz deve se manifestar em definitivo sobre a matéria, inclusive com a definição do prazo final da prorrogação compulsória. Não havendo previsão específica em relação ao momento em que o juiz deve se pronunciar definitivamente acerca da questão, nos parece razoável que isto ocorra logo após a assembleia de credores que aprecie o plano de recuperação judicial. Havendo a rejeição do plano de recuperação judicial, a falência será decretada. De acordo com o art. 117 da LRF, "os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do comitê". Assim, após a rejeição do plano e a decretação da falência, o administrador judicial e o comitê devem ser ouvidos para que se avalie a conveniência, ou não, de se resolver os contratos. Feito isso, o juiz deve se pronunciar, em definitivo, sobre a prorrogação dos contratos. Havendo a aprovação do plano de recuperação judicial, seja com ou sem modificações, deve o juiz decidir pela homologação do plano. É nesse momento que o magistrado deve se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. 5. Conclusão Em síntese, concluímos que sendo os contratos por prazo indeterminado e, em algumas hipóteses também por prazo determinado, caso tenham sido feitos investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. A não concessão de prazo razoável é medida abusiva e faculta ao contratante ofendido o direito de requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Verificado o preenchimento dos pressupostos legais acima, não só pode o Judiciário prorrogar compulsoriamente os contratos pelo prazo necessário para que os investimentos realizados possam ser amortizados, bem como é recomendável fazê-lo em vista do contexto fático-jurídico do caso concreto, não sendo eventual indenização por perdas e danos medida mais adequada para viabilizar o soerguimento das recuperandas. Após a aprovação do plano de recuperação judicial deve o juiz decidir pela homologação do plano. É esse o momento oportuno para o magistrado se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. __________ 1 STJ, REsp 1.555.202/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, julgado em 13/12/2016, DJe de 16/03/2017. 2 "A regra deve ser tomada, por analogia, para solucionar litígios como o presente, onde uma das partes do contrato afirma, com plausibilidade, ter feito grande investimento e o Poder Judiciário não constata, em cognição sumária, prova de sua culpa a justificar a resolução imediata do negócio jurídico. Assim, a solução que melhor se amolda ao presente litígio é permitir a continuidade do negócio durante prazo razoável, para que as partes organizem o término de sua relação negocial. O prazo dá às partes a possibilidade de ampliar sua base de clientes, de fornecedores e de realizar as rescisões trabalhistas eventualmente necessárias" (REsp 972.436/BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, julgado em 17/03/2009, DJe de 12/6/2009 - grifo nosso).