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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! As empresas, nos dias atuais, cada vez mais têm se organizado em estruturas complexas, formadas por várias sociedades e denominadas grupos empresariais. É comum, apenas para ficar em um exemplo mais comum e básico, que exista em um grupo uma sociedade holding ou sociedade-mãe - que administra participações em outras sociedades - e sociedades operacionais, que exercem determinada atividade econômica e estão submetidas ao controle da holding. Situações de crise econômico-financeira podem atingir uma sociedade isolada, mas também podem comprometer todo o grupo empresarial. Nesse último caso, é possível que a recuperação judicial deva ter por perspectiva a reestruturação de todas as empresas que compõem o grupo. É precisamente aqui que se encontram os fenômenos da consolidação processual e da consolidação substancial. Embora cada vez mais relevantes e frequentes, não foram objeto de disciplina na lei 11.101/2005 (LRF), que se limitou a regular a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do "empresário" e da "sociedade empresária" (art. 1º), no singular. Desse modo, na ausência de previsão legal - pelo menos até que entre em vigor eventual reforma à LRF -,1 coube à doutrina e à jurisprudência delimitar os contornos da consolidação processual e substancial. Vamos a eles. 1. Consolidação processual: o litisconsórcio ativo na recuperação judicial A consolidação processual nada mais é do que a possibilidade de que sociedades ingressem, conjuntamente, com um só pedido de recuperação judicial. Em síntese, portanto, é uma hipótese de litisconsórcio ativo, em que mais de uma sociedade pede que seja processada a sua recuperação judicial. Na ausência de disciplina sobre o assunto na lei especial, devem ser aplicadas, de forma subsidiária, as regras do Código de Processo Civil (art. 189, LRF). Basta, para que seja admitido o litisconsórcio, que exista a afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito (art. 113, III, CPC). Não é preciso haver comunhão de direitos ou obrigações (art. 113, I), o que exigiria que os patrimônios e credores de todas as sociedades recuperandas fossem os mesmos. Nem mesmo é necessária a demonstração de que existe conexão (art. 113, II). Suficiente, apenas, haver alguma afinidade entre as sociedades em recuperação judicial. Essa afinidade é preenchida pela mera inserção das sociedades em um mesmo grupo econômico. O grupo pode ser de direito (formalmente constituído entre sociedade controladora e sociedades por ela controladas, por meio de convenção arquivada perante a Junta Comercial - arts. 265 e 271 da lei 6.404/1976) ou de fato (que se forma entre sociedades relacionadas em decorrência da participação que uma possui no capital social das outras, sem que tenha sido ajustada, todavia, qualquer convenção sobre sua organização formal e administrativa)2. Como a afinidade exigida pelo art. 113, III do CPC se dá por ponto comum "de fato ou de direito", a consolidação processual é admitida tanto no caso de grupo de direito como no de fato3. As razões para que seja admitida a consolidação processual são essencialmente as mesmas do litisconsórcio: promover economia processual (evitando a repetição de atos processuais, o que ocorreria se os pedidos de recuperação das sociedades fossem processados em separado), evitar eventuais decisões conflitantes e reduzir os custos decorrentes do processo de recuperação judicial, providência importante para sociedades que se encontram em situação de crise econômico-financeira. A principal discussão que se poderia suscitar quanto à consolidação processual se verifica nos casos em que as sociedades possuem seu "principal estabelecimento" em comarcas distintas. É que a regra de competência territorial para a recuperação judicial (art. 3º, LRF) tem sido interpretada como absoluta4 e o litisconsórcio - como hipótese de cumulação subjetiva de demandas - não pode implicar derrogação a regras de competência absoluta (art. 327, § 1º, II do CPC)5. O assunto ainda não recebeu a devida atenção da jurisprudência. Os juízes muitas vezes têm interpretado o "principal estabelecimento" como o centro de decisões da sociedade, ou seja, onde ocorrem suas deliberações mais relevantes6 (e não sua sede formal ou onde se concentra o maior volume de atividades econômicas, como verificado em alguns precedentes)7. Esse entendimento nos parece correto. Contudo, em um grupo econômico, frequentemente os tribunais fogem da discussão tomando por perspectiva o local de que partem as decisões mais relevantes para o grupo como um todo, buscando estabelecer o mesmo "principal estabelecimento" para todas as sociedades relacionadas. Sem embargo dessa questão, é importante que se faça uma advertência: a consolidação processual não afasta a autonomia patrimonial das sociedades recuperandas8, que devem continuar a apresentar listas de credores individualizadas e, mais importante, ter o seu plano deliberado pela Assembleia Geral de Credores em votações separadas por seus respectivos credores. Resumindo em uma frase: a consolidação processual não acarreta de forma automática a consolidação substancial9. 2. A polêmica consolidação substancial: competência e requisitos A consolidação substancial significa ir um passo além da consolidação processual: nesta hipótese, as sociedades recuperandas não apenas têm o pedido processado conjuntamente, como sua autonomia patrimonial é excepcionalmente afastada, de maneira a unificar as listas de credores das sociedades e, consequentemente, fazer com que o seu plano de recuperação judicial seja deliberado em assembleia única, por todos os credores de todo o grupo econômico consolidado. Com a consolidação substancial, passa-se a ter situação de litisconsórcio unitário (art. 116, CPC), em que todas as sociedades do grupo terão inevitavelmente o mesmo destino: ou terão seu plano de recuperação judicial aprovado, ou este será rejeitado, com a consequente decretação de falência de todo o grupo. Trata-se de instituto que, assim como a consolidação processual, não se encontra regulado na LRF. Contudo, diversamente do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, tendo em vista as drásticas consequências que acarreta, alterando de forma significativa o quórum na Assembleia Geral de Credores e o poder de voto de cada credor no conclave, a consolidação substancial traz consigo diversas polêmicas, que vêm sendo enfrentadas pela jurisprudência. A primeira polêmica se refere à competência para determinar a consolidação substancial: seria ela do juiz ou da Assembleia Geral de Credores? Uma interpretação sistemática conduz à conclusão de que se trata de matéria a ser deliberada pelos próprios credores em assembleia, ressalvados os casos extremos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, que poderiam ser apreciados pelo juiz a título de desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil) - situação em que os responsáveis pelas fraudes também devem responder pessoalmente pelos seus atos, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade criminal10. Isso porque, nos termos do art. 35, I, alínea "f" da LRF, compete à Assembleia Geral deliberar sobre "qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores". Por óbvio, a possibilidade de unificação das listas de credores entre todas as sociedades do grupo e o afastamento de sua autonomia patrimonial (art. 266 da lei 6.404/1976) afetam de forma expressiva o interesse dos credores envolvidos na recuperação judicial, que passarão a ter como seu devedor todo o grupo econômico e votarão sobre o plano, de forma diluída em meio a todos os demais credores do grupo, em uma só assembleia unificada. Deve a consolidação substancial, portanto, em regra, ser deliberada em Assembleia Geral de Credores. Como, no momento em que se realizar tal assembleia, ainda não terá se verificado tal consolidação, a votação para este fim deve se dar separadamente entre os credores de cada sociedade envolvida11. A segunda polêmica sobre a consolidação substancial, caso se entenda que tal medida compete ao juiz, diz respeito aos requisitos para que ela seja determinada. Evidentemente, não basta a mera existência de um grupo econômico de direito ou de fato porque, como já dito e reconhecido pela jurisprudência, a consolidação processual na recuperação judicial (litisconsórcio ativo) não leva automaticamente à consolidação substancial. Por isso mesmo, não servem justificativas genéricas para que ocorra tal unificação de ativos e passivos, como a existência de sócios comuns ou escopo comum das sociedades envolvidas. Mais do que a simples existência de um grupo econômico, a consolidação substancial exige a efetiva confusão patrimonial entre as sociedades ou, pelo menos, expressiva integração, com adoção, entre outras evidências, de contas centralizadoras, regime de caixa único e coincidência de instalações12. Também se admite a consolidação substancial se a atividade econômica das sociedades é unificada, com objeto social coincidente. Ainda, a mera existência de garantias cruzadas entre as sociedades do grupo (por exemplo, prestação de fianças ou avais por algumas sociedades em obrigações contraídas por outras), por si só, é comum a muitos grupos e não conduz à consolidação substancial13, mas pode ser evidência de confusão patrimonial se forem numerosas e assumirem expressiva relevância em relação ao passivo de todo o grupo, a ponto de conduzir à conclusão de que o destino da recuperação judicial de todas as sociedades será inevitavelmente o mesmo. * * * Consolidação processual e substancial são fenômenos que, embora não regulados em lei, são cada vez mais frequentes nas recuperações judiciais. Na prática, a consolidação processual não envolve grande polêmica, sendo suficiente para tal a existência de um grupo econômico de fato ou de direito. As controvérsias ficam reservadas para a consolidação substancial, tanto no que tange a quem compete determinar tal providência - se ao juiz ou à Assembleia Geral de Credores - quanto aos requisitos para que se verifique a unificação de ativos e passivos do grupo, afastando a autonomia patrimonial das sociedades que o compõem. Enfim, é preciso que a consolidação substancial seja determinada com cautela e seja devidamente justificada, para não se transformar em uma perigosa arma de manipulação do quórum na Assembleia Geral de Credores, em que alguns credores podem ter o seu poder de voto diluído em meio a todo o grupo empresarial. Por hoje, ficamos por aqui. Um abraço e até a próxima! __________ 1 Sobre o ponto, discutindo as inovações do PL 10.220/2018 (em trâmite na Câmara dos Deputados) em matéria de consolidação processual e substancial, Andre Vasconcelos Roque, Projeto de lei e recuperação judicial: O que vem por aí?, Migalhas, publicado em 15/5/2018. 2 "O grupo de fato é aquele integrado por sociedades relacionadas tão somente por meio de participação acionária, sem que haja entre elas uma organização formal ou obrigacional. As relações jurídicas mantidas entre as sociedades que integram o grupo devem ser fundamentadas nos princípios e nas regras que regem as relações entre as companhias isoladas" (Nelson Eizirik, A lei das S/A comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. v. 3, p. 515-516) 3 "Assim, a formação do litisconsórcio ativo, na hipótese, foi corretamente deferida, uma vez que restou demonstrada a existência do grupo econômico de fato, considerando-se, ainda, que o ajuizamento separado das ações de recuperação de cada uma das empresas interligadas, comprometeria a própria eficiência do processo recuperacional, afetando o possível soerguimento do grupo econômico, tendo em vista que haveria a possibilidade de serem proferidas decisões conflitantes" (TJ/SP, AI 2126008-61.2018.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Maurício Pessoa, julg. 27.8.2018). 4 "A circunstância de as recuperandas não terem impugnado a decisão declinatória proferida pelo relator do agravo de instrumento (nº 348379-48.2015.8.09.0000) no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás não interfere no conhecimento do incidente, pois a norma constante do artigo 3º da lei 11.101/05 encerra regra de competência absoluta, afastando eventual alegação da existência de preclusão quanto à suscitação do conflito" (STJ, CC 146.579, Segunda Seção; Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 11.11.2016). V. tb.: TJSP, AI 2139422-63.2017.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 9.8.2017 e TJPR, ConCompCv 1605387-5, 18ª CC., Rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, julg. 3.5.2017. 5 Entre outros: "5. Desta forma, tendo em vista a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a ação proposta em face do Município do Rio de Janeiro e, tendo em vista, ainda, que a cumulação de ações, de acordo com o art. 327, §1º, II, do Código de Processo Civil estabelece, dentre outros requisitos, que o réu seja o mesmo e que o juízo seja competente para apreciar todas as ações cumuladas, escorreito o juízo a quo ao excluir o Município do Rio de Janeiro do feito. 6. Ainda que se vislumbre que os objetos possam ser conexos, tal fato não deslocaria a lide de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, vez que a competência absoluta não se altera pela conexão" (TRF 2ª R., AI 0010163-85.2016.4.02.0000, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, julg. 21.2.2017). 6 Nesse sentido: "Recuperação judicial. Competência para o processamento. Principal estabelecimento. Local de onde emanam as principais decisões estratégicas, financeiras e operacionais da sociedade. Competência do foro da Comarca de Mogi das Cruzes. Agravo provido" (TJSP, AI 2249580-54.2018.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 30.1.2019). 7 Exemplificativamente: "Para fins da competência visando o processamento da ação de recuperação judicial, entende-se por principal estabelecimento o local no qual se desenvolve a maior parte das atividades relacionadas ao objeto social da empresa recuperanda. E, analisando a documentação colacionada aos autos infere-se que o local onde se concentra o maior volume de negócios é na Comarca de Campo Grande/MS" (TJMS, AI 1400242-03.2019.8.12.0000, 2ª CC., Rel. Des. Eduardo Machado Rocha, DJMS 7.2.2019) 8 A esse respeito, estabelece o art. 266 da lei 6.404/1976, que trata das relações entre as sociedades em um grupo, que "[a]s relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade e patrimônios distintos" (grifou-se). 9 "Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade, o que impõe seja proferida uma decisão especificamente motivada, não podendo ser admitido um simples deferimento implícito e decorrente da admissão de um litisconsórcio ativo, pois isso pode, simplesmente, implicar numa consolidação processual" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). 10 A esse respeito, estabelece corretamente o PL 10.220/2018, em trâmite na Câmara dos Deputados e que se propõe a alterar a LRF: "Art. 69-M. O juiz determinará, de ofício, a consolidação substancial de ativos e passivos de agentes econômicos integrantes do mesmo grupo econômico que estejam ou não em recuperação judicial, quando constatar: I - confusão entre ativos ou passivos dos devedores, modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou recursos; ou II - envolvimento dos devedores em fraude que imponha consolidação substancial. § 1º O enquadramento em qualquer hipótese prevista no caput implicará, para todos os fins, a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal". 11 Nesse sentido: "Recurso tirado contra decisão que acolheu pedido da credora para determinar que os credores de cada uma das devedoras, em votações separadas, deliberem sobre a consolidação substancial, com a aprovação ou não de plano unitário e comunhão de ativos e passivos. Decisão acertada. Admissão do litisconsórcio ativo que não encaminha, obrigatoriamente, à consolidação substancial. Necessidade de anuência da maioria dos credores de cada uma das devedoras, sob pena de subversão do instituto" (TJSP, AI 2072604-95.2018.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Araldo Telles, julg. 30.7.2018). V. tb.: TJSP, AI 2165440-24.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJSP, AI 2178269-37.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJRJ, AI 0052769-87.2017.8.19.0000, 8ª CC., Rel. Des. Cezar Augusto Rodrigues Costa, julg. 22.9.2017; TJRJ, AI 0057021-07.2015.8.19.0000, 14ª CC., Rel. Des. José Carlos Paes, julg. 25.11.2015; TJPR, AI 1.098.575-2, 17ª CC., Rel. Des. Lauri Caetano da Silva, julg. 26.3.2014; TJRS, AI 0182096-46.2018.8.21.7000, 5ª CC., Rel. Des. Isabel Dias Almeida, julg. 26.9.2018. 12 "O trâmite da recuperação com a consolidação de ativos e passivos de vários devedores componentes de um mesmo grupo econômico, mesmo ausente específica regra positivada e tal qual admitido por numerosos julgados, pode se tornar, até mesmo, obrigatório diante de uma confusão patrimonial explícita (com aplicação do artigo 114 do CPC de 2015) e gera consequências muito graves e que condicionam o trâmite de toda a recuperação judicial, sendo seu escopo a economia de recursos e a cooperação de todas empresas envolvidas para um maior eficiência em sua atuação diante de uma situação de crise econômica e financeira (...) Uma unificação procedimental ampla precisa derivar, no entanto, de maneira explícita, da afirmação da unidade gerencial, da integração patrimonial ou da simbiose do objeto social dos devedores, que buscam superar uma conjuntura desfavorável em conjunto, reunindo suas forças e conformando uma interdependência, não se admitindo a utilização da consolidação substancial como forma artificial de simples diluição de créditos. Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). V. tb.: TJSP, AI 2169130-27.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 4.12.2018. 13 TJSP, AI 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho O art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/2005 dispõe o seguinte: "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) §3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis , de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Parte da doutrina confere a tal dispositivo legal interpretação restritiva, sustentando que o texto refere-se apenas a coisas móveis ou imóveis. Essa tese faz sentido e decorre da própria proteção outorgada pela parte final do texto legal. Créditos são bens imateriais; não são passíveis de qualificação como bens de capital suscetíveis de alienação fiduciária. Somente bens desta natureza, que são materiais, e não os direitos de créditos, imateriais, é que não podem ser retirados da posse do devedor, quando essenciais à sua atividade. Nesse sentido a lição de Manoel Justino Bezerra Filho: "o termo "proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis do início do §3o do art. 49 completa-se com a parte final do parágrafo, que não permite a venda ou retirada de bens de capital. Esta proibição final não pode ser aplicada à cessão; na cessão de recebíveis não há possibilidade de venda ou retirada de bens, há apenas apossamento puro e simples do dinheiro recebido" (Lei de Recuperação de Empresas e falência: comentada artigo por artigo 12ª. ed São Paulo: RT, 2017, p. 175). É verdade que o Superior Tribunal de Justiça adotou interpretação extensiva do parágrafo 3º, do art. 49, no sentido de que a alienação fiduciária de coisa móvel (máquinas e equipamentos) e a cessão fiduciária de créditos (recebíveis) se equivalem, justamente por possuírem a mesma natureza jurídica. Porém, é preciso ir além e realizar-se uma interpretação extensiva de todo o dispositivo legal. Em outras palavras, se o credor fiduciário de recebíveis assim como o proprietário fiduciário de bens materiais não estão sujeito à recuperação, os recebíveis essenciais merecem proteção semelhante aos bens de capital essenciais. Ambos não podem ser retirados da disponibilidade do devedor, a fim de que se preserve a finalidade do processo de recuperação, sem prejuízo da proteção ao credor garantido, como, aliás, constou do parecer 534/2004, do Senador Ramez Tebet, relativo ao projeto que deu origem à lei 11.101/2001: "(...) no caso da alienação fiduciária e de outras formas de negócio jurídico em que a propriedade não é do devedor, mas do credor, é preciso sopesar a proteção ao direito de propriedade e a exigência social de proporcionar meios efetivos de recuperação às empresas em dificuldades. Por isso, propomos uma solução de equilíbrio: não se suspendem as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas elimina-se a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante os 180 dias de suspensão, para que haja tempo hábil para a formulação e a aprovação do plano de recuperação judicial." A solução equilibrada, no caso da cessão fiduciária de créditos, não foi prevista no parágrafo 3º, mas esta lacuna pode ser suprida pela norma do parágrafo 5º., do art. 49, segundo o qual, "tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras, ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta lei". A norma do § 5º do art. 49 se refere a direitos creditórios e títulos de crédito, ou seja, neste dispositivo legal está clara a intenção de tratar de garantias reais sobre créditos (ou recebíveis). Aqui cuida-se de direito real de garantia que recai sobre outro direito, incorpóreo, diferentemente da norma prevista no parágrafo 3º, que se refere a coisas corpóreas, suscetíveis de posse. Tratando-se de garantia que tem por objeto uma prestação pecuniária de terceiro, o devedor não pode simplesmente apropriar-se dos valores pagos, referentes aos créditos que deu em garantia. Isso seria anular pura e simplesmente o direito do credor. A solução, portanto, é exigir do devedor que substituía os créditos dados em garantia e já satisfeitos por outros créditos. Nesse sentido, aliás, é a compreensão do professor da USP, Eduardo Munhoz, em artigo indispensável sobre o tema: "A semelhança das figuras (cessão fiduciária e penhor) pode justificar tratamento também similar pela LRF. Ou seja, o crédito cedido fiduciariamente, desde que essencial à atividade empresarial (parte final do § 3º do art. 49), tanto quanto o objeto do penhor, deve ficar depositado, em conta vinculada à recuperação judicial, durante o stay period, assegurando-se, por outro lado, a renovação das também à hipótese de cessão fiduciária, em virtude da natureza fungível do crédito. De fato, a propriedade do credor é sobre créditos, bens fungíveis, de modo que não ofenderia o seu direito de proprietário a eventual renovação da garantia pelo devedor por outros créditos de mesmo valor e natureza, portanto, hábeis a substituir os primeiros." ("Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa". In: Revista do Advogado, n. 105, ano XXIX,. São Paulo: AASP, setembro de 2009, pp. 44/45). A solução doutrinária acima mencionada também tem amparo na jurisprudência do TJSP: "RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CREDOR TITULAR DE CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS CONTRA TERCEIRO - PAGAMENTOS RELATIVOS À GARANTIA QUE DEVEM SER FEITOS MEDIANTE DEPÓSITO EM CONTA VINCULADA À RECUPERAÇÃO - ART 49, § 5° DA LEI 11 101/2005 - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 628.519-4/2 - CÂMARA ESPECIAL DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS). Do voto do relator. Des. Elliot Akkel, consta que "as regras do § 3o e do § 5o do art. 49 da Lei 11.101/2005 não se excluem. Ao contrário, podem ser complementares, como na espécie, uma vez que, configurada eventualmente a alienação fiduciária de direitos creditórios, induvidosamente e da mesma forma tratar-se-ia de "crédito garantido" por "direitos creditórios", na dicção do § 5o." Portanto, durante o "stay period", a proteção para credores garantidos por máquinas e equipamentos essenciais é a manutenção do bem na posse do devedor, que tem interesse na conservação do bem. Já a proteção para os credores garantidos por direitos de crédito (recebíveis) é o depósito do valor dos créditos objeto da garantia até que seja realizada a substituição ou renovação das garantias liquidadas ou vencidas. Com isso o devedor mantém a sua operação e continua a faturar, gerando novos créditos que serão oferecidos em garantia para o credor. Trata-se de solução que assegura efetividade à lei 11.101/2005, tendo amparo na doutrina e na jurisprudência, além de ser encontrada em outras leis de insolvência, como observa Leonardo Adriano Ribeiro Dias: "(...) À semelhança do que ocorre nos Estados Unidos, a utilização das garantias em dinheiro, presente ou futuro, deveria ser permitida caso o credor consinta ou o juiz autorize, quando assegurada a a proteção adequada ao titular do crédito garantido. Essa proteção poderia se dar, e.g., pela liberação parcial dos valores gravados até o limite da dívida garantida, com compromisso de pagamento dos juros incidentes; pela substituição da garantia por outros recebíveis com vencimento posterior; pela assunção do compromisso de reposição das garantias liberadas, sob pena de vencimento total da dívida; e assim por diante." (Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin: 2014; pp.305/306). Por fim, importante destacar que o devedor tem direito à liberação, tão-somente, dos recursos necessários à manutenção da atividade empresarial, e não à totalidade dos recebíveis cedidos fiduciariamente. O controle da essencialidade cabe ao juízo da recuperação judicial, com o auxílio do administrador judicial. É conveniente que seja instaurado um incidente processual, para a demonstração dos valores essenciais pela recuperanda, evitando-se, com isso, tumulto nos autos da recuperação. Por meio da análise das demonstrações financeiras, extratos bancários e outros documentos, o administrador judicial extrairá as informações relativas ao valor das despesas da recuperanda que são essenciais ao seu funcionamento, como impostos, locação, aquisição de matéria-prima, folha de pagamento, serviços de terceiros. O Juiz decidirá qual o montante a ser liberado à devedora, presente o requisito da essencialidade, enquanto o excedente poderá ser disponibilizado aos credores garantidos. Com essa solução, o processo de recuperação judicial poderá cumprir seu propósito de forma mais eficiente. Assegura-se a manutenção das atividades da recuperanda e, ao mesmo tempo, é oferecida proteção adequada aos interesses dos credores garantidos.
Texto de autoria de Luiz Dellore e Andressa Borba Pires INTRODUÇÃO Como destacado em texto anterior1, a Assembleia Geral de Credores (AGC) é ato de grande importância para o procedimento da recuperação judicial, que não encontra similar no processo civil brasileiro. Trata-se da ocasião em que os credores, divididos em 4 classes, se reúnem para deliberar sobre matérias de interesse comum e, em especial, para a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora. 1) DA DIVISÃO POR CLASSES E DO DIREITO DE VOTO EM AGC. A divisão rígida dos credores por classes é estabelecida na lei (11.101/2.005, a LRF, artigo 41) para fins de votação do plano: I- credores trabalhistas; II- credores titulares de garantia real - penhor ou hipoteca, no limite do valor da garantia; III- credores quirografários - classificação residual; IV- Microempresas - ME ou Empresas de Pequeno Porte - EPP Além desses, existem ainda os credores extraconcursais, ou seja, aqueles cujos créditos não se submetem à recuperação judicial (LRF, art. 49, §§ 3º e 4º2) e, assim, não são atingidos pelo plano de recuperação judicial (PRJ). Por tal razão, não votam na AGC. Na prática, verifica-se que a divisão por classes é também utilizada pelas recuperandas para estabelecer, no PRJ, as condições de pagamento dos créditos concursais (LRF, artigo 50). Possuem direito a voto os credores concursais, ou seja, os titulares de créditos sujeitos ao processo de recuperação judicial, listados numa das quatro classes acima indicadas e que constam do quadro geral de credores (QGC). Se ainda não houver QGC, será considerada a relação de credores apresentada pelo administrador judicial ou então, a relação apresentada pelo devedor, caso ainda não apresentada a segunda lista (LRF, artigo 7º, §2º)3. É considerada, para fins de quórum e votação, a lista de credores vigente na data da assembleia, com as alterações e inclusões determinadas por decisões proferidas em habilitações ou impugnações de crédito. Ou seja, possuem direito a voto os credores titulares de créditos habilitados ou alterados por incidentes processuais julgados, conforme estabelece o artigo 39 da LRF. Todavia, não terão direito a voto em assembleia os titulares de créditos retardatários, salvo no caso de créditos trabalhistas. Conforme prevê o artigo 10, §1º da LRF, são considerados créditos retardatários aqueles objetos de habilitações apresentadas após o prazo de 15 dias da publicação do primeiro edital, previsto no artigo 52, §1º da LRF (vide LRF, artigo 7º, §1º). Também não terão direito a voto, como destacado acima, os credores titulares de créditos extraconcursais, conforme expressa previsão do artigo 39, §1º da LRF. O voto em assembleia não precisa ser justificado, mas deve ser racional, caso contrário poderá ser reconhecido como abusivo, conforme entendimento jurisprudencial atual. Para ilustrar, podemos citar o precedente da recuperação judicial da empresa Schahin4, em que o TJSP manteve a homologação do PRJ, sendo desconsiderados os votos de credores integrantes da Classe II, em razão da intransigência (recusa em negociar) e da irracionalidade econômica do voto. Segundo esse entendimento, o credor tem, por exemplo, o direito de rejeitar o plano se a falência lhe for mais favorável economicamente ou se o plano não possuir viabilidade econômica, ou seja, havendo motivação econômica para tanto. As decisões são tomadas, em assembleia, por maioria de voto dos credores votantes (ou seja, os credores concursais). Com exceção da aprovação do plano, o quórum de aprovação das matérias pela AGC é de mais da metade do valor dos créditos presentes, independentemente de classe (LRF, artigo 42). Como exemplo, necessário mais da metade dos créditos para a suspensão dos trabalhos da assembleia5. Nas deliberações sobre o PRJ, considera-se aprovado o plano se houver maioria dos votos em cada uma das classes. O quórum legal de aprovação é o seguinte, estabelecido pelo artigo 45, LRF: - maioria simples de presentes (por cabeça) nas classes I e IV e, - maioria de presentes (por cabeça) e de créditos presentes (por valor) nas classes II e III. A lei estabelece, ainda, quórum alternativo de aprovação (o chamado cram down), situação em que o juiz pode conceder a recuperação judicial, se presentes determinados requisitos legais estabelecidos no artigo 58, §1º da LRF. Ou seja, ainda que não haja a aprovação tal qual inicialmente prevista, se algum quórum específico for atingido, o PRJ é considerado aprovado. É uma segunda chance dada pela própria lei para a aprovação do plano. É relativamente comum, no cotidiano forense, a aprovação por cram down6. Homologado o plano, é concedida a recuperação judicial, devendo ser implementadas as condições de pagamento e os meios de recuperação nele previstos, conforme o artigo 61 da LRF. Se não for homologado o plano ou em caso de descumprimento do plano durante o período de fiscalização (2 anos da concessão), a recuperação judicial é convolada em falência (LRF, artigo 61, §1º). 2) DA POSSIBILIDADE DE SE PLEITEAR O CÔMPUTO DO VOTO EM DOIS CENÁRIOS OU O DIREITO DE VOTO QUANDO HOUVER PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE IMPUGNAÇÃO OU HABILITAÇÃO DE CRÉDITO Como já salientado em nossa coluna anterior, a pendência de julgamento de impugnação de crédito não é motivo para cancelamento ou adiamento da AGC, ou tampouco para a invalidação de seu resultado, conforme expressa disposição legal (LRF, artigo 39, §2º). Mas como fica a votação diante dessa situação? Afinal, com o julgamento da impugnação, é possível que um credor tenha sua situação consideravelmente alterada, o que inclusive pode levar a resultados totalmente distintos em relação à deliberação do PRJ. Para ilustrar, consideremos duas situações hipotéticas de discussão, em incidente de impugnação: (i) credor pleiteia reconhecimento de extraconcursalidade de crédito listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III); (ii) credor pleiteia classificação como crédito com garantia real (classe II), que no entanto foi listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III). Tais situações podem provocar mudança da composição de forças entre as classes e conferir, inclusive, maior poder ao credor na mesa de negociação. Nesse caso, enquanto pendente a decisão da impugnação de crédito, o credor poderá pleitear pedido liminar incidental, com fulcro no artigo 300 do CPC (tutela de urgência), para que sejam colhidos seus votos nos dois cenários possíveis, a saber: 1) em conformidade com a lista de credores apresentada pelo administrador judicial (que é o que ocorreria se nada fosse pleiteado); e 2) de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito - valor e classe indicados pelo credor no incidente pendente de julgamento (esse é efetivamente o pedido da liminar). É certo que este pedido deve ser formulado antes da realização da AGC, pois após a sua realização não há como se cogitar de qual seria, hipoteticamente, o resultado. O pedido liminar pode ser formulado nos autos principais da RJ ou no incidente da respectiva impugnação. Deferida a liminar, o administrador judicial (AJ) colherá os votos das duas formas distintas. E algumas vezes em quaisquer cenários o resultado da deliberação ficará inalterado. Porém, em outras oportunidades, a depender da mudança de composição de forças entre os credores votantes, os resultados serão distintos em cada cenário. Deferida a liminar pelo juiz, caso não haja tempo hábil para a intimação formal do AJ, o próprio credor interessado poderá levar a decisão para a AGC e nela intimar o administrador7. O que se verifica, na prática, é o próprio administrador judicial, na instalação da AGC, comunicar aos credores presentes acerca da decisão proferida. Vale exemplificar. Um credor é listado pela recuperanda e pelo AJ como titular de crédito quirografário (classe III) no valor de R$10 milhões, mas pleiteia o reconhecimento da existência de garantia real e, assim, a retificação do quadro geral, de forma a ser listado na classe II, pelo valor de R$20 milhões. A impugnação pende de julgamento, mas a AGC já foi designada. Assim, vale ao credor formular esse pedido ao juiz que - presentes os requisitos da situação de urgência (a rigor sempre presente) e da robustez das alegações da impugnação (esse requisito presente ou não, a depender do caso concreto), o deferirá. Nesse caso, se deferido o pedido liminar, seu voto será apurado de duas maneiras: de acordo com a lista do AJ e de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito. O credor titular de crédito não listado pelo administrador judicial, de igual forma, pode pleitear nos autos da recuperação judicial o direito de voto em assembleia, na pendência de julgamento de habilitação de crédito. Quando do julgamento das impugnações ou habilitações de crédito pode-se verificar mudanças substanciais do quadro de credores, decorrente da retificação de valor e classe dos créditos ou da inclusão de créditos. Mas a decisão judicial posterior, como já dito no início deste tópico, não provoca a invalidação das deliberações da AGC. Assim, a apresentação de pedido liminar incidental é medida salutar e recomendável. Reconhecido o perigo de dano ao impugnante (em razão do menor poder de voto se computado com base em valor inferior do crédito e/ou em classe diversa) ou ao habilitante (em razão do não exercício do direito de voto), bem como a probabilidade do direito de crédito (comprovada por meio da instrução documental do incidente), é deferido o pedido liminar incidental, de forma a estabelecer ao administrador judicial que realize a apuração dos votos em ambos os cenários, ou seja, pela relação do art. 7º, §2º da LRF (quadro de credores apresentado pelo administrador judicial) e pelo valor e classificação pretendidos na impugnação ou habilitação de crédito. Na prática é comum, às vésperas da AGC, que seja proferida decisão possibilitando ou não que o credor tenha seu voto apurado em lista apartada. Se não deferido o pedido liminar incidental, em regra tem o credor pouco tempo para a interposição de recurso de agravo de instrumento com pedido de concessão de antecipação de tutela recursal. Verifica-se, assim, uma verdadeira corrida ao Judiciário (ao 1º grau e ao respectivo Tribunal), para pleitear a urgente apreciação da matéria. É possível que a decisão acerca dos cenários distintos seja proferida momentos antes da instalação da assembleia e anunciada aos credores presentes, pelo administrador judicial, causando surpresa na AGC e mudança repentina do cenário acerca do qual se imaginava para a votação. Esse tipo de situação é comum na rotina das AGCs8. Caso a apuração do voto no segundo cenário provoque mudança do resultado da deliberação do plano, essa situação é levada pelo AJ à apreciação judicial. Ou seja, ambos os cenários de votação são submetidos ao juízo recuperacional. O juízo, nessa situação, decide qual dos cenários deve prevalecer. Para tanto, parece razoável o julgamento anterior da impugnação de crédito, se reunir condições para tanto. Se o incidente ainda não estiver em fase que possibilite o pronto julgamento, a situação deverá ser decidida pelo juízo, avaliando as peculiaridades do caso concreto. 3) DA DELIBERAÇÃO SOBRE A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL Também na votação em AGC é possível que se delibere a respeito da chamada consolidações substancial. Apesar da ausência de previsão legal, hoje se admite que os credores podem deliberar, em AGC, acerca da consolidação substancial, aprovando ou rejeitando a unificação dos ativos do grupo econômico para pagamento de todos os credores, indistintamente, de forma a desconsiderar a individualidade e autonomia patrimonial de cada empresa do grupo. Trata-se, em caso de aprovação em AGC, de consolidação substancial voluntária. A doutrina também reconhece a consolidação substancial obrigatória, quando reconhecida pelo juízo, caso entenda presentes determinados requisitos, como no caso de confusão patrimonial. Na hipótese de consolidação substancial, é apresentado plano único e realizada uma única votação (quórum único, baseado em lista de credores consolidada). Em recente assembleia realizada nos autos da recuperação judicial da SPMar9, foi realizada a votação acerca da consolidação substancial de parte do grupo econômico e a separação do plano de uma empresa - e isso foi aprovado pela unanimidade dos credores. Ou seja, o conjunto dos credores decidiu que, dentro de um grupo econômico, uma empresa teria um plano separado, com credores e votação separada, ao passo que as demais empresas teriam um plano único, com votação unificada (consolidação substancial). Tal cisão foi implementada em benefício da coletividade dos credores, tendo sido possibilitada graças a negociação das recuperandas com os credores, inclusive os extraconcursais. Na hipótese de consolidação processual, que se refere ao litisconsórcio ativo, ou seja, o ajuizamento de pedido de recuperação judicial de forma conjunta por várias empresas, são apresentados diversos planos, bem como realizadas votações separadas, baseadas nas diversas listas de credores, podendo ser realizadas diversas AGC ou uma única (porém com votações separadas). Acerca dessa situação, vale mencionar o precedente da recuperação judicial do grupo PDG10. As recuperandas apresentaram, num primeiro momento, planos de recuperação judicial separados para cada SPE com patrimônio de afetação, na tentativa de compatibilizar o regime de afetação com a processo de recuperação judicial. Apresentaram, também, um plano de recuperação judicial unificado para o restante do grupo (holding e SPEs sem patrimônio de afetação), ou seja, um misto de consolidação processual e consolidação substancial. Ao final das negociações com os credores, foi apresentado um plano unificado para as sociedades do grupo econômico (em consolidação substancial), reconhecendo-se que o patrimônio de afetação não se sujeita à recuperação judicial. O plano apresentado nesses moldes foi aprovado pelos credores concursais, em AGC. CONCLUSÃO Verifica-se, assim, algumas das inúmeras situações passíveis de serem enfrentadas por credores e recuperandas às vésperas e na própria assembleia, ato de extrema relevância para o processo recuperacional. É preciso estar atento para que se saiba (i) o que será deliberado (PRJ, eventual suspensão e inclusive consolidação substancial, (ii) quais são os quóruns necessários para aprovação das deliberações (conforme as deliberações a serem tomada) e (iii) quem são os votantes. Além disso, é preciso saber que o cenário que está no edital da AGC pode vir a ser alterado por força de liminares, proferidas pelo juiz da causa ou pelo respectivo TJ. E isso tudo no âmbito de um ato que demanda muito de todos: - para as recuperandas (que despendem com locação de espaço e contratação de equipe de apoio para a realização do ato) - para os credores (que precisam se deslocar pelo país, de dimensões continentais, ou até mesmo de outros países, no caso de credores estrangeiros) - para o administrador judicial (que disponibiliza sua equipe em diversas ocasiões - ao menos em duas, se não instalada a assembleia em primeira convocação). Assim, as formalidades da AGC podem e devem ser repensadas para, por exemplo, se colher eletronicamente os votos dos credores, de forma a conferir maior praticidade e economicidade ao ato, evitando-se deslocamentos e custos desnecessários para sua realização. __________ Texto em coautoria: Andressa Borba Pires é graduada pela USP. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação judicial e falência. __________ 1 O que acontece na assembleia geral de credores realizada na recuperação judicial? 2 São credores extraconcursais: - proprietário fiduciário (titular de crédito garantido por garantia fiduciária), - arrendador mercantil (leasing), - proprietário ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, - proprietário com reserva de domínio e - titular de crédito derivado de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (ACCs) - créditos tributários (conforme CTN, artigo 187 e LRJ, artigo 6º, §7º; assim, mesmo com a RJ as execuções fiscais prosseguem normalmente) - créditos pós-concursais (posteriores ao pedido de recuperação judicial) 3 Para uma visão geral acerca do procedimento de uma recuperação judicial e suas diversas fases e listas, vide coluna anterior. 4 Processo 10371333120158260100, 2ª Vara Falência e RJ de São Paulo. 5 Como caso concreto, a deliberação, aprovada por maioria, acerca da suspensão da AGC da RJ do grupo Sete Brasil (processo 0142307-13.2016.8.19.0001, em trâmite na 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro. 6 Podemos citar a deliberação acerca do PRJ do Grupo Renuka do Brasil em AGC realizada em 29/08/2018, referente ao processo 10996714820158260100, em trâmite na 1ª Vara de Falência e RJ de São Paulo. No caso, o plano foi homologado e a recuperação judicial concedida nos seguintes termos: "Segundo consta da ata da AGC, houve a aprovação de mais da metade dos créditos presentes no ato, a rejeição do plano em somente uma das quatro classes votantes, qual seja, a classe II, na qual foi obtida uma aceitação ao plano superior a 1/3 dos créditos e credores votantes. Logo, perfeitamente possível a concessão da recuperação judicial pretendida, com fulcro no art. 58, § 1º, da Lei 11.101/2005, até mesmo porque não há qualquer previsão no plano de tratamento diferenciado para os credores que o rejeitaram". 7 Para evitar quaisquer dúvidas nesse sentido, vale requerer ao magistrado que essa informação conste expressamente da decisão que concede a liminar. 8 Podemos citar como exemplo, no âmbito do TJSP, de concessão de antecipação de tutela recursal para fins de votação em AGC o agravo de instrumento 20824172020168260000, posteriormente ratificado no acórdão que deu provimento ao recurso do credor: "Vistos. Trata-se de agravo de instrumento voltado contra decisão que indeferiu a participação dos agravantes em assembleia-geral de credores, pelo valor dos créditos por eles apontado em incidente processado na forma da lei e que ainda não foi solucionado. Para evitar prejuízo, em antecipação de tutela, defiro, em parte, a pretensão recursal, autorizando a participação dos agravantes no conclave, pelos valores pretendidos, mas que deverão ser computados em separado pelo administrador judicial. Comunique-se. Processe-se ouvindo-se, simultaneamente, a recuperanda e o administrador judicial. Oportunamente, ao Ministério Público. Int.". 9 Processo 10808719820178260100, que trata da RJ da empresa SPMar. 10 Processo 10164223420178260100, que tramita na 1ª VFRJ de São Paulo.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Um dos maiores obstáculos à recuperação judicial de empresas, no Brasil, é a chamada "trava bancária" que permite ao credor financeiro, em razão da natureza fiduciária de sua garantia, bloquear o acesso da devedora aos depósitos bancários realizados por seus clientes em razão dos negócios desenvolvidos pela própria empresa. É preciso, inicialmente, entender o problema. Pois bem, no modelo brasileiro de recuperação judicial, o legislador optou por excluir os credores titulares de garantias fiduciárias dos efeitos da recuperação judicial. Nesse sentido, conforme dispõe o art. 49, §3º da lei 11.101/05, "tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva (...)". As alienações fiduciárias são aquelas em que a garantia fiduciária é representada por bem imóvel ou móvel infungível. As cessões fiduciárias, por sua vez, são aquelas em que a garantia é composta por títulos de crédito ou direitos, presentes ou futuros. Tratando-se, portanto, de cessão fiduciária de recebíveis futuros, a devedora deverá abrir uma conta bancária na instituição financiadora, onde deverão ser depositados esses recebíveis, constituindo-se a garantia do financiamento. Caso a empresa descumpra sua obrigação de pagar as parcelas do financiamento, a instituição financeira bloqueia seu acesso à referida conta bancária e passa a retirar os valores lá depositados para quitação do financiamento. Essa é a conhecida trava bancária. Atento à sinalização legislativa, o mercado financeiro se adaptou ao benefício, de modo que quase a totalidade dos financiamentos empresariais oferecidos por instituições financeiras são, atualmente, garantidos por alienação ou cessão fiduciária. Assim o fazendo, a legislação brasileira excluiu dos efeitos da recuperação judicial um dos principais credores de uma empresa em crise, considerando que é função dos bancos, financiar a atividade empresarial. Uma empresa, ao necessitar de investimentos para o desenvolvimento de sua atividade, normalmente busca os bancos para obtenção de financiamentos que serão, naturalmente, garantidos fiduciariamente. Ocorre que, havendo a necessidade de utilização da ferramenta da recuperação judicial para superação de eventual crise, a empresa não terá a possibilidade de renegociar as dívidas bancárias, que certamente representarão parcela importante de seu endividamento total. Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas. Esse cenário revela, na verdade, um problema estrutural do sistema brasileiro de recuperação judicial. O modelo brasileiro de recuperação judicial inspirou-se no modelo moderno criado nos Estados Unidos da América, no final do século passado. O modelo norte-americano propõe que a recuperação judicial deve ser realizada através da aplicação de uma solução de mercado para a crise da empresa, o que somente pode ser obtido através da negociação entre credores e devedora. Entretanto, para que exista de fato uma negociação efetiva entre credores e devedora, é preciso criar um ambiente que neutralize a ação dos chamados credores hold outs (credores resistentes à negociação e que pretendem prosseguir com a realização individual de seus créditos, sem consideração à existência dos demais credores). O professor Thomas H. Jackson1, ao escrever sobre o tema em seu livro The logic and limits of Bankruptcy Law, explica as dificuldades que enfrente uma empresa em crise, mesmo sendo viável, para conseguir criar um ambiente de negociação global capaz de conduzir à sua reestruturação efetiva. Thomas H. Jackson traz o exemplo do dilema do prisioneiro, da teoria dos jogos, para explicar o problema a ser neutralizado pelo sistema de recuperação judicial de empresas. Imagine uma empresa cujo valor de liquidação seja de 50 mil dólares, mas que esteja devendo a cada um de seus quatro credores o valor de 50 mil dólares. A empresa tem 50, mas deve 200 e, portanto, encontra-se insolvente. Nesse raciocínio, havendo a liquidação da empresa, cada credor receberia potencialmente 12.5 mil dólares. Entretanto, se mantida em funcionamento, a empresa poderia gerar um valor de going concern capaz de garantir o pagamento de 25 mil dólares para cada credor. Racionalmente, seria vantagem para os credores aceitar uma proposta de renegociação no montante de 25 mil dólares, ao invés de assistir a liquidação da atividade, que geraria apenas 12.5 mil dólares para cada credor. Entretanto, a teoria dos jogos demonstra que os credores não agem dessa forma racional e com espírito coletivo. A tendência é que o credor se comporte de forma egoísta e tente individualmente a realização do seu crédito na máxima extensão. Nesse sentido, imagine que os credores 1, 2 e 3 concordem com a proposta de negociação. Se o credor 4 não concorda com a proposta de 12.5 e dispara uma execução individual contra a devedora para tentar penhorar (e garantir prioridade na execução do ativo) os 50 mil de ativos da devedora (pagando-se integralmente), tal comportamento influenciará os demais credores, que diante disso, também dispararão suas execuções individuais contra a devedora. O resultado será o abandono da negociação coletiva e a liquidação da atividade e, ao final, todos receberão menos na liquidação do que teriam recebido na hipótese de aceitação do plano de recuperação apresentado pela devedora. Diante disso, os americanos criaram um modelo de recuperação pensado para neutralizar esse credor resistente (hold out), que é fundado em dois pilares fundamentais: a suspensão das ações individuais contra a devedora durante o período de negociação (stay period) e a regra de que a decisão da maioria dos credores vincula a todos os credores, inclusive os credores dissidentes. Segundo o modelo norte-americano, não deve haver hold outs, como pressuposto de criação de um ambiente capaz de conduzir à solução de mercado, em benefício da preservação da empresa e dos interesses dos próprios credores. Entretanto, embora o modelo brasileiro tenha se inspirado no modelo norte-americano, a lei 11.101/05, como já visto, preservou como hold out um dos principais credores de uma empresa em crise, qual seja, os bancos (titulares de garantias fiduciárias)2. Percebe-se, portanto, que a exclusão dos credores garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial é providência que viola a própria lógica/essência do modelo recuperacional adotado pelo Brasil. Como será possível garantir uma negociação coletiva, se o principal credor da empresa em crise poderá prosseguir com suas execuções individuais e o resultado da negociação com os demais credores não vai atingir os seus créditos? E mais. Se a garantia fiduciária consistir em ativo essencial ao desenvolvimento da atividade da devedora, sem o qual restará prejudicada a continuidade da empresa? Conforme já explicado por Thomas H. Jackson, esse credor bancário (hold out) será responsável pela liquidação da atividade e todos os credores acabarão recebendo menos na liquidação do que receberiam na hipótese de recuperação. E mais grave ainda. O desaparecimento da atividade empresarial viável, fará desaparecer os empregos, os tributos, as riquezas, os produtos e serviços que eram importantes para o desenvolvimento da sociedade e da economia. Deve-se lembrar que segundo o art. 47 da lei 11.101/05, a preservação da função social da empresa é o vetor principal de interpretação e de aplicação de seus institutos. Como resolver esse dilema? A resposta passa necessariamente pela correta interpretação do art. 49, §3º da lei 11.101/05 e, principalmente, pela adequada aplicação da exceção trazida nesse mesmo dispositivo legal, mas em sua parte final. Senão, vejamos. A interpretação e a aplicação dos dispositivos legais, no modelo brasileiro de recuperação de empresas, deve obedecer ao previsto na teoria da superação do dualismo pendular. Segundo a teoria da superação do dualismo pendular3, a melhor interpretação da lei não será aquela que prestigiar o interesse de credores ou da devedora, mas sim aquela que viabilizar de maneira mais intensa o atingimento dos objetivos maiores do sistema, revelados pela preservação da função social da empresa. Vale destacar que a aplicação dessa teoria já foi, inclusive, reconhecia pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo de instrumento no Resp 1308957/SP. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, "com o advento da lei 11.101/05, o ordenamento jurídico pátrio supera o dualismo pendular, havendo um consenso na doutrina que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se escolher aquelas que busca conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial". Da mesma forma, deve-se ter em vista a aplicação da teoria da divisão equilibrada de ônus4, segundo a qual credores e devedores devem assumir ônus no processo recuperacional de modo que prevaleça o interesse social ao interesse particular de credores ou devedores. Cabe ao juiz fazer o controle da posição processual das partes a fim de garantir que o processo atinja a sua finalidade social, prevenindo-se condutas tendentes a transformar interesses parciais dos titulares de direitos envolvidos na recuperação judicial em verdadeiras barreiras intransponíveis ao atingimento do objetivo social do sistema. Assim, art. 49, §3º da lei 11.101/05 deve ser interpretado de forma compatível com a realização das finalidades do sistema recuperacional, em sintonia com a preservação da função social da empresa. Muito embora a lei exclua os créditos garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial, não se pode permitir que o credor bancário execute sua garantia em prejuízo da coletividade de credores, colocando em risco o atingimento de uma solução de mercado que permita o prosseguimento da atividade empresarial viável e geradora de benefícios econômicos e sociais. O direito brasileiro prestigia de maneira intensa a função social dos institutos do direito privado, sendo inegáveis as limitações ao exercício da propriedade privada, em função da sua função social. Da mesma forma, a função social dos contratos limita a autonomia privada da vontade. No mesmo sentido atua a função social da empresa ao exigir que os credores, num ambiente de recuperação judicial, exerçam seus direitos em consonância com a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade viável. Vale destacar que, segundo o Código Civil (conhecido como Código Reale), somente se considera regular o exercício de um direito, desde que observada a sua função social. Conforme dispõe o art. 187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O direito civil brasileiro adotou como princípios a eticidade e a sociabilidade, de modo a refletir uma nova perspectiva de exigências de condutas legítimas pelo cidadão, em abandono ao ideal individualista que regia o Código Civil de 1916. Nesse diapasão, é correto afirmar que a legislação de regência concede aos credores garantidos fiduciariamente o direito de não se sujeitar ao processo de recuperação judicial. Entretanto, como já dito, o exercício desse direito deve observar a função social da empresa, uma vez que tal direito está sendo analisado no contexto do processo de recuperação judicial. O segredo para compatibilizar esse dispositivo com as finalidades do sistema recuperacional está na interpretação adequada da ressalva constante na parte final do art. 49, §3º da lei 11.101/05, segundo a qual não se permite ao credor titular da garantia fiduciária, durante o prazo de suspensão de 180 dias (stay period), a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Alberto Caminã Moreira, em artigo publicado nessa mesma coluna5, já abordou com muita precisão as discussões que gravitam em torno da interpretação aplicada pelos Tribunais a esse dispositivo legal. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por exemplo, que não é cabível a aplicação da ressalva nos casos em que a garantia fiduciária recai sobre dinheiro ou recebíveis futuros, pois o contrato de cessão fiduciária de crédito transfere ao credor a propriedade dos créditos até liquidação da dívida. Segundo decidido pela Min. Maria Isabel Gallotti, "nem haveria mesmo que se dizer que tais bens incorpóreos não poderiam ser retirados do estabelecimento do devedor porquanto esses títulos, de regra, estão na posse do credor para que ele possa receber diretamente do devedor os créditos cedidos fiduciariamente" (Recurso Especial 1.263.500-ES, j. em 5/2/2013). Recentemente, ao analisar o conceito de bem de capital, o Ministro Marco Aurélio Bellizze conferiu interpretação bastante restritiva e destacou que, para ser caracterizado como bem de capital, o bem precisa ser corpóreo (móvel ou imóvel), deve ser utilizado no processo produtivo e deve se encontrar na posse da empresa. Disse, ainda, que a exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo bem de capital. Explicou que a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade, "além de desvirtuar a própria finalidade dos 'bens de capital', fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial". Novamente remeto o leitor ao excelente artigo de Alberto Caminã publicado nessa mesma coluna6 para observação da discussão acerca das interpretações sobre o que seria um bem de capital essencial que justifique a aplicação da exceção legal. Embora os argumentos acima expostos sejam judiciosos e bem fundamentados, tendem a interpretar o dispositivo legal de modo a prestigiar o interesse do credor e em prejuízo do objetivo do próprio sistema, na medida em que a retirada da empresa de ativos essenciais ao desenvolvimento de sua atividade impossibilitará a preservação de sua atividade e de todos os benefícios econômicos e sociais dela decorrentes. Conforme já afirmado, deve-se aplicar ao sistema recuperacional a interpretação conforme as teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus. Assim, relembre-se, a melhor interpretação que se deve dar aos institutos da recuperação judicial é aquela que permita o aplicador da lei atingir de maneira mais eficaz os resultados de interesse social tutelados pelo sistema recuperacional e não os interesses parciais de credores ou devedores. A viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas. Os interesses maiores, garantidos pelo sucesso da recuperação da empresa, devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial. O interesse parcial de credor ou devedor nunca poderá se transformar em barreira intransponível à realização do interesse maior, de natureza pública/social, decorrente da preservação dos benefícios oriundos da atividade empresarial saudável. Não me parece que a interpretação restritiva, que permite que o credor realize sua garantia sobre bem ou ativo sem o qual a empresa reste impossibilidade de prosseguir (embora viável) seja a mais adequada às finalidades do sistema. Permitir que o credor financeiro retire os recebíveis essenciais da recuperanda, mesmo durante o prazo de negociação do plano (stay period), viola a lógica do sistema e transforma o direito do credor numa barreira intransponível à realização do interesse social, em detrimento dos próprios objetivos do sistema recuperacional. E mais. Segundo a teoria da divisão equilibrada de ônus, conforme já visto, todos os credores e devedores devem assumir ônus no processo de recuperação judicial, de modo que suas condutas viabilizem o atingimento do resultado maior do processo recuperacional. Mesmo o credor não sujeito à recuperação judicial, por ser titular da posição de credor fiduciário, deverá suportar ônus de não retirar do estabelecimento comercial um bem de capital essencial ao desenvolvimento da empresa, com o fim de se garantir o sucesso da recuperação judicial da devedora. É essa a essência desse dispositivo legal: impor limitação ao credor não sujeito em função da preservação da função social da empresa. Se assim é, não se pode admitir que outras interpretações, mais restritivas, liberem os credores para realizar suas garantias em detrimento da função social da empresa. Tendo em vista tudo o que já foi dito, resulta cristalino que a expressão legal "retirada" deve ser lida como "realizada" ou "fruída em detrimento da devedora". Não se deve permitir que a credora titular da garantia fiduciária "execute", "frua", "realize" o bem objeto da garantia em detrimento do funcionamento da devedora. Da mesma forma, a expressão "bem de capital essencial à atividade da devedora" deve ser interpretada como sendo qualquer bem, objeto da garantia fiduciária, cuja retirada, fruição imediata, excussão ou realização de qualquer forma coloque em risco a manutenção das atividades empresariais. E não é só. O período de duração em que o credor fiduciário não pode realizar sua garantia deve coincidir com o prazo de proteção conferido à devedora para negociação do plano. Conforme já definido pelo STJ, o prazo de 180 dias poderá ser prorrogado judicialmente, desde que o atraso na realização da Assembleia Geral de Credores não seja atribuído à conduta da devedora. Portanto, conclui-se que o credor fiduciário, muito embora conserve seus direitos de propriedade sobre a coisa, não poderá realizar, executar, fruir, retirar ou de qualquer forma excutir o bem objeto da garantia, durante o período de proteção da devedora (stay period) - 180 dias ou mais, desde que haja prorrogação judicial - na medida em que tal pretensão implique em risco de encerramento das atividades empresariais da devedora. Aliás, a interpretação literal aplicada pelo STJ à ressalva legal certamente levaria à criação de situações violadoras do princípio da isonomia entre os credores titulares da mesma posição jurídica. Isso porque, o credor titular de uma alienação fiduciária sobre a máquina industrial não poderia vender a máquina para realização de seu crédito, ao passo que o credor titular da cessão fiduciária de recebíveis, poderia fazê-lo sem qualquer restrição. Ora, à luz do art. 49, §3º da lei 11.101/05, os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis estão sujeitos ao mesmo regime jurídico, não sendo razoável que o interprete os coloque em situações diametralmente opostas em relação ao exercício do direito de propriedade sobre a coisa objeto da garantia. E nem se diga que a liberação da trava bancária na cessão fiduciária equivale a esvaziar a garantia, o que não aconteceria no caso da máquina industrial, que lá permaneceria existindo. A garantia não é o dinheiro e sim os recebíveis, e esses continuarão existindo na medida em que as atividades da empresa sejam preservadas. Vale destacar que o STJ já definiu, com toda a razão, que o juízo da recuperação judicial deve fazer o controle de essencialidade de bens a fim de autorizar ou não a realização de penhoras ou de qualquer ato de excussão judicial proveniente de outros juízos e relativos aos créditos extraconcursais/não sujeitos, inclusive créditos fiscais ou mesmo com origem posterior ao ajuizamento da recuperação judicial. Portanto, se o STJ entende que mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos, não se pode admitir que a realização do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial, por qual razão se daria interpretação mais favorável aos credores com cessão fiduciária títulos ou recebíveis (tendo em conta que credores fiduciários são relativamente impactados pela recuperação judicial como explicado acima)? Tudo isso fundamenta a conclusão de que a melhor interpretação que se deve dar ao art. 49, §3º da lei 11.101/05 é aquela que equilibra o exercício do direito do credor fiduciário com a preservação da empresa e a tutela de sua função social. Qualquer ativo que seja essencial à restruturação da empresa viável - seja bem de capital ou não - deverá ser preservado durante o período em que a devedora negocia um plano de superação da crise com seus credores. Poderá o magistrado, no exercício da divisão equilibrada de ônus, estipular uma indenização adicional em razão da retenção da garantia pelo devedor, conforme bem observado por Alberto Camiña, mas nunca será adequado permitir ao credor fruir da garantia em detrimento dos objetivos maiores do processo recuperacional. __________ 1 Thomas H. Jackson. The logic and limits of bankruptcy law. BeardBooks, chapter 1. 2 Além do fisco, cuja discussão fica reservada para outra oportunidade, mas que tem gerado problemas equivalentes. 3 COSTA, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. In: Bernardo Bicalho de Alvarenga Mendes (Org). Aspectos Polêmicos e Atuais da Lei de Recuperação de Empresas. 1 ed. Belo Horizonte. D'Plácido, 2016. V. 01, pág. 71/101 4 Vide nota 1, supra. 5 Insolvência em foco. 6 Nota 5, supra.
terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Bem de capital na recuperação judicial

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A lei 11.101/05, que dispõe sobre a recuperação judicial, organizou esse instituto de maneira cuidadosa e organizada e tratou de disciplinar a disputa entre os credores e o devedor em dificuldade econômico-financeira. Os credores, na corrida contra o tempo, pretendem, se livres forem, receber, cada um, em primeiro lugar, pois sabem que não sobrarão meios de pagamento para todos. O legislador conhece essa disposição dos credores. Por isso, a lei estabeleceu mecanismos de contenção desses credores, levando-os a certos comportamentos; a lei, na verdade, retira de todos os credores o poder de excutir o patrimônio do devedor, conduzindo-os à negociação destinada à reestruturação da dívida. A lei desarma, ainda que momentaneamente, os credores na luta contra o devedor, pois as execuções são todas suspensas. A suspensão das execuções e das ações decorre da lei e não de ato judicial. Trata-se de efeito ope legis do despacho de processamento. Em nosso sistema, nem todos os credores estão submetidos ao processo de recuperação judicial. A fazenda pública, no que toca aos créditos tributários, e, basicamente, os credores que se enquadrarem nos §§ 3º e 4º do art. 49, estão excluídos dos efeitos do processo de recuperação, no sentido de que o crédito por eles titularizados não sofre a suspensão das execuções; nem ações novas estão impedidas de serem ajuizadas. Todavia, mesmo os credores excluídos do processo de recuperação são convocados a oferecer sua parcela de contribuição para a reorganização do devedor. Muito embora as execuções desses credores extraconcursais não sejam suspensas, nem seja obstada a distribuição de novas execuções, por determinado período de tempo alguns bens não podem ser expropriados ou, de alguma forma, retirados da posse do devedor. Essa previsão está contida na parte final do § 3º do artigo 49 da lei 11.101/05, alvo de considerável discussão jurisprudencial. Segundo tal dispositivo, o credor que for proprietário de bens em garantia fiduciária, credor com bem objeto de arrendamento mercantil, ou o credor promitente vendedor de imóvel, não se submete à recuperação judicial, "não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". A discussão que se estabeleceu na prática envolve a abrangência da expressão "bens de capital", e é esse o ponto examinado nesta coluna. A lei, além de se referir a bem de capital, ainda o revestiu da nota de essencialidade, que cumpre observar também. Bem classificado como bem de capital está temporariamente fora do alcance do processo de execução ou de uma ação de busca e apreensão. Os bens de capital, na hipótese, são de propriedade de terceiros e estão no uso do devedor em recuperação judicial. Não obstante a propriedade seja alheia, restringe-se a posse do bem. No prazo de suspensão das ações e execuções, não permite a lei a venda ou a retirada do bem do estabelecimento do devedor. Com isso, embora não seja dono, o devedor em recuperação continua usando o bem alheio. Há uma clara compressão do direito de propriedade, que não pode ser exercido em sua integralidade, com a agravante de que a lei não prevê nenhum ressarcimento pelo não gozo da coisa pelo proprietário. Por certo a função social da propriedade seria invocada para legitimar, sob o aspecto constitucional, tal uso da coisa pelo não-dono, especialmente no contexto de recuperação judicial, em que todos os credores veem a compressão dos respectivos direitos, sendo certo que o direito de crédito também é elemento do direito de propriedade. É certo, também, que o prazo pelo qual o devedor pode usar a propriedade alheia é de 180 dias, que é o prazo do stay. Nesse prazo instituído por lei o proprietário é obrigado a suportar o uso de seu bem por parte de um terceiro, sem nenhuma previsão legal, como já dito, de ressarcimento por não poder gozar da coisa, e, para piorar, a jurisprudência tem admitido o alargamento desse prazo de suspensão(desde que por razões não atribuíveis ao devedor), o que comprime ainda mais o direito de propriedade. O dono, então, passa a pacientar a impossibilidade de gozo de um direito constitucionalmente assegurado, sofrendo suspensão do seu direito de propriedade por um período superior ao que a lei prevê. Esse uso vantajoso de bem alheio deve ser indenizado? Afinal de contas, tratando-se de bem de capital, está ele sendo usado para a produção de outros bens e, então, o devedor está obtendo clara vantagem patrimonial com base em bens de propriedade de terceiros. Há claro enriquecimento do devedor em detrimento do proprietário. Desfalcar o proprietário de capital de auferir renda que o bem pode lhe proporcionar ofende o direito de propriedade. É plausível, portanto, a indenização ao proprietário; o uso do bem alheio após o vencimento do prazo instituído em lei, por certo representa aguda obtenção de vantagem à margem da previsão que o legislador entendeu como razoável, como legítimo sofrimento do proprietário. A indenização não nasce após o vencimento do prazo do stay. Ela apenas torna-se mais ostensiva e gravosa. Para além da questão da indenização, a noção de bem de capital precisa ser colocada em evidência. Trata-se de expressão própria da seara econômica. No estudo dos fatores de produção, ou agentes de produção, três elementos são decisivos, o trabalho, a terra e o capital. Já os economistas clássicos discorreram sobre esses fatores. A terra e o trabalho são os fatores originários, e o capital é derivado da terra e do trabalho. As noções de trabalho e terra são até intuitivas, e a noção de capital é mais delicada. O § 3º do art. 49 utiliza-se da noção de capital no sentido de fatores da produção, e os economistas divergem sobre o alcance da expressão. Para um autor contemporâneo, "os economistas usam o termo capital para se referir ao estoque de equipamentos e estruturas usados para a produção. Ou seja, o capital da economia representa o estoque de bens produzidos no passado que está sendo usado no presente para se produzirem novos bens e serviços. No caso da nossa empresa produtora de maçãs, o estoque de capital inclui as escadas usadas para subir nas macieiras, os caminhões usados para transportar as maçãs, os galpões usados para armazenar as maçãs e até as próprias macieiras"1. Nessa mesma linha outro professor diz que "O termo 'capital' usualmente tem diferentes significados, inclusive na linguagem comum é entendido como 'certa soma em dinheiro'. Todavia, o conceito a ser apreendido aqui é: 'capital é o conjunto (estoque) de bens econômicos heterogêneos, tais como máquinas, instrumentos, terras, matérias-primas etc, capaz de reproduzir bens e serviços'"2. No Novíssimo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni, bens de capital recebeu a seguinte definição: "São bens que servem para a produção de outros bens, especialmente os bens de consumo, tais como máquinas, equipamentos, material de transporte e instalações de uma indústria. Alguns autores usam a expressão bens de capital como sinônimo de bens de produção; outros preferem usar esta última expressão para designar algo mais genérico, que inclui ainda os bens intermediários (matéria-prima depois de algumas transformações, como, por exemplo, o aço) e as matérias-primas". Para alguns autores, portanto, há um gênero, que são os bens de produção, dos quais os bens de capital são espécie, ao lado das matérias-primas, que podem ser compreendidas como insumos. A lei incorpora, sem sombra de dúvida, a noção econômica de bens de capital, e, de plano, já surge a discussão sobre a interpretação restritiva ou ampliativa da expressão. Dir-se-ia, por um lado, que a lei de recuperação está voltada à reestruturação da dívida da companhia, e, então, para alcançar essa finalidade, a interpretação seria sempre teleológica e ampliativa. Outra interpretação possível seria a restritiva. Como se trata de norma excepcional, uma norma que comprime o direito de propriedade, não se poderia lançar mão de uma interpretação ampliativa acerca da parte final do § 3º do art. 49; uma mesma lei pode conter dispositivos que levem a interpretação ampliativa e outros que levem a interpretação restritiva, que, na hipótese, é a aconselhável. A jurisprudência, à falta de uma clara diretriz, ainda não está consolidada. Por exemplo. A Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP decidiu que a soqueira não é bem de capital de uma usina de açúcar e álcool. Após o corte da cana de açúcar, a raiz que sobra, um palmo para cima da terra e um palmo para baixo da terra, recebe o nome de soqueira, que tem valor, pois dele vem a rebrota da cana. A seguirmos o exemplo do pé de maçã, dado por Gregory Mankiw, parece que a soqueira é bem de capital, pois, após o corte da cana de açúcar, ela não segue com o produto. Ela permanece na terra e pode ser usada na safra seguinte; é um instrumento de certa permanência entre os meios de produção da usina. Há um critério utilizado pela doutrina jurídica para a definição de bem de capital, que pode ser bastante útil para a compreensão do problema. Prestigiado autor escreveu que "insumos e bens de capital assemelham-se sob o aspecto de que servem para criar outros bens econômicos e não são fontes de fluxos de serviços de consumo utilizados diretamente como meio para alcançar objetivo, mas diferem sob o aspecto do período de aplicação no processo produtivo: os insumos participam de um único ciclo operacional, porque destruídos ou transformados na produção, e os bens de capital, embora não sejam perpétuos (estão sujeitos a desgaste, a obsolescência), têm prazo de vida útil superior à duração de um ciclo operacional"3 (sem grifo no original). Referido autor funda-se no ciclo operacional para estabelecer a distinção entre bens de capital e insumo (sem entrar aqui na discussão sobre o significado de insumo). Trata-se de um critério prático, de fácil emprego na prática. Sob outra ótica, pode-se falar em bens intermediários e bens finais. A farinha é um bem intermediário, e o pão o bem final. A linha é um bem intermediário, e a blusa é o bem final. O leite é um bem intermediário, e a vitamina produzida pela lanchonete é o bem final. Ocorre que, além da farinha, da linha e do leite, outros bens são utilizados para a realização do produto final. E aqui surge a seguinte diferença: alguns bens seguem com o produto final, e outros permanecem com o produtor. O cilindro, a máquina de costura e o liquidificador permanecem com o produtor. E aqui surge a distinção entre bens intermediários e bens de capital. Os primeiros seguem com o produto final, e os segundos apenas se desgastam4. Não se pretende definir o que é bem de capital. Para a solução dos problemas práticos, é importante considerar que o bem dado em garantia, para ser considerado bem de capital, deve servir a mais de um ciclo operacional, e, ao seu final (do ciclo), ele deve permanecer com o possuidor, e estar apto a ingressar em outro ciclo operacional; o bem de capital não segue com o produto final e deve estar apto a ser devolvido para o proprietário caso o inadimplemento fique patenteado. Com isso, afasta-se da noção de bem de capital o estoque e a matéria-prima. O assunto já foi apreciado pela jurisprudência, e parece que ainda não está definitivamente consolidado. Soja e milho são bens de capital de uma empresa do agronegócio? Tais produtos foram dados em garantia de dívida, que, inadimplida, e estando a devedora em recuperação judicial, foram objeto de arresto. A devedora suscitou conflito de competência no STJ, que discutiu se esses bens eram ou não bem de capital. Para a Ministra Maria Isabel Gallotti, "estoque e, portanto, mercadorias destinadas à venda, não podem ser compreendidas como bem de capital, precisamente porque, uma vez vendidas, ficaria inteiramente sem objeto a garantia fiduciária, dado que os bens alienados, obviamente, não poderia ser entregues, ao final do stay period, ao titular da propriedade resolúvel. Isso implicaria, renovada vênia, venda a non domino, com a chancela judicial...". "Os títulos de crédito dados em alienação fiduciária sequer estão na posse direta do devedor e, muito menos, são bens utilizados como insumo de produção". Dinheiro e commodities não são bens de capital, reconheceu a julgadora. Considera o voto da relatora: "tenho que, por bem de capital, deve-se compreender aqueles imóveis, máquinas e utensílios necessários à produção. Não é, portanto, o objeto de comercialização da pessoa jurídica em recuperação judicial, mas o aparato, seja bem móvel ou imóvel, necessário à manutenção da atividade produtiva, como veículos de transporte, silos de armazenamento, geradores, prensas, colheitadeiras, tratores, para exemplificar alguns que são utilizados na produção dos bens ou serviços". Embora seguido por outros dois, esse voto não prevaleceu. Orientou-se a seção de direito privado do STJ no sentido de que o conflito de competência não é veículo adequado para decidir se determinado bem pode ou não ser considerado bem de capital. O conflito apenas decide sobre competência. Prevaleceu o voto do ministro Luis Felipe Salomão, que, sobre bem de capital, adiantou o seu pensamento: "é factível que mesmo os insumos incorporados aos produtos fabricados ou comercializados ou a matéria-prima objeto de comercialização no agronegócio possam ser passíveis de enquadramento na ressalva legal, inserindo-se no conceito de bem de capital". A prevalecer a orientação emanada do Conflito de Competência 153.473, só por meio de recurso especial o assunto poderá ser examinado pelo STJ; como a questão é eminentemente fática, fica a questão sobre a aplicação da Súmula 7 e a chamada jurisprudência defensiva. Seja como for, pouco tempo após o julgamento desse conflito de competência, o STJ julgou o RESP 1.758.746, que discutiu a caracterização da trava bancária como bem de capital. Ao rejeitar tal possibilidade, a decisão conceituou: "De todo o exposto, para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period". Essa definição é útil, pois, o bem não deve ser consumível e deve ser apto a ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao final do stay. Essa noção, claramente, afasta a matéria-prima como bem de capital. Afinal, a matéria-prima esgota-se em um ciclo produtivo, e, por isso mesmo, não pode ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao fim do prazo de suspensão da ação. Não se pode dizer que essa decisão, da 3ª Turma do STJ, vai prevalecer, pois ao menos um integrante da 4ª Turma já se pronunciou em sentido contrário. Esse precedente da 3ª turma encarece ainda o seguinte aspecto: é preciso, em primeiro lugar, definir se o bem objeto da controvérsia é ou não bem de capital. O passo seguinte é a verificação de essencialidade. A verificação da qualidade de bem de capital não deve ser feita abstratamente, senão que com os olhos postos na atividade efetivamente desenvolvida pela empresa, sem descurar da conexão com o contrato/estatuto social5 e à luz da concreta utilidade do bem no processo produtivo. Bem que, em tese, pode ser de capital para uma empresa, não o será para outra. Por exemplo, o TJ/SP decidiu que um veículo Kombi não é essencial à atividade usineira. Não significa que para uma empresa de transporte de coisas, ou mesmo de pessoas, não o seja. Reconheceu-se que prensa e empilhadeiras são bens de capital em empresa de estamparia; para outro tipo de atividade esses bens não necessariamente serão de capital. Impressora foi reconhecida como bem de capital de uma gráfica; já para outro tipo de atividade, a impressora poderá não ser bem de capital, por mais essencial que possa ser para o bom andamento dos trabalhos. Equipamento para rastreamento de veículos, em caso de recuperação judicial de uma transportadora, foi considerado bem imprescindível à "proteção do patrimônio essencial das recuperandas", em aplicação analógica do artigo 92 do Código Civil, que trata dos bens principais e acessórios. Estando o bem principal protegido da excussão, também estará o bem acessório. Essa interpretação alargada tem apoio na lei civil. Para finalizar, cabe o registro de que o ônus de provar a essencialidade do bem é do devedor. Não deve ser admitida a presunção de essencialidade de todos os bens que se encontrem no estabelecimento do devedor em recuperação judicial. Para a lei 11.101/05, existem bens essenciais, que o devedor pode reter sob seu poder por determinado período, e os bens não essenciais, de livre constrição e apreensão. A se presumir a essencialidade, tudo estaria protegido, e nada poderia ser retirado, o que afastaria qualquer eficácia do comando legal, e se chegaria a um resultado interpretativo absurdo; a lei jamais teria aplicação. Em conclusão, para a aplicação da ressalva constante da parte final do §3º do artigo 49 da lei 11.101/05, o operador do direito deve, em primeiro lugar, verificar se se trata de bem de capital. Para tanto, deve verificar se o bem tem vida útil superior à de um ciclo operacional e se ele segue ou não com o produto final. Se não se tratar de bem de capital, está prejudicada a análise da essencialidade. Em segundo lugar, e assentada a premissa de que se trata de bem de capital, verifica-se a essencialidade do bem para o funcionamento da empresa. É ônus do devedor demonstrar a essencialidade do bem para a atividade que desempenha. __________ 1 N. Gregory Mankiw, Princípios de microeconomia. Trad, da 3ª ed. norteamericana. São Paulo: Thomson, 2005, p. 404. 2 Juarez Alexandre Baldini Rizzieri, Manual de Economia - Equipe de Professores da USP, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22. No glossário dessa obra, parece que a noção de bem de capital é mais restrita: "bens utilizados na fabricação de outros bens, mas que não se desgastam totalmente no processo produtivo. É o caso de máquinas, equipamentos e instalações". Sem grifo no original. Por essa noção, a matéria-prima está excluída da noção de bem de capital. 3 José Luiz Bulhões Pedreira, no livro Demonstrações financeiras da companhia, Forense, 1989, p. 189. 4 Exemplos colhidos do livro de Maura Montela, Descomplicando a Economia, 2ª ed. São Paulo: Clube dos Autores, 2016, p. 31-32. 5 Já se decidiu que "AGRAVO DE INSTRUMENTO. Recuperação judicial. Bens vinculados à alienação fiduciária, ao arrendamento ou à reserva de domínio não se submetem aos efeitos da recuperação. Bens de capital essenciais à atividade da agravante. Suspensão do processo pelo prazo de 180 dias (art. 6º, §4º e art. 49, §3º, da lei. 11.101/2005). Essencialidade examinada a partir do objeto social da recuperanda. Manifestação favorável do administrador judicial. Suspensão da execução extrajudicial até o término do stay period do art. 49, §3º, da lei 11.101/05. Recurso provido. (TJ/SP; AI 2252251-21.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Ribeirão Preto - 8ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 9/6/2017; Data de Registro: 9/6/2017). 
terça-feira, 20 de novembro de 2018

A (in)eficiência da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A lei de recuperação de empresas e falência, lei 11.101/05, consagrou a empresa como importante instrumento de política pública e de desenvolvimento econômico nacional. Separada do conceito de empresário, a empresa, concebida juridicamente em seu perfil funcional como atividade econômica, foi elevada a fim para a tutela dos interesses de todos os por ela afetados. Sua preservação assegura não apenas os interesses dos credores na maior satisfação de seus créditos, mas também dos empregados na manutenção de seus postos de trabalho, dos consumidores com a redução de preços e aumento da concorrência, e da coletividade em que inserida em virtude da manutenção dos contratos e da circulação de riqueza. Diante de crise econômico-financeira que acomete o empresário devedor e que poderá ser apenas temporária e reversível, a Legislação conferiu a recuperação judicial como alternativa ao empresário para superá-la. Para que não se estimulasse o comportamento oportunista do credor em resistir à composição individual para obter todas as vantagens da restruturação da dívida enquanto os ônus fossem suportados por apenas alguns credores, o instituto da recuperação judicial foi criado como uma forma de permitir a negociação coletiva com todos os credores. Essa negociação coletiva somente poderia ser realizada mediante a criação de um ambiente favorável a tanto. Os custos de transação foram reduzidos, com o controle da simetria informacional por meio do administrador judicial; desestimularam-se os comportamentos oportunistas dos credores, com a determinação de suspensão de todas as ações e execuções em face da recuperanda por 180 dias; e organizou-se o processo de negociação com o estabelecimento de uma Assembleia Geral de Credores e quóruns de votação. Entretanto, a recuperação judicial, com a manutenção do empresário devedor na condução de sua atividade, nem sempre será o melhor para a proteção dos interesses públicos a que o instituto foi destinado. Os problemas que causaram a crise econômica do devedor podem não ser transitórios ou superáveis, mas poderão ser decorrentes de uma ineficiência do empresário, de falhas gerenciais ou da inadequação dos produtos ou serviços às necessidades dos consumidores. Nessa situação de inviabilidade da condução da atividade econômica conforme plano de recuperação judicial, a falência poderá ser economicamente mais eficiente à proteção de todos os interesses. A atividade econômica poderá ser preservada por meio de sua transferência a outro empresário que a desenvolva de forma mais eficiente. A liquidação dos ativos na falência permitiria a diverso empresário adquirir o conjunto de ativos para desempenhar a atividade, com a melhor alocação dos diversos fatores de produção. Se inadequada a atividade à demanda do mercado, mesmo a liquidação separada dos ativos permitirá melhor alocação dos recursos escassos, simplesmente por meio do aproveitamento dos bens úteis em finalidade diversa e que melhor os aproveite. A concessão de uma recuperação judicial de um empresário com atividade econômica inviável apenas acarretaria maior perda de valor a todos os envolvidos. A manutenção de uma atividade ineficiente consome os recursos escassos. O não adimplemento dos contratos permite ganho de vantagem competitiva em relação aos demais, com prejuízos à livre concorrência. O não recolhimento de impostos impede a destinação de recursos pelo Estado à mitigação dos problemas sociais e e benefício da coletividade em que a empresa atua. Por fim, a não retirada do agente econômico deficitário ainda implica aumento do risco do crédito, com redistribuição dos referidos custos a todos, mas notadamente aos empresários mais necessitados e com maior possibilidade de inadimplemento, o que reduz a possibilidade de sucesso mesmo das recuperações judiciais de atividades econômicas viáveis e afeta os próprios postos de trabalho que se procurava, num primeiro momento, preservar. A experiência do decreto-lei 7.661/45 e que atribuiu ao Judiciário o poder de preservar a atividade e assegurar a proteção dos interesses de todos os afetados, mediante a concessão da concordata ao comerciante de boa fé, revelou-se um fracasso. A falta de estrutura adequada para se aferir a viabilidade da atividade desenvolvida pelo devedor, a assimetria informacional e a onerosidade para obtê-la fizeram com que o Judiciário resolvesse os danos aos interesses apenas imediatamente perceptíveis, descurando dos efeitos de longo prazo. A concordata revelou-se, assim, um mecanismo comumente utilizado pelos devedores com atividades inviáveis para prosseguirem atuando, mesmo com agravamento da crise e deterioração do patrimônio garantidor dos credores. Diante desse cenário, a alocação do poder pela lei 11.101/05 foi realizada de forma a concentrar a decisão da viabilidade ou não da atividade do empresário devedor naqueles que sofreriam todos os seus efeitos imediatos. Os credores obteriam todos os benefícios de uma decisão correta e suportariam todos os custos de eventual insucesso imediatamente com a redução do patrimônio do devedor e, por consequência, do montante de adimplemento de seus créditos. Teriam, assim, os maiores incentivos econômicos a tomarem a decisão mais consciente. A tutela dos interesses dos terceiros, ainda que sem voto na Assembleia Geral de Credores, não é contrária à alocação exclusiva do poder aos credores. Ao tutelar seu interesse patrimonial na satisfação de seus créditos, esses credores assegurariam a recuperação judicial apenas dos empresários com atividades econômicas viáveis e garantiriam a decretação da falência e o melhor aproveitamento dos recursos dos demais, com benefício a todos. Isso significa que os objetivos pretendidos pela lei 11.101/05 estão sendo efetivamente alcançados? Os interesses de todos os afetados estão sendo realmente protegidos? Faltam maiores estudos jurimétricos sobre o cumprimento dos planos de recuperação judiciais e sobre a continuidade do desenvolvimento da atividade empresarial pelo devedor. A ampla quantidade de pedidos de aditamentos de planos de recuperação judiciais, o aumento do rating pelas instituições financeiras em face dos empresários em recuperação judicial, a dificuldade de obtenção de novos financiamentos da atividade empresarial e a rotineira previsão de alienação de unidade produtivas nos planos de recuperação judicial, entretanto, apontam para uma resposta negativa. Mas se o instituto aparentemente não preserva o desenvolvimento da atividade empresarial pelo empresário devedor, por que os credores têm aprovado (segundo dados obtidos pelo Observatório da PUC-SP em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria, 79,8% dos processos têm o plano de recuperação judicial aprovado pelos credores) planos de recuperação judicial de atividades econômicas sabidamente inviáveis? Uma das possíveis explicações a tanto é a incorreção dos incentivos legais. Ainda que a recuperação judicial seja, em geral, pior para o interesse de todos os afetados pela atividade inviável, poderá ser mais conveniente para os interesses apenas de uma parte da coletividade de credores e que se sujeita à recuperação. Para apenas indicar alguns, o primeiro desses incentivos equivocados pode ser apontado como o tratamento dos créditos tributários pela Lei, assim como sua dispensa de satisfação ou de equacionamento pela jurisprudência por ocasião da concessão da recuperação judicial. Como os créditos tributários não se sujeitam à recuperação judicial, mas apenas à falência, e não há na recuperação judicial obrigação de pagamentos prioritários conforme ordem legal de preferência, todos os créditos menos privilegiados que os tributários teriam incentivo a aprovar plano de recuperação judicial sabidamente inviável para terem a perspectiva de receberem mais do que na falência. Por seu turno, mesmo os credores com garantia real e que, portanto, receberiam tratamento falimentar mais benéfico aos créditos tributários poderão ter incentivos em aprovar planos de atividades econômicas inviáveis. Como as garantias dos coobrigados do devedor, avais e fianças de terceiros, não se sujeitam à recuperação judicial do empresário, referidos credores poderão concordar com pagamentos desprezíveis ou muito arriscados previstos no plano de recuperação, ainda que em detrimento de toda a coletividade de credores, desde que obtenham maior satisfação por esses terceiros. Dessa forma, embora tenha ocorrido notório avanço nacional na disciplina da insolvência, com o deslocamento do poder decisório aos credores, enquanto não se alterar a estrutura legal de modo a permitir que os credores efetivamente apreciem se a recuperação judicial é melhor do que a falência a todos, continuar-se-á a privilegiar o devedor e apenas alguns credores, em detrimento dos interesses públicos e da própria credibilidade do instituto da recuperação judicial.
terça-feira, 23 de outubro de 2018

Disposições iniciais do projeto de lei 10.220/18

Texto de autoria de Paulo Furtado É louvável a positivação dos objetivos da nossa legislação de insolvência, por meio da inclusão do art. 2º-A à lei 11.101/2005.No PLC 71/2003, relatado pelo senador Ramez Tebet, já haviam sido estabelecidos os objetivos da futura Lei 11.101/2005, que viria a substituir o Decreto-lei 7661/45: 1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Caso tais objetivos houvessem sido positivados em 2005, como agora se pretende, a invocação indiscriminada do art. 47 da lei 11.101 certamente teria sido muito menor, pois quem milita na área sabe que os intérpretes recorrem "ad nauseam" ao princípio da preservação da empresa para sustentar a manutenção de empresas que não mais reúnem condições de prosseguir no mercado e que deveriam falir, sem prejuízo de seus ativos serem rapidamente arrecadados, alienados e novamente empregados por outros empresários.No projeto de lei 10.220/2018, são claramente estabelecidos os seguintes objetivos da nossa legislação de insolvência, por meio da inclusão do art. 2o-A à Lei 11.101/2005: 1 - preservação de empresas viáveis ("devedor viável"); 2 - liquidação de empresas inviáveis (por meio do processo de falência); 3 - preservação dos ativos (e "realocação eficiente de recursos na economia"); 4 - fomento ao empreendedorismo ("retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica"); 5 - preservação e estímulo ao mercado de crédito.Mas não basta enunciar objetivos. Eles somente serão atingidos se previstos os meios adequados para a sua consecução e se os intérpretes das normas pautarem sua atuação de acordo com os objetivos positivados. Como os intérpretes finais destas normas são os juízes, nenhuma legislação de insolvência terá seus objetivos alcançados sem contar com uma magistratura com condições materiais e humanas de bem aplicar a lei.Nesse sentido, é positiva a ideia de juízos regionais especializados em falências e recuperações, pois ao longo do tempo tendem a aplicar a legislação de forma mais rápida e adequada, desenvolvendo os meios mais eficientes à obtenção dos resultados buscados pelo legislador. Porém, não se pode esquecer que o Brasil é uma República Federativa e que os Estados têm competência para disciplinar sua organização judiciária, de modo que a imposição de regionalização e de competência concentrada na Comarca da Capital, como se pretende introduzir com os parágrafos 1o. e 3o. do art. 3º., suscita discussão quanto à sua inconstitucionalidade.Embora nas capitais estejam os processos de insolvência mais complexos - o que resulta, ao longo do tempo, em maior experiência dos juízes destas comarcas -, não se pode exigir que um Estado da Federação adote um único critério econômico para instituir juízo especializado em insolvência (passivo superior a 300.000 salários mínimos) e fique impedido de considerar outros aspectos que considerar relevantes (número de empregados, arrecadação tributária etc).Outro aspecto do projeto que suscita debate diz respeito à competência atribuída ao Conselho Nacional e Justiça (CNJ) pelo teor do art. 3º-A e parágrafos. De acordo com esse dispositivo, o CNJ poderá realizar avaliação sobre a distribuição de competência em matéria falimentar, o que é positivo. Porém, sua atuação deverá ser compatível com a autonomia dos Estados na sua organização judiciária.O CNJ poderá realizar pesquisas para avaliar os resultados, atuando para melhorar a aplicação da lei no âmbito judicial, recomendando o aperfeiçoamento da estrutura material e funcional existente (mais ou menos juízos especializados, quadro mínimo de servidores por processo etc). Porém, a Constituição Federal não atribuiu ao CNJ competência para formação e aperfeiçoamento de juízes, como consta do projeto de lei. Esta relevante atribuição é reservada à Escola Nacional de Formação e de Aperfeiçoamento dos Magistrados (ENFAM), que funciona junto ao Superior Tribunal de Justiça e atua em conjunto com as Escolas Estaduais de Magistratura. O CNJ e a ENFAM têm atuações complementares, ao passo que o projeto de lei contém norma que parece concentrar atribuições em um único órgão, em desacordo com a Constituição Federal. Em resumo, a incorporação dos objetivos da nossa legislação de insolvência ao Direito Positivo merece apoio, assim como é salutar a especialização de juízos como instrumento adequado para que tais objetivos sejam alcançados, respeitadas a autonomia dos Estados na sua organização judiciária, bem como da ENFAM e das Escolas Estaduais de Magistratura nos cursos de formação e aperfeiçoamento dos juízes.
Texto de autoria de Luiz Dellore e Andressa Borba Pires Introdução O procedimento da recuperação judicial (RJ) é bastante distinto do procedimento comum, como já destacado em coluna anterior1. Mas, dentro do procedimento recuperacional, algo consideravelmente específico e que não encontra similar no processo civil brasileiro é a assembleia geral de credores (AGC). Considerando que o cerne do processo de RJ é a negociação do plano entre os credores e a empresa recuperanda, a AGC é considerada um ato de grande relevância para o processo, sendo a ocasião em que os credores deliberam sobre o plano de recuperação judicial apresentado. Ou seja, a AGC é um momento bastante relevante para a RJ. Mas a realidade mostra que a AGC em si não é o momento para as negociações: na prática, as efetivas negociações são prévias à AGC e restritas, ao menos quanto as classes II e III, aos maiores credores (que definem o resultado das deliberações nas respectivas classes). Assim - e a afirmação é feita sem qualquer juízo de valor, mas apenas narrando o que acontece na prática -, em regra as negociações para a aprovação do plano são limitadas a alguns poucos credores, tendo como escopo que sejam acomodados os interesses das maiorias necessárias à sua aprovação, ficando os demais credores como mero espectadores. O fato é que a AGC não acontece no fórum, não é presidida pelo juiz, pode se alongar por horas (ou por semanas ou meses) e tem toda uma dinâmica própria, desconhecida por muitos profissionais. E neste texto o que se busca é, exatamente, apresentar uma visão geral acerca dos aspectos mais relevantes de uma AGC, à luz da Lei de Recuperação e Falência (LRF, L. 11.101/2.005) e da prática do foro. Convocação da AGC A lei determina que a data designada para a realização da assembleia não excederá o prazo de 150 dias2 contados do deferimento do processamento da recuperação judicial (artigo 56 §1º, LRF). Mas a AGC sempre será realizada? Não necessariamente. Se a empresa em recuperação for microempresa ou empresa de pequeno porte que apresente plano especial disciplinado na Seção V da Lei (artigo 72, LRF), a recuperação judicial é concedida pelo juiz se atendidas as exigências legais. Todavia, se houver objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer das classes do artigo 83, LRF, é decretada sua falência. Fora disso, a AGC será convocada em algumas situações. A Assembleia pode ser convocada pelo (i) juiz nas hipóteses previstas no artigo 35 da LRF. Em suma, para deliberação sobre qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores, ou seja, sempre que julgar oportuna. No mais, a AGC pode também ser convocada pelo juiz (ii) a pedido de credores que representem pelo menos ¼ do valor dos créditos em determinada classe (artigo 36, §2º, LRF). Os credores podem, ainda, requerer sua convocação para deliberar sobre a constituição ou substituição de membros do Comitê de Credores (artigo 52, §2º, LRF). Além disso, a AGC também pode ser convocada pelo juiz (iii) a pedido do próprio Comitê de Credores3 (artigo 36 §3º, LRF). Mas a situação mais usual de convocação da AGC se dá para deliberar sobre o plano se ao menos um credor apresentar objeção ao PRJ (artigo 56, LRF), que pode ser de mérito (a ser discutido em AGC, podendo ensejar a apresentação de aditivo, pela recuperanda) ou versar sobre aspecto legal do plano (o que não é tratado na AGC, devendo ser apreciado pelo juiz). Se não houver objeção ao PRJ por nenhum credor, não haverá AGC e o plano será homologado pelo juízo, que exercerá apenas o controle de legalidade, ou seja, não apreciará o aspecto negocial ou as condições de pagamento nele contidas4. Em razão dessa mecânica, sob a perspectiva do credor, é sempre recomendável apresentar objeção, exatamente para possibilitar que o plano seja objeto de deliberação em assembleia. A realização da AGC envolve o custeio de algumas despesas que, a depender do porte da RJ, podem ser consideravelmente elevadas. Além dos custos com a publicação de edital, há o valor da locação e organização do espaço onde ocorrerá a AGC. Se o número de credores for pequeno, uma simples sala de reuniões em um escritório de advocacia ou hotel já pode ser suficiente; porém, há casos de AGCs realizadas em clubes, centros de convenções e até em ginásios esportivos. As despesas de convocação e realização da AGC são suportadas pela recuperanda, se convocada pelo juízo. São, todavia, suportadas pelos credores, se convocada a seu pedido ou a pedido do Comitê de Credores (artigo 36 §3º, LRF). Os credores devem ser convocados da realização da Assembleia por meio de publicação de edital, com antecedência mínima de 15 dias. A publicação é feita no órgão oficial (DJE) e em jornais de grande circulação nos locais da sede e filiais da recuperanda, sendo afixada cópia do edital nessas localidades (artigo 36, LRF). No edital de convocação devem constar informações que possibilitem ao credor conhecer o local, data e hora da assembleia, ordem do dia e local para obtenção de cópia do plano (artigo 36, LRF). Esta última exigência se mostra de pouca aplicabilidade atualmente, nos locais em que há processo eletrônico e o PRJ pode ser facilmente acessado pela internet. No edital serão indicadas duas datas para a AGC -primeira e segunda convocações -, com um intervalo mínimo de 5 dias entre ambas (artigo 36, I, LRF). Procedimentos prévios à AGC: Credenciamento, presença e instalação O credor poderá votar pessoalmente ou ser representado na AGC por mandatário ou representante legal. Ou seja, o credor pode, pessoalmente, manifestar-se nos debates e deliberar na AGC, tendo direito a voz, no momento dos debates. Não há necessidade de se fazer representar por advogado (não há necessidade de capacidade postulatória, por não ser um ato efetivamente judicial), o que corrobora o espírito da Lei, de privilegiar a negociação em detrimento do formalismo. Assim, poderão se pronunciar e debater na Assembleia os diferentes atores envolvidos: o trabalhador da recuperanda, o fornecedor, o negociador do banco credor, o consumidor, o advogado etc. Nesse sentido, o ambiente de uma AGC é extremamente democrático, muitas vezes existindo, na mesma assembleia, a manifestação de um trabalhador humilde e do credor financeiro internacional. Caso o credor seja representado por mandatário ou representante legal, há um procedimento burocrático prévio a se observar: deve ser entregue o documento que comprove seus poderes, ao administrador judicial, até 24h antes da data da Assembleia (artigo 37 §4º, LRF). Essa regra se aplica também aos credores pessoas jurídicas, que devem, portanto, realizar o credenciamento com antecedência, para garantir o direito de voto. Assim, não é possível apenas no dia da AGC apresentar a procuração - o que por vezes advogados não acostumados às AGCs costumam pleitear, em regra sem êxito. O credor trabalhista ou titular de crédito decorrente de acidente do trabalho também pode ser representado pelo sindicato da categoria profissional, desde que conste na relação de associados apresentada ao administrador judicial até 10 dias antes da AGC. No dia da Assembleia, o credor ou seu mandatário/representante legal devem comparecer na hora designada para a instalação ou em horário prévio indicado no edital, para assinatura da lista de presença. Esse cadastramento em horário prévio é comum em recuperações judiciais maiores, que possuem um número grande de credores concursais e ouvintes, de forma a evitar filas, tumulto e atraso na instalação da Assembleia. A lista de presença deve ser assinada até o momento da instalação da AGC, sob pena de o credor não poder votar na AGC. O rigor no controle de horário e a pontualidade da instalação da AGC dependem do administrador judicial. Assim, importante estar no local da assembleia antes do horário estabelecido no edital para sua instalação, de forma a evitar contratempos e o impedimento de votar. Há casos extremos de credores que chegaram poucos minutos após o momento de instalação e que são impedidos de votar. Isso, por óbvio, é uma absoluta falta de bom senso e apenas atravanca a AGC e a RJ - pois essa situação é de ser levada ao Judiciário que, possivelmente, afastará a rigidez exagerada e determinará a normal participação do credor5. Caso algum credor não tenha se habilitado no prazo de 24h ou tenha chegado à AGC após sua instalação, poderá pleitear perante o administrador judicial a participação como ouvinte, situação em que não terá direito a voto, nem participará das deliberações. Caso a AGC seja suspensa, o credor ouvinte poderá pleitear a participação na assembleia que será realizada em continuidade. No cotidiano, o que usualmente se verifica é que os administradores judiciais deleguem essa decisão ao Judiciário, ou seja, orientam ao credor a apresentar tal pedido em juízo, nos autos da recuperação judicial, sendo objeto de apreciação judicial. Em regra, diante da suspensão da AGC e comparecimento do credor, o Judiciário autoriza a posterior participação com voto, de modo a se verificar, da forma mais ampla possível, o interesse do conjunto dos credores - o que, afinal, é o objetivo da AGC. Mas é certo que o melhor seria isso ficar restrito ao âmbito da AGC e não ter de ser decidido pelo juiz. Convocada a AGC, apresentadas as procurações e assinada a lista de presença, passa-se à verificação de quórum. Em primeira convocação, é instalada se presente o quórum estabelecido na lei, ou seja, a presença de credores titulares de mais da metade dos créditos de cada classe. Na prática, poucas são as assembleias instaladas em primeira convocação. Em regra, as classes 1 e 4 (trabalhistas e microempresas) não atingem a maioria de créditos presentes nessa primeira convocação. Mas, ainda assim, por vezes há o quórum na primeira assembleia, de modo que o credor cauteloso - se não tiver certeza quanto à ausência de quórum - não deve confiar que a AGC não será instalada na primeira assembleia. Mas, não havendo o quórum na primeira assembleia, parte-se para a segunda convocação, em que a AGC será instalada independentemente do número de credores presentes. Presidência da AGC Em regra, o administrador judicial presidirá os trabalhos da assembleia e indicará como secretário um dos credores (artigo 37, LRF). Todavia, o presidente será o maior credor, caso exista incompatibilidade do AJ ou nas deliberações sobre seu afastamento. Assim, reitere-se, o juiz não estará presente nem presidirá a AGC. Cada AJ tem seu próprio "estilo" na condução dos trabalhos, o que reflete na diversidade de como são realizadas as AGCs nos processos de recuperação judicial. Alguns administradores, por exemplo, são mais rigorosos em relação a representação e horários de instalação da AGC (como visto no tópico acima); outros mais flexíveis. Alguns são mais rigorosos quanto à retomada dos trabalhos após uma suspensão momentânea; outros permitem a extensão "tácita" dessa suspensão (vide item abaixo). Alguns AJ presidem de forma mais ativa, realizando, inclusive, a inversão da ordem do dia; outros permitem à recuperanda, que em tese deveria apenas prestar esclarecimentos e aditivos ao PRJ, uma atuação mais incisiva. Ao AJ compete presidir e manter a ordem da AGC, além de disponibilizar lista de presença, compor a mesa (composta por presidente e secretário - qualquer dos credores ou membro da equipe do AJ, caso ninguém se ofereça), colher as declarações de voto e ressalvas, encerrar os trabalhos, lavrar a ata, promover a leitura aos presentes, colher a assinatura de dois representantes de cada classe, promover a juntada da ata e da lista de presentes aos autos, comunicando o resultado, dentre outras atribuições relacionadas à Assembleia. Votações na AGC: Aprovação do PRJ, suspenção da AGC e outros A AGC tem diversas atribuições, previstas no artigo 35 da lei 11.101/2005, podendo deliberar sobre qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores. Mas a principal delas, sem dúvidas, é a votação do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa em recuperação (sua aprovação, rejeição ou modificação). A ordem do dia constará do edital de convocação da AGC, devendo ser de conhecimento prévio do credor, para que possa estar preparado para as deliberações que serão realizadas na assembleia. Pela atual legislação6, os credores não podem impor uma modificação à devedora, ou seja, qualquer alteração do plano, ainda que sugerida pela maioria dos credores, deve ser aceita pela recuperanda. Na prática das RJs é bastante comum - e desgastante - a suspensão da AGC, de forma a possibilitar a continuidade das tratativas com credores. Isso quando ainda não há consenso para a aprovação do PRJ, mas também não há o objetivo, dentre os credores, em já negar o plano e levar a empresa à falência. Com a suspensão da AGC as recuperandas evitam que o plano seja deliberado precocemente e, dessa forma, seja rejeitado, provocando a convolação da RJ em falência. Essa suspensão pode ser para o mesmo dia (algumas horas depois) ou para outra data (alguns dias ou mesmo semanas ou meses); tudo a depender do acordo entre a recuperanda e credores, com auxílio do AJ. A suspensão tem de ser votada e aprovada pela maioria dos créditos presentes à AGC (artigo 42, LRF). É corriqueira, ainda, a sucessão de suspensões. Em alguns casos, essas suspensões chegam a somar mais de uma dúzia, como na recuperação judicial da Sete Brasil ou até mesmo quase três dezenas, como na RJ da OAS (entre AGCs para deliberação e para implementação do PRJ). Quando as suspensões são sucessivas, cada uma por algumas horas, a AGC pode se prolongar pela noite e madrugada. O que se percebe é que com esses adiamentos - seja no mesmo dia ou para posteriores datas - a Assembleia vai se esvaziando ao longo do tempo, permanecendo ou comparecendo apenas os principais credores. Afinal, há o custo do credor e de seu advogado de perderem dias de trabalho para comparecer a uma AGC que se prolonga por horas; sem falar nos gastos com deslocamento e hotel, quando se está diante de AGC realizada em comarca distinta do credor. Uma vez colhidos os votos dos presentes, o AJ verificará se houve aprovação ou rejeição do PRJ. Vale destacar que uma vez aprovado o PRJ na AGG e homologado o plano pelo juízo, se necessário a recuperanda poderá apresentar novo Plano, submetendo novamente à deliberação dos credores, em nova assembleia. É o que ocorre, por exemplo, em caso de dificuldade no cumprimento do PRJ pela empresa. Como exemplos, pode-se mencionar (i) a recuperação judicial do Grupo Mangels, que teve o plano aprovado em 2014 e aditivo ao plano aprovado em 2016, bem como (ii) o Grupo Renuka do Brasil, com planos apresentados em 2016, 2017 e 2018. A AGC também tem como atribuição a deliberação sobre o pedido de desistência da recuperação judicial. A aprovação do pedido, pela AGC, é requisito para que haja homologação judicial (art. 52, §4º, LRF). Há também, ao longo da LRF, outras hipóteses que devem ser objeto de deliberação na AGC. Como exemplos, (a) a indicação do gestor judicial, nas hipóteses excepcionais em que o devedor é afastado da administração da empresa (artigo 64, LRF) e (b) a deliberação sobre qualquer matéria de interesse dos credores no processo de recuperação judicial, como a deliberação sobre a venda de Unidade Produtiva Isolada (UPI), sobre a proposta vencedora no processo competitivo de alienação de UPI ou sobre o empréstimo DIP Finance. Credores com direito a voto A regra básica é que o voto do credor será proporcional ao valor do crédito, nas deliberações da AGC (artigos 38 e 42, LRF). Excepcionalmente, há o voto por cabeça nas classes 1 e 4, nas deliberações sobre o plano (artigo 45 §2º LRF). Apenas votam os credores concursais, não os extraconcursais ou quem ainda não foi reconhecido como credor. Importante ressaltar que a pendência de julgamento de impugnação de crédito não é motivo para cancelamento da Assembleia, nem para invalidação de seu resultado (artigo 39 §2º, LRF). Isso motiva que haja, muitas vezes, um contencioso em juízo para se definir quem e como votará em AGC. Mas, dadas as diversas possibilidades em relação a esse tema, o assunto será tratado em posterior texto. Conclusão Do brevemente exposto aqui, percebe-se como a AGC tem todo um procedimento próprio, dentro da recuperação judicial (que por sua vez já apresenta diversas peculiaridades processuais). Assim, importante que o profissional esteja ciente do que pode ocorrer em uma assembleia, para não ser surpreendido por aspectos procedimentos próprios das AGCs - existindo o agravante de que cada AJ pode apresentar uma condução diferenciada. Assim, o melhor é, no caso de eventuais dúvidas procedimentais acerca da AGC, sempre provocar o AJ por escrito acerca de determinado ponto para, com base nessas respostas, se necessário, acionar o Judiciário (antes ou após da AGC, a depender do problema que se tenha) para corrigir eventuais as falhas procedimentais. __________ Texto em coautoria: Andressa Borba Pires é graduada pela USP. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação judicial e falência. __________ 1 Para ter uma visão geral do procedimento de RJ. 2 A respeito da contagem de prazo - infelizmente, ainda algo polêmico no cotidiano forense, com decisões divergentes proferidas pelos tribunais - conferir texto anterior desta coluna. 3 Ainda que haja a previsão do Comitê de Credores na legislação, sua instalação não é algo que seja muito comum no cotidiano forense. 4 A respeito do controle do PRJ pelo juiz, sugere-se a leitura de texto anterior desta coluna. 5 Nesse sentido, conferir caso em que o TJSP entendeu ser exagerada a impossibilidade de credor votar em assembleia porque o preposto chegou 1 minuto atrasado à AGC. 6 Está em tramitação no Congresso projeto de nova lei de recuperação judicial e falência, sendo que diversos textos desta coluna já analisam o novo diploma - como, exemplificadamente, e, especificamente quanto ao credor poder apresentar PRJ.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa 1 - Qualificação profissional e princípios de atuação. A lei 11.101/05 estabelece que o administrador judicial deve ser preferencialmente profissional com conhecimento em direito, administração de empresas, economia ou contabilidade ou ser pessoa jurídica especializada. Segundo o projeto, o mais importante para a boa atuação do administrador judicial não é propriamente a formação acadêmica do profissional, mas sim a forma como a atividade deve ser desenvolvida. Mais importante do que a formação daquele que será o responsável pela administração judicial, será que o profissional tenha experiência comprovada e estrutura organizacional adequada ao desempenho adequado dessas funções. Assim, segundo o projeto, o administrador judicial será pessoa natural ou jurídica idônea, com experiência comprovada e estrutura organizacional adequada ao exercício das suas funções. E mais. Os juízes deverão dar prioridade na nomeação de profissionais que tenham recebido algum tipo de certificação profissional oferecida por entidade idônea. Isso porque, objetiva-se que a atuação do administrador judicial paute-se nos princípios da eficiência, da independência, da celeridade e da economia processual. Importante destacar a preocupação do projeto em reafirmar que a atuação do administrador judicial não deve ser vinculada à tutela dos interesses da devedora, nem dos credores. Sua atuação pauta-se pela independência. Além disso, deve o administrador judicial atuar com um agente eficaz para a realização dos objetivos do processo de recuperação judicial. Daí que sua atuação deve pautar-se na eficiência, na celeridade e na economia processual. 2- Funções comuns do administrador judicial O art. 22, I, da lei 11.101/05 traz as funções que devem ser desempenhadas pelo administrador judicial, tanto em processos de falência, quanto em processos de recuperação de empresas. O projeto manteve as funções originalmente previstas na lei, mas agregou algumas novidades. Inicialmente, vale destacar que a comunicação entre administrador judicial e credores pode ser feita de forma direta e por meio eletrônico (e-mail). O administrador judicial deve manter um site na internet com todas as principais informações do processo, a fim de garantir o acesso de todos aos dados do processo, conferindo transparência à sua atuação. A utilização da internet para comunicação e publicação de informações do processo são compreendidos pelo projeto como formas eficazes, mais econômicas e menos burocráticas de comunicação de atos e de contato dos credores com os atos do processo falimentar ou recuperacional. O projeto ainda explicita que caberá ao administrador judicial presidir as assembleias gerais de credores (AGC). Caberá também ao administrador judicial zelar pela regularização do passivo fiscal. No que tange a esse aspecto, é necessário cuidado para não carrear ao administrador judicial a responsabilidade pelo pagamento do passivo fiscal. No caso de recuperação judicial, deverá o administrador judicial alertar o juízo e os credores acerca da conduta fiscal da recuperanda, indicando a necessidade ou não de regularização fiscal. No que diz respeito à falência, a regularização fiscal identifica-se com o pagamento do passivo fiscal em obediência a ordem de prioridade legal, com observância das reservas de crédito fiscal. 3- Funções transversais do administrador judicial - mediação. A lei 11.101/05, no seu art. 22, I, II, e II, define quais são as funções a serem desempenhadas pelo administrador judicial na condução de um processo de insolvência empresarial (falência ou recuperação de empresas). A definição legal observa o fato de que o processo de insolvência empresarial é estruturado em duas linhas de trabalho paralelas e simultâneas. Por essa razão, devem ser chamadas de funções lineares do administrador judicial. Há a linha de trabalho que é utilizada em todo processo de falência e de recuperação judicial, que diz respeito à formação das listas de credores. Nessa linha de trabalho, a lei prevê quais são as funções desenvolvidas pelo administrador judicial para definir quem são os credores sujeitos ao processo concursal e quais são o valor e a natureza de seu crédito. Nas recuperações judiciais, deve o administrador judicial desempenhar as funções previstas no art. 22, inc. II, da lei 11.101/05 que são relacionadas à apresentação do plano de recuperação judicial, convocação da assembleia geral de credores, realização da assembleia, votação do plano e fiscalização do cumprimento do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores. Nas falências, deve o administrador judicial desenvolver atividades relacionadas à arrecadação de ativos, avaliação, venda e pagamento dos credores, que estão previstas no art. 22, III, da lei 11.101/05. Conforme já observado, essas funções regularas em lei buscam são as chamadas funções lineares do administrador judicial. Mas, além das funções lineares, o administrador judicial deve exercer outras funções que não estão expressamente previstas em lei, nem são relacionadas diretamente às linhas de trabalho já definidas em lei, mas que decorrem da interpretação adequada da lei. Deve-se garantir que o procedimento de insolvência atinja os seus objetivos com eficiência. Assim, na recuperação judicial, deve-se garantir a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial (geração de rendas, empregos, recolhimento de tributos, circulação de produtos, serviços e riquezas) através da criação de um ambiente transparente e de confiança, de modo a viabilizar a negociação entre credores e devedores de um plano de recuperação da empresa em crise. Já na falência, deve-se buscar garantir os mesmos valores, mas através da venda da empresa em bloco (preservando diretamente os empregos, rendas, tributos, circulação de produtos, serviços e riquezas) ou através da venda de ativos (permitindo que ativos vinculados à atividades improdutivas, passem a ser utilizados no desenvolvimento de outras atividades empresarias geradoras daqueles mesmos benefícios econômicos e sociais). Entretanto, esses objetivos somente serão atingidos, com eficiência, se o administrador judicial atuar de forma comprometida com o resultado do processo, exercendo funções que vão além daquelas expressamente previstas em lei e que perpassam simultaneamente as duas linhas de trabalho paralelas e simultâneas previstas para os procedimentos falimentares e recuperacionais. Essas novas funções do administrador judicial devem ser chamadas de funções transversais. É função transversal do administrador judicial agir verdadeiramente como auxiliar do juízo na condução do processo (e não como advogado que se manifesta nos autos mediante intimação). Assim, deve o administrador judicial estar em permanente contato com o magistrado, alertando-o de fatos e circunstâncias relevantes do processo, mesmo que não tenha sido intimado para tanto. Deve o administrador judicial fiscalizar o cumprimento dos prazos processuais por todos os agentes envolvidos no caso, alertando o juízo com a antecedência necessária para que as questões sejam decididas tempestivamente. Assim, não deve o administrador judicial aguardar que a serventia judicial certifique o decurso de determinado prazo e publique a referida certidão para somente depois disso requerer ao juiz a providência necessária ao bom andamento do feito. O atraso resultante da burocracia judiciária e do excesso de trabalho das serventias judiciais certamente impactará negativamente o resultado do processo. Por isso que o administrador judicial deve agir de forma a neutralizar esse atraso, antecipando ao magistrado a ocorrência esses fatos processuais relevantes e garantindo a tempestividade e a efetividade das decisões judiciais. Também é função transversal do administrador judicial atuar como mediador de conflitos entre credores e devedora. O acompanhamento muito próximo da evolução do processo pelo administrador judicial vai permitir que possa identificar os gargalos da negociação entre credores e devedora. Nesse sentido, poderá o administrador judicial, sempre mediante autorização e supervisão judicial, agir como um catalizador de consensos, mediando conflitos pontuais e permitindo que o processo atinja os seus objetivos maiores. Daí que poderá o administrador judicial requerer a realização de audiências com o juiz do feito ou mesmo sessões de mediação e conciliação. A atividade de fiscalização das atividades da empresa em recuperação judicial deve ser feita de forma a assegurar a transparência necessária ao sucesso das negociações entre credores e devedores. Daí que é função transversal do administrador judicial produzir relatórios consistentes de fiscalização da empresa, o que impõe a necessária conferência dos dados apresentados pela devedora. Nesse diapasão, por exemplo, não faz sentido que o administrador judicial, no exercício de suas funções fiscalizadoras, limite-se a colher os dados que lhe são fornecidos pela empresa e os repasse ao processo para conhecimento do juiz e dos credores. Deve o administrador judicial elaborar o seu relatório, conferindo os dados que foram fornecidos pela empresa devedora. O administrador judicial deve exercer função análoga a de auditor, na medida em que deverá conferir a base dos dados informados pela devedora, cotejando os dados com a realidade de atuação da empresa. Processos de insolvência empresarial são fundamentais para a economia do país, na medida em que o sucesso dessas ferramentas judiciais impactam diretamente na preservação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Assim, pode-se afirmar com segurança que a preservação dos empregos dos trabalhadores e da circulação de riquezas em geral dependem do funcionamento eficaz dos processos de recuperação judicial de empresas e também dos processos de falência. E o sucesso dos processos de recuperação judicial ou de falência de uma empresa está diretamente relacionado à atuação do administrador judicial que é nomeado pelo juiz para auxiliá-lo na gestão desses casos. Portanto, espera-se que os administradores judiciais exerçam suas funções com amplitude, lineares e transversais, comprometendo-se com o sucesso dos processos de insolvência e, dessa forma, colaborando para a superação da crise econômica que assola o Brasil. O projeto acolhe a percepção da existência de funções transversais do administrador judicial, relacionadas à interpretação adequada de suas funções e à necessidade de que sua atuação seja pautada pelo comprometimento com o resultado eficaz do processo, com a economia processual, com independência e profissionalismo. Percebe-se, assim, que o projeto identificou algumas funções transversais importantes do administrador judicial e as definiu expressamente como funções legais de atuação do administrador judicial. Nesse sentido, o projeto estabelece que é função do administrador judicial atuar como MEDIADOR DE CONFLITOS (art. 22, I, j). Essa função poderá ser exercida para resolução de questões pontuais que surjam durante o curso da recuperação judicial, envolvendo a negociação entre devedora e credores. Mas também poderá ser exercida no processamento e julgamento das impugnações de crédito, viabilizando um julgamento mais rápido e baseado no consenso, em benefício da efetividade do processo de insolvência. 4- Funções do administrador judicial na recuperação judicial O projeto preserva basicamente as funções do administrador judicial na recuperação judicial, que são relacionadas à fiscalização das atividades da recuperanda, com apresentação de relatórios mensais. Entretanto, o projeto estabelece que caberá ao administrador judicial, no exercício de sua função, fiscalizar se a devedora também está cumprindo com o pagamento do parcelamento fiscal exigido como pressuposto para a concessão da recuperação judicial. Por fim, o projeto exclui a fiscalização do cumprimento do plano de recuperação judicial, depois de sua homologação judicial, porque segundo o novo sistema proposto, a recuperação judicial será encerrada no momento da homologação do plano, não mais existindo a fase de fiscalização do cumprimento do plano pelo prazo de dois anos. 5- Funções do administrador judicial na falência O projeto continua conferindo ao administrador judicial a função de relacionar os processos judiciais e arbitrais e assumir a representação judicial da massa falida e propor as medidas mais adequadas aos interesses da massa falida com vistas ao encerramento desses processos. Além disso, o projeto define a necessidade de oitiva do Ministério Público previamente à decisão sobre os destinos que serão dados às ações judiciais e às demais medidas tomadas no interesse da massa falida. Segundo o projeto, cabe ao administrador judicial apresentar relatório sobre as causas e as circunstâncias que conduziram à situação de falência, no qual apontará a responsabilidade civil e penal dos envolvidos, observado o disposto no art. 186, no prazo de cem dias e, no caso de microempresas e empresas de pequeno porte, cinquenta dias, contado da data da assinatura do termo de compromisso, prorrogável por igual período. No que diz respeito à arrecadação de ativos na falência, caberá ao administrador judicial arrecadar os bens e os documentos do devedor e elaborar o auto de arrecadação, nos termos estabelecidos nos art. 108 e art. 110, sem exceder o prazo de dez dias, contado da data de assinatura do termo de compromisso, exceto se houver autorização expressa do juiz. No que tange à venda de bens na falência, o projeto estabelece que o administrador terá o prazo de 180 dias, contado da data da juntada do auto de arrecadação, para providenciar a alienação dos ativos arrecadados, sob pena de perder sua remuneração e poder ser destituído da função. Pretende-se, com isso, garantir maior agilidade na venda de ativos, neutralizando eventual inércia do administrador judicial. É certo, todavia, que a venda de bens pode ser retardada não apenas em função da conduta do administrador judicial. Bem por isso, o projeto estabelece medidas para neutralizar as dificuldades com a avaliação do bem e com os procedimentos de venda, que serão analisados oportunamente. O projeto pretende dar maior transparência ao processo de falência. Nesse sentido, impõe ao administrador judicial o dever de apresentar ao juiz para a juntada aos autos, até o décimo dia do mês seguinte ao vencido, conta demonstrativa da administração que especifique, com clareza, a receita e a despesa incorridas no mês anterior. E mais. A preocupação do projeto com a transparência do processo de recuperação judicial ou de falência é tão intensa, que o art. 23 do projeto impõe ao administrador a pena de suspensão de recebimento de sua remuneração enquanto estiver em atraso com a apresentação dos relatórios previsto na lei e de prestação de contas, mantendo a possibilidade - como já existe na lei - de destituição do administrador judicial que pessoalmente intimado, deixa de apresentar os relatórios no prazo de 5 dias. Exige, ainda, o projeto que o administrador providencie a inscrição da massa falida no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ. Diante da necessidade de que os processos de falência tenham um desfecho rápido e eficaz, passou a ser função expressa do administrador judicial, requerer o encerramento da falência nas hipóteses previstas nesta lei. Por fim, cabe ao administrador judicial não somente avaliar os bens arrecadados pela massa falida para fins de venda, mas também cabe ao administrador judicial providenciar prontamente a avaliação dos bens do devedor que tenham sido dados em garantia. 6- Remuneração do administrador judicial A função do administrador judicial deve ser exercida de forma profissional. Nesse sentido, sua remuneração também deve acompanhar os mesmos critérios utilizados para as funções exercidas na iniciativa privada. Do contrário, seria muito difícil atrair para o exercício dessa função os profissionais de mercado. Daí que o projeto fixa com mais clareza quais são os critérios que deverão ser utilizados pelo juiz no momento da fixação da remuneração do administrador judicial. Segundo o art. 24, caput, do projeto, a remuneração do administrador judicial será fixada pelo juiz, observados: I - a capacidade de pagamento do devedor ou da massa falida; II - o grau de complexidade do trabalho; e III - as funções a serem desempenhadas em consonância com a qualidade e a celeridade exigidas por processo de recuperação judicial e falência. Nota-se que o projeto excluiu desses critérios "os valores praticados no mercado para o desenvolvimento de atividades semelhantes". Isso não quer dizer, todavia, que os valores praticados na administração judicial não devam ter correspondência com os valores praticados na iniciativa privada. Isso é necessário como pressuposto de atração dos melhores profissionais para essa importante área. A razão para essa exclusão é a dificuldade de se encontrar no mercado privado função que seja semelhante àquela desenvolvida na administração judicial. Entretanto, continua válida a comparação feita entre os valores praticados por empresas de auditorias e a administração judicial, dada a similaridade (ainda que parcial) dessas funções. Apesar das intensas discussões havidas em relação ao estabelecimento do limite no valor da remuneração do administrador judicial de 5% do valor do passivo (recuperação judicial) ou dos ativos realizados (falência), o projeto preservou o parágrafo primeiro do art. 24, que dispõe sobre essa limitação. Nesse sentido, deve-se atentar que o percentual estabelecido por lei é apenas um limitador e não um critério para fixação da remuneração do administrador judicial. Vale dizer, o juiz fixará a remuneração do administrador judicial conforme os critérios estabelecidos pelo art. 24, caput, da lei, mas esse valor deverá ser limitado a 5% do valor do passivo (na recuperação judicial) ou do ativo realizado (na falência). O projeto estabelece, de maneira bastante clara, que no caso de processos de falência, deverá ser reservado quarenta por cento do montante devido ao administrador judicial para pagamento após o atendimento ao disposto nos art. 154 e art. 155, exceto se houver sido contratado seguro específico. Esse esclarecimento se faz necessário diante da existência de entendimentos jurisprudenciais no sentido de que essa reserva, prevista na lei, também deveria ser aplicada nas recuperações judiciais. Entretanto, o trabalho a ser desenvolvido nas recuperações judiciais, de duração muito menor que nas falências, seria incompatível com a referida reserva, cuja aplicação oneraria demasiadamente a devedora (responsável pelo pagamento) com a obrigação de pagamento de uma única vez, ao final, de parcela representativa de quase metade dos valores devidos. Mantém-se a regra de que o administrador judicial que for substituído preserva o direito ao recebimento de remuneração proporcional, mas aquele que renunciar sem relevante razão ou for destituído por desídia, dolo ou culpa ou descumprimento de suas obrigações perderá o direito a remuneração. 7- Procedimento para nomeação do administrador judicial na recuperação judicial O projeto cria um procedimento licitatório simplificado para a escolha e nomeação do administrador judicial, bem como para a fixação de sua remuneração. Segundo o projeto, deferido o processamento da recuperação judicial, o juiz abrirá processo simplificado para a apresentação, em até cinco dias, de propostas de interessados em desempenhar a função de administrador judicial, as quais indicarão, detalhadamente: I - o valor total da remuneração, a forma e o prazo de pagamento; II - o escopo do trabalho e a avaliação fundamentada sobre o grau de complexidade do trabalho, incluídos a quantidade de credores, a pluralidade de devedores ou de filiais e a extensão da responsabilidade assumida, entre outros; III - os custos para o desempenho fiel de suas funções, que contemplarão a descrição de recursos humanos, equipamentos, instalações, materiais a serem utilizados e eventual valor do prêmio de seguro de responsabilidade profissional. Na hipótese de não existirem interessados em participar do processo competitivo para administrador judicial, o juiz indicará um profissional, que lhe apresentará proposta de remuneração nos termos estabelecidos no § 5º. Decorrido o prazo para a apresentação de propostas pelos interessados, o juiz deverá aguardar pelo prazo de dois dias por eventuais manifestações do devedor e dos credores sobre as propostas. Decorrido o prazo de manifestação dos credores e da devedora, o juiz considerará o teor das propostas apresentadas e as eventuais manifestações dos interessados para escolher o administrador judicial e fixar o valor da remuneração do administrador judicial, no prazo de dez dias. Vale observar, que embora o texto do projeto se refira apenas à fixação da remuneração do administrador judicial, o mesmo procedimento, pela lógica, deve valor também para a nomeação ou escolha do administrador judicial. O processo licitatório deve valer para a escolha do administrador judicial e também para a fixação de sua remuneração, já que esse aspecto é um daqueles que devem compor a proposta a ser apresentada pelos interessados em exercer essa função. Destaque-se que o projeto está atento à possibilidade de prorrogação do prazo da recuperação judicial para além da data quando, pela lei, deveria estar encerrada, havendo uma sobrecarga de trabalho ao administrador judicial. Isso porque, a proposta apresentada pelo administrador judicial leva em consideração o tempo de duração legal do processo. Nesse sentido, havendo uma prorrogação do andamento do processo, poderá o administrador judicial requerer uma complementação de sua remuneração. Nesse sentido, o projeto dispõe que, na hipótese de não encerramento da recuperação judicial com observância aos prazos previstos nesta lei, o administrador judicial apresentará ao juiz proposta de honorários complementares, desde que não tenha contribuído para o atraso do processo. Esse processo licitatório, embora burocratize a nomeação do administrador judicial, confere maior transparência à recuperação judicial. A nomeação do administrador judicial é de fundamental importância para o sucesso da recuperação judicial. Nesse sentido, é necessário um maior cuidado na escolha do profissional que desempenhará essa função. Esse processo licitatório, diminui a possibilidade de nomeações baseadas exclusivamente na amizade/confiança entre o juiz e o nomeado, sem qualquer base na competência ou na estrutura de trabalho apresentada pelo administrador judicial. Assim, qualquer pessoa/empresa interessada em exercer a função de administrador judicial poderá apresentar sua proposta e o juiz terá de justificar objetivamente as razoes da escolha de uma proposta em detrimento da outra, sempre com atenção aos critérios estabelecidos pelo art. 24, caput, da lei. Muito embora o projeto não seja expresso sobre a aplicação desse processo licitatório às falências, é razoável interpretar que sua aplicação também se estende aos processos falimentares, a partir da decretação da quebra. O projeto ainda estabelece que nenhum pagamento será feito ao administrador judicial que tiver atribuições vencidas e pendentes de cumprimento. Essa é mais uma ferramenta para garantir a eficiência na atuação do administrador judicial. Em relação à fiscalização dos pagamentos e a sua compatibilidade com os limites estabelecidos em lei (seja o percentual de 5%, seja a compatibilidade dos valores pagos com o serviço efetivamente prestado), o projeto adotou o modelo que já vem sendo aplicado pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo onde a remuneração é revista, no mínimo, semestralmente, observada a nova realidade das funções a serem desempenhadas pelo administrador judicial. A prática tem mostrado que, em muitos casos, há nomeação do administrador judicial e fixação de seus honorários. Entretanto, há recurso de algum interessado contra essa decisão judicial e o Tribunal acaba por conceder efeito suspensivo ao recurso. Tal situação é extremamente prejudicial ao andamento do caso em primeiro grau, na medida em que o administrador judicial corre o risco de prestar o serviço sem saber o valor que irá receber ou mesmo sem saber se receberá algo pelo trabalho desenvolvido. Atendo a isso, o projeto estabelece que o credor que houver se manifestado no prazo a que se refere o art. 24, § 6º, o devedor, o administrador judicial e o Ministério Público poderão recorrer da decisão que fixar a remuneração do administrador judicial, com fundamento na capacidade de pagamento do devedor, no grau de complexidade do trabalho e nos valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes. Entretanto, o recurso da decisão que fixar a remuneração do administrador judicial não terá efeito suspensivo e a remuneração do administrador judicial será paga em conformidade com os valores fixados pela decisão do juízo até que seja julgado o recurso. O projeto excluiu o tratamento diferenciado da remuneração do administrador judicial para recuperação judicial de empresas de pequeno porte e microempresas. De fato, não fazia sentido limitar a 2% do passivo a remuneração do administrador judicial nesses processos, visto que o passivo já seria proporcionalmente menor que nos casos de devedoras de grande porte. Assim, a redução do percentual sobre um passivo já reduzido acabava resultando em remunerações incompatíveis com os trabalhos necessários mesmo em casos mais simples. Destaque-se que continua sendo obrigação do devedor ou à massa falida arcar com as despesas relativas à remuneração do administrador judicial e das pessoas eventualmente contratadas para auxiliá- lo conforme estabelecido no § 1º do art. 22. A decisão de homologação dos honorários do administrador judicial constitui título executivo judicial, cujas obrigações poderão ser objeto de cumprimento no próprio processo de recuperação judicial, se for o caso. Por fim, vale ressaltar que o pagamento do administrador judicial poderá ser feito com valores obtidos mediante financiamento DIP, que é regulado pelo projeto. Conforme consta da proposta, na recuperação judicial, a remuneração e as despesas do administrador judicial poderão ser financiadas observado o procedimento estabelecido no art. 69-A ao art. 69-I.
terça-feira, 11 de setembro de 2018

Recuperação judicial e licitação

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira Importante decisão foi tomada pela Primeira Turma do STJ, no julgamento do agravo em recurso especial 309.867, que admitiu a participação de empresa em recuperação em procedimento licitatório sem a apresentação de certidão negativa de distribuição de processo de recuperação judicial. A controvérsia examinada surgiu porque o artigo 31, inciso II, da Lei das Licitações, que é a lei 8.666/93, contém a seguinte exigência para participar da licitação (fase de habilitação): "Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a: (...) II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física". A empresa recorrente, em recuperação judicial, sustentou que a exigência legal diz respeito a falência e concordata, sem alcançar o instituto da recuperação judicial; afirmou ser ilegal a exigência de apresentação de certidão negativa. Além disso, afirmou que o artigo 52, II, da lei 11.101/05, derrogou o referido dispositivo da lei de licitações. O relator fez questão de registrar doutrina que defende a exigência de certidão, sob pressuposto de que há presunção de insolvência sobre o devedor em recuperação judicial, mas não a acompanhou. Preferiu doutrina em sentido contrário, que disse "se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa". Depois de invocar o escopo do artigo 47 da lei 11.101/05, concluiu o voto vencedor: "Entendo, portanto, incabível a automática inabilitação de empresas em recuperação judicial unicamente pela não apresentação de certidão negativa, principalmente considerando que a lei 11.101, de 9/2/2005, em seu art. 52, I, prevê a possibilidade de elas contratarem com o Poder Público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação". Consta do acórdão, ainda, o parecer exarado pela AGU, segundo o qual a apresentação de certidão positiva não é causa de imediata inabilitação, devendo ser examinada a real situação econômico-financeira da empresa. Por fim, o acórdão invoca precedente do STJ, que é a AgRg na MC 23.499, j. 18/12/2014. Pois bem. O assunto não é de simples solução nem de pouca relevância. Existem empresas que se dedicam, precipuamente, a prestar serviços e vender bens ao poder público e, portanto, participam regularmente de licitação. A distribuição da recuperação judicial pode representar o fim da empresa caso ela seja automaticamente proibida de concorrer em processos licitatórios. O remédio transformar-se-ia em veneno letal. O primeiro ponto digno de relevo é de ordem constitucional. O artigo 37, XXI, da Constituição Federal, diz que somente as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações serão feitas pela lei. A qualificação econômica é um mandamento constitucional, e é bastante razoável que assim seja, pois a idoneidade para a contratação é de observância tanto no âmbito privado como no âmbito público. Pode se discutir se a apresentação de certidão negativa é um elemento aferidor da qualificação econômica, pois, ao menos em tese, uma empresa em recuperação pode ostentar tanto a qualificação técnica como a qualificação econômica para contratar com o poder público. A certidão apenas relata a pendência do processo de recuperação, sem nenhum conteúdo a mais, sem permitir qualquer conclusão sobre a concreta situação da empresa. Uma outra interpretação diria que a certidão mostrando a distribuição da recuperação judicial é índice de crise, o que seria suficiente para afastar o concorrente do certame. Essa interpretação representaria, por certo, uma presunção abstrata de incapacidade econômica, à qual não se pode chegar, pois somente a verificação concreta de cada empresa à luz do edital expedido pela administração pública e de seu objeto é que autorizará conclusão a favor ou contra a empresa. A recuperação judicial evidencia que a empresa tem dívida; segundo a prática, a maioria das dívidas são de natureza bancária. Ora, uma empresa pode ter dívida bancária, não ajuizar recuperação judicial e participar do processo licitatório (superar a fase de habilitação). A exigência de certidão dispensaria tratamento diferente a duas empresas que estão, substancialmente, em pé de igualdade, pois ambas possuem dívidas; a diferença é que uma dívida é de conhecimento público, atestada pela certidão, e a outra dívida não é de conhecimento público, estando, por certo, apenas registrada nos livros contábeis da empresa, que são sigilosos (Código Civil, art. 1.190-1.191). A publicidade do processo de recuperação poderia favorecer uma concorrente que conta com o sigilo de sua contabilidade, e que poderia, em tese, estar com a mesma dificuldade financeira da empresa em recuperação. Nessa circunstância, o princípio da igualdade vem à tona. O STF decidiu, no julgamento da ADI 3.735, que "a igualdade de condições dos concorrentes em licitações, embora seja enaltecida pela Constituição (art. 37, XXI), pode ser relativizada por duas vias: (a) pela lei, mediante o estabelecimento de condições de diferenciação exigíveis em abstrato; e (b) pela autoridade responsável pela condução do processo licitatório, que poderá estabelecer elementos de distinção circunstanciais, de qualificação técnica e econômica, sempre vinculados à garantia de cumprimento de obrigações específicas". Nesse julgamento, de relatoria do Min. Teori Zavascki, o Min. Ricardo Lewandowski consignou que "Todos nós sabemos que a Lei 8.666, a Lei das Licitações, é extremamente complexa, inviabiliza as licitações na prática e facilita as fraudes". A exigência pura e simples de certidão como mecanismo de inabilitação da empresa em recuperação judicial não se afina com o princípio constitucional da igualdade que rege a exigência de licitação, pois o simples fato de um conjunto de dívidas tornar-se público, a ponto de constar de uma certidão emitida pelo Poder Judiciário, não deve afastar o devedor que compete com outro, igualmente com dívidas, que, entretanto, não são públicas. O documento público, a certidão de distribuição da recuperação judicial, apenas atesta, formalmente, a existência de dívida, e a disposição do devedor de entender-se com os seus credores. Não se pode extrapolar o seu significado e extrair conclusões que não se ajustam ao mandamento constitucional. É evidente que o poder contratante tem o direito de ser informado (e o dever de informar-se) sobre a situação financeira de quem pretende participar de licitação, mas a ausência de certidão não é decisiva para o poder público e pode ser completamente dispensada, sem prejuízo algum. Aliás, a certidão pode ser suprida por outro meio de informação, como, por exemplo, o constante do artigo 69, que exige seja acrescido após o nome empresarial a expressão 'em recuperação judicial'. Com isso, ainda na fase de habilitação, o poder público obrigatoriamente já será informado da situação da devedora, sem a necessidade da certidão. É certo que, pela lei 8.666/91, a certidão, sobre ser documento informativo, é uma barreira à participação na licitação, em qualquer circunstância, o que, por certo, é uma demasia. A exigência da fase de habilitação deve ser proporcional, e coerente com o objeto da futura contratação. Saber da existência de dívida pouco auxilia o poder público, que não está dispensado de proceder à verificação da capacidade econômico-financeira. Não por outra razão a lei 8.666/93, estatui que para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados exclusivamente a documentação relativa a "qualificação econômico-financeira" (Art. 27, III). E o artigo 31, além da certidão, exige a apresentação de demonstrações financeiras "que comprovem a boa situação financeira da empresa". Tal comprovação permitirá ao poder público examinar o mérito, examinar o que realmente interessa para fins de se chegar à contratação. Pode ser que um concorrente apresente certidão negativa de distribuição de recuperação judicial, mas não passe no requisito que interessa, isto é, a comprovação da boa situação financeira da empresa; e vice-versa. No caso apreciado pelo STJ, o plano de recuperação já havia sido aprovado. Esse é um ponto decisivo a ser enfatizado. Ora, se a dívida foi reestruturada, ao menos em tese ela cabe no fluxo de caixa do devedor. Presume-se então que ocorreu o saneamento financeiro da empresa. Nessa circunstância, não deve existir nenhum obstáculo de ordem formal à participação da empresa no mercado, ainda que para participar de licitações. Possuir dívidas não é necessariamente um sinal de crise; o controle do passivo à luz do fluxo de caixa da empresa é inerente à atividade empresarial, e o financiamento por meio de terceiros, seja para a expansão da atividade seja para capital de giro, é negócio corriqueiro no meio empresarial. Esse fato, a pendência de recuperação judicial, por si só, não deve ser obstáculo à participação em licitação, nem é fator conclusivo sobre capacidade econômico-financeira. A reestruturação da dívida, por meio do processo de recuperação pode, na realidade, fortalecer a empresa, que estará financeiramente mais equilibrada e com mais aptidão para atuar no mercado. A barreira da certidão não se justifica, o que não dispensa, por óbvio, o exame casuístico da capacidade econômico-financeira. Podemos dizer, a bem da verdade, que a dificuldade à empresa, que, no caso julgado pelo STJ, gerou a necessidade de impetração de mandado de segurança para participar do certame, não é causada somente pela lei das licitações. A própria lei 11.101/05 também contribui para essa dificuldade do devedor. Como se sabe, a lei instituiu o que se convencionou chamar de período de fiscalização. Após a aprovação do plano de recuperação, a empresa "permanecerá em recuperação judicial" pelo prazo de dois anos, diz o artigo 61. Esse dispositivo causa embaraços à empresa. Mesmo com a reestruturação do seu passivo, o simples fato de se encontrar em recuperação judicial dificultará o acesso ao crédito e à obtenção de novos contratos, como aqueles que são celebrados com o poder público, que dependem de licitação. a aprovação do plano de recuperação implica a reestruturação do passivo e a sua acomodação ao fluxo de caixa, liberando a empresa para empreender sua vida econômica. A artigo 61 dilata a agonia do devedor, pois causa-lhe embaraços no quotidiano dos negócios, e foi um fator que levou à impetração do mandado de segurança e o recurso julgado pelo STJ; o período de supervisão não se justifica. Caso a nossa lei previsse, após a aprovação do plano de recuperação judicial, o encerramento imediato do processo, a empresa estaria livre para seguir seu caminho, agora com o passivo reorganizado. E apresentar-se-ia perante o mercado e seus concorrentes em igualdade de condições. Sem o sinal de estar em crise, que é a obrigatória menção ao fato de estar em recuperação judicial em todos os atos, contratos e documentos firmados (art. 69). Chama a atenção, por fim, o registro do relatório do acórdão, segundo o qual o juízo universal expede certidão mensal para atentar a plena capacidade econômico-financeira da recuperanda. À luz da jurisprudência do STJ, não cabe ao Judiciário o exame do conteúdo econômico-financeiro do plano de recuperação judicial, e, por maioria de razão, atestar a capacidade econômico-financeira da recuperada. O caso em apreço mostra que a lei 11.101/05 precisa ser alterada, para prever, após a aprovação do plano de recuperação, a extinção imediata do processo, liberando a empresa para atuar livremente no mercado, inclusive perante o Poder Público; a lei das licitações também precisa ser alterada, para afastar a exigência de apresentação de certidão, que não tem o condão de, por si só, proteger o poder público.
Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A maior eficiência do procedimento falimentar e a possibilidade de o empresário falido rapidamente se recuperar são os principais objetivos pretendidos por todas as propostas de alterações da Lei de falência atual, a lei 11.101/05. Um procedimento célere e que permitisse ao credor efetivamente satisfazer seu crédito com a liquidação dos ativos do devedor reduziria o risco de contratação dos agentes no mercado, com ganhos sistêmicos. Uma falência mais eficaz resultaria, ainda, em melhor alternativa ao credor, o qual, diante de um plano de recuperação judicial, teria melhores condições para aferir a viabilidade econômica da manutenção do devedor na condução de sua atividade empresarial. A despeito de inovações legais serem necessárias, a utilização judicial de medidas cautelares para a apuração de responsabilidade dos sócios e administradores por eventuais desvios de ativos praticados em detrimento dos demais credores tem sido crescentemente utilizada também como importante instrumento para garantir que os credores possam ter seus créditos em maior medida satisfeitos diante de um empresário de má fé. Os limites da utilização dessas medidas cautelares e a possibilidade de decretação do sigilo processual das investigações em relações às próprias partes e seus patronos, contudo, vêm sendo questionados diante das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. A exigência da publicidade é princípio básico da administração pública e modo de realização dos demais princípios constitucionais. Em face do poder judiciário, o princípio da publicidade assegura, em sua vertente externa, que todos tenham acesso aos julgamentos e atos processuais, o que garante a independência e imparcialidade do juiz no julgamento e na condução do processo. Em sua vertente interna, como conhecimento das decisões pelas próprias partes, a publicidade assegura o exercício do contraditório e da ampla defesa pela parte que, insatisfeita, poderá ainda recorrer à instância superior, quando admissível. Esse direito à publicidade, entretanto, não é absoluto. Caso estejam presentes, no processo falimentar, indícios de que tenha ocorrido desvio ou ocultação de bens, possível a instauração pelo administrador judicial de incidente cautelar para a apuração do referido desvio. Referido incidente permitirá não apenas a arrecadação de eventuais bens para a satisfação dos credores, como eventual responsabilidade dos sócios ou administradores da falida. Para que esses objetivos possam ser alcançados, excepcionalmente a mitigação da publicidade dos atos processuais poderá ser exigida. Além da preservação da intimidade, em casos em que a publicidade poderá implicar constrangimento à própria parte, a publicidade externa dos atos processuais poderá ser restringida em face dos terceiros sempre que sua realização impeça a própria efetividade do ato jurisdicional. Excepcionalmente, todavia, a própria publicidade interna poderá ser restringida. Medidas investigativas para apuração dos desvios de ativos ou de responsabilização dos sócios ou administradores de sociedades falidas poderão ser determinadas mesmo sem que haja conhecimento da própria parte investigada ou de seus patronos. O interesse público incidente no procedimento falimentar para a satisfação dos interesses da coletividade de credores e para a preservação da própria empresa em crise e dos interesses que nela estão envolvidos conflita-se com a exigência de publicidade e fiscalização pelo falido dos atos processuais. Sua ciência sobre as diligências realizadas para a localização dos ativos poderá permitir ao devedor promover nova dissipação dos bens ou a criação de obstáculos para a apuração de suas condutas. Esse direito de controle dos atos judiciais pelo falido por meio da publicidade, desde que presentes as circunstâncias que indiquem que podem comprometer a efetividade das medidas, deve ser sopesado com a relevância social e o interesse público na apuração dos atos de desvio ou ocultação praticados e em detrimento da coletividade de credores. Ainda que tal determinação de segredo possa indicar, num primeiro momento, afronta a direitos constitucionais ou às próprias prerrogativas dos advogados, a restrição da publicidade mesmo interna não é nova no direito brasileiro. O Código de Processo Civil previu a possibilidade da decretação de medidas cautelares como arresto ou sequestro sem a informação prévia à parte adversa sempre que necessária para assegurar a utilidade do provimento, a qual poderia ser comprometida caso houvesse a ciência da parte. Nessas hipóteses excepcionais, o direito constitucional ao contraditório não é totalmente suprimido, mas apenas diferido. A verificação da ocorrência de desvio de ativos da Massa Falida ou sua ocultação pode ser realizada, caso as circunstâncias fáticas exijam, sem a ciência imediata do devedor ou de seu patrono, desde que demonstrado que esse conhecimento possa obstar a efetividade da medida ou comprometer o intuito de preservar os bens da Massa Falida ou apurar eventual conduta ilícita de seus sócios ou administradores. Apurada sua ocorrência, entretanto, a responsabilização civil dos infratores e as constrições sobre os ativos dela decorrentes serão realizadas sob o crivo do contraditório, respeitado o devido processo legal, e com o exercício da prerrogativa do advogado de consultar o incidente de investigação tão logo o resultado da diligência seja comunicado no feito. Diferido excepcionalmente esse contraditório, portanto, harmonizam-se os direitos e garantias constitucionais do empresário falido, de seus sócios ou administradores eventualmente infratores com a persecução do interesse social de celeridade e eficiência da prestação jurisdicional no procedimento falimentar para a satisfação da coletividade de credores.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Em um dos primeiros textos nesta coluna, expusemos como seria o passo a passo de um processo de recuperação judicial1. Muitas dúvidas têm ocorrido no cotidiano forense, entretanto, quanto à habilitação, divergência ou impugnação de créditos neste procedimento. Não tem sido raras, por exemplo, as habilitações protocoladas nos autos da recuperação judicial, em que pese a lei determinar que sejam apresentadas ao administrador judicial. Pensando nestas dificuldades, elaborei este guia rápido, para que os que não estão habituados aos ritos próprios da recuperação judicial possam se orientar. Quando você está de acordo com o valor e a classificação do crédito, que bom: nada há a fazer a esse respeito. Mas e quando há algum equívoco, que medida tomar? Vamos às principais dúvidas. 1. Habilitação, divergência e impugnação: qual a diferença? Habilitação, divergência e impugnação são medidas absolutamente distintas, mas que por vezes provocam confusão. Primeiro, vamos retomar o quadro esquemático do procedimento da recuperação judicial que já inserimos nesta coluna, mas com destaque para tais medidas: Como se vê, a habilitação e a divergência são apresentadas em momento anterior, após a publicação do edital com a primeira relação de credores, que é elaborada pelo administrador judicial a partir da lista de credores apresentada pela própria empresa recuperanda e de sua documentação contábil. Habilitação e divergência se distinguem entre si por um pequeno detalhe: (i) na habilitação, o crédito não foi contemplado na primeira relação de credores e o credor pretende obter a sua inclusão; (ii) na divergência, o credor está listado na primeira relação de credores, mas discorda do valor de seu crédito, de sua classificação (trabalhista, com garantia real, quirografário ou microempresa/empresa de pequeno porte) ou mesmo de sua indevida inclusão (por exemplo, no caso de credor que pretende ver reconhecida a sua extraconcursalidade, ou seja, a não submissão à recuperação judicial). A impugnação, por sua vez, é apresentada em estágio posterior, após a apreciação das habilitações e divergências pelo Administrador Judicial, o que leva à elaboração de uma segunda lista de credores. Caso o credor não concorde com a inclusão, exclusão, valor ou classificação de seu crédito nesta segunda lista, poderá então se valer da impugnação. 2. Para quem eu apresento a habilitação ou a divergência? O art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005 é claro: as habilitações e divergências devem ser protocoladas perante o Administrador Judicial. Então, caro amigo leitor, lembre-se: em princípio, nada de protocolar a habilitação ou a divergência no juízo da recuperação judicial, ok? Digo "em princípio" porque, na prática, o edital com a primeira relação de credores determinará onde e como serão apresentadas a habilitação e a divergência (por exemplo, em vias físicas no escritório do Administrador Judicial, ou por e-mail ou mesmo - contrariando a lei - perante o juízo da recuperação judicial). Em síntese: sempre olhe o edital com a primeira relação de credores, lembrando que, em regra, tais medidas não serão protocoladas em juízo. 3. Qual o prazo para apresentar a habilitação ou a divergência? Essa pergunta também encontra resposta no art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005: o prazo para tais medidas é de 15 (quinze) dias. Referido prazo se inicia na data de publicação no Diário Oficial do edital com a primeira relação de credores. Aí você pode me perguntar: dias úteis ou corridos? A lei 11.101/2005 é omissa a este respeito, mas como se diz que esta é uma fase administrativa de verificação dos créditos, que se processa perante o Administrador Judicial (a quem incumbe receber as habilitações e divergências e as apreciar), recomendo que esse prazo seja cumprido em dias corridos. É que, no âmbito das habilitações e divergências, sequer chega a ser instaurado processo judicial (no máximo, um processo administrativo), então não dá para descartar a hipótese de que alguém sustente - e eu concordaria! - que a contagem de prazos do CPC é inaplicável a esta situação. E, como sempre digo, discussão doutrinária só é boa no prazo dos outros... 4. Quais documentos devem instruir a habilitação/divergência? A relação de documentos que devem instruir a habilitação ou a divergência pode ser deduzida a partir do art. 9º da lei 11.101/2005. São os seguintes documentos: (i) procuração e, se pessoa jurídica, seus atos constitutivos; (ii) planilha demonstrativa do valor do crédito, atualizado até a data do pedido de recuperação judicial (apenas no caso de habilitação ou se houver alguma divergência quanto ao valor constante da primeira relação de credores); (iii) documentos comprobatórios do crédito objeto de habilitação ou divergência (contratos, aditivos, anexos, etc.); (iv) documentos comprobatórios das garantias prestadas ao credor (por exemplo, escritura de hipoteca, no caso de garantia real) De acordo com o art. 9º, parágrafo único da lei 11.101/2005, os documentos relacionados nos itens (iii) e (iv) devem ser exibidos "no original ou por cópias autenticadas se estiverem juntados em outro processo". Entretanto, não é incomum que o Administrador Judicial aceite cópias simples de tais documentos, sobretudo nos casos em que as habilitações ou divergências são apresentadas por e-mail. Se a questão não estiver prevista no edital com a primeira relação de credores, é sempre bom consultar previamente o Administrador Judicial a respeito da necessidade ou não de apresentação de documentos originais/cópias autenticadas2. 5. Apresentei a habilitação/divergência, e agora? Uma vez apresentadas as habilitações ou divergências, o Administrador Judicial irá verificar se estão corretamente instruídas. Caso esteja faltando algo, é comum que o Administrador Judicial entre em contato com o advogado do credor (por telefone ou e-mail, por exemplo), solicitando documentos adicionais. Superada esta etapa de verificação preliminar, o Administrador Judicial apreciará as habilitações e divergências e apresentará a segunda relação de credores. Como se trata de simples procedimento administrativo, não há a possibilidade de condenação em verbas sucumbenciais nesta etapa. 6. Já foi publicada a segunda relação de credores, o que faço? Publicado no Diário Oficial o edital com a segunda relação de credores, terão os credores, recuperandas e o Ministério Público o direito de consultar os documentos em posse do Administrador Judicial que embasaram a apreciação das habilitaçoes, divergências e a elaboração dessa segunda lista (art. 8º da lei 11.101/2005). A razão disso é evidente: é que esses são os legitimados para apresentar eventual impugnação judicial a essa segunda lista de credores, na qual poderão postular a inclusão de novos créditos, a exclusão de créditos, a modificação de seu valor ou a sua classificação. Caso se pretenda impugnar vários créditos, terá que ser apresentada uma impugnação para cada crédito (art. 13, parágrafo único da lei 11.101/2005). 7. Não apresentei habilitação/divergência antes, posso impugnar? A lei 11.101/2005 não exige que o credor tenha apresentado habilitação ou divergência após a publicação da primeira lista de credores para que possa apresentar impugnação judicial à segunda lista de credores elaborada pelo Administrador Judicial. Aliás, há outros legitimados (recuperandas e Ministério Público) que, pela letra da lei, somente poderiam atuar nesta etapa judicial. Como se não bastasse, as habilitações retardatárias (ou seja, apresentadas após o prazo legal) serão processadas como impugnação (art. 10, § 5º da lei 11.101/2005), tudo a evidenciar que a apresentação dessa última medida pelo credor independe de prévia habilitação ou divergência. Claro que a opção do credor pela impugnação judicial não é isenta de riscos: como aqui temos um verdadeiro incidente processual, que será processado e julgado pelo Poder Judiciário, caso o credor saia derrotado, haverá a possibilidade de que seja condenado em honorários sucumbenciais3. 8. Para quem eu apresento a impugnação? Aqui, a situação é diferente da habilitação ou da divergência: tal medida deve ser protocolada perante o juízo da recuperação judicial (art. 13 da lei 11.101/2005). Isso não significa, entretanto, que a impugnação deva ser protocolada como simples petição nos autos da recuperação judicial. Como ela será autuada em apartado (art. 13, parágrafo único da Lei 11.101/2005), normalmente deverá ser protocolada como um incidente, a ser distribuído por dependência à recuperação judicial. Não custa alertar mais uma vez: caso pretenda impugnar vários créditos, apresente uma impugnação para cada crédito. 9. Qual o prazo para apresentar a impugnação? Essa pergunta deve ser respondida à luz do art. 8º, caput, da lei 11.101/2005: o prazo para tais medidas é de 10 (dez) dias. Referido prazo se inicia na data de publicação no Diário Oficial do edital com a segunda relação de credores. Mais uma vez, deve ser respondida a pergunta: dias úteis ou corridos? Para variar, a lei 11.101/2005 é também omissa a este respeito. Trata-se, porém, de um incidente processual, de maneira que, a rigor, a forma de contagem em dias úteis estabelecida pelo CPC/2015 deveria ser aplicada. Contudo, recente decisão do STJ no Recurso Especial 1.699.528 pode lançar alguma dúvida a esse respeito: embora referido precedente diga respeito especificamente à forma de contagem (em dias corridos) do stay period (prazo de suspensão da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, conforme previsto no art. 6º, caput, da lei 11.101/2005) e do prazo para a apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53 da lei 11.101/2005), há passagens neste acórdão que podem vir a ser generalizadas para a contagem de outros prazos previstos na lei 11.101/20054, como o da impugnação5. Recomenda-se, portanto, que se consulte se há alguma deliberação específica do juízo da recuperação judicial a respeito da forma de contagem desse prazo. 10. Apresentei a impugnação, e agora? Apresentada a impugnação, seguem-se as seguintes etapas: (i) contestação do credor que teve o seu crédito impugnado no prazo de 5 cinco dias, se a impugnação não foi apresentada pelo próprio credor (art. 11, da lei 11.101/2005); (ii) manifestação da recuperanda, também no prazo de 5 (cinco) dias (art. 12, caput, da lei 11.101/2005); (iii) parecer do Administrador Judicial, a ser apresentado, mais uma vez, no prazo de 5 (cinco) dias (art. 12, parágrafo único, da lei 11.101/2005); (iv) deferimento de eventuais provas que se reputem necessárias e, uma vez encerrada a instrução, julgamento da impugnação. Como já advertido, havendo resistência da parte que sair derrotada, de acordo com a jurisprudência dominante, haverá a sua condenação nas verbas sucumbenciais. Contra referida decisão, caberá agravo de instrumento, nos termos do art. 17 da lei 11.101/2005, Naturalmente, se houve arbitramento de verba sucumbencial na decisão agravada e o agravante tiver insucesso em segunda instância, poderá ainda ser condenado em honorários recursais (art. 85, § 11 do CPC). 11. Mas já foi até homologado o quadro-geral de credores... Bom, nesse caso, já tendo sido homologado o quadro-geral de credores, não mais cabe impugnação. Mas nem tudo está perdido: poderá o credor ainda ingressar com ação de retificação do quadro-geral de credores, que tramitará pelo procedimento comum e deverá ser distribuída por dependência ao juízo da recuperação judicial (art. 10, § 6º da lei 11.101/2005). * * * Como já apontado no texto em que se apresentou o procedimento da recuperação judicial, o cotidiano forense mostra que, infelizmente, muitos profissionais que atuam nas RJs não conhecem seus trâmites básicos, o que causa uma série de tumultos e dificulta o andamento de um procedimento já complexo. Continuamos, portanto, no nosso intento de contribuir para que as fases procedimentais previstas na legislação sejam observadas por todos que atuam nas recuperações judiciais. Espera-se que o presente artigo possa auxiliar nas principais dúvidas em matéria de habilitação, divergência e impugnação. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Andre Roque e Luiz Dellore. O passo a passo de um processo de recuperação judicial. Migalhas. 2 Na prática, é bastante comum que os credores entrem em contato com o Administrador Judiciais por telefone ou e-mail para tirar eventuais dúvidas. A cautela é bem-vinda. 3 Nesse sentido, v. TJSP; AI 2102676-65.2018.8.26.0000; Ac. 11636311; Guarulhos; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Maurício Pessoa; Julg. 24/07/2018; TJSP; AI 2038302-40.2018.8.26.0000; Ac. 11636815; Campinas; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Claudio Godoy; Julg. 23/07/2018; TJMS; AI 1404526-88.2018.8.12.0000; Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Amaury da Silva Kuklinski; DJMS 02/07/2018. 4 Confira-se a seguinte passagem da ementa: "5. O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e a efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos, que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e a unidade do sistema. 6. A adoção da forma de contagem prevista no Novo Código de Processo Civil, em dias úteis, para o âmbito da Lei 11.101/05, com base na distinção entre prazos processuais e materiais, revelar-se-á árdua e complexa, não existindo entendimento teórico satisfatório, com critério seguro e científico para tais discriminações. Além disso, acabaria por trazer perplexidades ao regime especial, com riscos a harmonia sistêmica da LRF, notadamente quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista a dualidade de tratamento" (STJ, REsp 1.699.528, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/04/2018). 5 Sobre a insegurança causada por essa decisão na contagem dos prazos processuais na recuperação judicial, Luiz Dellore. O STJ decidiu que a contagem de prazos, na recuperação judicial, é em dias corridos: e agora? Migalhas.
Texto de autoria de Paulo Furtado Enquanto são discutidas as propostas de alteração da lei 11.101/2005, é possível implementar desde logo medidas adequadas ao aumento da eficiência do procedimento de recuperação judicial, utilizando-se dois instrumentos muito úteis, que são o negócio jurídico processual e o calendário processual. Dispõe o art. 190 do novo Código de Processo Civil: "Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Par. único - De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade". Esse o teor do art. 191 do novo Código de Processo Civil: "De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso. Par. 1º. - O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais devidamente justificados. Par. 2º. - Dispensa-se a intimação das partes para a prática do ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário". O negócio jurídico processual: a) tem como fundamento o princípio da autonomia da vontade; b) será admitido quando se tratar de direitos passíveis de autocomposição; c) as partes sejam capazes e estejam em situação de equilíbrio; d) tem por finalidade tornar mais eficiente o procedimento. O calendário processual, que tem por objeto a disciplina das datas para a prática de atos processuais ou a fixação de datas de audiências, dispensa a intimação das partes. O procedimento de recuperação judicial, por sua vez, tem por fundamento a preservação da empresa e por finalidade viabilizar a superação da crise por meio de uma solução negociada entre o devedor e seus credores. De acordo com o professor Francisco Satiro, esse processo judicial se justifica porque, diante da complexidade estrutural das atividades empresariais atuais e da multiplicidade de credores com interesses e objetivos no mais das vezes incompatíveis, a tarefa de negociação e composição de débitos, ou mesmo de restruturação de negócios, tende a ser inefetiva (Castro, Rodrigo Rocha Monteiro de; Warde Júnior, Walfrido Jorge; Guerreiro, Carolina dias Tavares (coord.). Direito Empresarial e Outros Estudos em Homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013, Capítulo 5, Autonomia dos Credores na Aprovação do Plano de Recuperação judicial; pp. 102/104). Para que o processo de recuperação seja eficiente, o professor Eduardo Secchi Munhoz destaca que são necessárias certas medidas, adotadas pela lei 11.101/2005: a) a suspensão das ações e execuções contra o devedor, de modo a interromper a corrida individual dos credores, evitando a liquidação precipitada de bens integrantes do patrimônio do devedor; b) divisão dos credores em classes, a fim de assegurar que a vontade dos credores na recuperação seja manifestada de forma coerente com as características e prerrogativas contratuais de cada crédito, evitando-se, com isso, desvios de ordem hierárquica dos créditos; c) decisão por maioria, dentro de cada classe, para evitar situações de hold up, nas quais algum credor, por conta de uma situação particular, poderia, isoladamente e contra a vontade da maioria, impedir uma solução avaliada melhor para todos. (Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado. AASP. Ano XXIX, nº 105, setembro de 2009, p. 115-128.). Não há incompatibilidade entre o modelo de negociação para superação da crise (os planos normalmente modificam os direitos dos credores, alterando valores, prazos e condições de pagamento) e o modelo agora adotado para o direito processual (que admite negociação sobre forma dos atos processuais, fixação de prazos para a realização dos atos pelos sujeitos do processo e alteração de atos do procedimento). O que não pode ser negociado pelas partes são apenas os atos essenciais do procedimento de recuperação judicial, como, por exemplo, a suspensão das ações e execuções individuais por 180 ("stay period"), que é fundamental para que os credores não destruam o valor da organização empresarial. Também a divisão de credores em classes e a deliberação por maioria são aspectos essenciais do procedimento de negociação, para que credores de hierarquia superior não sejam tratados de forma pior do que credores de hierarquia inferior, e para que uma minoria não impeça uma solução considerada mais satisfatória pela maioria dos credores de determinada classe. Contudo, outros atos do procedimento e a forma de realização destes atos podem ser objeto de negócio jurídico processual. A título de exemplo: a) devedor e credores podem pactuar a forma de manifestação da vontade dos credores a respeito do plano, estabelecendo o voto escrito e não em assembleia, desde que seja possível ao administrador judicial conferir a autenticidade do voto; b) as partes podem ajustar nova modalidade de comunicação dos atos processuais, desde que sejam seguras, como, por exemplo, a publicação no endereço eletrônico do administrador judicial, eliminando-se as custosas publicações de editais; c) é possível que as impugnações sejam processadas extrajudicialmente pelo administrador judicial que a impugnação integralmente processada seja protocolada em juízo para decisão, poupando-se o cartório de repetidos atos de comunicação; d) podem ser ajustadas sessões de mediação, de modo a permitir que os interessados apresentem suas necessidades e a devedora proponha um plano para a superação da crise que atenda aos diferentes grupos de credores; e) é viável a fixação de calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia geral de credores. Credores e devedora ajustaram calendário e negócio jurídico processual, nos autos do processo 1056004-07.2018.8.26.0100, da 2ª vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo. A assembleia foi realizada logo no início do procedimento, permitindo uma aproximação entre devedora e credores, mais abertas ao diálogo, criando-se a expectativa de que a solução consensual quanto ao processo é o primeiro passo para a elaboração de um plano de recuperação judicial equilibrado. Também é possível a eliminação ou redução do prazo de fiscalização judicial, estabelecendo as partes que o processo será encerrado com a decisão de concessão da recuperação, exatamente como se dá na recuperação extrajudicial. A permanência do devedor em estado de recuperação por dois anos gera vários entraves, quer sob o aspecto financeiro, quer sob o aspecto negocial. Além de gastos com assessores financeiros, advogados e pessoas que devem estar à disposição do administrador judicial para prestar informações sobre as atividades, o devedor tem restrição de acesso ao crédito, pois as instituições financeiras são obrigadas a adotar provisões mais conservadoras nas operações com os devedores em recuperação e os demais agentes econômicos sentem-se inseguros em contratar com quem está no regime de recuperação judicial. Por outro lado, se os credores são reunidos para decidirem sobre o conteúdo do seu direito de crédito, não há razão para proibi-los de escolherem se querem ou não fiscalizar o devedor que está obrigado a satisfazer o crédito. Os credores podem optar por uma fiscalização extrajudicial, nomeando pessoa de sua confiança, com acesso à contabilidade e ao caixa da recuperanda. Tal forma de monitoramento das atividades do devedor poderá ser mais barata e menos burocrática, superando as vantagens da fiscalização pelo administrador judicial. E mesmo depois da sentença de encerramento da recuperação, os credores poderão requerer a falência ou a execução do título, em caso de descumprimento das obrigações previstas no plano. Enfim, os negócios jurídicos processuais são plenamente compatíveis com o procedimento de recuperação judicial e podem contribuir para que ele se torne um instrumento mais eficiente para a superação da crise econômico-financeira do empresário.
Texto de autoria de Luiz Dellore Introdução Como já exposto anteriormente nesta coluna, uma vez deferida a recuperação judicial os credores se submetem a ela, podendo participar das negociações acerca do plano de recuperação, o qual preverá as condições de pagamento dos créditos e a forma de soerguimento da empresa1. Mas, mesmo em relação a um plano em que houve intensa negociação, e que pode ser considerado favorável aos credores, é inegável que há perdas quanto ao crédito. Seja em relação à forma de pagamento, alongamento do pagamento, juros, correção ou mesmo - o que é muito comum - desconto no próprio valor principal a ser recebido, o que usualmente se denomina de haircut. Logo, é claro que, do ponto de vista do credor, a recuperação traz prejuízos. Contudo, é certo que o cenário falimentar em regra é muito pior2. Como poderia, então, o credor não se submeter à recuperação judicial, e ter seu crédito inteiramente protegido, mesmo no caso de RJ de determinada empresa? São poucas as ferramentas para isso na legislação, merecendo destaque a garantia fiduciária - seja de bens móveis ou imóveis (lei 11.101/2005, art. 49, § 3º). Assim, tratando-se de crédito garantido fiduciariamente, o credor fiduciário não se submete à recuperação judicial. Portanto, mesmo em um cenário de crise para a empresa devedora e deferimento de sua recuperação, o crédito fiduciário não é objeto de novação, ou seja, não se sujeita às condições de pagamento previstas no PRJ aprovado, sendo considerado "extraconcursal", isto é, permanecem as condições contratuais originárias. Enquanto isso, os créditos concursais se submetem ao PRJ aprovado. A garantia fiduciária na RJ De início, destaque-se que muitas vezes, no ambiente das recuperações, a existência da garantia fiduciária como crédito extraconcursal não é vista com bons olhos. Recuperandas, demais credores e por vezes mesmo administradores judiciais, promotores e magistrados apontam que não é adequado que, enquanto todos façam sacrifícios, apenas alguns poucos credores não tenham de contribuir para a salvação da empresa3. De qualquer forma, trata-se da previsão legal a qual, inclusive, permanece no projeto que atualiza a lei de recuperação judicial4. Assim, em meu entender, se não se entende correta essa previsão, é necessária alteração legislativa, e não uma decisão judicial - claramente ativista - para afastar a extraconcursalidade de um crédito com garantia fiduciária. Mas essa conduta judicial por vezes se verifica, o que apenas contribui para um cenário de insegurança jurídica, sendo um péssimo exemplo para potenciais investidores e na verdade inibindo a atividade econômica como um todo. Afasta-se a previsão legal para (tentar) salvar uma empresa em detrimento da coletividade, pois com isso o ambiente de insegurança inibe o crédito (ou o torna mais caro) para todas as demais empresas, afetando as relações comerciais. Mas o foco desta coluna não é a (in)conveniência da garantia fiduciária como extraconcursal, tema a ser tratado de lege ferenda. Vejamos o assunto de lege lata. O tema vem regulado no art. 49, § 3º (grifei): Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. A previsão é bastante clara: créditos com garantia fiduciária não se submetem à RJ, de modo que são, portanto, extraconcursais5. Como já mencionado acima, a previsão legal muitas vezes não é bem recebida pelas empresas, que várias vezes tentam afastar a extraconcursalidade. Mas o STJ já se manifestou acerca do tema e, felizmente (no meu entender, por certo), cumpriu com o seu papel institucional e constitucional: deu a última palavra em relação à interpretação infraconstitucional, afirmando o que diz a lei, no sentido da não sujeição à RJ do crédito com garantia fiduciária. São inúmeros julgados nesse sentido, como o seguinte (grifei): RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA". 1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005. 2. Recurso especial não provido. (REsp 1202918/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/03/2013, DJe 10/04/2013) Perceba-se que esse julgado trata, ainda, de outro tema que foi objeto de debate - igualmente já superado: seria possível a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e títulos de crédito (a denominada "trava bancária"), com a consequente extraconcursalidade desse crédito? A resposta do STJ foi positiva6. Diante dessa firme posição do STJ, outros argumentos passaram a ser utilizados pelas empresas em recuperação para tentar afastar a garantia fiduciária. Aí é que surgiu o debate acerca do registro. Cessão fiduciária sem registro segue sendo crédito extraconcursal? Após a definição do STJ quanto à extraconcursalidade da cessão fiduciária, passaram algumas recuperandas a afirmar que a ausência de registro do contrato relativo a bens móveis desnaturaria a garantia como extraconcursal. Assim, a ausência de registro da trava bancária faria com que o crédito fosse concursal, especificamente quirografário. Essa tese encontrou acolhida em diversos locais, chegando até mesmo a ser sumulada no âmbito do TJSP. Nesse sentido, as Súmulas 59 (acerca da possibilidade de cessão fiduciária de direito de crédito) e 60 (acerca da necessidade de registro) desse Tribunal: Súmula 59: Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária. Súmula 60: A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor Ou seja, a ausência de registro, no cartório de títulos e documentos, da cessão fiduciária de crédito, afastaria a extraconcursalidade, passando o crédito a ser concursal. Apesar de a tese ter encontrado guarida em alguns tribunais intermediários, não foi essa a posição que prevaleceu no STJ. Em síntese, o Tribunal Superior decidiu, no final de 2015, que o registro é declaratório (finalidade é dar ciência e ser oponível a terceiros) e não constitutivo - portanto, no sentido contrário ao da Súmula 60/TJSP. Logo, não é requisito, para que o crédito seja extraconcursal, o registro da cessão fiduciária de crédito. Nesse sentido, a síntese do julgado, constante do informativo 578/STJ (grifei): DIREITO EMPRESARIAL. NÃO SUJEIÇÃO A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS DE CRÉDITO CEDIDOS FIDUCIARIAMENTE. Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor. (...) REsp 1.412.529-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 17/12/2015, DJe 2/3/20167. Apesar dessa firme posição do STJ, seguem existindo julgados de 1º e 2º grau, em alguns Estados do Brasil, reconhecendo a concursalidade de cessão fiduciária não registrada, o que corrobora o cenário de insegurança jurídica. Nesse caso, necessário que o credor fiduciário ingresse com recurso (agravo de instrumento da decisão de 1º grau ou recurso especial da decisão colegiada) e pleiteie antecipação de tutela recursal para que não haja a submissão desse crédito à recuperação judicial. E já há precedentes de concessão de liminares para atribuir efeito suspensivo aos especiais, mesmo no âmbito do TJ/SP8, mesmo que a Súmula 60-ainda não tenha sido revogada. O ideal seria, sem dúvidas, o alinhamento jurisprudencial dos tribunais intermediários e juízos de origem à posição do STJ. Mas, persistindo decisões divergentes, conveniente seria o uso de um instrumento capaz de proferir uma decisão vinculante - seja IRDR, IAC ou recurso especial repetitivo. Acompanhemos a sequência desse tema, inclusive no âmbito dos debates legislativos acerca da alteração da lei. __________ 1 Vide especificamente o texto que trata do trâmite da RJ em juízo. 2 Pior para o credor mas, eventualmente, melhor para a sociedade, conforme texto anterior nesta coluna. 3 Nesse sentido, por exemplo, texto anterior nesta coluna. 4 O Projeto de Lei que modifica a lei de recuperação não altera a extraconcursalidade da garantia fiduciária (o PL pode ser consultado aqui, e com uma primeira análise aqui). 5 É certo que existem ressalvadas no final do parágrafo, mas o tema foge dos objetivos deste texto. 6 No âmbito do informativo de jurisprudência 518/STJ esse mesmo julgado é reproduzido com interessante explicação: "DIREITO EMPRESARIAL. NÃO SUJEIÇÃO DO CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITO CREDITÓRIO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. O crédito garantido por cessão fiduciária de direito creditório não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005. Conforme o referido dispositivo legal, os créditos decorrentes da propriedade fiduciária de bens móveis e imóveis não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. A cessão fiduciária de títulos de crédito é definida como "o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante terceiros em garantia do cumprimento de obrigações". Apesar de, inicialmente, o CC/2002 ter restringido a possibilidade de constituição de propriedade fiduciária aos bens móveis infungíveis, a Lei n. 10.931/2004 contemplou a possibilidade de alienação fiduciária de coisa fungível e de cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição contrária, é atribuída ao credor a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito. Além disso, a lei 10.931/2004 incluiu o art. 1.368-A ao CC/2002, com a seguinte redação: "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial". Desse modo, pode-se concluir que a propriedade fiduciária contempla a alienação fiduciária de bens móveis, infungíveis (arts. 1.361 a 1.368-A do CC) e fungíveis (art. 66-B da lei 4.728/1965), além da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Assim, o crédito garantido por cessão fiduciária de direito creditório, espécie do gênero propriedade fiduciária, não se submete aos efeitos da recuperação judicial. Como consequência, os direitos do proprietário fiduciário não podem ser suspensos na hipótese de recuperação judicial, já que a posse direta e indireta do bem e a conservação da garantia são direitos assegurados ao credor fiduciário pela lei e pelo contrato. REsp 1.202.918-SP, Rel. Min. Villas Bôas Cueva, julgado em 7/3/2013". 7 Acima reproduziu-se apenas a síntese do julgado no informativo de jurisprudência. Segue aqui o restante do que constou do informativo: "É a partir da contratação da cessão fiduciária, e não do registro, que há a imediata transferência, sob condição resolutiva, da titularidade dos direitos creditícios dados em garantia ao credor fiduciário. Efetivamente, o CC limitou-se a disciplinar a propriedade fiduciária sobre bens móveis infungíveis, esclarecendo que "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial" (art. 1.368-A). Reconhece-se, portanto, a absoluta inaplicabilidade à cessão fiduciária de títulos de crédito (bem móvel, incorpóreo e fungível, por natureza) da disposição contida no § 1º do art. 1.361 do CC ("Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro"). Já no tratamento ofertado pela lei 4.728/1995 no § 3º do art. 66-B, não se faz presente a exigência de registro, para a constituição da propriedade fiduciária, à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Além disso, o § 4º dispõe que se aplica à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito o disposto nos arts. 18 a 20 da lei 9.514/1997. Segundo o art. 18 da referida lei, o contrato de cessão fiduciária em garantia, em si, opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos até a liquidação da dívida garantida. Por sua vez, o art. 19 confere ao credor fiduciário direitos e prerrogativas decorrentes da cessão fiduciária que são exercitáveis imediatamente à contratação da garantia, independentemente de seu registro. Por outro lado, o posterior registro da garantia ao mútuo bancário destina-se a conferir publicidade a esse ajuste acessório, a radiar seus efeitos perante terceiros, função expressamente mencionada pela lei 10.931/2004 ao dispor sobre Cédula de Crédito Bancário. Note-se que o credor titular da posição de proprietário fiduciário sobre direitos creditícios não opõe essa garantia real aos credores do recuperando, mas sim aos devedores do recuperando (contra quem, efetivamente, far-se-á valer o direito ao crédito, objeto da garantia), o que robustece a compreensão de que a garantia sob comento não diz respeito à recuperação judicial. O direito de crédito cedido não compõe o patrimônio da devedora fiduciante (que sequer detém sobre ele qualquer ingerência), sendo, pois, inacessível aos seus demais credores e, por conseguinte, sem qualquer repercussão na esfera jurídica destes. Não se antevê, desse modo, qualquer frustração dos demais credores do recuperando que, sobre o bem dado em garantia (fora dos efeitos da recuperação judicial), não guardam legítima expectativa. Aliás, sob o aspecto da boa-fé objetiva que deve permear as relações negociais, tem-se que compreensão diversa permitiria que o empresário devedor, naturalmente ciente da sua situação de dificuldade financeira, ao eleger o momento de requerer sua recuperação judicial, escolha, também, ao seu alvedrio, quais dívidas contraídas seriam ou não submetidas à recuperação judicial. Por fim, descabido seria reputar constituída a obrigação principal (mútuo bancário representado por Cédula de Crédito Bancário emitida em favor de instituição financeira) e, ao mesmo tempo, considerar pendente de formalização a indissociável garantia àquela, condicionando a existência desta última ao posterior registro. Assim, e nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005, uma vez caracterizada a condição de credor titular da posição de proprietário do bem dado em garantia, o correlato crédito não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, remanescendo incólumes os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, conforme dispõe a lei especial regente". 8 Como exemplo, a seguinte decisão: "Processo 2213926-74.2016.8.26.0000. 1. Fls. 2220/2222: Cuida-se de pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso especial interposto por CAIXA ECONÔMICA FEDERAL contra acórdão da 1ª Câmara de Direito Privado deste Tribunal de Justiça (fls. 2195/2199, mantido às fls. 2336/2340). Alega que a fumaça do bom direito decorre da natureza extraconcursal dos créditos bloqueados, pois decorrentes de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, em consonância com entendimento firmado pelo STJ. Sustenta, no mais, que o perigo na demora consiste na possibilidade de levantamento dos valores que atingem mais de oitocentos mil reais. Postula a suspensão da ordem de restituição de valores. É a síntese do necessário. Viável se mostra a concessão do efeito suspensivo. A jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que a excepcional concessão de efeito suspensivo a recurso especial está condicionada à probabilidade de seu provimento (fumus boni iuris) e à iminência de grave dano a ser causado pela decisão recorrida (periculum in mora). Nesse sentido: (...) De fato, a despeito do disposto na súmula 60 ("A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor"), verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que o crédito garantido por cessão fiduciária não se submete ao processo de recuperação judicial, independentemente de registro em Cartório de Títulos e Documentos (REsp 1508155, relator o ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, in DJe de 4/11/2016). Cuida-se, pois, de questão relevante e suficiente a caracterizar o fumus boni iuris. A par disso, também presente o periculum in mora, uma vez que, caso não concedido o efeito suspensivo, o recorrente terá que cumprir a determinação de restituição de, ao menos, R$ 882.042,47 - parcela incontroversa, mas passível de alteração porque a recorrida alega o montante de R$ 1.435.227,45. As consequências oriundas do levantamento dos valores justificam a concessão, em caráter excepcionalíssimo, do efeito suspensivo pretendido até a efetivação do exame de admissibilidade, cessando, de imediato, caso este se mostre negativo. Assim, defiro o pedido de efeito suspensivo ao recurso especial. Oficie-se, com urgência, comunicando o mm. juiz a quo. 2. Aguardem-se as contrarrazões. São Paulo, 5 de outubro de 2017. LUIZ ANTONIO DE GODOY Presidente da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça".
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa A reforma da lei de falências e recuperação judicial é tema de grande importância e que tem suscitado muitos debates entre os operadores e estudiosos da insolvência empresarial. O projeto de lei 10.220/2018 foi recentemente apresentado pelo Ministério da Fazenda ao Congresso Nacional trazendo uma série de mudanças relevantes nos sistema de insolvência empresarial. E são justamente essas mudanças que vêm gerando esse grande debate. Muito se tem falado sobre os aspectos ruins do projeto, como as novas regras de tratamento do fisco nos processos de insolvência. Entretanto, nem todas as propostas do Ministério da Fazenda são ruins. Aliás, existem regras no projeto que são não apenas boas, mas fundamentais para que tenhamos um sistema de insolvência realmente eficiente. Na nossa coluna de hoje, falarei sobre uma dessas boas regras novas: as varas especializadas de competência regional. A maior causa de falta de efetividade do sistema brasileiro de insolvência não é a nossa lei, propriamente dita. É a falta de condições para que a lei seja efetivamente aplicada. Nesse sentido, a falta de especialização surge como o maior problema do sistema brasileiro. Não se pode esperar que os resultados da aplicação de lei tão específica sejam melhorados sem a garantia de que a lei será interpretada e aplicada por juízes efetivamente especializados nessa matéria. É certo que não faz sentido econômico a criação de uma vara especializada em falência e recuperação judicial em cada uma das milhares de Comarcas brasileiras. Isso porque, não haveria movimento de processos suficientes para justificar a criação de uma vara especializada em muitas Comarcas. Somente as maiores Comarcas teriam varas especializadas e os casos de falência e recuperação judicial que tramitam por regiões mais interioranas continuariam a ser julgados por juízos de competência geral. Ocorre que, atualmente, é comum que tenhamos grandes processos de falência e de recuperação judicial em Comarcas pequenas, fruto da interiorização da economia brasileira. Existem grandes empresas em locais mais distantes dos grandes centros urbanos. Assim, deve-se criar condições para que todos os processos de falência e de recuperação judicial sejam julgados por juízes especializados. E a única forma de se garantir tal providência, é a criação de varas que tenham competência sobre toda uma região maior, e não somente nos limites de uma Comarca. Assim, se não faz sentido - pela falta de processos - a criação de uma vara especializada numa pequena Comarca, certamente fará sentido a criação de uma Vara que tenha competência para julgar os processos de insolvência de toda uma região que inclua também aquela pequena Comarca. Assim, todos os processos de insolvência daquela região serão julgados por um juiz especializado na matéria, garantindo-se mais eficiência na aplicação da lei. O art. 3o da lei 11.101/05 estabelece a regra de que será competente para o processamento da falência ou da recuperação judicial da empresa o juízo de seu principal estabelecimento ou, se empresa estrangeira sediada fora do Brasil, o juízo do local onde se situa a sua filial. O projeto de lei acrescentou o § 1º, segundo o qual, quando o plano de recuperação extrajudicial, a recuperação judicial ou a convolação em falência implicar soma de passivos superior ao valor de 300.000 (trezentos mil) salários mínimos, na data do ajuizamento, será competente o juízo da capital do Estado ou do Distrito Federal onde se localizar o principal estabelecimento. O projeto acrescentou ainda o § 2º, dizendo que o disposto no § 1º não se aplica à decretação de falência, exceto na hipótese de convolação. O projeto acrescentou também o § 3º para esclarecer que o disposto nos § 1º e § 2º produzirá efeitos enquanto não houver, no Estado ou no Distrito Federal, varas especializadas com competência regional. Aqui está a previsão legal de criação das varas especializadas de competência regional, o que representa, sem dúvida, uma das mais importantes inovações do projeto. Conforme já sustentado por mim em artigos publicados na imprensa e em revistas especializadas, as varas de competência regional são fundamentais para que o processo de falência e recuperação sejam mais eficientes e produzam os resultados esperados pela economia e pela sociedade. Entretanto, a criação dessas Varas depende da iniciativa dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, vez que se trata de matéria relacionada à organização judiciária. Considerando que o objetivo da lei é criar um choque de eficiência nesses processos, a demora na criação dessas Varas poderia neutralizar a intenção de imediata melhora de performance e de resultados nos processos de insolvência. Diante disso, o projeto cria uma regra transitória de competência, trazendo para as Capitais dos Estados as recuperações judiciais mais complexas. A razão dessa regra é a seguinte: nas capitais dos principais Estados do Brasil já existem Varas Especializadas em Falência e Recuperação Judicial. Nesse sentido, os grandes casos, que muitas vezes eram distribuídos para juízos de competência cumulativa e sem especialização, passarão a ser conduzidos por juízes especializados e mais experientes na matéria. Sem dúvida, essa regra transitória de competência, que será aplicada até que sejam criadas as Varas de Competência Regional, garantirá uma maior eficiência e um melhor gerenciamento dos grandes casos de recuperação judicial, atuando de forma importante na preservação dos benefícios econômicos e sociais decorrentes da preservação da atividade empresarial viável. O projeto propõe, ainda, que no caso de convolação de recuperação judicial em falência, nos casos em que o passivo for superior a 300 mil salários mínimos, também haja o deslocamento da competência para o juízo da Capital do Estado. A melhor interpretação que se deve dar a esse dispositivo é a de que, havendo alguma recuperação já em curso ao tempo da entrada em vigor da nova lei, com passivo superior a 300 mil salários mínimos, e constatando-se a necessidade de sua convolação em falência, o processo deverá ser remetido ao juízo da Capital do Estado. No mais, processos novos de recuperação judicial com passivo inferior a 300 mil salários mínimos e processos de falência de qualquer valor, deverão seguir a regra geral da competência do juízo do principal estabelecimento do devedor, até que sejam criadas as varas de Competência Regional. O projeto cria, ainda, o Art. 3º-A., atribuindo ao CNJ funções importantes de coordenação, treinamento e fiscalização dos juízos especializados. Assim dispõe o art. 3-A do projeto de lei: "O Conselho Nacional de Justiça poderá promover, periodicamente: I - realização de pesquisas estatísticas para avaliar os resultados das normas previstas nesta Lei; II - capacitação dos juízes e dos servidores da Justiça, de modo a buscar a sua especialização em temas relacionados ao direito empresarial e à economia; e III - avaliação sobre a distribuição de competência em matéria de direito falimentar. § 1º A decretação da falência, o deferimento do processamento da recuperação judicial e a homologação de plano de recuperação extrajudicial serão sucedidos de ampla divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico em cadastro no Conselho Nacional de Justiça. § 2º Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre as falências e as recuperações judiciais e extrajudiciais que neles tramitam, e comunicarão novos registros imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça para inclusão no cadastro de que trata o § 1º". A intenção do projeto é fazer com que o CNJ exerça um papel fundamental no gerenciamento dos processos de insolvência. Caberá ao CNJ cuidar do treinamento constante dos juízes especializados e dos servidores das varas com competência para tratar de falência e recuperação de empresas. Além disso, caberá ao CNJ fazer um monitoramento estatístico centralizado dos processos de insolvência, com o objetivo de estabelecer novas metas e melhoramentos em termos de eficiência e de resultados econômicos e sociais das falências e recuperações judiciais. A especialização dos varas de competência regional, por si só, vai gerar maior uniformidade de decisões entre juízos diferentes, uma vez que todos os juízes terão, naturalmente, grande conhecimento do sistema de insolvência brasileiro. Mas, além disso, os juízes devem receber treinamento único como forma de incentivo também à uniformidade decisória. Juízes submetidos aos mesmos treinamentos tenderão a desenvolver raciocínios semelhantes, fazendo-se com que as decisões em temas de insolvência empresarial sejam muito semelhantes em todas as regiões do Brasil. O objetivo dessa regra é garantir maior previsibilidade e segurança jurídica na área da insolvência empresarial. Deve-se destacar que segurança jurídica e previsibilidade são fatores essenciais para que o Brasil se torne um polo de atração de investimentos nacionais e estrangeiros. O mercado deve ter condições de ler e entender os sinais enviados pela Justiça a fim de balizar suas decisões de investimento, precificar o investimento e comportar-se de maneira adequada no que tange à atuação empresarial dos agentes econômicos. E mais. O projeto acrescenta em seu art. 7º que, no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de publicação desta Lei, o Conselho Nacional de Justiça apresentará plano de implementação de varas especializadas com competência regional nos Estados e no Distrito Federal, de acordo com o movimento processual e a atividade empresarial. Caberá, portanto, ao CNJ a tarefa de coordenar a implantação das Varas Especializadas de competência regional. Nesse sentido, o CNJ deverá promover um estudo nacional para identificar o número ideal de regiões para a instalação de Varas Especializadas considerando o volume de processos de falência e de recuperação judicial em andamento, bem como a vocação, relevância e a intensidade das atividades empresariais que se desenvolvem em determinadas regiões. Importante destacar que o CNJ prestará função de auxílio e de estímulo para que os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal providenciem a criação dessas Varas Especializadas de Competência Regional, tendo em vista que a competência legislativa para tanto é dos Estados e do Distrito Federal. As vantagens da criação do sistema de varas especializadas de competência regional são inúmeras. Cito aqui algumas dessas vantagens: aumento da efetividade na aplicação da lei; juízes especialistas e bem treinados na matéria; uniformidade decisória; maior previsibilidade da justiça; maior segurança jurídica; aumento da qualidade do trabalho do administrador judicial (que será escolhido por juízes especialistas e com boas condições de avaliação do trabalho desenvolvido); aumento do incentivo ao investimento nacional e estrangeiro; aumento da arrecadação de tributos (em razão do aumento da eficiência do processo de insolvência); aumento da fiscalização sobre todos os agentes dos processos de insolvência (combate aos desvios e atos de corrupção dos agentes envolvidos no processo). Por essas razões, penso que tal proposta é essencial para que tenhamos um sistema de insolvência empresarial eficiente. Nesse sentido, as varas especializadas de competência regional devem ser criadas o mais rapidamente possível, pelo bem do Brasil.
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A presença da Fazenda Pública no projeto de reforma da Lei de Recuperações e Falências tomou proporção inusitada. Há uma profunda alteração em prol do ente público. Vejamos algumas questões. 1. O projeto retira do juízo da recuperação judicial a competência para deliberar sobre bens penhorados no processo de execução fiscal, que prosseguirá normalmente, sem suspensão em decorrência da distribuição da recuperação judicial, nem arquivamento do processo, que está proibido. Sequer certidão de crédito por ser expedida pelo juiz da execução. Mais. As execuções já suspensas ou arquivadas poderão ser retomadas (art. 5º, §1º). E é permitida a constrição e alienação de bens e direitos no juízo da execução, vedada ao juízo da recuperação a avaliação. A penhora só pode ser desfeita se houver expressa concordância da Fazenda. O crédito da Fazenda assume, pelo projeto, na recuperação judicial, caráter ultra preferencial, e, na prática, acima do crédito trabalhista, pois nada o detém no caminho da expropriação. Pela nova redação do art. 6º, a Fazenda foge do juiz da recuperação e há uma verdadeira blindagem da Fazenda. É certo que tal regra também vale para os créditos garantidos por alienação fiduciária, por exemplo, com a seguinte diferença. Tal credor colaborou com a empresa, a quem disponibilizou recursos. O Fisco, que só tira recursos da empresa, receberá o mesmo tratamento. E tem mais. Embora, no processo de recuperação judicial, o crédito tributário esteja excluído do processo, o inadimplemento do parcelamento, algo externo ao plano de recuperação, exigirá do administrador judicial o requerimento de falência (art. 22, II, "b"), embora a nova redação da lei 10.522, que o projeto propõe, preveja a "convolação automática da recuperação judicial em falência". O inadimplemento de dívida alheia ao processo de recuperação será causa de falência, ainda que o plano de recuperação judicial esteja sendo cumprido na íntegra. O exagero é manifesto. Mas isso é pouco diante desta outra previsão. A Fazenda pode pedir a falência do devedor com base em prejuízo "de qualquer forma a livre concorrência ou a livre iniciativa". O pedido de falência passa a ser instrumento de controle das estruturas da concorrência. E, quando esse pedido for formulado, ao devedor não é permitido nem requerer, na contestação, a recuperação judicial. Sequer pode alegar pagamento, prescrição ou as defesas relacionadas ao crédito da Fazenda Pública. O direito à ampla defesa é suprimido. Qual será o conceito de livre iniciativa para fins de falência? Também possibilita o pedido de falência a falta de aviso à Fazenda sobre alienação ou oneração de bens, quando essa comunicação for exigência de lei. É o cabresto da Fazenda atuando impiedosamente. 2. Enquanto, de um lado, o projeto desvincula a Fazenda do processo de recuperação judicial, na falência, cria vantagens processuais e materiais. Com efeito, o projeto obriga o juiz a instaurar, de ofício, incidente de classificação de crédito público (art. 7º-A). Nessa inusitada figura, a Fazenda apresentará relação dos créditos inscritos na dívida ativa, sem que o juiz ou o administrador judicial possam se pronunciar sobre a existência do crédito. Só podem falar sobre cálculos e sobre a classificação, pois a competência para decidir sobre a existência, exigibilidade e valor é do juízo da execução fiscal. Parece que se pretendeu seguir o modelo do crédito trabalhista, cujo desenho na lei decorre de previsão constitucional e, certamente, é uma necessidade, enquanto que para o crédito da Fazenda trata-se de uma opção. Esse incidente de classificação de crédito, de instauração obrigatória, é uma comodidade para a Fazenda, que não precisará promover habilitação de crédito. E se a fazenda perder o prazo, de 30 dias, para apresentar a relação dos créditos, poderá requerer o desarquivamento, e ao que tudo indica, a qualquer tempo. Está excluída a condenação em honorários advocatícios no incidente de classificação de crédito público. A vocação dos processos concursais é a universalização. O projeto fragmenta em vez de concentrar, de sorte que informações necessárias à visão global do processo falimentar não estarão presentes nos autos do processo falimentar; terão de ser procuradas alhures. O projeto altera a ordem de pagamentos. Novamente, a Fazenda é aquinhoada com mais vantagens. Além de derrogar diversas leis, como o Código Civil, com a extinção de créditos privilegiados, os créditos não tributários da Fazenda Pública passam a integrar a classe IV no rol do art. 83, à frente dos quirografários. Institui-se direito de restituição relativamente a tributos passíveis de retenção na fonte, descontos de terceiro ou sub-rogação, e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos, o que é bastante amplo. Hoje, o pedido de restituição só existe para a contribuição previdenciária descontada do empregado e não recolhida aos cofres públicos. Os credores quirografários, aqueles que fornecem à empresa produtos e serviços, ou dinheiro, serão altamente prejudicados, pois, com mais uma classe à frente, e na companhia dos credores privilegiados, terão ainda mais diluídos o quinhão que lhes poderia tocar. Isso sem falar que o produto a ser rateado já terá sido comido pela maior presença do Fisco no crédito por restituição. 3. Passa a ser incumbência do administrador judicial, na falência e na recuperação judicial, "zelar pela regularidade do passivo fiscal". A expressão "zelar pela regularidade" exigirá interpretação afinada com a função exercida pelo administrador judicial no processo de recuperação. Como o crédito da Fazenda não se submete ao processo de recuperação, essa atividade cometida ao administrador judicial não guarda nenhuma pertinência com o processo. É atividade extrarrecuperacional, em prol de quem não se submete ao processo de recuperação. O projeto coloca o juiz (com o incidente do art. 7º-A) e o administrador judicial (pedindo a falência com fundamento em inadimplemento de crédito público) trabalhando em prol da Fazenda Pública. 4. Para finalizar. Apostando na pendência estéril de processos (uma tradição brasileira), após o encerramento da falência do empresário individual, o projeto extingue as obrigações pelo pagamento total, pagamento de 50% do passivo quirografário, ou pelo transcurso do prazo de dois anos, caso não tenha ocorrido a prática de crime. Para salvaguardar os credores, cria-se uma ação destinada a revogar a extinção das obrigações. É importante conceder ao empresário que faliu uma segunda chance, especialmente ao empresário individual. E é importante que isso ocorra logo, em fomento ao empreendedorismo, de que nosso país tanto necessita. Mas o projeto atrapalha a vida do empreendedor brasileiro, pois o Fisco só extinguirá o crédito após o transcurso do prazo prescricional previsto na legislação de regência (parágrafo único acrescentado ao art. 157). Além de não ajudar, a Fazenda ainda atrapalha. Em termos positivos, destaca-se a exigência de maior clareza na descrição das dívidas para com o Poder Público, o que já deve ser feito por ocasião da apresentação da petição inicial, e a previsão, no plano de recuperação, de considerar, na viabilidade econômica, o passivo fiscal. Há, também, uma tardia correção em relação aos impostos, algo a se louvar dentro do irracional sistema tributário brasileiro. 5. A verdade é que a Fazenda Pública capturou o projeto, e as vantagens a ela previstas são muito exageradas, e algumas delas darão margem a grande confusão na prática judiciária. Ainda que o projeto contenha, em relação aos demais aspectos (extrafazendários), bons avanços, o desequilíbrio em favor do crédito público é muito grande, e mais reforça o descompromisso do Estado com o destino da empresa em crise.
Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone O projeto apresentado pelo Ministério da Fazenda para alterar a Lei de Recuperação Judicial procurou modernizar o sistema recuperacional e falimentar brasileiro e assegurar impactos positivos sobre geração de emprego e renda, além de elevar a produtividade da economia. A despeito de aprimoramentos importantes na falência quanto à forma de liquidação de ativo, celeridade na arrecadação pelo administrador judicial e tratamento prioritário ao crédito decorrente de financiamento ao empresário, a alteração da minuta originalmente proposta pelo grupo de trabalho e sua subversão para que pudesse acomodar interesses de diversos grupos dominantes fizeram com que os dispositivos propostos quanto à recuperação judicial não apenas revelassem uma total incompreensão da realidade existente, como pudessem criar problemas onde até então eles não existiam, como ocorre com a possibilidade de apresentação de plano pelos credores. De forma a acelerar o processo de recuperação judicial, procurou o projeto de lei estabelecer que a realização da assembleia geral não poderia exceder 120 dias e perdurar por mais de 90 dias, caso suspensa. Todavia, dados coletados pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa de Insolvência da PUC/SP em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria sobre os processos de recuperação judicial das varas especializadas da capital de São Paulo identificaram que a mediana do período de aprovação de um plano de recuperação judicial é de 386 dias e a média é de 507 dias, a despeito de a lei ter imposto o prazo improrrogável de suspensão das ações e execuções em face do devedor em 180 dias. O número, para além de indicar que é irrelevante toda a discussão atual sobre se a aplicação do prazo de stay period de 180 dias é em dias corridos ou úteis, conforme o Código de Processo Civil, demonstra que reduzir de forma forçada o prazo para a composição dos credores e devedor seria inútil. Para além da desnecessidade, o decurso do prazo de 120 dias da decisão de processamento sem que o plano fosse aprovado permitiria que os próprios credores apresentassem plano de recuperação judicial, com a necessária destituição dos gestores do devedor, mesmo que não possuíssem a expressa concordância desse, com a ressalva de que não poderiam imputar aos sócios do devedor sacrifício do seu capital maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência. Pelo projeto, essa possibilidade de apresentação de plano alternativo procuraria evitar a "proposição pelos devedores de plano de recuperação judicial deslocados da realidade da empresa (em detrimento dos credores), prolongamento da recuperação judicial apenas com fins de postergar pagamento de tributos ou dilapidar patrimônio da empresa etc.". Todavia, na prática, a falta de negociação entre devedores e credores para a obtenção de uma solução comum para a crise que acomete a atividade empresarial apenas ocorre em parcela diminuta dos processos. Em 79,2% dos planos de recuperação judicial apresentados, os credores, por maioria de créditos e/ou cabeças em cada classe, compõem-se com o devedor e concordam com a proposta por ele apresentada, após intensa negociação e concessões recíprocas. A apresentação pelos credores de um plano de recuperação judicial não apenas impede que a recuperação judicial possa ser tida como uma solução consensual entre os maiores interessados na manutenção da atividade empresarial, como provoca incentivos perversos. A possibilidade de apresentação de plano após 120 dias assegura ao credor um estímulo para que não se esforce por uma solução comum com o devedor em um prazo inferior, o que compromete a celeridade almejada. A necessária destituição dos gestores como decorrente da apresentação do plano pelos credores implica, outrossim, desconsiderar que a crise empresarial pode ter sido causada por fenômenos externos, alheios à administração e tão frequentes na realidade nacional, como a contração de determinado mercado de produtos ou serviços, a supressão dos pagamentos de adquirentes relevantes ou a interrupção de fornecimento de mercadorias imprescindíveis. Vinculados diretamente à empresa, notadamente no contexto brasileiro composto quase que absolutamente por sociedades familiares ou de alta concentração das participações, a destituição obrigatória dos gestores não apenas poderá retirar da condução da atividade empresarial o profissional mais informado e apto a desempenhar a função, como poderá comprometer a própria viabilidade do desenvolvimento da atividade empresarial. Referida possibilidade aos credores poderá acentuar, não obstante, uma das principais críticas ao insucesso das recuperações judiciais: a busca tardia do empresário por uma alternativa jurídica a superar a crise econômico-financeira que o acomete. Diante do risco de expropriação de seus bens pelos credores por meio do plano de recuperação judicial por eles proposto e aprovado, o devedor é incentivado a evitar a recuperação judicial ao máximo, eventualmente até que sua crise não possa mais ser reversível e o instituto da recuperação judicial não lhe possa mais ser eficaz, em prejuízo do interesse de todos. Decerto aprimoramentos legais são necessários para que a recuperação judicial possa desempenhar toda a função para a qual foi concebida. A importação sem maiores reflexões de institutos jurídicos estrangeiros desconectados da realidade pátria, entretanto, poderá comprometer não apenas esses treze anos de amadurecimento doutrinário e jurisprudencial, como a própria eficiência do instituto da recuperação judicial.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Na semana passada, circulou notícia bastante relevante em matéria de recuperação judicial, extrajudicial e falência. De acordo com a notícia, o presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional projeto de lei que visa reformar a lei 11.101/20051. Referida proposta ganhou o número PL 10.220/2018 e encontra-se aguardando despacho do presidente da Câmara dos Deputados. Certamente, há ainda muito o que discutir sobre o tema, envolto em polêmicas e interesses os mais diversos. Ao que tudo indica, referido projeto de lei sofrerá significativas alterações ao longo de seu processo legislativo nas duas casas do Congresso e não há como estimar qualquer prazo para a sua deliberação. De todo modo, é válido desde logo relacionarmos algumas das mais importantes alterações contidas em referido projeto de lei. Trata-se, contudo, de proposta de reforma legislativa bastante extensa, que interfere em dezenas de dispositivos de lei, razão pela qual, dados os limites desta coluna, selecionamos 15 pontos em matéria de recuperação judicial - instituto que tem sido responsável pelas maiores discussões envolvendo a lei 11.101/2005 nos últimos anos. Antes de avançar, uma advertência: se você ainda não está familiarizado com o procedimento da recuperação judicial, recomendamos que dê uma olhada em texto anterior dessa coluna, no qual tratamos do assunto e apresentamos até mesmo um diagrama com as principais fases do procedimento recuperacional atual2. Vamos à análise do projeto. 1. Competência - o projeto propõe concentrar a recuperação judicial (e também a extrajudicial, assim como a falência) com passivo superior a 300.000 salários mínimos na capital do Estado ou do Distrito Federal onde se localizar o principal estabelecimento da empresa recuperanda. Ao que parece, o objetivo da lei consiste em concentrar as recuperações judiciais de maior repercussão em varas especializadas na matéria. O ponto negativo é o risco de se dificultar, pela distância, o acesso dos credores (notadamente, os credores pessoas físicas, como empregados, e microempresas) ao juízo da recuperação. 2. Publicidade e divulgação pela internet - o projeto acompanha tendência verificada no CPC/2015, de priorizar a publicidade e divulgação dos atos da recuperação pela internet, em sítio específico para este fim, deixando de lado a tradicional publicação de editais no Diário Oficial3. Nesse sentido, passariam a ser divulgados em sítio eletrônico: (i) a relação de credores elaborada pelo administrador judicial a partir das habilitações e divergências apresentadas pelos credores; (ii) o quadro geral de credores consolidado pelo administrador judicial com base nas decisões proferidas nas impugnações; (iii) a convocação da assembleia geral de credores. Isso sem falar que o deferimento do processamento da recuperação judicial também será sucedido de ampla divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico em cadastro no CNJ. Exige-se do administrador judicial, por fim, que mantenha sítio eletrônico na internet, para divulgação dos principais documentos e informações acerca da recuperação judicial. Tal inovação é positiva, pois não só desburocratiza as publicações na recuperação judicial, como poderá evitar custos associados à publicação de editais. A questão, contudo, deverá ser cuidadosamente regulamentada. 3. Ajuizamento da recuperação judicial como fato gerador do stay period e exclusão de limite temporal rígido - De acordo com a lei em vigor, a suspensão de ações e execuções contra a empresa em recuperação, assim como do curso da prescrição, conhecida como stay period, é deflagrada pelo despacho liminar do juiz que admite o processamento da recuperação judicial. Segundo o projeto, essa suspensão seria antecipada para o momento da apresentação do pedido de recuperação judicial. Em contrapartida, há previsão de que, caso o juiz identifique que o devedor atuou como dolo ou má-fé no pedido de recuperação judicial, fará constar o fato da sentença, para que seja considerado em futuros pedidos. A previsão não parece positiva, à primeira vista. A experiência mostra que sanções relacionadas à má-fé do litigante raramente são aplicadas pelo Poder Judiciário. Além disso, o dispositivo faz alusão a dolo ou má-fé (conceitos eminentemente subjetivos), quando a tendência contemporânea tem sido responsabilizar o litigante que simplesmente não se comporta objetivamente de acordo com standards de conduta de lealdade (boa-fé objetiva no processo). Desaparece, ainda, a limitação rígida de 180 dias para o stay period, passando a se prever que a suspensão perdurará até o encerramento da recuperação judicial. O projeto, neste ponto, se rende à realidade atual, em que o stay period costuma ser prorrogado até a deliberação do plano, sobretudo se a morosidade na recuperação judicial não pode ser imputada ao devedor, mas sim ao funcionamento do serviço judiciário. 4. Proibição de distribuição de lucros ou dividendos - o projeto proíbe que a pessoa jurídica em processo de recuperação judicial (ou falência) distribua lucros ou dividendos a sócios e acionistas. Medida positiva, pois não faz sentido que a empresa em situação de crise econômica promova tal distribuição na pendência da recuperação judicial, em patente prejuízo aos credores. 5. Atualização monetária dos créditos habilitados - os créditos habilitados, de acordo com o projeto, serão atualizados do pedido de recuperação até a concessão do plano de recuperação judicial, pelo índice da caderneta de poupança. Da concessão em diante a atualização obedecerá ao disposto no plano aprovado. Trata-se de regra melhor que a que vigora atualmente, em que os créditos são congelados até a data da concessão da recuperação judicial. 6. Processo competitivo para a escolha do administrador judicial - a proposta busca estabelecer, uma vez deferido o processamento da recuperação judicial, processo simplificado para a escolha do administrador judicial, em vez da nomeação direta de profissional de confiança do juiz, como ocorre hoje. Nesse sentido, o projeto dispõe que eventuais interessados deverão apresentar propostas em que indicarão o valor da remuneração, a forma e o prazo de pagamento, o escopo do trabalho e a sua avaliação sobre o grau de complexidade do trabalho e os cursos para o desempenho das funções de administrador judicial. O devedor e os credores poderão se manifestar sobre as propostas e, ao final, o juiz decidirá, fixando o valor da remuneração do administrador judicial. Há previsão, ainda, de recurso contra a decisão que fixar a remuneração do administrador judicial, o qual poderá ser interposto pelo credor que houver se manifestado - o projeto parece criar uma forma de preclusão para o credor que não tiver se manifestado anteriormente -, devedor, administrador judicial ou Ministério Público. Referido recurso não terá efeito suspensivo, devendo a remuneração ser paga de acordo com a decisão recorrida até o julgamento pelo tribunal. 7. Formas alternativas de deliberação à assembleia geral de credores presencial - o projeto contempla formas alternativas de deliberação pelos credores à assembleia presencial. Nesse sentido, a deliberação poderá ser substituída por termo de adesão firmado por tantos credores quantos satisfaçam o quórum de aprovação, por votação realizada por meio de sistema eletrônico ou, ainda, outro mecanismo reputado suficientemente seguro pelo juiz. Trata-se, por um lado, de forma de compensar o relativo distanciamento que pode ser proporcionado pela regra de competência referida no item 1, supra. Além disso, pode haver economia de tempo e dinheiro para a empresa em recuperação, que não terá que arcar com o aluguel de um local físico para a realização das assembleias. Resta saber se haverá suficiente publicidade e segurança nestas modalidades alternativas de deliberação, que aparentam ser um campo promissor para os negócios jurídicos processuais na recuperação judicial. 8. Disciplina do voto abusivo - tema sempre polêmico na recuperação judicial é a figura do voto abusivo, mediante o qual o voto de algum credor é desconsiderado porque realizado com abuso de direito. É que, neste caso, conflitam dois interesses: o do credor, que tem o direito de votar conforme seu próprio juízo de conveniência, e o da recuperanda, que pode ser vítima de pressões injustas dos credores com maiores créditos e, portanto, maior poder em assembleia. O projeto estabelece que o voto será considerado abusivo quando o credor dele se valer para obter vantagem ilícita, ou para exclusivamente prejudicar devedor ou terceiro, ou quando este é exercido por conta, ordem ou no interesse total ou parcial de outro que não o próprio credor, ou quando o credor tiver ajustado com devedor ou terceiro, de maneira a se excluir dos efeitos das disposições do plano de recuperação judicial. O assunto merece ser disciplinado, mas a proposta apresentada ainda necessita ser aprimorada, sendo insuficiente para um tratamento seguro sobre o tema. Em que pese a dificuldade de disciplinar objetivamente a matéria, ainda resta espaço muito amplo para uma análise casuística, sem critérios bem definidos. 9. Extinção das quatro classes legais de credores - a lei 11.101/2005, em sua configuração atual, estabelece quatro classes de credores: (I) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; (II) titulares de créditos com garantia real; (III) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados e (IV) titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte. Essas classes são extintas pelo projeto, que estabelece que as classes serão definidas conforme estabelecido pelo próprio plano de recuperação judicial. A proposta ainda prevê que os credores de cada classe devem possuir interesses homogêneos, delineados em função da natureza ou da importância do crédito, ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e aprovado pelo juiz. Créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho, entretanto, não poderão ser alocados pelo plano em classes que envolvam créditos de outra natureza. Referida disciplina causa preocupação, pois abriria margem para que a alocação de classes seja manipulada para favorecer indevidamente a aprovação de planos de recuperação judiciais. Ainda que seja previsto o controle judicial sobre as classes que vierem a ser delimitadas pelo plano, tal regime ensejaria insegurança jurídica e provavelmente seria fonte de muita controvérsia no curso da recuperação judicial, com repercussões significativas sobre o resultado da assembleia de credores. 10. Proteção do patrimônio de afetação - regra importante e positiva no projeto é a proteção ao patrimônio de afetação, o qual não se submete aos efeitos da recuperação judicial e obedecerá ao disposto em legislação específica, de forma a se manter separado e incomunicável em relação ao patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação e aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos, até que seja formalizado o ato de desafetação. Embora a adoção do regime de afetação patrimonial consista em simples faculdade do incorporador, trata-se de dispositivo com elevado impacto social. É comum que, em empreendimentos imobiliários, os adquirentes antecipem valores destinados à realização das obras e só recebam o seu imóvel depois. Famílias depositam em mãos do incorporador toda a economia de uma vida de trabalho para realizar o sonho da casa própria. Sem o patrimônio de incorporação - ou caso este se submetesse à recuperação judicial - os adquirentes correriam o risco de não conseguirem concluir as obras inacabadas do empreendimento e de terem que concorrer com os demais credores do incorporador4. Ainda que tal conclusão já possa ser alcançada com a legislação atual e existam precedentes, de forma acertada, afastando o patrimônio de afetação dos efeitos da recuperação judicial5, a explicitação desse regime jurídico se mostra positiva e traz maior segurança para os adquirentes de unidades imobiliárias. 11. Ampliação do prazo para a apresentação do plano de recuperação judicial? - O projeto propõe a ampliação do prazo de apresentação do plano, de sessenta para noventa dias, contado da data do deferimento do processamento da recuperação judicial. A ampliação, contudo, pode ser menor do que se imagina (de sessenta dias úteis para noventa dias corridos), na medida em que atualmente há diversos precedentes estabelecendo a contagem dos prazos na recuperação judicial em dias úteis, por aplicação subsidiária do art. 219 do CPC - em que pese recente julgado do STJ sinalizar em sentido contrário (STJ, REsp 1.699.528, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 10/4/2018, acórdão pendente de publicação). A proposta legislativa em análise, por sua vez, estabelece que todos os prazos previstos na lei 11.101/2005 - incluindo o que ora se discute - serão computados em dias corridos, preservando-se, contudo, a contagem em dias úteis para os recursos interpostos na recuperação judicial, extrajudicial e falência. 12. Limites temporais mais estritos para a assembleia geral de credores - ao contrário da legislação atual, que determina a realização da assembleia geral de credores apenas se apresentada alguma objeção ao plano de recuperação judicial, de acordo com o projeto, esta audiência será sempre convocada. A assembleia deve se realizar em, no máximo, 120 dias (contra 150 dias da legislação vigente), contado da data do deferimento do processamento da recuperação judicial. Além disso, caso deliberada a suspensão da assembleia, esta deverá ser encerrada em no máximo 90 dias, contado da data de sua instalação. Trata-se de evidente tentativa de evitar sucessivas suspensões da assembleia, realidade não raras vezes observada por não avançarem as negociações entre a recuperanda e seus principais credores a respeito das condições do plano, o que retarda por vários meses - em casos extremos, até anos - o desfecho da recuperação judicial. 13. Plano posto em votação mesmo sem concordância do devedor - uma vez encerrado o prazo legal sem que tenha sido realizada a assembleia geral de credores, de acordo com o projeto em análise, abre-se a possibilidade de se colocar em votação plano que não obtenha a expressa concordância do devedor, desde que: (i) conte com o apoio por escrito de credores que representem mais de um terço dos créditos totais sujeitos à recuperação e que tenham negociado de boa-fé; (ii) não impute obrigações novas aos sócios do devedor e (iii) não implique sacrifício do capital dos sócios do devedor maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência. Trata-se de possibilidade que contrasta com a legislação atual, em que o plano é sempre submetido à assembleia pela recuperanda e toda e qualquer modificação de suas condições deve contar com concordância expressa do devedor. 14. Consolidação processual e substancial - a experiência acumulada com o instituto da recuperação judicial demonstrou ser relativamente comum que grupos econômicos inteiros entrem em situação de crise econômica, sendo conveniente a consolidação dos procedimentos recuperacionais. Como a matéria não está prevista na lei 11.101/2005 em sua redação atual, a jurisprudência vem, pouco a pouco, delimitando os requisitos para que ocorra a consolidação processual (em que várias empresas de um mesmo grupo societário atuam em litisconsórcio na recuperação judicial, mas preservam relações separadas de credores para cada uma delas e quóruns de votação autônomos em assembleia) ou mesmo a consolidação substancial (em que não somente há litisconsórcio na recuperação judicial, mas as relações de credores das empresas recuperandas são unificadas, assim como os quóruns de votação em assembleia). O projeto em tela estabelece que a consolidação processual poderá se dar desde que as empresas em recuperação integrem grupo sob controle societário comum, caso em que a competência incumbirá ao juízo do local do principal estabelecimento entre os dos devedores. Apesar de um único administrador judicial ser nomeado para todas as empresas, permanecem independentes todas elas quanto aos seus ativos e passivos. Alteração significativa, contudo, se verificaria quanto à consolidação substancial, mecanismo que, na legislação atual, por vezes é utilizado como arma estratégica para ampliar as chances de aprovação de planos de recuperação judicial, diluindo o crédito representado por algum credor mais duro na negociação com o devedor na massa global de créditos de todo o grupo econômico. De acordo com a proposta, a consolidação substancial passa a ser vista como uma sanção contra os devedores, a ser decretada de ofício pelo juiz, nos casos de confusão entre ativos ou passivos ou de envolvimento das recuperandas em fraude que imponha tal medida. Nesse sentido, a consolidação substancial implicaria, ainda de acordo com o projeto, não somente a unificação das relações de credores e do plano de recuperação judicial, mas também a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal. 15. Contagem de prazos e cabimento de agravo de instrumento - o projeto, como já visto, acolhe a orientação recente do STJ (REsp 1.699.528, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 10/4/2018, acórdão pendente de publicação), segundo a qual os prazos da lei 11.101/2005 devem ser computados em dias corridos. Ficam ressalvados os prazos recursais, assim como os prazos processuais previstos em outras leis, que continuarão a ser contados em dias úteis. Além disso, a proposta legislativa, de forma acertada, explicita que caberá agravo de instrumento contra todas as decisões proferidas na recuperação judicial (assim como na recuperação extrajudicial e na falência), salvo se a lei 11.101/2005 regular a questão de forma diversa. A opção se revela acertada, pois - assim como ocorre na execução, na liquidação de sentença, no cumprimento de sentença e no inventário (art. 1.015, parágrafo único do CPC) - não há perspectiva de interposição de apelação em tempo hábil na recuperação judicial, a ponto de justificar o regime de recorribilidade diferida para as decisões interlocutórias que não encontram previsão no art. 1.015 do CPC/20156. Embora tal conclusão já pudesse ser extraída da legislação em vigor7, tendo em vista existirem precedentes divergentes sobre o tema8, a proposta de modificação se mostra acertada - ainda que se tenha o receio de que o tempo necessário para a tramitação legislativa do projeto torne superada a questão, mediante a formação de precedentes vinculantes, notadamente em sede de recurso especial repetitivo, o que já uniformizaria a disciplina da matéria para todo o país. * * * Como se vê, são muitos pontos a serem abordados no PL 10.220/2018, ainda em fase inicial de tramitação legislativa no Congresso. Não só haveria várias outras questões na própria recuperação judicial que, dadas as limitações desta coluna, não foram abordadas, como há muitas inovações também na recuperação extrajudicial e na falência. Isso para não falar de um capítulo inteiro novo contemplado no projeto, que trata da chamada "insolvência transfronteiriça", fenômeno cada vez mais comum no mundo contemporâneo, em que as atividades econômicas não se limitam às fronteiras dos países. A proposta legislativa se revela bastante complexa e ainda deve ser muito debatida e aprimorada. Acompanharemos atentamente a sua tramitação e retornaremos ao assunto, à medida que a matéria avançar no Congresso Nacional e as discussões ganharem amadurecimento. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Confira-se, entre outras páginas que veicularam a informação. 2 Andre Roque e Luiz Dellore. O passo a passo de de um processo de recuperação judicial. Migalhas, publicado em 7/11/2017. 3 Nesse sentido, arts. 257, II (citação por edital), 741 (arrecadação da herança jacente), 745 (arrecadação dos bens dos ausentes), 746 § 2º (arrecadação das coisas vagas), 755, § 3º (sentença de interdição) e 887, § 2º (edital do leilão judicial), todos do CPC. 4 Sobre o ponto, Milena Donato Oliva. Desvendando o patrimônio de afetação, Jota, publicado em 25/10/2017. 5 Nesse sentido, entre outros, TJSP, Agravo de Instrumento 2236772-85.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12/6/2017; TJ/SP, Agravo de Instrumento 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12/6/2017. 6 Sobre o ponto, v. Andre Roque e Bernardo Barreto Baptista. O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação funcional. Migalhas, publicado em 3/8/2015. 7 Nesse sentido, dispõe o Enunciado 69 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal: "A hipótese do art. 1.015, parágrafo único, do CPC abrange os processos concursais, de falência e recuperação". 8 Para uma pesquisa sobre os precedentes divergentes sobre a matéria, v. Andre Roque. O agravo de instrumento na recuperação judicial e na falência: radiografia e prognósticos. Migalhas, publicado em 12/12/2017.
  Texto de autoria de Paulo Furtado Em 2005, foram instaladas duas varas especializadas em recuperações judicias e falências na comarca de São Paulo. Os hoje desembargadores Alexandre Alves Lazzarini e Caio Marcelo Mendes de Oliveira assumiram, respectivamente, a 1ª e a 2ª vara. Imaginem como deve ter sido desafiador aplicar a lei 11.101/2005 depois de sessenta anos de vigência do decreto-lei 7.661/45. Logo no início de sua atuação à frente da 1ª vara, o então juiz Alexandre Lazzarini se viu diante de caso complexo de recuperação judicial, que envolvia a VASP, e assim despachou: "(....) a lei 11.101/2005 é clara e quando fixa os requisitos para a postulação do processamento da recuperação judicial (art. 51), o faz considerando eles necessários para que o instituto preserve os seus princípios fundamentais (art. 47). 6) (...) em face da peculiaridade da intervenção existente e do tamanho da empresa, de cunho nacional, nomeio o advogado Alfredo Luis Kugelmas e o contador José Vanderlei Masson dos Santos, endereços em cartório, para verificarem se a devedora terá condição, e quanto tempo aproximadamente em caso positivo, para apresentar os documentos exigidos no art. 51, II e VIII, da LRF, bem como se os documentos a que se referem os incisos III e IV do mesmo art. 51, e os demais exigidos, estão formalmente em ordem e de acordo com os dados contábeis da empresa (LRF, art. 51, § 1º), no prazo de 20 (vinte) dias. Observo que não se discute a viabilidade da recuperação judicial neste momento, mas, tão somente, a possibilidade de se preencher os requisitos legais para se obter o processamento. Assim, os ilustres peritos não devem se manifestar quanto aquele fato. Para tanto, fixo os honorários de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais) para cada um, que deve ser depositado em 5 (cinco) dias. Deposite a devedora os honorários. 7) Após, será decidido a respeito de prazo para aditamento e quanto as intimações requeridas, anotando-se, porém, que as custas deverão ser recolhidas, em prazo a ser fixado". É isso mesmo, caro leitor: já no ano de 2005 e em caráter excepcional, porque a Vasp encontrava-se sob intervenção decretada pela Justiça do Trabalho, determinou-se uma perícia prévia para apurar se os documentos exigidos no art. 51 da lei 11.101/2005 estavam em ordem. Frisou-se que não estava em questão a viabilidade da empresa, mas tão somente a verificação da adequação dos documentos apresentados pela recuperanda. Ocorre que tal perícia prévia, de caráter excepcional, passou a ser adotada como regra nos processos em trâmite na 1ª vara, como se fosse uma fase obrigatória em todos os processos de recuperação judicial. Trata-se, contudo, de um equívoco que infelizmente tem se disseminado em outros juízos, de forma indiscriminada, sem se atentar para os problemas provocados pela adoção generalizada desta prática. De acordo com a legislação brasileira, só o devedor em crise pode ajuizar o pedido de recuperação judicial. Cabe a ele exclusivamente a iniciativa de tentar a solução da sua crise pelo meio judicial. E o artigo 52 da lei 11.101/2005 dispõe que, estando em termos a documentação exigida no artigo 51 da mesma lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial. A lei 11.101/2005 não atribuiu ao juízo da recuperação neste momento inicial um juízo de cognição exauriente sobre o estado de crise da empresa. Quem fará tal análise são os credores, após a apresentação do plano de recuperação pelo devedor. Aprovado o plano, permanecerá em atividade o devedor; rejeitado o plano do devedor, será decretada a sua falência. Portanto, a análise da documentação elencada no artigo 51 cabe ao juiz que preside o processo de recuperação, e não ao administrador judicial. O juiz não fará um mero check list da presença de todos documentos, mas um juízo de cognição sumária dos fatos, para o que, entende-se, tem plenas condições, na maioria dos casos, mesmo sem o auxílio de um perito. A realização da perícia prévia, portanto, não pode tornar-se regra nos processos de recuperação judicial e por uma razão muito simples: ao deferir o processamento da recuperação judicial o magistrado deve fazer um juízo de cognição sumária dos fatos, sem qualquer pretensão exauriente. Além disso, a excepcionalidade da perícia prévia justifica-se também pela preservação do papel atribuído a cada um dos sujeitos processuais e dos impactos negativos provocados pela utilização indiscriminada desta medida. Para a perícia prévia o juiz tem nomeado profissionais que irão realizar o trabalho técnico e, no caso de deferimento do processamento da recuperação judicial, esses mesmos profissionais serão designados como administradores judiciais da empresa periciada. Essa situação gera um risco de parcialidade do profissional que receberá honorários para chancelar ou não o início de um processo de recuperação. Na prática, o administrador judicial tem sido nomeado para realizar seu trabalho em 5 dias. Difícil a tarefa de apurar com segurança, em tempo tão escasso, fraudes por parte do devedor que vem a juízo pleitear a recuperação judicial. Se o objetivo é impedir pedidos fraudulentos, é preciso realizar trabalho aprofundado e que toma tempo, sob pena do trabalho técnico ser inócuo ou meramente formal. Porém, quando os devedores apresentam seus pedidos de recuperação judicial, têm pressa de ver deferido o seu processamento e suspensas as ações e execuções individuais. Postergar esse momento justifica-se apenas em casos excepcionais, na medida em que o stay period é da essência de qualquer procedimento de insolvência. Para alguns devedores, ainda, o custo da perícia prévia não pode ser desconsiderado, constituindo muitas vezes mais um entrave ao custoso processo de recuperação judicial. A maioria dos devedores, contudo, parece estar se conformando com a determinação da perícia prévia, evitando a interposição de recursos. O devedor submete-se ao poder do juízo que lhe impôs a realização de perícia e o pagamento dos honorários do futuro administrador, tudo para que a tão esperada decisão de deferimento do processamento ocorra o quanto antes. Em busca de jurisprudência envolvendo perícia prévia, são encontrados aproximadamente 20 julgados pelas Câmaras Empresariais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apenas pouquíssimos enfrentam diretamente o tema, a confirmar a submissão do devedor no momento antecedente ao deferimento da recuperação. Como destacou o desembargador Fortes Barbosa no julgamento do agravo de instrumento 2184085-34.2016.8.26.0000, ainda que por vezes o magistrado não detenha conhecimentos técnicos suficientes para apreciar a regularidade da documentação contábil apresentada, é preciso evidências de elementos contundentes a apontar a inviabilidade da recuperação ou a utilização abusiva da benesse legal, a justificar o risco de eventual paralisação da atividade empresarial até que a perícia se realize e seja deferido o processamento da recuperação. Como se vê, a perícia prévia pode constituir ferramenta importante a evitar o uso abusivo da recuperação judicial, sobretudo para finalidade fraudulenta, o que, por certo, não constitui regra. Não havendo qualquer suspeita fundada de fraude no pedido, não há razão para a adoção de tal medida. Como o juiz competente é o do principal estabelecimento do devedor, ele reúne condições, sobretudo em comarcas de menor porte, de deferir ou não o processamento da recuperação judicial. Além do exame dos documentos juntados com a petição inicial, o juiz conhece a realidade local e pode extrair do movimento forense informação que permita concluir que determinada sociedade encontra-se em crise. Não há sentido em realizar perícia prévia em pedido de recuperação judicial do principal supermercado em uma pequena comarca, que notoriamente está em atividade, mas tem várias ações contra ele ajuizadas, além de inúmeros títulos protestados, o que revela a sua inequívoca situação de crise e o interesse de buscar a solução judicial. Também não há razão para realização de perícia prévia em pedidos de recuperação judicial de companhias abertas, cujas demonstrações financeiras são auditadas e divulgadas periodicamente, e cuja obrigação de divulgar fatos relevantes ao mercado, reunindo o juiz plenas condições de examinar os documentos e decidir pelo deferimento ou não do processamento do pedido. O juiz que não examina os documentos elencados no art. 51 da lei 11.101/2005, relegando esta função ao perito, comodamente deixa de realizar uma das atribuições inerentes ao exercício do relevante mister que lhe foi confiado. Quem não procura se desincumbir desta atividade, não aprende com os casos que lhe são confiados. Afirmar-se que a perícia prévia permite identificar com segurança que o requerente da recuperação judicial é inviável, na verdade, pode servir a diversas finalidades, até mesmo como mecanismo para evitar o aumento vertiginoso no volume de processos em períodos de crise econômica. Ocorre que essa prática acaba por ir de encontro a dois objetivos fundamentais da lei 11.101/2005: recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; e retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis. Retornando ao exemplo do supermercado, suponha-se que o juiz determine a perícia prévia e o perito aponte a inviabilidade da atividade. Para quem sustenta o cabimento da perícia prévia, o juiz deverá indeferir de plano o pedido. Um processo a menos. Contudo, tal decisão priva os credores de decidir se a empresa deve ou não permanecer no mercado. O juiz simplesmente devolve ao mercado uma empresa inviável, quando, pelos objetivos do nosso sistema de insolvência, deveria ser processado o pedido e, caso constatada a inviabilidade do plano de recuperação, ser decretada a falência e retirado do mercado o empresário. Ademais, mesmo que os credores aprovem o plano de recuperação judicial, há a possibilidade de convolação em falência, nos casos de descumprimento dos deveres impostos ao devedor. Trata-se medida muito mais benéfica para os casos de inviabilidade do que a manutenção da empresa no mercado, a gerar abalo ainda mais nefasto aos credores, sujeitos a toda sorte de diferenciações e condutas de dilapidação do patrimônio, em um verdadeiro "salve-se quem chegar primeiro". Também não se pode perder de vista que um dos objetivos declarados pelo legislador é o maior rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Quando a perícia prévia leva o juiz a indeferir de plano o processamento do pedido, deixa de existir uma condição objetiva de punibilidade de crime falimentar. Com isso, o empresário que tentou fraudar credores, fazendo uso abusivo do pedido de recuperação judicial, não sofrerá consequências de natureza penal, frustrando um dos objetivos do nosso sistema de insolvência. Por outro lado, a aplicação da legislação penal é mais eficiente para evitar futuros pedidos fraudulentos, pois fortalece nos agentes econômicos a sensação de que haverá efetiva persecução penal. Portanto, a perícia prévia não constitui mais uma fase do processo de recuperação judicial. A repercussão de sua utilização indiscriminada, com ares de benefício aos envolvidos e à sociedade em geral, deve ser vista cum grano salis, sob pena de, em um verdadeiro paradoxo, dar ao juiz poderes que não lhe foram conferidos pelo nosso sistema de insolvência brasileiro, ao mesmo tempo em que lhe retira o dever de analisar os documentos que instruem a inicial da recuperação judicial. Para os casos específicos e excepcionais, nos quais exista fundado receio de que a empresa estaria utilizando a recuperação judicial para finalidade fraudulenta, a perícia prévia mostra-se útil e adequada, porém, frise-se, trata-se de exceção que não pode virar regra!
Texto de autoria de Luiz Dellore Na semana passada, no dia 9 de abril, o Migalhas noticiou, em pequena migalha, que o STJ decidiria a respeito da contagem de prazos na recuperação judicial1. Dois dias depois, vem a informação de que o STJ decidiu pela contagem em dias corridos, considerando o "microssistema da lei de recuperação judicial"2. Ainda não se tem o inteiro teor do acórdão - que, por certo, poderá ser objeto de outros recursos antes do trânsito em julgado -, mas a notícia divulgada pelo STJ dá a entender que a regra, na recuperação judicial, deve ser a contagem dos prazos em dias corridos. Não sem razão, essa decisão deixou apreensivos aqueles que militam na área. Assim, antes mesmo do acesso ao inteiro teor do acórdão e do trânsito em julgado dessa decisão, vale tecer algumas reflexões, a partir de questões que foram levantadas ao longo da semana passada por quem atua no âmbito recuperacional. De início, conveniente destacar que a polêmica quanto aos prazos não é nova: em coluna anterior, tratei da contagem do prazo de 180 de suspensão das demandas (stay period), destacando como havia forte divergência a respeito desse tema3. Mas, afora a contagem do stay period, não havia maiores debates quanto aos demais prazos; porém, após essa decisão do STJ, há... Mas vejamos as questões que decorrem do julgado do STJ. 1) Qual foi o recurso julgado? Por qual órgão julgador? A decisão foi por unanimidade? O STJ, por meio de sua 4ª Turma, julgou o REsp 1.699.528/MG, relator Ministro Luis Felipe Salomão. A decisão foi por unanimidade (4x0). Vale destacar que as turmas são compostas por 5 ministros, sendo que um não votou, por força de impedimento. 2) Por esse julgado, quais são os prazos que devem ser contados em dias úteis? Essa é a grande dúvida envolvendo o acórdão. Reitere-se que ainda não se tem o inteiro teor do acórdão, mas somente informações passadas pela assessoria de imprensa do STJ. Pela notícia divulgada, em um primeiro momento, seriam apenas 2 prazos que teriam sido objeto de decisão pelo acórdão: (i) prazo do stay period4 e (ii) prazo para apresentação do plano de recuperação judicial. Porém, pela argumentação reproduzida na notícia (e que pode ter sido apenas tratada de forma lateral na decisão - ou seja, em obter dictum e não como ratio decidendi, ainda não sabemos), é possível intuir que outros prazos também sejam contados em dias corridos. Isso porque alguns trechos que foram divulgados permitem assim concluir. Vejamos (grifos nossos): "O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e unidade do sistema, engendrado para ser solucionado, em regra, em 180 dias depois do deferimento de seu processamento." "A contagem em dias úteis poderá colapsar o sistema da recuperação quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e, por outro lado, na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista que incorreria numa dualidade de tratamento." "(a aplicação do CPC/15) deve ter cunho eminentemente excepcional, incidindo tão somente de forma subsidiária e supletiva, desde que se constate evidente compatibilidade à natureza e ao espírito do procedimento especial, dando-se sempre prevalência às regras e princípios específicos da Lei de Recuperação e com vistas a atender o desígnio de sua norma-princípio disposta no artigo 47." Ora, esses trechos permitem concluir que, no âmbito das recuperações judiciais e falências, qualquer prazo deve ser contado em dias corridos. E isso basicamente pois - no entender do relator -a lei especial determina que os prazos sejam contínuos (ainda que, conveniente ressaltar, não haja previsão da forma de contagem de prazos na lei 11.101/2005) Esses excertos do acórdão, portanto, podem ser utilizados por juízes e desembargadores para apontar que todo e qualquer prazo da recuperação seja contado em dias corridos. E isso traz insegurança e pode acarretar o risco de perda de prazos. Assim, essa instabilidade é muito ruim para todos que militam no foro. 3) E os prazos recursais, devem ser contados em dias úteis ou corridos? Em linha com o exposto no item anterior, a notícia do julgado não esclarece exatamente quais são os prazos contados em dias úteis. Porém, considerando que os recursos não se referem ao procedimento recuperacional em si, em sua tramitação em 1º grau5, é possível intuir que os prazos recursais seguem sendo contados em dias úteis. Contudo, uma vez mais, resta aguardar o inteiro teor do acórdão, bem como eventuais recursos, para se apurar a abrangência do julgado. De qualquer forma, em conversas informais que tive com desembargadores a respeito do assunto na semana passada, alguns disseram que acham bastante plausível a contagem do prazo em dias corridos mesmo em relação aos recursos. Exatamente por se tratar de um microssistema, tal qual os Juizados Especiais. 4) A decisão é vinculante? Ou seja, juízes de 1º grau e desembargadores podem decidir em sentido contrário? Há algo que possa ser feito pelos advogados? Outra grande dúvida decorrente da decisão do STJ: ela deve, desde logo, ser seguida por todos? A resposta é negativa. Não se trata de um julgado que, pelo NCPC, tem força vinculante (as decisões vinculantes estão previstas no art. 927). Não se trata de um recurso repetitivo, mas somente de um recurso especial. Assim, sua decisão é meramente persuasiva. Logo, ainda que seja um importante julgado, não necessita ser seguido pelos demais julgadores, nos tribunais intermediários ou em 1º grau. Dessa forma, juízes de 1º grau, na decisão que defere o processamento podem (na verdade, dada a polêmica ora posta, devem) esclarecer, desde o início, como se dará a contagem dos prazos no âmbito daquela recuperação judicial. O juiz deve assim proceder inclusive com base nos princípios da cooperação e vedação de decisão surpresa (NCPC, arts. 6º e 10), indicando quais prazos são em dias úteis e quais são em dias corridos (ou, como muitas vezes se verifica, que todos os prazos são em dias úteis). De seu turno, se o juiz não esclarecer isso desde o início, poderá o advogado (seja da recuperanda, seja de qualquer dos credores) embargar de declaração pleiteando que a questão seja esclarecida, exatamente por força dos princípios acima expostos e considerando a polêmica decorrente da decisão do STJ. E, por certo, da decisão do juiz, qualquer que seja ela, cabível agravo de instrumento ao TJ para se buscar afastar essa forma de contagem de prazo6. Contudo, em relação ao prazo recursal, não há um mecanismo que previamente permita se verificar, com segurança para o caso concreto, qual será o entendimento do relator, se dias úteis ou corridos. Assim, o mais conveniente é estudar a jurisprudência do respectivo tribunal e verificar se, após esse julgado do STJ, teremos alguma modificação de entendimento quanto ao prazo recursal passar a ser em dias corridos. Novamente, algo bastante inseguro e ruim para a atuação dos advogados em juízo. 5) Como a decisão ainda não transitou, quais são os recursos cabíveis? Tendo em vista que sequer houve a publicação do acórdão, inicialmente necessário aguardar esse ato. A seguir, será possível a oposição de embargos declaratórios e, eventualmente, embargos de divergência. Mas isso somente será possível pelos legitimados nesse processo. Em relação a terceiros que não participem desse processo, a rigor não seria cabível recurso nesse recurso, mas eventualmente um incidente para pacificar a questão (vide abaixo). 6) Como pacificar a questão e obter uma decisão vinculante para o tema da contagem de prazos? É certo que o mais conveniente é se ter, o quanto antes, uma decisão vinculante e clara quanto a (i) se o prazo é em dias úteis ou corridos e (ii) quais são os prazos contados de cada maneira. Para isso, necessário que se tenha uma decisão proferida com base no art. 927 do NCPC. E o mais simples para que isso ocorra é via recurso especial repetitivo (REsp repetitivo - art. 1.036) ou por meio de incidente de assunção de competência (IAC - art. 947). Como o REsp 1.699.528 já foi julgado, um pouco mais complexo que se use esse próprio julgado para ser afetado como repetitivo. Mas isso pode acontecer com outro REsp que trate do tema. De seu turno, quando da oposição de embargos declaratórios, pode-se cogitar de instauração de IAC nesse próprio recurso (ou, igualmente, em qualquer outro recurso perante o STJ). Assim, a partir desse ou de outro recurso, com IAC ou REsp repetitivo, pode-se atingir a prolação de um precedente vinculante. E, quando isso se definir (esperamos que logo), a rigor estará afastado esse grave problema de algo tão básico como o prazo. Até lá, cautela aos advogados e moderação aos julgadores. __________ 1 STJ definirá se prazos na recuperação judicial devem ser em dias úteis ou corridos. 2 CPC/15 não alterou contagem de prazos na recuperação judicial, que deve ser em dias corridos. 3 Prazo de 180 dias de suspensão das demandas na recuperação judicial (stay period): dias úteis ou corridos? 4 A respeito desse tema, de fato já havia grande polêmica, como destacado em coluna anterior (vide nota de rodapé 3). 5 Para verificar a tramitação do procedimento de recuperação, remete-se o leitor a outro texto desta coluna, escrito em coautoria com Andre Roque: "O passo a passo de um processo de recuperação judicial". 6 A respeito do cabimento do agravo de instrumento nas recuperações, vide a coluna "O agravo de instrumento da recuperação judicial e na falência", de Andre Roque. __________ *A opinião manifestada no artigo é única e exclusivamente do autor que o redigiu, não representando a visão dos outros colunistas de Insolvência em Foco.
Daniel Carnio Costa A perícia prévia consiste em uma constatação informal determinada pelo magistrado antes da decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial, com a finalidade de averiguar a regularidade da documentação técnica que acompanha a petição inicial, bem como as reais condições de funcionamento da empresa requerente, de modo a conferir ao magistrado condições mais adequadas para decidir sobre o deferimento ou não do início do processo de recuperação judicial. Trata-se de providência que visa garantir a aplicação regular e efetiva da recuperação judicial em defesa da preservação dos interesses público, social e dos credores. A providência judicial não decorre de artigo expresso de lei, mas da interpretação adequada do artigo 52 da lei 11.101/05. O processo de recuperação judicial é uma das ferramentas legais do sistema de insolvência empresarial brasileiro que se destina a proporcionar ao empresário/sociedade empresária em crise a oportunidade de renegociar suas dívidas com seus credores, de modo a preservar a atividade empresarial e todos os benefícios econômicos e sociais que decorrem dessa atividade, quais seja, os empregos, a renda dos trabalhadores, a circulação de bens, produtos, serviços, o recolhimento de tributos e a geração de riquezas em geral. Tem-se, portanto, que a capacidade da empresa em crise gerar empregos e renda, circular produtos, serviços, riquezas e recolher tributos é pressuposto lógico do processo de recuperação judicial. Em suma, é essencial que a empresa tenha condições de gerar os benefícios que a lei busca preservar através da recuperação judicial. Tratando-se de empresa inviável, que não gera tais benefícios, a ela se deve aplicar a outra ferramenta legal do sistema de insolvência empresarial, qual seja, a falência. Desse modo, a recuperação judicial aplica-se às empresas em crise, mas que têm condições de gerar benefícios econômicos e sociais no exercício de sua atividade empresarial. Empresas absolutamente inviáveis, que não tem condições de gerar benefícios econômicos e sociais através de sua atividade, devem ser falir. A identificação da real condição da empresa em crise é essencial para a correta aplicação do remédio legal. Vale dizer, não se deve aplicar recuperação judicial para empresas absolutamente inviáveis, nem se deve aplicar falência para empresas cujas atividades mereciam ser preservadas em função dos benefícios que potencialmente seriam gerados em favor do interesse público e social. A aplicação errada da ferramenta legal do sistema de insolvência empresarial gera prejuízos sociais gravíssimos, seja pelo encerramento de atividades viáveis com a perda dos potenciais empregos, tributos e riquezas que ela poderia gerar, seja pela manutenção artificial em funcionamento de empresas inviáveis e que não geram os benefícios econômicos e sociais em prejuízo do interesse da sociedade e do bom funcionamento da economia. É nesse contexto que se insere a prática da perícia prévia. Há necessidade de se identificar com segurança se a empresa requerente da recuperação judicial enquadra-se na situação para a qual essa ferramenta legal foi desenvolvida, sob pena de se correr o risco de se dispender todo o esforço judicial e legal em vão, para preservar atividades estéreis, não geradoras de qualquer benefício que justificasse o esforço imposto aos credores e à sociedade em geral. A perícia prévia surgiu em razão da observação da situações reais ocorridas a partir de 2011 em processos ajuizados perante a 1a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. Em alguns pedidos de recuperação judicial, depois de deferido o processamento do pedido (com imposição do stay period aos credores em geral) e por ocasião da primeira visita que o administrador judicial nomeado fazia ao estabelecimento comercial da devedora, se constatava que a empresa não tinha mais qualquer atividade, nem tinha condições de gerar qualquer benefício decorrente da atividade empresarial. Tratavam-se de empresas que só existiam formalmente, no papel, mas que não geravam empregos, nem circulavam produtos ou serviços, nem tampouco geravam tributos ou riquezas. Em outros casos, deferia-se o processamento da recuperação judicial com base na análise meramente formal feita pelo juiz sobre a documentação apresentada pela devedora. Depois, quando o administrador judicial realizava a análise técnica desses documentos (com o auxilio de sua equipe multidisciplinar), descobria-se que os documentos estavam completamente falhos, incompletos e não refletiam a real situação da empresa. Mas essas não eram as únicas inconveniências. Foram presenciadas situações ainda piores, nas quais se constatava que o pedido de recuperação judicial era parte de um esquema fraudulento contra os credores, mas somente depois que o processo de recuperação judicial já estava em andamento, quando a devedora/fraudadora gozava da proteção judicial contra os seus credores decorrente do processamento do pedido recuperacional. Diante dessas situações, pensava o juízo consigo mesmo: qual é o sentido de se iniciar o processo de recuperação judicial, impondo aos credores e à sociedade como um todo os pesados ônus da recuperação da empresa (renegociação dos créditos, alteração das condições originais dos negócios firmados com a devedora e suspensão das ações e execuções já ajuizadas contra a devedora) se, desde logo, já se pode verificar que a empresa devedora não gera os benefícios que a lei busca preservar através da aplicação da recuperação judicial? O que justifica impor aos credores esses ônus se não haverá uma contraprestação de interesse social/público que corresponda àquele sacrifício imposto aos credores? Surgiu a necessidade, portanto, de se desenvolver um mecanismo de verificação previa da documentação técnica apresentada pela devedora e de suas reais condições de funcionamento como forma de se garantir a efetividade da recuperação judicial, sua adequada aplicação em benefício da sociedade e da economia nacional, combatendo-se o uso desviado e fraudulento da Justiça. Não havia (e não há) previsão legal expressa que autorize o juiz da recuperação a determinar uma verificação prévia dos documentos previstos no art. 51 da lei 11.101/05 (e que devem acompanhar a petição inicial), por profissional com conhecimento específico em economia, contabilidade e administração de empresas. Também não há autorização expressa no texto da lei que possibilite o juiz a determinar que seja verificada previamente as reais condições de funcionamento da empresa requerente dos benefícios da recuperação judicial. Entretanto, a interpretação adequada do art. 52, "caput", da lei 11.101/05, que se faz com aplicação da teoria hermenêutica da superação do dualismo pendular, autoriza inequivocamente a aplicação da perícia prévia. Senão, vejamos. Diz o art. 52, caput, da lei 11.101/05 que, estando em termos da documentação exigida no art. 51 da mesma lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial. Como se deve interpretar a expressão legal "estando em termos a documentação"? Deve-se fazer uma análise meramente formal dos documentos ou se deve exigir que os documentos, além de completos, sejam consistentes? A melhor interpretação da lei, segundo a superação do dualismo pendular, nunca é a que protege os polos da relação de direito material (credor ou devedor), mas sim aquela que permite o interprete garantir a efetividade do sistema dentro do qual se inserem as relações de direito material envolvidas no processo. Não se trata de defender o devedor, nem o credor, mas sim de garantir que o sistema de insolvência (recuperação judicial) atinja de forma eficaz os seus objetivos. Nesses termos, me parece que a expressão legal "estando em termos a documentação" exige do juiz uma verificação do conteúdo dos documentos, de modo a analisar a consistência da referida documentação e sua correspondência com a realidade fática da empresa. Essa é a interpretação que melhor garante as finalidades do sistema recuperacional. Aliás, a decisão que defere o processamento da recuperação judicial é extremamente grave. É uma das decisões mais importantes do processo, considerando que é a partir dela que entrará em vigor a proteção do stay period. Vale dizer, essa decisão impacta milhares de pessoas e o funcionamento da própria economia, visto que a partir dela os credores não poderão exercer livremente os seus direitos creditórios contra a devedora. Não faria mesmo sentido sustentar que o juiz deve fazer uma análise meramente formal desses documentos a fim de proferir uma decisão de tal gravidade e impacto econômico e social. Evidente, a olhos nus, a necessidade de que o juiz analise o teor dos documentos juntados, sua consistência e pertinência com a realidade da empresa. Ocorre que o juiz de direito não tem formação técnica em economia, administração ou contabilidade e, assim, não teria conhecimento suficiente para analisar o teor dos documentos previstos no art. 51 da lei 11.101/05, notadamente as demonstrações contábeis, balanço patrimonial, demonstração de resultados, relatório gerencial de fluxo de caixa e sua projeção. Diz o art. 156 do Código de Processo Civil que o juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico. Diz, ainda, o art. 481 do Código de Processo Civil que o juiz pode, de ofício, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas para esclarecer fato que interesse à decisão da causa, podendo ser assistido por perito. E diz o art. 189 da lei 11.101/05 que se aplica o Código de Processo Civil subsidiariamente às recuperações judiciais. Assim sendo, havendo a necessidade de verificar o teor, a consistência e a completude dos documentos técnicos juntados com a petição inicial e sua correspondência com a realidade fática da empresa requerente da recuperação judicial, poderá o juiz nomear um especialista para fazer a análise substancial dos documentos, bem como a inspeção ou constatação das reais condições de funcionamento da empresa autora. Isso se impõe como necessário para que o juiz tenha condições de deferir ou não o processamento do pedido de recuperação judicial. Surgiu, assim, a perícia prévia. Vale observar, contudo, que a perícia prévia não é propriamente uma perícia, nem puramente uma inspeção judicial. Trata-se de uma figura híbrida que tem natureza de constatação preliminar e informal realizada por pessoa com conhecimento técnico a fim de municiar o juiz com os conhecimentos necessários para que garanta a correta aplicação do instituto da recuperação judicial. Fixada a possiblidade jurídica de realização da perícia prévia, impõe-se analisar como ela deve ser realizada na prática. O juiz deverá nomear um perito para analisar os documentos que instruem a petição inicial e fazer a constatação das reais condições de funcionamento da empresa in loco, ou seja, no estabelecimento empresarial onde opera a devedora. A experiência da 1a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo mostrou que a melhor opção do magistrado será sempre a nomeação como perito daquele que futura e eventualmente será nomeado como o administrador judicial, caso seja deferido o processamento da recuperação judicial. Isso porque, aquela pessoa (física ou jurídica) que já realizou a análise dos documentos e da situação fática da empresa devedora durante a perícia prévia terá muito melhores condições de atuar como administrador judicial que qualquer outra pessoa que não teve ainda contato com o caso. O nível de conhecimento do autor da perícia prévia o habilita como sendo a pessoa mais adequada para assumir a administração judicial do caso. E mais. Nomeando-se como administrador judicial o perito que já realizou o trabalho prévio, resolve-se a questão de sua remuneração. Vale dizer, se o resultado da perícia prévia for negativo, o juiz fixará um valor pelo trabalho desempenhado em sentença, condenando a requerente ao seu pagamento. Caso seja deferido o processamento da recuperação judicial, o custo da perícia prévia será incluído na remuneração da administração judicial. Dessa forma, o juiz terá condições de nomear o perito sem a necessidade de intimar a requerente para depositar qualquer valor de honorários. A fixação prévia de honorários e o condicionamento de seu depósito pela requerente antes da realização dos trabalhos causa uma série de problemas práticos. A constatação das reais condições de funcionamento da empresa é medida que deve ser realizada inaudita altera pars. Isso porque, a ciência prévia da devedora acerca da medida poderá frustrar seus objetivos, franqueando a possibilidade de que o estado real da situação de funcionamento da empresa seja alterado em prejuízo da correta análise para os fins do processo. Já houve casos em que a devedora, que não tinha qualquer funcionamento real, sabendo previamente da perícia prévia, alterou a situação de fato de modo a simular a existência de atividade empresarial em seu estabelecimento no momento da constatação pelo perito. Nomeando-se para a perícia aquele que será o futuro administrador judicial, evita-se a fixação e deposito prévios de honorários remuneratórios. Mesmo em caso de indeferimento do processamento da recuperação judicial, o administrador judicial que atuou como perito tem ciência de que continuará integrando a lista de nomeações do magistrado e de que terá novas oportunidades de atuar como administrador judicial em outros casos futuros. Há críticas no sentido de que haveria um conflito de interesse do administrador judicial caso seja ele a realizar a perícia prévia no mesmo processo. Argumenta-se que o perito teria uma tendência a afirmar que tudo está em ordem a fim de ser processado o pedido de recuperação judicial de modo a que ele seja nomeado para realização da administração judicial. Embora essa possiblidade exista em teoria, na prática esse problema não se apresenta. A prática tem demonstrado que o administrador judicial, atuando como perito, exerce sua função de maneira imparcial e desinteressada. Isso porque, será sempre pessoa de confiança do juízo e terá ciência de que perderá essa confiança caso altere maliciosamente o resultado da perícia prévia. Nessa hipótese, o juiz jamais nomeará novamente do mesmo profissional para atuar em qualquer outro processo de recuperação judicial. Nesse sentido, na prática, o administrador judicial tem consciência de que sua atuação irregular significará sua exclusão daquele mercado de trabalho. Na experiência da 1a Vara de Falências e Recuperações judiciais nunca houve qualquer problema de conflito de interesses em situações como essas desde 2011, quando a perícia prévia passou a ser implementada. Nomeado o perito (futuro e eventual administrador judicial), os trabalhos de perícia prévia deverão ser concluídos no prazo máximo de 5 dias. Vale dizer, o perito deverá apresentar seu laudo de pericia prévia em 5 dias contados de sua nomeação. O prazo exíguo para realização da perícia prévia se impõe em razão da própria eficiência da recuperação judicial. A notícia da distribuição do pedido de recuperação judicial é pública. Assim, os credores têm notícia de que a devedora ajuizou o pedido de recuperação judicial. Entretanto, a proteção do stay period somente tem início, no sistema brasileiro, a partir da decisão que defere o processamento do pedido. Portanto, o juiz não pode demorar tempo exagerado para decidir sobre o processamento do pedido, sob pena de submeter a devedora a um ataque impiedoso dos credores contra o seu patrimônio. A tendência é que o credor tente penhorar ativos da devedora ou realizar o seu crédito antes que o juízo defira o processamento do pedido, na medida em que o credor sabe que, depois de deferido o processamento, todas as ações e execuções movidas contra a devedora deverão ficar suspensas. Assim, a demora do juízo em decidir sobre o deferimento do processamento poderá inviabilizar a atividade empresarial pela ação dos credores. Ademais, o prazo de 05 dias é suficiente para que o perito analise a documentação apresentada pela devedora e realize a constatação das suas reais condições de funcionamento. É importante destacar que o objetivo da pericia prévia não é realizar uma auditoria da empresa devedora, nem tampouco fazer uma análise de viabilidade do negócio. A perícia prévia visa, apenas e tão somente, revelar o que dizem os documentos técnicos que instruem a inicial, atestando sua pertinência, completude e correspondência com a real situação de funcionamento da empresa. Assim, por exemplo, a perícia visa revelar que o balanço da empresa indica sua total inatividade por longo período; que não foram considerados algum ou alguns períodos no balanço especial apresentado pela devedora; a inexistência de clientes e novos contratos; a inexistência de empregados; que as projeções são incompatíveis com os demais documentos; que não existem os itens na realidade em estoque mencionados nos documentos etc. Não se trata, portanto, de auditoria, mas de simples verificação preliminar dos documentos. Também não é objeto da perícia prévia analisar a viabilidade do negócio. Primeiro porque é impossível atestar a viabilidade do negócio em momento tão precoce do processo. A viabilidade do negócio depende de diversos fatores que escapam a análise do juízo nesse momento preliminar. A própria decisão dos credores, na aprovação do plano de recuperação judicial, poderá viabilizar o negócio inicialmente imaginado como inviável em razão do seu alto nível de endividamento, por exemplo. Ademais, a viabilidade econômica do negócio ou da empresa é uma decisão que cabe ao mercado. São os credores que deverão acreditar na atividade empresarial em crise e na importância de sua manutenção. Não pode o juiz substituir os credores na decisão sobre a viabilidade econômica da empresa. A perícia prévia deve analisar apenas a capacidade da empresa de gerar empregos, tributos, produtos, serviços e riquezas. É suficiente a constatação de que a empresa existe realmente, possui empregados, clientes e contratos. Nesse momento, busca-se evitar que uma empresa inexistente, sem qualquer atividade e sem qualquer capacidade de gerar empregos, produtos, serviços e tributos ajuíze a recuperação judicial com o objetivo de impor aos credores uma negociação que não terá nenhuma contraprestação de interesse público ou social. Se não haverá empregos a serem salvos, por exemplo, qual é o sentido de impor aos credores uma negociação que implique na alteração dos seus créditos? Mas se a atividade existe, embora em crise, o processo deve ser iniciado, cabendo aos credores decidir sobre a viabilidade econômica daquela empresa. A experiência prática da 1a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo demonstra que a perícia prévia poderá revelar quatro situações distintas: a) a inexistência de qualquer atividade empresarial; b) irregularidade ou incompletude documental; c) fraudes; d) incompetência funcional do juízo. Demonstrando a perícia prévia que a atividade empresarial realmente não existe a petição inicial deve ser indeferida e o processo deve ser extinto sem resolução de mérito por falta de interesse processual na modalidade adequação. Isso porque, a recuperação judicial não é a ferramenta judicial adequada para uma empresa em crise estrutural e que não pode ser superada. Não faz sentido iniciar um processo que tem por objetivo a preservação de benefícios, quando se constada desde logo que tais benefícios (empregos, produtos, serviços, tributos etc.) não são e nem serão gerados pela devedora. No caso de constatação de que os documentos apresentados pela devedor estão incompletos ou irregulares, deverá o juiz deferir à autora um prazo para emendar a petição inicial, corrigindo os vícios apurados pela perícia prévia. Regularizada a documentação, o juiz deferirá o processamento do pedido, iniciando-se o processo de recuperação judicial. Do contrário, não regularizada a documentação, o juiz deve indeferir a petição inicial e julgar extinto o processo sem resolução mérito com fundamento no art. 321 e parágrafo único do Código de Processo Civil. Havendo a constatação de fraude, tem-se situação semelhante à de inexistência de atividade empresarial. Não deve o juiz permitir que o processo seja utilizado para outras finalidades que não sejam aquelas previstas no sistema de insolvência empresarial. Haverá, portanto, falta de interesse processual que impõe a extinção do feito sem resolução do mérito. Mas, nesse caso, deverá o juiz encaminhar cópias dos autos ao Ministério Público para finalidades criminais eventualmente cabíveis. A perícia prévia poderá, ainda, constatar que o processo de recuperação judicial foi distribuído em juízo que não está no principal estabelecimento da devedora. Nesse sentido, o processo deverá ser redistribuído ao juízo funcionalmente competente. Vale destacar que, em nenhuma hipótese, poderá o juiz decretar a falência da devedora com base no resultado da perícia prévia. Primeiro, porque não existe fundamento legal para a convocação em falência de processos de recuperação que não tiveram deferido o seu processamento. E, mais importante, porque o pedido de falência da devedora cabe a ela (na autofalência) ou aos credores. É o mercado quem deve decidir se haverá a instauração do concurso de credores, com encerramento da atividade empresarial ou se os credores seguirão individualmente na realização de seus créditos, com preservação da atividade. Por fim, cabe agora rebater uma séria crítica que é feita à prática da perícia prévia. Alguns sustentam que a perícia prévia representa um filtro de acesso à Justiça que não tem fundamento na lei e que, portanto, seria uma afronta ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição. Sem razão, contudo. As estatísticas das Varas de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo provam que a perícia prévia não só não cria dificuldade de acesso à Justiça, como acaba funcionando como um catalisador do acesso à ordem jurídica justa. Os estudos apresentados pelo núcleo de pesquisa da PUC/SP denominado Observatório da Insolvência apurou que o índice de indeferimento de petição inicial na 1a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, onde a perícia prévia é realizada desde 2011, é de aproximadamente 30%. Entretanto, na 2a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, onde a prática da perícia prévia não é implementada, o índice de indeferimento de petição inicial é de aproximadamente 40%. Esse resultado se afigura, em princípio, contra-intuitivo na medida em que se poderia razoavelmente pensar que onde se faz a perícia prévia deveria haver um índice maior de indeferimento de petições iniciais. Explica-se esse resultado estatístico pelo fato de que grande parte dos indeferimentos de petição inicial em casos de recuperação de empresas são relativos à incompletude ou à falha dos documentos que instruem o pedido. Onde se faz a perícia prévia, há uma indicação exata de quais são os documentos faltantes ou de quais são as irregularidades a serem sanadas. Há, ainda, a ajuda prestada pelo próprio perito à devedora nesse trabalho de regularização da documentação inicial. Por outro lado, onde não se faz a perícia prévia, a devedora terá maiores dificuldades de suprir as falhas documentais diante da ausência de qualquer auxílio e de uma indicação mais detalhada das providências de regularização documental. Evidenciou-se, portanto, que a perícia prévia representa, na verdade, uma providência de garantia de acesso à ordem jurídica justa. Isso porque, o acesso à Justiça garantido pela Constituição Federal, não se traduz simplesmente no direito de ajuizar uma ação, mas sim na garantia do resultado útil do processo judicial. As empresas em crise, mas viáveis, devem ter garantido o direito ao resultado útil do processo de recuperação judicial, com a preservação da atividade e de todos os seus benefícios econômicos e sociais. Aplicando-se a perícia prévia, garante-se que o processo de recuperação judicial seja aplicado somente as empresas que possuem condições reais de recuperação, evitando-se a utilização abusiva, desviada ou fraudulenta do processo, em prejuízo do interesse público e do próprio prestígio do instituto da insolvência empresarial. Tanto é assim, que os índices de sucesso em recuperações judiciais na 1a Vara de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo superam em muito a média nacional. Levando-se em consideração os processos de recuperação judicial que venceram a fase de perícia prévia e tiveram o processamento deferido, desde 2011 até janeiro de 2018, observa-se um índice de sucesso de 81,7%. Considera-se como sucesso o processo de recuperação judicial no qual os credores aprovaram o plano de recuperação judicial apresentado pela devedora e no qual a devedora cumpriu as obrigações assumidas no plano por mais de dois anos, sem que tenha havido convocação da recuperação em falência. Nesse sentido, em 81,7% dos casos (que tiveram deferido o processamento do pedido), houve plano aprovado e cumprido por mais de dois anos, sem convolação em falência. Os números falam por si: a perícia prévia funciona mesmo!
terça-feira, 20 de março de 2018

Crédito público na recuperação judicial

Alberto Camiña Moreira O processo de recuperação judicial, não obstante seu elevado propósito apontado no artigo 47 da lei, não alcança todas as dívidas da empresa, o que representa, no sentir de muitos, sério entrave à efetiva reestruturação das dívidas. Com efeito, a lei exclui certos créditos do processo de recuperação judicial. Em linhas gerais, são os créditos titularizados por instituições financeiras (art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/05, sobre os quais não discorreremos) e pelo Poder Público. Assim como nem todos os créditos de instituições financeiras estão excluídos do processo de recuperação judicial, nem todos os créditos titularizados pelo Poder Público estão afastados desse processo. Nesta coluna, pretendemos sustentar que somente o crédito tributário titularizado pelo Estado está excluído do processo de recuperação judicial. De conseguinte, outros créditos, como as multas, principalmente, submetem-se ao processo de recuperação judicial. Trataremos somente da submissão da multa administrativa ao processo de recuperação judicial, sem ferir outros temas, igualmente importantes. O ponto de partida é o Código Tributário Nacional. Segundo o artigo 187, "a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento". A norma exclui, do processo de recuperação judicial, somente o crédito tributário; não há referência à dívida ativa tributária. Essa regra do artigo 187 do CTN prefere à regra prevista no artigo 49 da lei 11.101/05, segundo a qual "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos", dada a posição especial conferida à lei complementar (sem ingressar em pormenor acerca desse aspecto) em nosso sistema jurídico. A não ser assim, o artigo 49 teria derrogado o artigo 187 do CTN. A Lei 11.101/05 confirma essa regra, senão vejamos. O artigo 6º, §7º, está assim redigido: "As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica". A natural interpretação a ser extraída do dispositivo é a de que a execução fiscal em referência é aquela que veicula a cobrança de tributo; por isso a expressa referência, no texto legal, e não poderia ser diferente, ao Código Tributário Nacional, Código esse que só cuida de tributos. Outro dispositivo da lei 11.101/05 segue na mesma linha. O controvertido artigo 57 diz que "Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos do arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional". Justamente porque o crédito tributário não é submetido ao processo de recuperação judicial, a apresentação de certidão é o meio concebido pela lei (e não se entra no mérito do acerto ou desacerto dessa fórmula) para a satisfação do crédito decorrente do inadimplemento de impostos; sem que exista qualquer exigência em relação aos demais créditos titularizados pela Fazenda Pública, como as multas, pois passíveis de submissão ao processo de recuperação judicial. Quando se editou a lei 11.101/05 também se alterou o Código Tributário Nacional. Na sempre intrincada disciplina dos créditos sujeitos ou não sujeitos, tinha-se consciência de que se disciplinava somente o crédito tributário. Outra confirmação dessa posição adotada pelo legislador vem do art. 191-A do Código Tributário Nacional, ao estatuir que "A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei". O artigo 57 guarda pertinência com esse artigo 191-A, que só fala em quitação de todos "os tributos". Portanto, não há necessidade de se apresentar certidão de quitação de multas punitivas impostas pela Administração Pública. Nem o CTN nem a lei 11.101/05 fazem essa exigência. Não é pela falta de exigência expressa de certidão que o crédito pecuniário decorrente de multa imposta e não paga submete-se ao processo de recuperação. É porque a exclusão só se refere ao crédito tributário e, portanto, remanesce, para incidir e governar a espécie, o artigo 49, "caput", da lei 11.101/05; é por força dessa norma que as multas se submetem ao processo de recuperação. Parece bastante claro que o crédito decorrente de multa se submete ao processo de recuperação, à luz das normas ora transcritas, que não deixam margem a dúvida interpretativa. E o artigo 68 da lei 11.101/05, ao se referir a parcelamento "nos termos de legislação específica", também se refere ao Código Tributário Nacional, a confirmar, mais uma vez, a coerência do legislador, sempre preocupado com o crédito tributário, e mostrando notável consciência de que outros créditos públicos se submetem ao processo de recuperação judicial. Todavia, não se pode esquecer do artigo 29 da lei 6.830/80, e que pode atrapalhar o intérprete menos avisado. Referido dispositivo da lei de execução fiscal proclama o seguinte: "A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento". Esse dispositivo deve ser interpretado em consonância com as alterações implementadas no Código Tributário Nacional e observar a legislação superveniente, isto é, a lei 11.101/05. A própria Fazenda Pública sabe disso, pois é corriqueira a habilitação em falência apesar da assegurada não sujeição a concurso de credores. O dispositivo fala em dívida ativa, que, pela legislação (art. 39 da lei 4.320/64, que estatui normas gerais de direito financeiro), é classificada em dívida ativa tributária e dívida ativa não tributária (assim também o art. 2º da lei 6.830/80). A multa, por expressa previsão legal, integra a chamada dívida ativa não tributária. Também o direito de crédito decorrente de indenização em favor do Estado é incluído na dívida ativa não tributária. Por exemplo. O caminhão de uma transportadora colide contra uma ponte municipal e lhe causa danos. O Município pode acionar a empresa causadora do acidente; ou obter o valor da indenização por acordo ou outro meio administrativo. O seu direito de crédito, que não é tributário, evidentemente, na eventual falência da transportadora, será crédito quirografário, e na recuperação judicial, será crédito submetido a esse processo, o que é incontroverso. O fato de tal verba integrar, eventualmente, a chamada dívida ativa, nada lhe acrescenta de especial. É preciso verificar, portanto, a natureza do crédito titularizado pelo Estado, com a insistência de que somente o crédito tributário está expressamente excluído do processo de recuperação judicial. É a natureza e não a pessoa do credor que deve ser considerada para se saber da submissão ou não do crédito. Com isso, avulta dizer que a locução dívida ativa não tem relevância para a conclusão que se pretende estabelecer. A dívida ativa, que abrange tanto o crédito tributário como o não tributário, é fruto de atividade administrativa de controle da administração pública. A inscrição na dívida ativa é atividade interna da Fazenda Pública, e tem a finalidade de controle interno de legalidade, que culmina na formação de um estoque de dívida cobrável em juízo, pelo rito da execução fiscal. Dívida ativa é expressão da quantidade de crédito identificada pela Fazenda Pública sob um procedimento próprio; dívida ativa, locução que identifica a quantidade de crédito que passou pela inscrição, não tem o condão de, por si só, revestir os créditos (inscritos) de prerrogativas excepcionais. Essa expressão - dívida ativa - relevante no âmbito da administração pública, não assume nenhum significado prático no âmbito dos processos de insolvência do devedor. Aliás, a jurisprudência dispensa a certidão de dívida ativa para fins de habilitação do crédito público nos processos de insolvência (STJ, RESP 1591141). É o crédito tributário, e não o produto de um procedimento administrativo que culmina na formação da dívida ativa, que conta com privilégio de natureza substancial. Pode baralhar, ainda, a interpretação, o uso do adjetivo fiscal - que aparece tanto no artigo 29 da Lei de Execução Fiscal, como no §7º do art. 6º da lei 11.101/05 ("execuções de natureza fiscal"). Todavia, como bem advertiu Milton Flacks, "a locução crédito fiscal, quando utilizada nos textos legais, não tem sentido unívoco, tanto podendo significar débito de origem tributária, como débito de um modo geral, para com o poder público, devendo o intérprete se socorrer do contexto onde se encontra inserida" (sem grifo no original). Fisco tanto pode ser a pessoa jurídica de direito público como o crédito tributário ou mesmo o estado fiscalmente considerado. Para que se tenha a necessária harmonização entre o CTN e a LEF, é preciso entender que não é sujeita a concurso "a cobrança judicial da dívida ativa tributária...", pois a locução dívida ativa nada tem de esclarecedora em termos de direito material. E essa harmonização já existe entre o CTN e a lei 11.101/05, pois o artigo 6º, §7º, da Lei de Recuperação e Falência é claramente endereçado às execuções fiscais destinadas à cobrança de tributo, que não são suspensas. Uma lei de ritos, como a lei de execução fiscal, não se sobrepõe à superveniente lei de reestruturação de dívidas de empresas, que, em relação ao crédito público, conta com disciplina própria. Por elementar interpretação a contrário, que se afeiçoa, por sua vez, com o comando oriundo da Lei Complementar que é o Código Tributário Nacional, suspendem-se as execuções fiscais destinadas à cobrança da dívida ativa não tributária. E a razão da suspensão é uma só: a dívida ativa não tributária submete-se ao processo de recuperação judicial. É importante considerar, neste ponto, que o instrumento utilizado pela Fazenda Pública para cobrar, em juízo, o seu crédito, que é a execução fiscal, mera execução por quantia certa contra devedor solvente com algumas particularidades procedimentais, não é o fator estruturante de sua posição jurídica. A ferramenta processual - execução fiscal - nada diz sobre a situação do crédito público na recuperação judicial. Não é à toa que a jurisprudência vai reconhecendo a submissão do crédito não tributário da Fazenda Pública ao processo de recuperação judicial. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a submissão de multa administrativa, por descumprimento da legislação sanitária, ao processo de recuperação judicial. Veja-se o seguinte precedente da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 26/8/2015, rel. Des. Francisco Loureiro: O crédito perseguido pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto tem natureza de multa administrativa decorrente de auto de infração da vigilância sanitária, que resultou na aplicação de penalidade por descumprimento de normas de boas práticas na manipulação e comercialização de alimentos (fl. 201). Em outras palavras, trata-se de multa de natureza administrativa decorrente do exercício do poder de polícia. (...) Como se sabe, nos termos do art. 39, § 2.º da lei 4.320/1964, os créditos inscritos em dívida ativa podem ser tributários ou não. Os créditos tributários constituem a Dívida Ativa Tributária e abrangem os tributos, adicionais e multas. Os créditos que não sejam tributários formam a Dívida Ativa não Tributária: "Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias. (...) § 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais". Desse modo, inaplicável a restrição imposta pelo artigo 187 do CTN, diante da natureza não-tributário do crédito perseguido: "Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento". Nessa linha de raciocínio, e considerando que a natureza do crédito sujeita-se à recuperação judicial, nos termos do artigo 49 da lei 11.101/2005, não se enquadra o caso em tela na exceção prevista nos parágrafos 3º e 4º desse mesmo artigo". Foi decisiva, para a conclusão do v. acórdão, a natureza do crédito, que é o critério necessário e suficiente para bom esclarecimento desse ponto. No mesmo sentido, e pelo mesmo relator, com o mesmo fundamento, o AI 2207236-63.2015.8.26.0000, j. 10/12/2015, com a seguinte ementa: RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Indeferimento de pedido para que os créditos decorrentes das multas administrativas sejam habilitados no processo de recuperação. Multa administrativa aplicada pelo PROCON. Natureza não-tributária. Inteligência do artigo 49 da Lei n. 11.101/05. Inaplicabilidade da restrição do artigo 187 do CTN. Possibilidade de prosseguimento da recuperação com a habilitação dos créditos do PROCON. Recurso provido. As proclamadas garantias e privilégios do crédito tributário, que procuram assegurar a sua satisfação, não têm o condão de alterar a natureza jurídica do crédito público. É o próprio Código Tributário Nacional que assim estatui, conforme artigo 183, verbis: "A natureza das garantias atribuídas ao crédito tributário não altera a natureza deste nem a da obrigação tributária a que corresponda". A natureza jurídica de cada crédito público não é alterada em decorrência da vantagem processual que a lei assegura ao ente público. O precedente acima referido, que admite a submissão do crédito não tributário ao processo de recuperação judicial, segue exatamente o critério preconizado pelo Código Tributário Nacional, de que a natureza jurídica do crédito é inalterável. Ainda que com argumentação distinta, mas em essência idêntica, e igualmente correta, isto é, levando em consideração a natureza do crédito, a partir do exame do artigo 83, VII, da lei 11.101/05, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, no dia 17/2/2016, por meio da 2ª Câmara Reservada de Falências e Recuperações, no julgamento do AI 2047000-40.2015.8.26.0000, relatoria do Des. Ricardo Negrão, assim ementado: AGRAVO DE INSTRUMENTO - Recuperação Judicial - Multa administrativa - Decisão que classifica o crédito como extraconcursal - Pretensão das recuperandas à sujeição a recuperação judicial - Cabimento (LREF, art. 83, VII) - Decisão singular reformada - Agravo provido neste ponto. AGRAVO DE INSTRUMENTO - Recuperação Judicial - Multa administrativa - Decisão que classifica o crédito como extraconcursal - Divergência quanto aos valores - Ausência de análise no Juízo Singular - Determinação de verificação na origem para evitar supressão de instância. Nessa decisão, a Colenda Câmara identificou, por meio do artigo 83, VII, a natureza do crédito relativo a multa titularizada pelo ente público, e, então, reconheceu a submissão ao processo de recuperação judicial. Conclui-se que a jurisprudência, corretamente, orienta-se no sentido de acolher créditos titularizados pelo Estado e que não ostentam natureza tributária. Como se sabe, o Poder Público Federal, por seus órgãos fazendários, participou exaustivamente da elaboração da lei 11.101/05, e, conscientemente, deixou de fora da recuperação judicial os créditos relativos aos tributos. Com isso, fez submeter, com clareza, as multas administrativas ao processo de recuperação judicial, pois a modificação no Código Tributário Nacional, para adequá-lo à estrutura concebida pela Lei de Recuperação e Falências, revela a clara opção do legislador. A lei de ritos da execução - fiscal - não tem o condão de alterar essa clara vontade do legislador, expressa em textos claros (LFR e CTN). Embora possa parecer uma pálida contribuição, é o modo pelo qual o Poder Público colabora com a empresa em crise.
Andre Vasconcelos Roque 1. Jurisprudência instável e incoerente: o novo "banana boat" Olá, meus amigos! Na coluna de hoje, vamos tratar de assunto já objeto de notícia aqui no Migalhas1, e que diz respeito a tema que enseja controvérsia no STJ, mais precisamente entre a 1ª e a 2ª seções: pode haver constrição judicial de bens de empresa em recuperação judicial na execução fiscal? Como se sabe, nos termos do art. 6º, § 7º da lei 11.101/2005, a execução fiscal não será suspensa pelo deferimento do processamento da recuperação judicial. A questão consiste em saber: de que maneira prosseguirá a execução fiscal, enquanto é processada a recuperação judicial? Sobre esse ponto, a lei é silente. Para a 2ª seção do STJ, competente para conhecer de litígios relativos a Direito Privado em geral, a execução fiscal prosseguirá sem a constrição (apreensão e alienação) de bens da empresa recuperanda. A prática de tais atos compete ao juízo da recuperação, a quem incumbirá avaliar a essencialidade dos bens para a empresa. Confira-se: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AGRAVO INTERNO. EXECUÇÃO FISCAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRÁTICA DE ATOS EXECUTÓRIOS CONTRA O PATRIMÔNIO DA RECUPERANDA. LEI N. 13.043/2014. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO DA SEGUNDA SEÇÃO. (...) Contudo, conquanto o prosseguimento da execução fiscal e eventuais embargos, na forma do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005, deva se dar perante o juízo federal competente - ao qual caberão todos os atos processuais, inclusive a ordem de citação e penhora -, a prática de atos constritivos contra o patrimônio da recuperanda é da competência do Juízo da recuperação judicial, tendo em vista o princípio basilar da preservação da empresa. Precedentes. (STJ, AgInt no CC 153.006, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/2/2018, DJe 27/2/2018). Entretanto, nas Turmas que compõem a 1ª Seção do STJ, competente para conhecer de matérias relativas a Direito Público em geral, há precedentes apontando que, nos casos em que a recuperação judicial foi deferida com a dispensa da apresentação das certidões de regularidade fiscal, incumbe ao juízo no qual tramita a execução fiscal decidir a respeito da prática de atos de constrição sobre o patrimônio da recuperanda - não haveria, portanto, vedação a priori à constrição patrimonial: PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA ON-LINE. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. QUESTÕES RELEVANTES. OMISSÃO CONFIGURADA. (...) O segundo ponto discutido nos aclaratórios também possui relevância, pois, não obstante o entendimento da Segunda Seção do STJ, quanto à vedação à prática de atos de constrição nas Execuções Fiscais, o entendimento da Segunda Turma é de que é necessário que as instâncias de origem analisem se a Recuperação Judicial foi deferida com ou sem a exigência da prévia apresentação de Certidão Negativa de Débitos. 7. Com efeito, diante da redação do art. 6º, § 7º, da lei 11.101/2005, e do fato de que no Plano de Recuperação Judicial não há inclusão ou negociação dos créditos tributários, a Execução Fiscal poderá ter regular prosseguimento, inclusive com penhora de bens, caso constatado que não há CND e que os débitos tributários não se encontram suspensos. Nesse sentido: REsp 1.645.655/SC, de minha relatoria, DJe 18/4/2017" (STJ, REsp 1681463/SP, Rel. ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/10/2017, DJe 19/12/2017) Assim é que, no próprio STJ, que possui a incumbência de uniformizar a interpretação da lei federal, há relevante divergência interna sobre o assunto em análise: afinal, a quem competirá (juízo da recuperação judicial ou da execução fiscal) avaliar se é caso ou não de autorizar a constrição sobre o patrimônio da recuperanda? Normalmente, a matéria chega à 2ª seção em sede de conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, ao passo que a mesma discussão é submetida à 1ª Seção, que possui entendimento diverso, na hipótese de interposição de recurso pela Fazenda Pública. Trata-se de eloquente exemplo de jurisprudência instável e incoerente, exatamente ao contrário do que almeja o art. 926 do CPC/2015. Inevitável recordar-se do famoso voto "banana boat", em que o min. Humberto Gomes de Barros, fazendo uma comparação com a oscilante jurisprudência do STJ, assim apontou: "Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme bóia, cheia de pessoas é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da bóia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa graus. O jogo só termina, quando todos os passageiros da bóia estão dentro do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados" (STJ, REsp 382.736, voto vista do Min. Humberto Gomes de Barros). Como podemos evitar esse mais novo "banana boat"? 2. Combatendo a divergência sobre o tema no STJ Diante do impasse verificado sobre a matéria, estão em discussão algumas iniciativas para que se resolva definitivamente a controvérsia, o que traria maior segurança jurídica para todos os profissionais que atuam com recuperação judicial, além de promover o tratamento isonômico relativamente ao assunto em discussão. A 1ª Seção do STJ largou na frente e, em fevereiro de 2018, afetou três recursos especiais ao regime dos repetitivos, na forma do art. 1.036 do CPC/2015. Nesse sentido, os REsp 1.694.261/SP, REsp 1.694.316 e REsp 1.712.484/SP foram afetados para definir a seguinte questão: "possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal". Determinou-se, ainda, a suspensão de todos os processos judiciais no país que tratem de tal questão. Só há um problema nessa história toda: é que tais recursos repetitivos serão julgados pela própria 1ª Seção, e não pela Corte Especial do STJ (que congrega todas as Seções). Não parece que eventual precedente formado pela 1ª seção em sede de recurso repetitivo seja capaz de vincular a 2ª Seção, que também tem apreciado referida matéria em sede de conflitos de competência. Pior: se não há uniformização de entendimento sequer no STJ, parece que também os juízes e tribunais inferiores poderão simplesmente deixar de observar o precedente que vier a ser formado em sede de recurso repetitivo, sob o fundamento de que aderem à orientação da 2ª Seção. Definitivamente, os recursos repetitivos foram estruturados para resolver eventual divergência de cima para baixo - ou seja, impondo a tese jurídica estabelecida pelos tribunais superiores aos juízes e tribunais inferiores -, não se tratando de instrumento adequado, porém, para dirimir divergências internas nos tribunais superiores. Uma alternativa cogitada pela 2ª Seção consistiria na instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) sobre o tema perante a Corte Especial. Não há dúvidas, entretanto, de que o IRDR foi concebido pelo CPC/2015 para ser instaurado originariamente perante os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, tanto assim que os arts. 982, I, e 985, I, ao disciplinarem o âmbito de abrangência da suspensão e de aplicação da tese jurídica, referem-se a estado e região. Embora em sede doutrinária o autor deste artigo tenha sustentado não ser possível descartar a possibilidade de que o IRDR seja instaurado diretamente perante os tribunais superiores2, há ainda muitas dúvidas sobre a matéria, inclusive entre os ministros do STJ. Outra saída promissora seria o incidente de assunção de competência, disciplinado no art. 947 do CPC/2015, o qual é cabível em qualquer tribunal (superando a dúvida quanto à sua possibilidade de instauração perante o STJ, verificada em relação ao IRDR). Mediante tal incidente, que tem entre suas finalidades precisamente prevenir ou compor divergência entre órgãos fracionários do tribunal (art. 947, § 4º), a questão poderia ser submetida à Corte Especial, que estabeleceria a tese jurídica com efeitos vinculantes não apenas para todas as Turmas e Seções do STJ (art. 947, § 3º), mas também para os juízes e tribunais inferiores, na forma do art. 927, III do CPC/2015. Aqui também há problemas, todavia, que dizem respeito ao requisito negativo do art. 947, caput do CPC/2015: para que possa ser admitida a assunção de competência, deve-se estar diante de uma situação "sem repetição em múltiplos processos". É evidente que o propósito do código processual vigente foi estabelecer o cabimento da assunção de competência exatamente nos casos em que não haveria espaço para o IRDR - pela falta de suficiente repetitividade da matéria. O específico tema em análise - constrição judicial em execução fiscal sobre bens de empresas em recuperação judicial - não aparenta ter repetitividade suficiente para afastar o incidente de assunção de competência. Ainda que haja alguma repetição sobre o tema, como se depreende dos precedentes sobre a matéria nas 1ª e 2ª Seções do STJ, não se trata de demandas massificadas, espaço no qual somente seria cabível o incidente de resolução de demandas repetitivas. De toda a sorte, a discussão em questão revela ser este mais um espaço adequado para a incidência do princípio da fungibilidade. Diante da dúvida objetiva sobre o cabimento de tais medidas, não se pode afastar a possibilidade de que um IRDR seja conhecido como incidente de assunção de competência ou vice-versa. E, se nada disso (repetitivos, IRDR ou assunção de competência) funcionar, ainda restara um último remédio para combater a divergência jurisprudencial: o tradicional recurso dos embargos de divergência (arts. 1.043 e 1.044), os quais, entretanto, dependerão de iniciativa de alguma das partes afetadas pela questão em discussão. Uma vez alegada a divergência entre acórdãos da 1ª Seção (ou das duas Turmas a ela vinculadas) e da 2ª Seção (ou das duas Turmas a esta vinculadas), competirá à Corte Especial o julgamento dos embargos (art. 11, XIII do Regimento Interno do STJ), cuja decisão produzirá efeitos vinculantes para os órgãos fracionários do STJ (art. 927, V do CPC/2015). * * * Remédios não faltam, na farmácia processual, para combater a divergência existente no STJ a respeito da prática de atos de constrição, em execução fiscal, sobre o patrimônio de empresas em recuperação judicial. As principais alternativas, como se viu, são o IRDR, a assunção de competência ou mesmo os embargos de divergência. Espera-se que em breve, portanto, haja alguma definição jurisprudencial sobre o assunto. De minha parte, penso que, se já se consolidou a tese de que o juízo da recuperação judicial é o único competente para avaliar a possibilidade de atos de constrição sobre bens da recuperanda relativamente aos créditos fiduciários, que não se submetem aos efeitos da recuperação (art. 49, § 3º da lei 11.101/2005)3, por uma questão de coerência, o mesmo regime deveria ser aplicado aos créditos da Fazenda Pública. Ou seja, os atos destinados à constrição na execução fiscal devem ser igualmente avaliados pelo juízo da recuperação judicial, em prestígio à orientação da 2ª Seção do STJ. Hoje, ficamos por aqui. Um abraço e até a próxima! __________ 1 V. notícia publicada em 2.32018, intitulada "STJ: Seções divergem em questão sobre recuperação judicial e consideram afetar caso para Corte". 2 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 850. 3 Entre outros: "Apesar de o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, o juízo universal é competente para avaliar se o bem é indispensável à atividade produtiva da recuperanda. Nessas hipóteses, não se permite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial (art. 49, §3º, da Lei 11.101/05). Precedentes" (STJ, CC 146.631/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/12/2016, DJe 19/12/2016).
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A alteração da Lei de Gerson

Marcelo Barbosa Sacramone Num contexto de estagnação econômica, a reforma da legislação falimentar brasileira tem sido apresentada pelo governo como uma das alterações estruturais imprescindíveis para promover o desenvolvimento nacional. Criada pela lei 11.101/05 em substituição à concordata, a recuperação judicial deveria permitir aos devedores, em conjunto com os seus credores, a possibilidade de obterem uma solução consensual para que pudessem superar a crise econômico-financeira que impedia o desenvolvimento regular da atividade empresarial e a satisfação de suas obrigações. O ambiente institucional para que a obtenção dessa solução consensual pudesse ser alcançada, entretanto, não conseguiu ser garantido. Embora o comportamento cooperativo dos credores tenha sido incentivado mediante a suspensão de suas ações e execuções com o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial, nem todos os credores foram submetidos a esse procedimento. Sob a justificativa de que o crédito tributário não poderia ser renegociado, o Fisco recebeu tratamento privilegiado pela legislação. Não apenas os débitos tributários não podem ser equalizados pela recuperação judicial, como o não pagamento dos tributos devidos impede que, em prejuízo da concordância da maioria dos outros credores, a recuperação judicial seja concedida. A imposição da apresentação da Certidão Negativa de Débitos Tributários para a concessão da recuperação judicial, contudo, tornaria inviável o próprio instituto diante do enorme débito tributário das empresas. A opção pelo parcelamento especial para empresas em recuperação judicial, como estabelecido pela lei 13.043/2014, todavia, não garante ao empresário melhor solução. Condicionada à renúncia da discussão dos débitos tributários em juízo e à satisfação dos débitos integralmente, sem qualquer deságio, em 84 prestações mensais, o parcelamento impõe a concordância a eventual ilegalidade na cobrança do tributo, bem como não permite qualquer adequação do pagamento às peculiaridades do desenvolvimento da atividade ou ao montante do débito do empresário devedor. Além do Fisco, os credores titulares de créditos garantidos pela propriedade de determinados ativos também ficariam fora de qualquer renegociação coletiva. Chamadas de "travas bancárias", assim conhecidas por serem garantias normalmente titularizadas por instituições financeiras, seu tratamento privilegiado foi justificado em razão de que a submissão desses credores à recuperação judicial aumentaria o spread bancário. Diante da possibilidade de esses créditos serem novados pela vontade da maioria dos demais credores, a instituição financeira repassaria os juros decorrentes do maior risco de inadimplemento aos demais agentes econômicos, em prejuízo de todo o mercado. Não submetidos à recuperação judicial, esses credores podem retomar os bens que lhe foram atribuídos em garantia. Tratando-se de créditos futuros, na cessão fiduciária de recebíveis a performar, pode o credor ter seus créditos satisfeitos com o capital de giro do empresário devedor ou, desde que superado o período de negociação (stay period), pode, na alienação fiduciária em garantia, retirar do estabelecimento do devedor os bens de capital essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, ainda que com o comprometimento dos interesses de todos os demais credores. Criada para propiciar o comportamento colaborativo de todos os credores em prol da superação da crise empresarial, ao não submeter todos os credores ao procedimento, a recuperação judicial incentiva os agentes econômicos justamente ao comportamento contrário, oportunista. Como os débitos tributários não podem ser renegociados e preferem grande parte dos credores na ordem legal de preferência de pagamento na falência, a recuperação judicial será na maioria dos casos a melhor alternativa aos credores, o que permite ao devedor abusar de sua posição. Embora com plano médio de 12 anos para pagamento e com deságio real de aproximadamente 50% do valor do crédito, a recuperação judicial é aprovada pelos credores em 90% dos processos. Os credores, por seu turno, poderão concordar com plano de recuperação judicial de empresa sabidamente inviável e que não atenda aos objetivos da recuperação judicial. Como única forma de se serem satisfeitos, os credores poderão convencionar planos que impliquem a alienação da totalidade ou quase totalidade dos ativos do devedor, na forma de verdadeira liquidação de bens durante o procedimento recuperacional, ainda que em detrimento de todos os demais interessados ou de eventuais credores não sujeitos. Os credores financeiros, outrossim, exigirão garantias que não lhe permitam a submissão ao plano de recuperação judicial. A hipoteca e o penhor, ambos direitos reais de garantia sujeitos à recuperação judicial, serão naturalmente substituídos pela alienação fiduciária de bens ou pela cessão fiduciária de seus recebíveis futuros, o que comprometerá ainda mais a crise econômico-financeira do empresário. Enquanto esses comportamentos oportunistas dos agentes econômicos continuarem a ser incentivados pela legislação, com a não submissão de todos os credores ao procedimento de negociação coletiva, reforma alguma será suficiente para que a recuperação judicial se torne o instituto jurídico apto a superar a crise da empresa e a permitir o desenvolvimento econômico nacional.
Luiz Dellore Umas das principais inovações trazidas pelo NCPC ao sistema processual foi a forma da contagem dos prazos. A novidade está no art. 219 do NCPC que, diferentemente do previsto no sistema anterior (no qual, uma vez iniciados, os prazos fluíam durante os finais de semana e feriados), traz a contagem de prazos somente em dias úteis. A redação do caput do artigo é a seguinte: "Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis". Para (tentar) evitar maiores debates, o Código especificou quais seriam os prazos em dias úteis. Isso está no parágrafo único do art. 219: "O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais". Assim, a previsão legislativa é, na teoria, simples: - prazos processuais em dias úteis; - prazos materiais em dias corridos (em atenção ao art. 132 do CC). Contudo, na prática a questão não é tão simples. Muito ao contrário, há vários pontos de dúvidas decorrentes dessa singela - e insuficiente - previsão legislativa contida no NCPC. Há debate tanto a respeito do que seja um prazo processual e um prazo material, como também em relação a qual legislação a previsão do NCPC se aplica. Assim, dentre outras dúvidas, doutrina e jurisprudência debatem1, com maior ou menor divergência, se o prazo é em dias úteis ou corridos (a) na Justiça do Trabalho, (b) na Justiça Eleitoral, (c) no processo penal, (d) nos juizados especiais, (e) no prazo para pagamento, na execução e no cumprimento de sentença, (f) no prazo para o cumprimento de uma obrigação de fazer, além de, por certo (e) nos prazos previstos nos procedimentos de recuperação judicial e falência. Isso mostra como, infelizmente, a reforma processual não foi adequadamente realizada. Em lugar de prever um procedimento simples e claro, trouxe dúvidas e divergências processuais que podem prejudicar os litigantes e, muitas vezes, impedem que o mérito seja debatido - seja por força de intempestividade, seja porque os tribunais, ao invés de decidirem o litígio (que é o anseio da sociedade), ficam debatendo como se conta determinado prazo... De qualquer forma, considerando os objetivos desta coluna Insolvência Civil no Migalhas, é certo que vamos nos ater apenas ao debate ligado à recuperação judicial. E, mais especificamente, neste momento em relação ao prazo de stay period. Considerando a crise da empresa e a tentativa de seu soerguimento, uma vez deferido o processamento2 da recuperação judicial haverá, pelo prazo de 180 dias, a suspensão de todas as ações - de conhecimento ou execução - que tramitem contra a empresa recuperanda. Este é o chamado stay period, previsto no art. 6º, § 4º da lei 11.101/20053. A finalidade do stay period é permitir que haja um fôlego, logo após o deferimento da RJ, para que a recuperanda consiga reorganizar suas atividades e credores, sem o risco de uma penhora ou outra espécie de constrição que prejudique a construção de um plano para permitir o prosseguimento da atividade empresarial. Dúvida não há quanto à lógica dessa previsão legal. E, como já visto, o prazo indicado pela legislação é em dias. A partir daí, surge a dúvida: trata-se de um prazo de direito material ou de direito processual? E, consequentemente, é contado em dias úteis ou corridos? A lei 11.101/2005 é omissa. O NCPC, também. Resultado: doutrina e jurisprudência divergem... Do ponto de vista da prática forense, pouco tempo após a vigência do Código de 2015, as varas especializadas em recuperação judicial de São Paulo4 definiram que o prazo é contado em dias úteis, aplicando-se o art. 219 do NCPC. E o fizeram sob outro enfoque, e não apenas analisando a questão sob a perspectiva de ser prazo processual ou material. Nesse sentido: (...) Diante disso, a interpretação de que o prazo de automatic stay deva ser contado em dias corridos, quando os demais prazos processuais na recuperação judicial se contarão em dias úteis, poderá levar à inviabilidade de realização da AGC e da análise do plano pelos credores e pelo juízo dentro dos 180 dias. Em consequência, duas situações igualmente indesejáveis poderão ocorrer: o prazo de 180 dias será prorrogado pelo juízo como regra - quando a lei diz que esse prazo é improrrogável e a jurisprudência do STJ diz que a prorrogação é possível, mas deve ser excepcional; ou o juízo autorizará o curso das ações e execuções individuais contra a devedora, em prejuízo dos resultados úteis do processo de recuperação judicial. Nesse sentido, tendo em vista a teoria da superação do dualismo pendular, a circunstância de que o prazo do automatic stay é composto pela soma de prazos processuais e a necessidade de preservação da unidade lógica da recuperação judicial, conclui-se que também esse prazo de 180 dias deve ser contado em dias úteis5. No âmbito recursal, o TJ/SP tem duas Câmaras especializadas em Direito Empresarial, que, portanto, recebem todos os recursos6 decorrentes das recuperações judiciais. E o que ocorreu no âmbito do Tribunal? Após alguma divergência inicial, as Câmaras pacificaram seu entendimento - mas cada qual em um sentido7! A 1ª Câmara Especializada em Direito Empresarial entende se tratar de um prazo processual e, assim, que o stay period deve ser contado em dias úteis, conforme o seguinte trecho de julgado, que bem sintetiza a questão: (...) Admitida essa possibilidade, deve-se ponderar também o entendimento prevalente na 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial no sentido de que a contagem do stay period se dá em dias úteis (Agravos de instrumento nº 2061842-54.2017.8.26.0000, 2072098-56.2017.8.26.0000, 2147893-05.2016.8.26.0000), a fim de se evitar o prolongamento da suspensão além do tempo necessário em prejuízo dos credores. (AI nº 2159576-05.2017.8.26.0000, Relator Des. Carlos Dias Motta, j. 15/01/2018 - grifos nossos). De seu turno, a 2ª Câmara Especializada em Direito Empresarial entende se tratar de um prazo material e que, portanto, o stay period deve ser contado em dias corridos, conforme se vê do seguinte julgado, reproduzido na parte útil: (...) Esta 2ª Câmara acabou fixando o entendimento de que se trata de prazo material e, por isso, a ser contado em dias corridos. Tal o quanto se assentou no julgamento do AI nº 2200368-35.2016.8.26.0000, rel. Des. Fábio Tabosa, j. 27/3/2017". (AI nº 2140075-65.2017.8.26.0000, Relator Des. Claudio Godoy, j. 20/12/2017 - grifos nossos). E isso se repete em inúmeros outros julgados dessas Câmaras8. Cabe acrescentar que essa divergência também se verifica em outros tribunais. Vejamos o exemplo do Rio de Janeiro9: na capital há diversas varas especializadas em direito empresarial (portanto não apenas em recuperação judicial e falência) e, no TJRJ, não há especialização, sendo o tema julgado nas Câmaras Cíveis. Desse modo, as decisões são ainda mais pulverizadas. Para exemplificar, a 22ª Câmara de Direito Privado do TJRJ entende que a contagem é em dias úteis. É o que se vê da ementa a seguir transcrita na parte útil para os fins deste texto: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (...) PRAZO DE SUSPENSÃO POR 180 DIAS (STAY PERIOD). NATUREZA PROCESSUAL DO PRAZO. CONTAGEM. APLICAÇÃO DO ART. 219 DO CPC/2015. (...) O stay period destina-se a permitir que o plano de recuperação judicial seja submetido à votação pela assembleia geral de credores, tendo o condão de repercutir dentro e fora do processo. O prazo tem natureza processual de espera. A regra contida no artigo 6º, caput e § 4º da Lei 11.101/2005, objetiva impedir que se posterguem os prazos para apresentação e aprovação do plano de recuperação judicial, visando remediar novos prejuízos aos credores da sociedade recuperanda. (...). Conhecimento e desprovimento do recurso. (0004393-70.2017.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ROGÉRIO DE OLIVEIRA SOUZA - Julgamento: 01/08/2017 - VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL). Já a 20ª Câmara de Direito Privado do TJRJ diverge, e decide pela contagem do prazo em dias corridos, conforme se vê do seguinte trecho: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (...) PRAZO DE 180 (CENTO E OITENTA DIAS) PARA SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES EM FACE DA AGRAVADA QUE É DECADENCIAL, UMA VEZ QUE O INTUITO DA NORMA É JUSTAMENTE GARANTIR A CÉLERE DEFINIÇÃO QUANTO A DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA OU A APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ASSIM, A INOVAÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 219 E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NÃO MODIFICA A CONTAGEM DO PRAZO PREVISTO NO § 4º DO ARTIGO 6º DA LEI 11.101/2005, MANTENDO-SE EM DIAS CORRIDOS. (...) PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO APENAS DETERMINAR QUE A CONTAGEM DO PRAZO PREVISTO NO § 4º DO ARTIGO 6º DA LEI 11.101/2005, DEVE OCORRER EM DIAS CORRIDOS. (0043744-84.2016.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA - Julgamento: 05/04/2017 - VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL) E a preocupação acerca da forma contagem do prazo não é exclusiva para o stay period, mas também aplicável para outros prazos da recuperação, como o prazo de divergência e impugnação10 - mas o aprofundamento desse debate foge dos limites desta coluna. A divergência jurisprudencial hoje existente é bastante nociva, por trazer incerteza e insegurança aos jurisdicionados, advogados e magistrados. Assim, o que fazer diante desse cenário? A solução que parece ser a mais adequada - inovação do próprio NCPC e que aos poucos começa a ser utilizada no país - é a instauração de um IAC (incidente de assunção de competência, previsto no art. 947 do NCPC11), de modo que cada Tribunal (ou, ainda melhor, o STJ) decida essa questão e enfim afaste a divergência. Vale consignar que, uma vez decidido o IAC, a decisão será vinculante (NCPC, arts. 927, III e 947, § 3º), de modo que terá de ser seguida por todos os magistrados vinculados ao Tribunal que julgar o incidente (e, sendo o STJ o julgador, a decisão será vinculante em todo o país). Mas, até que haja a instauração e decisão em IAC, existem algumas medidas que podem mitigar a insegurança: - se o juiz da recuperação não especificar como é a contagem do prazo de stay period (e há muitos magistrados, especialmente em varas não especializadas em RJ, que não definem isso inicialmente), embargar de declaração, apontando a omissão quanto à foram de contagem de prazo e pleiteando que isso seja esclarecido, inclusive com base no princípio da cooperação (NCPC, art. 6º); - se o juiz definir, desde logo agravar para que se defina qual a Câmara preventa e, conforme o entendimento da turma (se já mapeado), já se ter uma ideia de qual será o entendimento. Esses são problemas decorrentes de uma nova legislação que infelizmente não vislumbra todas as consequências de uma profunda modificação como é a contagem de prazos. Se o Legislativo não fez seu papel adequadamente, agora compete ao Judiciário - com auxílio da doutrina - esclarecer a polêmica. __________ 1 Para aprofundar o estudo do prazo do NCPC, com respostas às dúvidas ora mencionadas, sugere-se ao leitor o Comentários ao Código de Processo de 2015, Editora Método, 2ª ed, 2018, p. 766 e ss., de coautoria deste colunista, em que os comentários ao art. 219 foram elaborados por Andre Roque. De seu turno, disponível na internet, mas escrito antes da reforma trabalhista que alterou a CLT. 2 A respeito do trâmite da recuperação judicial, remete-se o leitor a texto anterior desta coluna. 3 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) § 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial. 4 Vale destacar que São Paulo é a cidade do país em que há mais recuperações judiciais em trâmite, existindo 3 varas exclusivas para recuperações judiciais e falências, sendo que a terceira foi instalada em dezembro de 2017. 5 Diversas decisões nesse sentido são proferidas nas recuperações judiciais que tramitam perante a 1ª Vara de Recuperação Judicial e Falência da Comarca da Capital de SP, de lavra do magistrado Daniel Carnio Costa. Como exemplo, o processo nº 1009944-44.2016.8.26.0100, decisão proferida em 12/04/16. 6 A respeito do cabimento do agravo de instrumento em RJ, vide a coluna anterior. 7 A divergência jurisprudencial no âmbito do TJSP já havia sido bem pontuada por ANDRÉ PAGANI DE SOUZA, em coluna aqui no Migalhas a respeito do NCPC, publicada em maio de 2017. 8 Nesse sentido: Agravo de Instrumento 2251511-63.2016.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Tanabi - 1ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 12/04/2017; Agravo de Instrumento 2210315-16.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Pirangi - Vara Única; Data do Julgamento: 16/03/2017; Agravo de Instrumento 2202567-93.2017.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Caieiras - 1ª Vara; Data do Julgamento: 08/11/2017; Agravo de Instrumento 2147893-05.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 29/03/2017; Agravo de Instrumento 2108896-16.2017.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 26/10/2017; Agravo de Instrumento 2071851-75.2017.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Sumaré - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/08/2017; Agravo de Instrumento 2109116-14.2017.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Marcondes; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 22/09/2017; Agravo de Instrumento 2157617-96.2017.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 27/11/2017; Agravo de Instrumento 2237542-78.2016.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jundiaí - 4ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 11/12/2017; Agravo de Instrumento 2189299-69.2017.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 18/12/2017. E aqui os agradecimentos à acadêmica ADRIANA DE SOUZA LOPES, que realizou pesquisa competente para mapear o entendimento de cada um dos julgadores de cada uma das Câmaras especializadas do TJSP. 9 No Rio de Janeiro tramitam muitas e relevantes recuperações judiciais, sendo que as maiores RJs do país (em valores devidos e quantidade de credores) encontram-se exatamente em São Paulo e Rio de Janeiro - por isso a escolha desses Tribunais, dados os limites de espaço desta coluna. Mas o mesmo cenário de divergência se verifica também em diversos outros Tribunais brasileiros. 10 Nesse sentido, vale destacar o que foi afirmando, em obter dictum, no agravo nº 2200376-75.2017.8.26.000, acima mencionado e proferido pela 2ª Câmara do TJSP, apontando que alguns prazos são materiais (dias corridos) e outros processuais (dias úteis): "Assim, serão contados em dias corridos, v. g., o prazo de apresentação da lista de credores por conta do cumprimento do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/05, assim como o de impugnação previsto nos artigos 7º, § 1º, e 8º do mesmo diploma legal, contando-se em dias úteis o de resposta à impugnação, assim como o de agravo de instrumento das decisões que resolverem as impugnações, as divergências e as habilitações retardatárias". 11 Ainda que existam diversos casos de RJ com essa discussão, não me parece ser o caso de demandas repetitivas a justificar o uso do IRDR (incidente de resolução de demandas repetitivas - NCPC, art. 976). De qualquer modo, é de se reconhecer que existe algum espaço de fungibilidade entre IAC e IRDR. O fato é que IRDR ou IAC, por darem origem a precedente vinculante, resolveriam a questão.
Alberto Camiña Moreira1. É com muita honra que inicio minha modesta participação na coluna Insolvência em Foco, neste prestigiado Migalhas. Espero estar à altura dos meus colegas  e contribuir, de alguma forma, com a discussão dos temas ligados à insolvência.2. Há uma diversidade de regimes de insolvência em nosso país. Ela pode ser reconhecida tanto judicial como extrajudicialmente. Pretendo, nesta coluna, falar de um aspecto da liquidação extrajudicial, decorrente da alteração de redação do artigo 19 da Lei 6.024/74 (Lei das Liquidações) pela Lei 13.506, de 13/11/2017, e que propiciou a participação dos credores nessa espécie de concurso de credores.3. Antes, contudo, seguem algumas noções gerais para situarmos a questão que pretendemos abordar. A insolvência decretada pelo Poder Judiciário pode envolver a falência, propriamente dita, tal como disciplinada na Lei 11.101/05 e a insolvência civil, ainda regulada pelo Código de Processo Civil de 1973. Esses regimes acabam por formar um processo concursal, em que todos os credores concorrem (correm juntos) sobre todo o ativo. Trata-se de um processo expropriatório, uma execução universal, no sentido de alcançar todos os bens do devedor para pagamento de todas as dívidas.4. O requisito para a instauração desses regimes pode ser tanto a insolvência, definida como a não pagamento de obrigação no vencimento, isto é, a impontualidade (insolvência presumida), como a insolvabilidade, isto é, a incapacidade do ativo para satisfazer as obrigações do devedor (déficit patrimonial)1. O artigo 955 do Código Civil, segundo o qual "procede-se à declaração de insolvência toda vez que as dívidas excedam a importância dos bens do devedor", está em harmonia com a dicção do artigo 748 do Código de Processo Civil de 1973: "Dá-se a insolvência toda vez que as dividas excederem à importância dos bens do devedor". Ambos referem-se à insolvabilidade. Tanto a insolvência como a insolvabilidade podem dar ensejo ao pedido de falência, por exemplo. A insolvência civil, prevista no CPC, normalmente, funda-se na insolvabilidade. Não há rigor terminológico nas leis, e mesmo na doutrina. Esse aspecto, todavia, não tem prejudicado a aplicação prática dos institutos.5. A  recuperação judicial, que não é processo concursal universalizante, não é um concurso de credores, não é processo de execução, independe de insolvência ou de insolvabilidade (segundo a noção exposta por Fábio Comparato na nota 1), embora esses fatores estejam na maior parte das vezes presentes nos processos6.  O artigo 49 diz que se submetem à recuperação judicial os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. Pode-se dar que a empresa tenha somente créditos ainda não vencidos, e é possível o ajuizamento da recuperação judicial. Nessa hipótese, não há insolvência, segundo a assenta definição entre nós vigente, pode não existir insolvabilidade, e o ajuizamento da recuperação judicial é possível. 7. Há uma outra noção de insolvência, que pode explicar essa possibilidade presente na recuperação judicial, que é a chamada insolvência de fluxo, isto é, "os recursos gerados pelas operações são insuficientes para cobrir as obrigações correntes. A insolvência associada a fluxos está relacionada à incapacidade de pagamento de dívidas", dizem os autores de administração financeira2. Não é à toa que a lei exige a apresentação de fluxo de caixa. A reestruturação da dívida depende de sua adequação aos fluxos a serem obtidos pela operação da empresa em crise. A reestruturação de dívida não precisa esperar pelo inadimplemento nem pelo passivo a descoberto.8. Pois bem. Para falar da modificação recente na Lei das Liquidações, gostaria, antes de tecer algumas considerações mais gerais sobre o tema, que não prescinde de um certo esclarecimento do que é essa liquidação extrajudicial.9. A liquidação extrajudicial pode ser definida como um concurso de credores administrativo, ou uma falência administrativa. É uma execução concursal, expropriatória do patrimônio do devedor, decretada e efetuada pelo próprio Poder Executivo, e não pelo Judiciário. Em nosso país, atualmente, o Banco Central do Brasil3, a Superintendência de Seguros Privados-SUSEP4, a Agência Nacional de Saúde5, a PREVIC - Superintendência Nacional de Previdência Complementar6, todas autarquias federais, têm competência para decretar a liquidação extrajudicial de certas sociedades empresárias7, isto é, decretar a falência delas.10. A Lei 4595/64, no art. 2º, inciso VI, comete ao Conselho Monetário Nacional a competência para zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras, e a mesma lei, no art. 45, institui a liquidação extrajudicial, a cargo do Banco Central do Brasil. A liquidez e solvência (por certo a lei quis, aqui, se referir à insolvabilidade), tal como previstas na Lei 4.595/64, são elementos que devem estar presentes nas demonstrações das instituições financeiras, sendo incumbência do Banco Central do Brasil, certificar-se da sua ocorrência.  O artigo 2º, VI, da Lei 4595/64 pretendeu dizer que é incumbência do Conselho Monetário Nacional zelar para que as instituições financeiras apresentem-se com liquidez e solvência perante o mercado em que atuam.11. O primeiro fundamento para o decreto de liquidação extrajudicial, em linhas gerais, é a insolvência ou a insolvabilidade, conforme artigo 15, I, "a" e "c" da Lei 6.024/74. A lei fala em ocorrências que comprometam a situação econômica ou financeira, especialmente quando deixar de satisfazer com pontualidade os compromissos. O principal compromisso de um banco é devolver o dinheiro ao correntista, e o risco disso ocorrer já é suficiente para o Banco Central tomar as suas providências e evitar o aprofundamento do dano à coletividade8.12. Com a introdução das normas de Basiléia, a razão entre o capital e o ativo ponderado pelo risco, ao porcentual de 13%, é o critério prático a ser observado, mas o fundamento legal para a liquidação está na Lei 6.024/74, cujas expressões são suficientemente abertas para permitir o uso dos critérios de Basileia e justificar o decreto de liquidação extrajudicial.13. A liquidação extrajudicial pode fundar-se também na repressão a comportamentos ilícitos, conforme a alínea "b" do dispositivo ora referido, "quando a administração violar gravemente as normais legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil". Para essa hipótese, a punição independe de insolvência ou insolvabilidade, pois outros valores do sistema jurídico entram em pauta. No chamado Escândalo dos Precatórios, o STJ decidiu, no julgamento do RESP 1.116.845, que "ainda que não fique caracterizada a completa insolvência da empresa, é cabível a liquidação extrajudicial quando restar comprovado grave desrespeito às normas de regência das instituições financeiras e das determinações regulamentares dos órgãos competentes".14. A previsão da alínea "b" assume papel relevante no sistema financeiro, e é bastante atual, dada a extrema bancarização da vida das pessoas e a possibilidade de a instituição financeira ser colocada à disposição para a prática de ilícitos, como lavagem de capitais. A liquidação extrajudicial, nessa hipótese, deixa de ter caráter mercantil para assumir feição administrativa sancionatória. Norma dessa natureza, bastante aberta, aparece em outras leis, que não se fundamentam na insolvência para o decreto de quebra. Em relação às seguradoras, elas poderão ter as atividades encerradas se praticarem atos nocivos à política de seguros determinada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (art. 96, "a", do DL 73/66). Já os fundos de pensão podem sofrer a liquidação caso não atendam as "condições mínimas" estabelecidas pelo órgão regulador, conforme art. 47 da Lei Complementar 109/2001.15. Enquanto a Lei Complementar 4.595/64 institui a liquidação extrajudicial, a Lei 6.024/74, a Lei das Liquidações, concretiza-a, disciplinando as hipóteses de cabimento, os efeitos e os poderes do liquidante (que se equipara ao administrador judicial, antigo síndico), a cessação desse regime especial, que sofreu recente alteração legislativa, objeto desta coluna, entre outros pontos como a responsabilidade dos administradores. Essa lei acaba servindo de base para diversas outras leis que instituem também a liquidação extrajudicial.16. A atuação dessas autarquias federais no decreto de liquidação extrajudicial é constitucional?17. Em nosso país, apesar de a liquidação extrajudicial ser um instituto antigo, ainda não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal9 a respeito da matéria, isto é, especificamente sobre o cabimento ou não da liquidação pelas autarquias antes referidas. Para mim, a liquidação extrajudicial é constitucional, pois está expressamente referida no artigo 46 das Disposições Constitucionais Transitórias, que assegura correção monetária aos créditos junto a entidades sujeitas aos regimes de intervenção ou liquidação extrajudicial, mesmo quando esses regimes sejam convertidos em falência. Como as normas das Disposições Transitórias têm a mesma força normativa das previsões do Corpo Permanente da Constituição, a referência à liquidação extrajudicial é o suficiente para se admitir a sua presença na legislação ordinária, obedecidos, evidentemente, outros aspectos constitucionais, como o devido processo. Além disso, esse dispositivo impede que se fale em monopólio da primeira palavra ou reserva absoluta de jurisdição. O Judiciário controla a legalidade do ato praticado pela autarquia, como já ocorreu.18. Assentados esses aspectos, tem-se que a lei prevê a forma de encerramento da liquidação extrajudicial. A redação original do artigo 19 da Lei 6.024/74 diz que a liquidação extrajudicial cessará: a) se os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, julgadas a critério do Banco Central do Brasil, tomarem a si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa; b) por transformação em liquidação ordinária; c) com a aprovação das contas finais do liquidante e baixa no registro público competente e d) se decretada a falência da entidade.19. A alínea "d" representa apenas a mudança de locus do concurso. Antes, com caráter administrativo, agora pendente perante o Judiciário, como uma falência qualquer. A alínea "c" significa que a liquidação chegou efetivamente ao fim, com a alienação de todo o ativo e rateio entre os credores. A aprovação das contas do liquidante é o último passo desse concurso de credores, que, após, só precisa da baixa no Registro Público de Empresas Mercantis. A alínea "b", por seu turno, extingue o caráter público, de execução forçada concursal, para se transformar na liquidação ordinária prevista na Lei das Sociedades Anônimas ou no Código Civil, levada a cabo pelos sócios. E, por fim, a alínea "a", ao que parece de incidência nunca havida, pois representa que, após a falência do banco, ele voltou a atuar, recuperando credibilidade no mercado, com as garantias apresentadas ao Banco Central do Brasil.20. No mês passado, com a Lei 13.506, foi alterada a redação do artigo 19, para constar a seguinte prescrição: Art. 19.  A liquidação extrajudicial será encerrada:   I - por decisão do Banco Central do Brasil, nas seguintes hipóteses:   a) pagamento integral dos credores quirografários;  b) mudança de objeto social da instituição para atividade econômica não integrante do Sistema Financeiro Nacional;   c) transferência do controle societário da instituição;  d) convolação em liquidação ordinária;   e) exaustão do ativo da instituição, mediante a sua realização total e a distribuição do produto entre os credores, ainda que não ocorra o pagamento integral dos créditos; ou  f) iliquidez ou difícil realização do ativo remanescente na instituição, reconhecidas pelo Banco Central do Brasil;   II - pela decretação da falência da instituição.   21. Além desses dois incisos, sete parágrafos foram incluídos, a saber:§ 1o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas nas alíneas "a", "b", "d", "e" e "f" do inciso I do caput deste artigo, o Banco Central do Brasil comunicará o encerramento ao órgão competente do registro do comércio, que deverá:   I - nas hipóteses das alíneas "b" e "d" do inciso I do caput deste artigo, promover as anotações pertinentes;   II - nas hipóteses das alíneas "a", "e" e "f" do inciso I do caput deste artigo, proceder à anotação do encerramento da liquidação extrajudicial no registro correspondente e substituir, na denominação da sociedade, a expressão "Em liquidação extrajudicial" por "Liquidação extrajudicial encerrada".  § 2o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas no inciso I do caput deste artigo, o prazo prescricional relativo às obrigações da instituição voltará a contar da data da publicação do ato de encerramento do regime.  § 3o  O encerramento da liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas nas alíneas "b" e "d" do inciso I do caput deste artigo pode ser proposto ao Banco Central do Brasil, após a aprovação por maioria simples dos presentes à assembleia geral de credores, pelos:   I - cooperados ou associados, autorizados pela assembleia geral; ou   II - controladores.   § 4o  A assembleia geral de credores a que se refere o § 3o será presidida pelo liquidante e nela poderão votar os titulares de créditos inscritos no quadro geral de credores, computados os votos proporcionalmente ao valor dos créditos dos presentes.   § 5o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas no inciso I do caput deste artigo, o acervo remanescente da instituição, se houver, será restituído:  I - ao último sócio controlador ou a qualquer sócio participante do grupo de controle ou, na impossibilidade de identificá-lo ou localizá-lo, ao maior acionista ou cotista da sociedade; ou  II - a qualquer cooperado, no caso de cooperativa de crédito.   § 6o  As pessoas referidas no § 5o deste artigo não poderão recusar o recebimento do acervo remanescente e serão consideradas depositárias dos bens recebidos.  § 7o  Na hipótese em que o lugar em que se encontrarem as pessoas referidas no § 5o deste artigo for ignorado, incerto ou inacessível, ou na hipótese de suspeita de ocultação, é o liquidante autorizado a depositar o acervo remanescente em favor delas, no juízo ao qual caberia decretar a falência.  22. Enquanto algumas modificações são interessantes, outra repetem com palavras diferentes, o que já estava na lei ou presente no sistema.23. O inciso I, "a", é utópico, pois supõe que todos os credores serão pagos. Essa modalidade de extinção não estava expressa na redação original, mas o mesmo resultado poderia ser alcançado com a aplicação da Lei de Falências. O mesmo ocorre com a previsão dos §§ 2º e 5º. 24. A alteração do objeto social da instituição financeira não resolve o problema dos credores, e apenas alivia a situação do Banco Central do Brasil. A alteração do controle de um banco falido tem permitido alguma solução, como ocorreu no caso do Banco Bamerindus. A exaustão do ativo já estava contemplada na alínea "c" da redação original. A alínea "f" é uma alteração interessante, de grande importância prática. Muitas vezes os processos concursais ficam abertos por anos a fio porque o ativo é ilíquido, de difícil alienação em hasta pública.25. É oportuna a modificação introduzida pelo § 3º do artigo 19, ao prever o encerramento da liquidação extrajudicial após aprovação por maioria simples dos presentes à assembleia geral de credores. A dicção legal poderia gerar controvérsia, pois se refere a "maioria simples dos presentes", enquanto o seu similar, o artigo 46 da Lei 11.101/05, fala em "voto favorável de credores que representem 2/3 (dois terços) dos créditos presentes à assembleia". Todavia, o §4º não deixa dúvida, ao esclarecer que a assembleia será presidida pelo liquidante e que poderão votar os titulares de créditos inscritos no quadro geral de credores, "computados os votos proporcionalmente ao valor dos créditos dos presentes".26. Ocorre que essa possibilidade é bastante acanhada, pois a assembleia só pode ter por finalidade (i) a mudança de objeto social e (ii) a convolação em liquidação ordinária. Isto é: para que o caso saia da órbita do Banco Central do Brasil, os credores são chamados a deliberar, sem que tenha havido qualquer discussão sobre o ativo ou forma de pagamento, que é o que mais diretamente interessa aos credores.27. É aplicável, entretanto, à liquidação extrajudicial, o disposto no artigo 46 da Lei 11.101/05, por força da previsão do artigo 34 da Lei 6.024/74. Como a participação dos credores foi, agora, expressamente prevista na liquidação extrajudicial, a previsão do artigo 46 da Lei 11.101/05 não colide com os preceitos da Lei das Liquidações. Qualquer que tenha sido o fundamento para o decreto de liquidação extrajudicial, insolvência ou repressão a ato ilícito, podem os credores aprovar forma alternativa de realização do ativo.28. O procedimento precisa ser melhor esclarecido. O requerimento de encerramento da liquidação será apresentado ao Banco Central do Brasil após a deliberação da assembleia de credores, sem que se diga sobre a convocação, entre outros aspectos.29. Diz a lei que o encerramento pode ser proposto pelo controlador (§ 3º do art. 19), o que dará ensejo, certamente, a discussão sobre a discricionariedade ou não da atuação da autarquia pública.30. Seja como for, é benfazeja a abertura da lei à presença dos credores no processo de liquidação extrajudicial, credores esses que estiveram alijados, durante quase todo o século XX, dos processos concursais em nosso país, não obstante sejam eles os maiores interessados na medida em que é o patrimônio deles que está em jogo. Em consulta ao site do Banco Central do Brasil no dia 16/12/2017, identifiquei que pendem a liquidação de 4 empresas decretadas no ano de 1987 e 3 no ano de 1996, entre outros. Por certo os credores poderiam há muito tempo ter solucionado de outro modo o destino do que lhes pertence.________________1. Escreve Fábio Konder Comparato que "insolvente é aquele que não solve suas obrigações (...) nem todo inadimplemento caracteriza a insolvência. O devedor pode deixar de adimplir porque tem sérias razões jurídicas para fazê-lo. (...) Devedor insolvente é aquele que, sem escusa jurídica, deixa de solver as  suas obrigações. A inaptidão econômica a adimplir refere-se propriamente a um outro conceito: a insolvabilidade. Assim, enquanto a insolvência é um fato que diz respeito a uma obrigação, a insolvabilidade é um estado que interessa à generalidade dos credores do devedor" (O seguro de crédito, São Paulo: RT, 1968, ns. 50 e 51, p. 46-47).2. Ross, Wasterfield e Jaffe, Administração Financeira. Corporate Finance, 2ª ed., trad. Antonio Zoratto Sanvicente. São Paulo: Atlas, 2002, p. 683.3. Art. 1.º da Lei 6.024/74; art. 45 da Lei 4.595/64.4. Art. 36, "i" e art. 97, ambos do Decreto-lei 73/665. Art. 4º, inc. 34, da Lei 9.961/2000; art. 23 da Lei 9.656/98.6. Art. 47 da Lei Complementar 109, de 29//05/2001.7. O Banco Central do Brasil decreta a liquidação de bancos, corretoras de valores mobiliários, distribuidoras de valores mobiliários, cooperativas de crédito (arts.1º, § 1º e 12, § 1º, ambos da Lei Complementar 130, de 17/04/2009 c.c. art.1º da Lei 6.024/74)   e administradoras de consórcio (art. 7º, inc. VI, da Lei 11.795/2008). A Susep decreta a liquidação de sociedades seguradoras e de administradoras de planos de previdência (previdência complementar aberta). A ANS decreta a liquidação de administradoras de planos de saúde, e a PREVIC decreta a liquidação de entidades fechadas de previdência complementar, os fundos de pensão. Essas sociedades todas tem em comum o fato de dependerem de autorização governamental para se instalarem, o que é exceção em nosso regime de livre iniciativa, conforme artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal. Essa autorização leva à fiscalização intensa da atividade e justifica o regime especial de insolvência, que só por lei pode ser criado.8. Existem outros regimes especial que o Banco Central do Brasil pode promover, mas que não serão objeto de exame neste texto.9. Os artigos 33, 34 e 41, todos da Lei 6.024/74 justificaram o decreto de quebra de sigilo bancário por parte do Banco Central do Brasil, quando já decretado o regime de liquidação extrajudicial, e a prova, utilizada em ação penal,  foi considerada legítima pela 2ª Turma do STF, no julgamento do HC 87.167-4, j. 29/08/2006, rel. Min. Gilmar Mendes. O Ministro Cezar Peluso, corretamente, refere-se à massa, para se referir à massa liquidanda, noção própria de uma falência. Em outro caso, o STF aceitou a atuação do Banco Central no âmbito de uma liquidação extrajudicial. Já no julgamento do RE 198.583, a 2ª Turma, em julgamento de 14/03/2006, rel. Min. Nelson Jobim, entendeu que houve ofensa ao direito de propriedade do banco em liquidação extrajudicial quando se deferiu o levantamento de dinheiro do depositante. Não chegou a ser apreciada a constitucionalidade da Lei 6.024/74. É em sentido oposto o resultado do julgamento da 2ª turma, no RE 202.875-4, j. 02/03/99, rel. Min. Marco Aurélio, que deferiu o levantamento de dinheiro sob o fundamento da propriedade, agora do depositante.
terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A importância social e econômica da falência

Daniel Carnio Costa O Brasil vem enfrentando uma das mais graves crises econômicas de sua história. Nesse sentido, colocou-se em destaque nos meios jurídicos e na mídia em geral o sistema legal que lida com a insolvência empresarial. Atualmente, as discussões sobre a falência e a recuperação judicial de empresas deixaram o ambiente técnico das academias e dos jornais especializados em economia e passaram a frequentar o cotidiano das pessoas, ganhando destaque nos jornais mais populares do Brasil. Muito se fala da importância da recuperação judicial de empresas para a superação do momento de crise. E é verdade: a existência de uma ferramenta adequada para ajudar as empresas a vencer a crise e permanecer em funcionamento (gerando os benefícios econômicos e sociais consistentes em empregos, tributos, bens, produtos, serviços e riquezas em geral) é mesmo fundamental para que o Brasil supere esse difícil momento de crise. Entretanto, não é só a recuperação judicial de empresas que possui importância fundamental para o bom funcionamento da economia e para a superação da crise. Também a falência é instrumento legal essencial para que os mesmos valores sejam tutelados. Vale dizer, na falência busca-se tutelar também os mesmos benefícios econômicos e sociais protegidos na recuperação judicial da empresa. Apenas os meios são diversos, na medida em que na recuperação judicial lida-se com uma empresa em crise, mas viável e, portanto, passível de ter suas atividades preservadas. Já na falência, tem-se uma empresa em crise e inviável, sem condições de continuar em funcionamento. Nesse sentido, na falência, a preservação daqueles benefícios econômicos e sociais não será feita pela preservação do que não merece ser preservado, mas sim pela criação de oportunidades de mercado para outras empresas saudáveis e pela realocação de bens de atividades improdutivas para atividades produtivas. Existem empresas que entram em crise porque perderam viabilidade econômica. Em relação a essas empresas, o Estado não deve agir para tentar salvá-las, quando os agentes de mercado (incluindo aqui os consumidores) já atestaram que elas não são mais capazes de gerar os benefícios econômicos e sociais que se espera de seu funcionamento (bons produtos, serviços competitivos, geração de empregos, recolhimento de tributos, dentre outros). Manter em funcionamento de forma artificial empresas inviáveis não atende ao interesse social. Ao contrário, atuar no sentido de tentar salvar empresas inviáveis causa imenso prejuízo social, na medida em que, por exemplo, outras empresas saudáveis poderão falir por não terem condições de competir com empresas que só existem em função da ajuda judicial. Empresas inviáveis devem falir e isso não é ruim. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, a falência é instrumento de saneamento da economia, retirando do mercado empresas inviáveis e abrindo a possibilidade para que outras empresas possam ocupar o espaço deixado pelas falidas, produzindo os benefícios econômicos e sociais delas esperados. A decretação da quebra de uma empresa inviável retira do mercado um agente defeituoso, que ocupava injustificadamente o espaço que poderia ser ocupado por outra empresa capaz de produzir bons produtos, prestar bons serviços, gerar um maior número de empregos (com mais qualidade) e recolher tributos em volume mais expressivo. Assim, ao se decretar a quebra dessa empresa inviável, abre-se o espaço no mercado para que outra empresa o ocupe de maneira social e economicamente mais útil. Por outro lado, a arrecadação e venda dos ativos da empresa falida, fará retornar ao mercado de produção bens que antes estavam vinculados a atividades improdutivas, não geradoras de qualquer benefício econômico ou social. Talvez o mais importante aspecto da falência - muito pouco explorado - é a sua função de realocação de bens de atividades improdutivas para atividades produtivas. A venda dos bens arrecadados pela massa falida irá oxigenar o mercado, de forma que, por exemplo, aquele imóvel (antes arrecadado e sem utilização durante a falência) volte a ser palco de uma atividade produtiva e geradora de empregos, produtos, serviços etc. Da mesma forma, aquela máquina arrecadada no processo de falência (e sem utilização produtiva) também poderá ser vendida a fim de ser integrada a uma nova cadeia de produção, geradora de todos aqueles benefícios econômicos e sociais já mencionados. Ressalta-se, nesse ponto, que a alienação de ativos na falência vai muito além do atendimento aos interesses dos credores. Trata-se de providência que beneficia o resultado social e econômico do processo. E mesmo quando é feito o pagamento aos credores (com atendimento imediato aos seus interesses particulares) se está atendendo aos fins econômicos e sociais do processo. Isso porque, os credores da falida são os agentes econômicos que também dependem do recebimento dos seus créditos para o desenvolvimento de suas próprias atividades de produção e consumo. Normalmente, dentre os principais credores de uma empresa falida estão os seus ex-empregados (que dependem do recebimento dos valores para consumir - e fomentar a economia local) e outros empresários (que dependem do recebimento dos valores para continuar a desenvolver sua atividade empresarial de produção e fornecimento de bens e serviços). Portanto, pode-se concluir que um sistema de falência rápido e eficaz também é essencial para que o Brasil supere o momento de crise econômica. Não só a recuperação judicial de empresas existe em função do princípio da preservação da empresa. Na falência, esse mesmo princípio é tutelado, não pela preservação da atividade inviável, mas sim pela preservação das atividades empresariais que surgirão em função da retirada do mercado daquela empresa falida, com o reaproveitamento de seus ativos antes vinculados a atividades improdutivas.
Andre Vasconcelos Roque 1. Para começar, um aperitivo: entendendo a controvérsia Olá, caro leitor, como está? Uma das principais discussões inauguradas em matéria de recuperação judicial e falência com o CPC de 2015 diz respeito ao cabimento de agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias proferidas nestes procedimentos. É que o atual código processual, como se sabe, pretendeu limitar as hipóteses de agravo de instrumento em seu art. 1.015, o qual não foi estruturado pensando nos procedimentos especiais - pelo menos não naqueles regulados na legislação extravagante, como é o caso dos procedimentos de que aqui se trata1. A dúvida que existe é se, além dos casos para os quais a lei 11.101/2005 contemplou de forma expressa o cabimento do agravo de instrumento (contra a decisão que julga a impugnação, contra a que concede recuperação judicial e contra a que decreta falência - arts. 17, 59, § 2º e 100)2, hipóteses que remete ao inciso XIII do caput do art. 1.015 do CPC, seria admissível tal recurso também contra outras decisões interlocutórias proferidas nestes procedimentos especiais de recuperação judicial e falência. Exemplos não faltam. Eis alguns dos casos para os quais se questiona o cabimento do agravo de instrumento: (i) contra a decisão do juiz que aprecia a competência para a recuperação judicial, ou (ii) contra a que determina que as listas de credores devem ou não ser unificadas no caso de pedido de recuperação apresentado por mais de uma empresa (consolidação substantiva), ou (iii) contra a que defere o processamento da recuperação judicial, ou (iv) contra a que aprecia, na falência, o pedido de continuação provisória das atividades do falido; ou (vi) contra a que indefere, também na falência, o pedido de venda antecipada dos bens arrecadados perecíveis, deterioráveis, sujeitos a considerável desvalorização ou, ainda, que sejam de conservação arriscada ou dispendiosa. Em texto anterior publicado nesta página, ainda na vacatio do atual CPC, sustentei que se deveria interpretar de forma ampliativa as hipóteses do parágrafo único do art. 1.015 do CPC, por não haver perspectiva de interposição de apelação em tempo hábil na recuperação judicial ou na falência para que a matéria objeto da decisão interlocutória seja submetida à apreciação do tribunal3. Isso porque, na recuperação judicial, somente será proferida sentença após o cumprimento de todas as obrigações previstas no plano aprovado e que se vencerem em até dois anos depois da concessão da recuperação (art. 63, lei 11.101/2005). Da mesma forma, sendo decretada a falência, somente será proferida sentença de encerramento após ultimada a arrecadação dos ativos, com a distribuição do produto aos credores habilitados e a apresentação do relatório final pelo administrador judicial (art. 156, lei 11.101/2005). Concluí, dessa maneira, que o cabimento do agravo de instrumento não deveria ficar restrito aos casos previstos de forma expressa na lei 11.101/2005, aplicando-se igualmente às demais decisões interlocutórias proferidas na recuperação judicial e de falência, sob pena de ensejar situações de irrecorribilidade prática não contempladas pelo sistema. No mesmo sentido em que sustentei no referido texto, foi editado o Enunciado 69 da I Jornada de Direito Processual Civil, realizada em agosto de 2017 pelo Conselho da Justiça Federal, segundo o qual "[a] hipótese do art. 1.015, parágrafo único, do CPC abrange os processos concursais, de falência e recuperação". Ainda assim, persiste a divergência sobre o tema na jurisprudência, ensejando insegurança na matéria. Pessoalmente, considero ser hipótese de fungibilidade entre o agravo de instrumento (para os que o entendem cabível) e o mandado de segurança (para os que pensam de forma diversa), dada a existência de dúvida objetiva sobre a matéria4. 2. Radiografia do paciente: como está sendo decidida a questão no país? Em alguns tribunais, os agravos têm sido conhecidos na recuperação judicial e na falência contra qualquer decisão interlocutória sem maiores questionamentos5. Em outros precedentes, o tema tem sido enfrentado de forma mais explícita, entendendo-se pelo cabimento amplo do agravo de instrumento. Confira-se: Preliminar de não conhecimento do recurso, suscitada pelo ministério público (procuradoria de justiça), firme na ausência de previsão legal. Rejeição. Causa regida pelo novo código de processo civil. Hipóteses previstas no seu art. 1.015, parágrafo único, que não admitem a apelação. Impossibilidade de incidência do art. 1.009, §§ 1º e 2º, do mesmo diploma legal. Dispositivos que devem ser interpretados em conformidade com a lei Federal 11.101/2005. Cabimento do agravo de instrumento, sempre que a decisão agravada puder comprometer o soerguimento da empresa ou trazer prejuízo aos credores. Precedente do e. Tribunal de justiça do estado de São Paulo. (TJRJ; AI 0066126-71.2016.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Gilberto Campista Guarino; Julg. 5/7/2017; DORJ 07/07/2017; Pág. 419) Cabimento do agravo. Decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Procedimento especial da lei 11.101/05 que não prevê recurso de apelação contra deferimento de recuperação judicial ou aprovação do plano. Questão que não seria devolvida à apreciação do Tribunal por meio de apelação. Cabimento do agravo de instrumento, sob pena de negativa de tutela jurisdicional e do duplo grau de jurisdição. (TJSP; AI 2054226-28.2017.8.26.0000; Ac. 10545346; Jaboticabal; Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Carlos Dias Motta; Julg. 21/6/2017; DJESP 28/06/2017; Pág. 1909). No mesmo sentido, TJSP; AI 2048349-10.2017.8.26.0000; Ac. 10933980; São José do Rio Preto; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Araldo Telles; Julg. 30/10/2017; DJESP 9/11/2017; Pág. 1970; TJSP, AI 2084028-08.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 25/5/2016. AGRAVO INTERNO. Violação ao princípio da dialeticidade. Ausência. Recurso que embora reapresente argumentos já expendidos, se volta contra a decisão agravada. Recuperação judicial. Processo que visa a preservação da empresa, por meio de plano de execução concursal das obrigações do devedor. Cabimento de agravo de instrumento. Interpretação extensiva do parágrafo único, do art. 1.015, do CPC. Possibilidade. Recurso provido. (TJPR; Rec. 1617783-8/02; Arapongas; Décima Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Vitor Roberto Silva; Julg. 7/6/2017; DJPR 26/6/2017; Pág. 508) "Nesse contexto, ao analisar, inicialmente, acerca do cabimento do agravo de instrumento contra decisão interlocutória atacada, a qual foi proferida em processo de recuperação judicial, entendi pela sua inadequação, pela ausência de correspondência a uma das hipóteses legais taxativamente previstas. Contudo, ao reestudar a matéria, por ocasião da interposição desse agravo interno, deparei-me com entendimentos doutrinários que incluem as decisões interlocutórias proferidas nas ações de recuperação judicial e falência na hipótese autorizativa do parágrafo único do artigo 1.015, do Código de Processo Civil, eis que tais ações possuem natureza de execução universal. Esse entendimento é coerente com as particularidades dessas ações e com a universalidade do juízo, o qual atrai a competência e exclusividade para a prática de atos de execução, de modo que entendo por bem refluir o meu posicionamento sobre o tema e exercer o juízo de retratação (artigo 1.021, § 2º, do Código de Processo Civil), a fim de permitir, no caso em análise, o processamento do agravo de instrumento contra a decisão atacada, com fulcro no artigo 1.015, parágrafo único, do Código de Processo Civil". (TJGO, AI 249780-40.2016.8.09.0000, Rel. Des. Alan Sebastião de Sena Conceição, julg. 18/1/2017) A princípio, o rol constante do art. 1.015 do CPC/2015 pode levar à conclusão apressada de não cabimento do Agravo de Instrumento contra decisões proferidas em processo de recuperação judicial, exceto aquelas expressamente previstas na lei 11.101/2005. A exemplo dos artigos 17, e 59, §2º, da LRE., por força do inciso XIII do dispositivo em questão;. Entretanto, reputo razoável a construção doutrinária segundo a qual, para efeito de cabimento do Agravo de Instrumento, muitas das decisões proferidas nos processos de recuperação judicial guardam, por analogia, estreita similitude com aquelas proferidas na fase de cumprimento de sentença stricto sensu e, consequentemente, atraem a incidência do parágrafo único do art. 1.015 do CPC/2015; (TJPE; AI 0013898-76.2016.8.17.0000; Rel. Des. Cândido José da Fonte Saraiva de Moraes; Julg. 8/3/2017; DJEPE 22/3/2017) No entanto, a questão está longe de ser pacífica, como evidenciam os precedentes abaixo arrolados, todos considerando incabível tal recurso fora dos casos expressos na lei 11.101/2005: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ART. 1.015 DO CPC DE 2015. RELAÇÃO NUMERUS CLAUSUS. DECISÃO NÃO CONTEMPLADA NA LEI 11.101, DE 2005. INCISO XIII, DO ART. 1.015 DO CPC DE 2015. INAPLICABILIDADE. PRELIMINAR ACOLHIDA. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. É taxativa a relação das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento contidas no art. 1.015, de 2015. 2. O inciso XIII, do referido dispositivo legal, dispõe que em outros casos expressamente disciplinados em Lei, o recurso é cabível. 3. A lei 11.101, de 2005 não prevê o cabimento do agravo de instrumento contra o ato judicial que a declaração de não essencialidade de bens em ação de recuperação judicial. 4. Neste caso, portanto, revela-se inaplicável a hipótese aludida no inciso XIII, do art. 1.015, do CPC de 2015, o que panteia a inadmissibilidade do recurso interposto. 5. Agravo de instrumento não conhecido mediante acolhimento de preliminar da agravada. (TJMG; AI 1.0290.15.000902-2/019; Rel. Des. Caetano Levi Lopes; Julg. 4/4/2017; DJEMG 10/04/2017). No mesmo sentido, TJMG; AgInt 1.0042.15.004292-9/002; Rel. Des. Edgard Penna Amorim; Julg. 07/03/2017; DJEMG 15/3/2017. À exceção das hipóteses taxativamente previstas no art. 1015 do CPC, as decisões interlocutórias não serão recorríveis de imediato, mas apenas como um capítulo preliminar do recurso de Apelação interposto contra a sentença ou nas contrarrazões recursais. Cuidando-se de decisão referente ao deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial da empresa Agravada, é descabida a interposição de Agravo de Instrumento, haja vista que tal matéria não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no rol taxativo do art. 1.015 do Código de Processo Civil. A previsão legal específica de cabimento de agravo de instrumento, quanto à recuperação judicial, contempla apenas a decisão judicial que conceder a recuperação judicial, nos termos do art. 59, § 1º, da lei 11.101/2005. Recurso desprovido. (TJDF; Proc 0707.74.2.732017-8070000; Ac. 104.5097; Quinta Turma Cível; Rel. Des. Ângelo Passareli; Julg. 8/9/2017; DJDFTE 18/09/2017). No mesmo sentido, TJDF; Proc 0708.03.2.882017-8070000; Ac. 106.0478; Oitava Turma Cível; Relª Desª Nídia Corrêa Lima; Julg. 17/11/2017; DJDFTE 6/12/2017 Não se encontrando a decisão agravada no rol de hipóteses taxativas do agravo de instrumento, previsto no artigo 1.015 do Código de Processo Civil, o não conhecimento do recurso é impositivo. O processo de recuperação judicial não se enquadra na exceção prevista no parágrafo único do artigo 1.015 do Diploma Processual Civil, que se refere apenas às ações em fase de liquidação ou de cumprimento de sentença, bem como processo de execução e inventário. (TJGO; AI 0192862-16.2016.8.09.0000; Goiânia; Quarta Câmara Cível; Relª Desª Elizabeth Maria da Silva; DJGO 10/08/2016; Pág. 154). Insurgindo-se o agravante contra decisão defere o processamento da recuperação, sem arbitrar os honorários advocatícios ao administrador judicial, nem excluir a restrições ao crédito existentes em nome da recuperanda, é evidente a ausência de cabimento do agravo de instrumento. Não há na lei 11.101/2005, previsão de cabimento do agravo de instrumento contra a decisão que ao deferir o processamento da recuperação judicial à empresa. A lei 11.101/2005 elenca as hipóteses em que é admitido o agravo nos artigos 17, 59 e 100, nos quais não se enquadra a decisão que defere o processamento da recuperação judicial, muito menos aquela que trata da suspensão dos protestos e restrições ao crédito, ou mesmo com relação ao arbitramento de honorários do administrador judicial. Não há espaço para a aplicação da regra contida no art. 1.015, inciso XIII do CPC, uma vez que não há qualquer legislação em vigor que autorize a interposição de agravo da decisão que defere o processamento da recuperação judicial, não cabendo ao judiciário interpretar extensivamente o rol das hipóteses previstas em Lei, flexibilizando-o, sob pena de burlar a taxatividade prevista no novo CODEX. V - Recurso improvido. (TJES; Ag-AI 0004681-79.2017.8.08.0014; Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Manoel Alves Rabelo; Julg. 13/11/2017; DJES 27/11/2017). No mesmo sentido, TJES; Ag-AI 0007800-57.2017.8.08.0011; Terceira Câmara Cível; Relª Desª Eliana Junqueira Munhos Ferreira; Julg. 05/09/2017; DJES 15/9/2017. A nova sistemática processual trouxe mudanças no tocante ao agravo de instrumento, dentre elas a taxatividade das hipóteses de cabimento do referido recurso, o qual somente será aceito nos casos enumerados no art. 1.015 do NCPC ou nas situações expressamente previstas em Leis especiais, de modo que as interlocutórias que não se encontram no rol mencionado se submetem a uma recorribilidade diferida, devendo ser suscitadas através de preliminar de razões ou contrarrazões de apelação. (...) Há de se rechaçar a possibilidade de interpretação extensiva do art. 1.015, parágrafo único, simplesmente por se tratar de questão envolvendo recuperação judicial, já que ausente qualquer discriminação do legislador no sentido de permitir a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que prorroga o prazo de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da lei 11.101/05, seja na nova codificação processual civil ou na lei 11.101/2005. Não procede a tese de esvaziamento da questão caso se aguarde a interposição de recurso de apelação, uma vez que, ainda que não seja aquela mais célere ao caso, foi a opção adotada pelo legislador para o enfrentamento de tais situações. Ainda que não admitida a interposição de agravo de instrumento ou inexistindo recurso de apelação, sempre poderá a parte recorrer a outros instrumentos processuais cabíveis. (TJSC; AG 4017184-96.2016.8.24.0000/50000; Caçador; Câmara Civil Especial; Rel. Des. Luiz Antônio Zanini Fornerolli; DJSC 04/07/2017; Pag. 333). No mesmo sentido, TJSC; MS 4011905-95.2017.8.24.0000; Braço do Norte; Terceira Câmara de Direito Comercial; Rel. Des. Ronaldo Moritz Martins da Silva; DJSC 7/8/2017; Pag. 166. Fora isso, há precedentes em que se ampliou o cabimento do agravo de instrumento, mas de forma mais limitada, abarcando apenas algumas situações específicas: A falência se equipara a um processo de execução coletiva, sendo, a princípio, viável o cabimento de agravo de instrumento, por analogia ao parágrafo único do artigo 1.015, do CPC/2015. O litígio entre o Administrador Judicial. auxiliar do juízo. e o próprio juízo, por outro lado, não pode ser considerado um processo de execução coletiva, sendo mantida a decisão que não conheceu do agravo de instrumento. (TJMG; AgInt 1.0000.17.028253-7/001; Rel. Des. Edilson Olímpio Fernandes; Julg. 31/10/2017; DJEMG 14/11/2017). Quando se observa dos elementos trazidos na decisão concessiva da prorrogação do stay period, efetivamente identifica-se o caráter cautelar da medida, razão pela qual pode ser enquadrada na hipótese do inc. I do art. 1.015 do CPC/15. O legislador, ao criar um tratamento diferenciado para as partes que litigam nas hipóteses do parágrafo único do art. 1.015 do CPC/15, deveria também tê-lo feito para aqueles que pretendem se insurgir de uma decisão no curso da recuperação judicial, sob pena de criar tratamento diverso para situações jurídicas equiparadas, o que seria vedado pelo próprio caput do art. 5º da Constituição Federal. A interpretação restritiva e perfunctória do rol de hipóteses trazidas pelo art. 1.015 do CPC/15 enseja apenas a complexificação desnecessária do sistema recursal, reduzindo sua efetividade e celeridade, princípios caros à nova sistemática processual e à ordem constitucional (art. 5º, PODER JUDICIÁRIO /01 fls. 2inc. LXXVIII).3. Recurso conhecido e provido. (TJPR; Agr 1588420-9/01; Londrina; Décima Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea; Julg. 03/05/2017; DJPR 8/6/2017; Pág. 705). Interposição de agravo de instrumento contra decisão proferida em processo de recuperação judicial. Ausência de previsão expressa de cabimento. Inexistência de prejuízo. Cabimento de agravo de instrumento nas hipóteses previstas no artigo 1.015 do código de processo civil e em outros casos expressamente referidos em Lei. É possível a aplicação analógica do artigo 1.015, parágrafo único, do CPC, nos casos em que a decisão interlocutória agravada causar prejuízo aos credores ou comprometer o soerguimento da empresa em recuperação judicial. Recurso não provido. (TJMS; AgRg 1403684-45.2017.8.12.0000; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Vilson Bertelli; DJMS 15/08/2017; Pág. 98). Como se vê, ao analisar a questão a nível nacional, reina o mais absoluto dissenso na matéria, apesar de alguns tribunais já terem sua jurisprudência razoavelmente consolidada. Nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, por exemplo, os precedentes têm admitido de forma ampla o agravo de instrumento na recuperação judicial. Em outros locais, como no Distrito Federal, Espírito Santo e Santa Catarina, predomina a tese oposta, no sentido de não caber o agravo fora dos casos expressamente previstos na lei 11.101/2005. Finalmente, há estados em que se encontram precedentes com orientações distintas, não se tendo sequer pacificado a jurisprudência local, como em Minas Gerais e Goiás. Tal diagnóstico corrobora a afirmação de que o tema vem ensejando insegurança jurídica. Além disso, dada a evidente situação de dúvida objetiva, demonstrada pelo dissídio jurisprudencial existente sobre o tema, o caso é mesmo de aplicação do princípio da fungibilidade entre o agravo de instrumento e o mandado de segurança. Para o advogado que atua no contencioso da recuperação judicial ou da falência, é fundamental que consulte a jurisprudência local antes de definir a via impugnativa a ser utilizada. 3. Conclusão: prognósticos para a doença da insegurança jurídica Recentemente, foi divulgada a admissão de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas pelo TJMG, exatamente sobre o tema em discussão. Trata-se do IRDR 0417620-30.2017.8.13.0000, que versa sobre o "cabimento ou não de agravo de instrumento contra decisão interlocutória proferida em processo de recuperação judicial ou falência", o qual foi admitido em sessão de julgamento realizada no dia 20 de novembro de 2017. No âmbito desse IRDR, foi concedida ainda a tutela de urgência, nos seguintes termos: "Fica obstado, no âmbito deste Tribunal, o não conhecimento de agravo de instrumento interposto em face de decisões proferidas no processo de recuperação judicial ou falimentar quando fundado no cabimento do referido recurso em face da possível taxatividade do art. 1.015, CPC até que o Tribunal aprecie o mérito do incidente". A providência é bem-vinda: diante da notória divergência jurisprudencial sobre a matéria, deve-se buscar a formação de precedentes vinculantes, como é o caso daquele formado no julgamento do mérito do IRDR (arts. 927, III e 985 do CPC) - o qual, se não observado, autorizará inclusive o manejo da reclamação contra o julgado dissonante (arts. 985, § 1º e 988, IV do CPC). No entanto, o julgamento de um IRDR, em princípio, terá seus efeitos limitados ao tribunal local (no caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais), a não ser que tal decisão venha a ser objeto de recurso especial ou extraordinário e esses sejam conhecidos pelos tribunais superiores, situação em que a tese jurídica a ser definida pelo STJ ou STF produzirá efeitos em todo o país (art. 987, § 2º). Outra situação em que se formaria precedente vinculante a nível nacional seria no caso de julgamento de recurso especial repetitivo sobre a matéria em discussão - cuja afetação se revela improvável por enquanto, tendo em vista que não se tem notícias, até o momento, de que a questão tenha sido apreciada uma única vez sequer pelo Superior Tribunal de Justiça. De todo modo, vamos aguardar a resolução do IRDR em tela pelo TJMG e esperar que a mesma questão venha a ser suscitada em outros tribunais, para que no momento oportuno seja submetida aos tribunais superiores. A questão é relevante e demanda a pacificação da jurisprudência sobre o tema o quanto antes - afinal, trata-se de discussão relativa ao cabimento de recurso, tema sensível na prática do contencioso. Independentemente da tese que venha a prevalecer, o mais importante é que se saibam as regras do jogo. Voltaremos ao tema em outra oportunidade. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Sobre as especificidades do procedimento da recuperação judicial, Andre Vasconcelos Roque, Luiz Dellore. O passo a passo de um processo de recuperação judicial. Migalhas, publicado em 7/11/2017. 2 Confira-se: art. 17 da lei 11.101/2005: "Da decisão judicial sobre a impugnação caberá agravo". Art. 59, § 2º da lei 11.101/2005: "Contra a decisão que conceder a recuperação judicial caberá agravo, que poderá ser interposto por qualquer credor e pelo Ministério Público". Art. 100 da lei 11.101/2005: "Da decisão que decreta a falência cabe agravo, e da sentença que julga a improcedência do pedido cabe apelação". 3 Andre Vasconcelos Roque, Bernardo Barreto Baptista, O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação functional. Migalhas, publicado em 3/8/2015. 4 Admitindo a conversão de mandado de segurança em agravo de instrumento, o que também deve ser aplicado na via inversa: "Agravo de instrumento derivado da conversão de mandado de segurança pelo princípio da fungibilidade. Pretendida liberação de imóvel constritado na execução. (...)" (TJ/SP, AI 2101519-28.2016.8.26.0000, 17ª CDPriv., Rel. Des. Irineu Fava, julg. 19/8/2016). V. tb.: TJ/SP, MS 2100816-97.2016.8.26.0000, 4ª CDPriv., Rel. Des. Hamid Bdine, julg. 24/10/2016; TJSP, MS 2084028-08.2016.8.26.0000, Decisão Monocrática, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 28/4/2016. 5 Exemplificativamente, entre muitos outros, TJ/SP; AI 2206908-02.2016.8.26.0000; Ac. 10438688; Arujá; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Fabio Tabosa; Julg. 18/05/2017; DJESP 5/6/2017; TJRJ; AI 0049008-48.2017.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. José Carlos Paes; Julg. 25/10/2017; DORJ 26/10/2017; Pág. 376; TJMS; AI 1409759-03.2017.8.12.0000; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Tânia Garcia de Freitas Borges; DJMS 7/12/2017; Pág. 149; TJMT; AI 70263/2016; Poconé; Rel. Des. João Ferreira Filho; Julg. 18/4/2017; DJMT 25/4/2017; Pág. 61.
Marcelo Barbosa Sacramone A operação Lava Jato expôs ao Brasil um modo irregular pelo qual diversas sociedades realizavam contratos com a administração pública, sociedades de economia mista ou empresas públicas. Seja como contrapartida por empréstimo de recursos a partidos políticos, seja mediante contraprestação pela doação de recursos não contabilizados para candidatos em campanha eleitoral, os contratos ilícitos celebrados com a administração pública passaram a ser revelados ao público, cuja ojeriza ou compliance acarretou a suspensão do fornecimento de mercadorias e de aquisição de produtos e serviços, com a consequente crise econômico-financeira dessas sociedades contratantes. A recuperação judicial das sociedades envolvidas com a prática de atos lesivos à administração pública ou que atentem contra seus princípios fez surgir novos questionamentos sobre a possibilidade de preservação dessa atividade empresarial e os limites do acordo de leniência em face desse interesse público. O instituto da recuperação judicial foi estruturado para permitir a superação dessa crise econômico-financeira que pode acometer o devedor. Independentemente de os motivos dessa crise serem imputáveis ou não aos seus administradores, o empresário não poderia ser confundido com a empresa, a qual deveria ser preservada. Com esse objetivo, a lei 11.101/05 procurou criar um ambiente institucional para incentivar o comportamento colaborativo entre os credores e o devedor com o intuito de que, juntos, pudessem garantir o desenvolvimento da atividade empresarial. Pela recuperação judicial, reconhece-se que a preservação da empresa e sua função social repercutem não apenas nos interesses dos credores e devedores. A manutenção da atividade empresarial asseguraria o interesse dos trabalhadores, que teriam mantidos os postos de trabalho, dos consumidores, pois a maior concorrência entre os produtos lhes garantiria menor preço, da nação, pelo desenvolvimento econômico propiciado pela maior circulação de riquezas. Nem toda a atividade econômica, contudo, promove o bem estar social e merece ser preservada, ainda que conte com a concordância dos credores e dos devedores e tenha sido estruturada mediante um plano de recuperação judicial. A Lei Anticorrupção, lei 12.846/2013, esclarece que é ilícita toda forma de fraude ao caráter competitivo de procedimento licitatório público ou a manipulação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração Pública. O contrato celebrado, direta ou indiretamente, com desrespeito a essa norma cogente e que tutela a proteção ao patrimônio público e aos princípios da administração pública, é considerado nulo e deverá ter os seus efeitos desconstituídos, independentemente da vontade das partes contratantes. O reconhecimento judicial dessa invalidade, ainda que confessada pelo próprio agente econômico mediante acordo de leniência, suprimirá os seus efeitos, inclusive retroativamente. O negócio jurídico nulo não poderá ser confirmado pela vontade das partes, nem convalesce pelo decurso do tempo. Todos seus efeitos deverão ser suprimidos, com o retorno das partes ao status quo ante. A supressão desses efeitos do contrato, com eventual interrupção da atividade empresarial, entretanto, poderia comprometer o próprio interesse público a que a norma pretendia proteger. Dentre alguns exemplos, a construção da obra pública poderá ser interrompida, a elaboração de nova licitação poderá gerar maior morosidade e a substituição do agente poderá gerar perecimento de direitos, com prejuízos não apenas a terceiros de boa fé como à própria administração pública. No caso concreto, assim, deverá a Administração Pública zelar para que o controle da invalidade do contrato procure preservar o interesse público a que a norma desrespeitada procurava proteger, sob pena de novamente permitir lesão a esses interesses. O acordo de leniência, nesse contexto, não apenas pode ser instrumento para facilitar as investigações da prática de ilícitos, como originalmente foi concebido, como pode ser ferramenta para assegurar que nova lesão ao interesse público não seja praticada e para que os interesses da recuperanda e dos credores na recuperação da empresa em crise possam ser protegidos. Esse resultado útil, inclusive com a possibilidade excepcional de convalidação do contrato nulo, somente poderá ser produzido, todavia, se o acordo de leniência for convencionado com as condições imprescindíveis para que o vício contratual seja sanado e irregularidades futuras não sejam novamente praticadas. Ainda que apenas no caso concreto cada uma dessas condições possa ser aferida, a anuência de todos os contratantes, a reparação dos danos causados, a revisão dos termos contratuais a parâmetros de mercado e o autossaneamento do empresário, com o estabelecimento de mecanismos para reprimir novos ilícitos e afastamento e punição de administradores envolvidos com a ilicitude, são medidas mínimas exigíveis das composições para garantir o interesse público. A atividade empresarial dos empresários envolvidos com a prática de atos de corrupção, assim, somente será economicamente viável e digna de preservação pelo instituto da recuperação judicial se for baseada em acordo de leniência prévio, que tenha contado com a participação de todos os agentes econômicos envolvidos, mediante procedimento público, transparente e que assegure uma ampla reestruturação da sociedade empresária. Apenas assim a preservação da atividade empresarial da recuperanda envolvida na prática de atos de corrupção poderá ser assegurada em benefício de todos1. __________ 1 Para maiores detalhes sobre o tema, CUNHA FILHO, Alexandre e SACRAMONE, Marcelo. Contratos empresariais e lei anticorrupção: sobre os efeitos do nulo em avenças alcançadas por acordos de leniência. No prelo.
Andre Roque e Luiz Dellore Prezado leitor, este é o segundo texto da recém-criada coluna "Insolvência em foco" aqui no Migalhas1. A ideia deste espaço é contribuir para aqueles que atuam na área e estudam o tema, no que se refere à recuperação judicial, falência, insolvência civil e temas correlatos. O fato é que a crise econômica que assola o país nos últimos anos atingiu em cheio a atividade empresarial e, como consequência, o número de recuperações judiciais e falências cresceu exponencialmente. E, assim, dois fenômenos puderam se verificar: (i) novas questões, antes não enfrentadas, surgiram - de modo que vieram à tona problemas concretos que ainda não tinham sido tratados pela doutrina ou jurisprudência, trazendo dúvidas e controvérsias (e vários pontos seguem não pacificados); (ii) muitos profissionais que não estavam acostumados a lidar com o tema passaram a atuar nessa área; assim, advogados, magistrados, promotores, contadores, administradores e outros passaram a atuar nesse contencioso recuperacional. E em virtude desses dois fenômenos, para contribuir com o debate e reflexão, é que surge a presente coluna, que tem entre seus autores profissionais que atuam exatamente nessa área: tanto advogados (como os ora subscritores), como magistrados e administrador judicial. Os temas serão tanto de Direito Material como processual, permitindo uma ampla visão acerca da temática - e, por certo, sugestões de assuntos pelos leitores serão bem-vindas neste espaço. E o texto de hoje desta coluna tratará especificamente de um aspecto processual: afinal, como tramita uma recuperação judicial? Em síntese, qual é o procedimento de uma RJ? Vale lembrar que, no âmbito do novo CPC, existem dois processos: conhecimento e execução. E, no processo de conhecimento, existem dois procedimentos: comum e especial. Não há mais, no procedimento comum, a subdivisão entre os ritos sumário e ordinário2. Para podermos estabelecer um parâmetro de comparação com a recuperação judicial, vejamos sinteticamente quais são as fases do procedimento comum, à luz do NCPC: 1) petição inicial 2) audiência de conciliação ou mediação 3) contestação 4) réplica 5) saneamento 6) audiência de instrução 7) alegações finais/memoriais8) sentença  É certo que o procedimento da recuperação judicial em nada se assemelha com o procedimento acima exposto. Trata-se de um procedimento especial; ou melhor, um procedimento especialíssimo - e isso, inclusive, traz algumas dificuldades na compatibilização entre as previsões do NCPC e a Lei de Recuperação e Falência (lei 11.101/2005)3. Mas afinal, qual é o procedimento da recuperação judicial? Apresentamos, a seguir, de forma simplificada, o passo a passo mais usual, sendo certo que é possível que existam variações. Assim, tem-se o seguinte em uma RJ4: 1) petição inicial, em que a empresa pleiteia a própria recuperação judicial e indica a relação de credores (art. 51 da lei 11.101/2005)5 2) deferimento da RJ pelo juiz (art. 52 da lei 11.101/2005), com: a) nomeação de administrador judicial (AJ, que pode ser um advogado, contador, economista, administrador de empresas; seja pessoa física ou pessoa jurídica que atue na área da advocacia, contabilidade ou auditoria - art. 21 da lei 11.101/2005); e b) a partir desse momento ocorre a suspensão, pelo prazo de 180 dias, dos processos contra a empresa em recuperação (o chamado stay period, previsto no art. 6º, caput e § 4º da lei 11.101/2005) 3) publicação de edital com a 1ª relação de credores (a partir da listagem apresentada pela recuperanda, conforme art. 52, § 1º da lei 11.101/2005) 4) apresentação, em 15 dias a partir da publicação do edital, perante o administrador judicial, de divergência (caso o credor entenda que os valores ou classe de crédito6 constantes do edital não estão corretos) ou habilitação (caso o crédito não tenha sequer constado da relação da recuperanda), sendo que não há sucumbência quanto a essas peças (art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005) 5) publicação de edital com a 2ª relação de credores (art. 7º, § 2º da lei 11.101/2005), apresentada pelo AJ, trazendo sua resposta a respeito de cada uma das divergências ou habilitações apresentadas pelos credores 6) apresentação, em 10 dias a partir da publicação do 2º edital, perante o juiz, de impugnação (discussão quanto à presença, ausência, valor ou classe de um crédito constante da 2ª relação de credores), que será autuada em apartado e, após contraditório e eventual dilação probatória, terá decisão do juiz, nesse caso havendo a possibilidade de condenação nos ônus da sucumbência (art. 8º da lei 11.101/2005), sendo que da decisão que julgar a impugnação cabe agravo de instrumento (art. 17 da lei 11.101/2005) 7) após as decisões das impugnações pelo juiz, será publicada a 3ª e última relação de credores (o quadro geral de credores - QGC, conforme art. 18 da lei 11.101/2005) 8) em paralelo à apuração dos créditos (itens 4 a 7 acima), apresentação do plano de recuperação judicial (PRJ) pela recuperanda, no prazo de 60 dias contados da publicação do deferimento da RJ (art. 53 da lei 11.101/2005) 9) os credores terão o prazo de 30 dias para apresentar objeção ao PRJ, prazo esse contado a partir da publicação do 2º edital de credores (art. 55 da lei 11.101/2005) 10) caso haja a apresentação de alguma oposição, será designada a Assembleia Geral de Credores (AGC), para que se delibere acerca do PRJ, de modo a ser aprovado ou rejeitado, pelas diversas classes de credores (arts. 35, I, "a" e 56 da lei 11.101/2005) - a AGC não será realizada em juízo, não contará com a presença do juiz e será presidida pelo AJ 11) aprovado o PRJ na AGC, o juiz irá homologar o plano para conceder a RJ7, desde que não haja ilegalidades (art. 58 da lei 11.101/2005)8 12) homologado o plano, haverá a fiscalização de seu cumprimento pelo juízo da RJ, pelo prazo de 2 anos, findo o qual haverá a extinção da RJ e a empresa prosseguirá com sua atuação (art. 63 da lei 11.101/2005)9 Esse é, como já dito, o trâmite de uma RJ que não tenha nada de extraordinário, com sucesso na aprovação do PRJ e sem que haja conversão da RJ em falência. E mesmo assim é um procedimento complexo. Considerando esse cenário, a atuação do advogado do credor submetido à RJ se dará especialmente nos seguintes momentos (sem prejuízo da suspensão das ações contra a recuperanda, por força do stay period, item 2.b acima): a) após a publicação do 1º edital, apresentação de divergência ou habilitação (item 4 acima), a ser protocolada apenas perante o AJ (muitas vezes exclusivamente por meio eletrônico10), ou perante o AJ e também em juízo, a depender da determinação do juiz da causa - essencial, para este fim, que seja consultada a forma de apresentação dessas peças no próprio edital11; b) após a publicação do 2º edital, apresentação de impugnação (item 6 acima), a ser protocolada em juízo; c) após a apresentação do PRJ, apresentação de objeção ao plano (item 9 acima), a ser protocolada em juízo; d) participação na AGC, notadamente para votar pela aprovação ou rejeição do PRJ ou, ainda, pela abstenção (item12 acima). Graficamente, o procedimento básico da RJ pode ser resumido no seguinte diagrama: O cotidiano forense mostra que, infelizmente, muitos profissionais que atuam nas recuperações não conhecem essa tramitação básica quanto à RJ, o que causa uma série de tumultos e dificultam o andamento de um procedimento que, invariavelmente, é complexo e apresenta uma série de incidentes. Assim, o primeiro passo para que haja uma adequada recuperação judicial é, seguramente, que as fases procedimentais previstas na legislação sejam observadas - tantos pelos advogados como pelos juízes, promotores e administradores judiciais. E a presente coluna busca, exatamente, contribuir para isso. __________ 1 A primeira, de autoria de Daniel Carnio Costa, pode ser lida em aqui. 2 A respeito, conferir, com mais vagar, Fernando da Fonseca Gajardoni; Luiz Dellore; Andre Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr., Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - Comentários ao CPC/2015, São Paulo: Método, 2016, p. 1/2. 3 Naturalmente, essas (in)compatibilidades serão tratadas em outros momentos desta coluna. Um exemplo do que se afirma foi objeto de preocupação de um dos autores deste texto ainda na vacatio do NCPC, a respeito da recorribilidade das decisões interlocutórias na recuperação judicial (e também na falência): Andre Vasconcelos Roque, Bernardo Barreto Baptista, O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação funcional. 4 Vale destacar que a lei 11.101/2005 não apresenta o procedimento da RJ de forma linear, mas sim com idas e vindas, o que dificulta um pouco a compreensão do procedimento recuperacional a partir da leitura da lei, sem levar em conta o que se verifica no cotidiano forense. 5 Tem sido relativamente frequente exigir da empresa recuperanda também a relação dos credores extraconcursais (não submetidos aos efeitos da RJ), a fim de que os credores concursais possam avaliar a totalidade da situação econômico-financeira da empresa e de suas probabilidades de soerguimento. O assunto será tratado oportunamente, em outro texto. 6 Os créditos são: classe I, trabalhista; classe II, credor real; classe III: quirografário e classe IV: microempresa e EPP (art. 41 da lei 11.101/2005). Além disso, como visto em nota anterior, há créditos que não se submetem à RJ, ou seja, que são extraconcursais (como a garantia fiduciária do art. 49, § 3º da lei 11.101/2005). 7 Não se confunde, portanto, a decisão que defere o processamento da RJ (passo 2 do procedimento) com aquela que concede a RJ, homologando o plano de recuperação judicial (passo 11 do procedimento). 8 Sobre os limites do controle de legalidade do PRJ pelo juiz, confira-se o anterior texto nesta coluna, referido na primeira nota de rodapé. 9 Eventual descumprimento do plano no prazo de 2 anos autoriza a conversão da RJ em falência (art. 61 da lei 11.101/2005); se o descumprimento se verificar após este período, o credor poderá se valer das vias comuns contra a devedora, quais sejam, a execução do PRJ ou mesmo o ajuizamento de requerimento de falência (art. 62 da lei 11.101/2005). 10 É o que ocorre perante as duas varas especializadas em RJ e Falência da cidade de São Paulo, sendo esse, seguramente, o meio mais efetivo e menos burocrático. 11 Infelizmente, tem sido comum no cotidiano forense, sobretudo por profissionais não acostumados a esse procedimento especial, a apresentação de divergências ou habilitações perante o juízo da recuperação judicial sem qualquer determinação do juiz nesse sentido, o que não encontra respaldo na lei. O art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005 determina expressamente que essas peças sejam apresentadas ao administrador judicial.