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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
terça-feira, 20 de março de 2018

Crédito público na recuperação judicial

Alberto Camiña Moreira O processo de recuperação judicial, não obstante seu elevado propósito apontado no artigo 47 da lei, não alcança todas as dívidas da empresa, o que representa, no sentir de muitos, sério entrave à efetiva reestruturação das dívidas. Com efeito, a lei exclui certos créditos do processo de recuperação judicial. Em linhas gerais, são os créditos titularizados por instituições financeiras (art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/05, sobre os quais não discorreremos) e pelo Poder Público. Assim como nem todos os créditos de instituições financeiras estão excluídos do processo de recuperação judicial, nem todos os créditos titularizados pelo Poder Público estão afastados desse processo. Nesta coluna, pretendemos sustentar que somente o crédito tributário titularizado pelo Estado está excluído do processo de recuperação judicial. De conseguinte, outros créditos, como as multas, principalmente, submetem-se ao processo de recuperação judicial. Trataremos somente da submissão da multa administrativa ao processo de recuperação judicial, sem ferir outros temas, igualmente importantes. O ponto de partida é o Código Tributário Nacional. Segundo o artigo 187, "a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento". A norma exclui, do processo de recuperação judicial, somente o crédito tributário; não há referência à dívida ativa tributária. Essa regra do artigo 187 do CTN prefere à regra prevista no artigo 49 da lei 11.101/05, segundo a qual "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos", dada a posição especial conferida à lei complementar (sem ingressar em pormenor acerca desse aspecto) em nosso sistema jurídico. A não ser assim, o artigo 49 teria derrogado o artigo 187 do CTN. A Lei 11.101/05 confirma essa regra, senão vejamos. O artigo 6º, §7º, está assim redigido: "As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica". A natural interpretação a ser extraída do dispositivo é a de que a execução fiscal em referência é aquela que veicula a cobrança de tributo; por isso a expressa referência, no texto legal, e não poderia ser diferente, ao Código Tributário Nacional, Código esse que só cuida de tributos. Outro dispositivo da lei 11.101/05 segue na mesma linha. O controvertido artigo 57 diz que "Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos do arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional". Justamente porque o crédito tributário não é submetido ao processo de recuperação judicial, a apresentação de certidão é o meio concebido pela lei (e não se entra no mérito do acerto ou desacerto dessa fórmula) para a satisfação do crédito decorrente do inadimplemento de impostos; sem que exista qualquer exigência em relação aos demais créditos titularizados pela Fazenda Pública, como as multas, pois passíveis de submissão ao processo de recuperação judicial. Quando se editou a lei 11.101/05 também se alterou o Código Tributário Nacional. Na sempre intrincada disciplina dos créditos sujeitos ou não sujeitos, tinha-se consciência de que se disciplinava somente o crédito tributário. Outra confirmação dessa posição adotada pelo legislador vem do art. 191-A do Código Tributário Nacional, ao estatuir que "A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei". O artigo 57 guarda pertinência com esse artigo 191-A, que só fala em quitação de todos "os tributos". Portanto, não há necessidade de se apresentar certidão de quitação de multas punitivas impostas pela Administração Pública. Nem o CTN nem a lei 11.101/05 fazem essa exigência. Não é pela falta de exigência expressa de certidão que o crédito pecuniário decorrente de multa imposta e não paga submete-se ao processo de recuperação. É porque a exclusão só se refere ao crédito tributário e, portanto, remanesce, para incidir e governar a espécie, o artigo 49, "caput", da lei 11.101/05; é por força dessa norma que as multas se submetem ao processo de recuperação. Parece bastante claro que o crédito decorrente de multa se submete ao processo de recuperação, à luz das normas ora transcritas, que não deixam margem a dúvida interpretativa. E o artigo 68 da lei 11.101/05, ao se referir a parcelamento "nos termos de legislação específica", também se refere ao Código Tributário Nacional, a confirmar, mais uma vez, a coerência do legislador, sempre preocupado com o crédito tributário, e mostrando notável consciência de que outros créditos públicos se submetem ao processo de recuperação judicial. Todavia, não se pode esquecer do artigo 29 da lei 6.830/80, e que pode atrapalhar o intérprete menos avisado. Referido dispositivo da lei de execução fiscal proclama o seguinte: "A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento". Esse dispositivo deve ser interpretado em consonância com as alterações implementadas no Código Tributário Nacional e observar a legislação superveniente, isto é, a lei 11.101/05. A própria Fazenda Pública sabe disso, pois é corriqueira a habilitação em falência apesar da assegurada não sujeição a concurso de credores. O dispositivo fala em dívida ativa, que, pela legislação (art. 39 da lei 4.320/64, que estatui normas gerais de direito financeiro), é classificada em dívida ativa tributária e dívida ativa não tributária (assim também o art. 2º da lei 6.830/80). A multa, por expressa previsão legal, integra a chamada dívida ativa não tributária. Também o direito de crédito decorrente de indenização em favor do Estado é incluído na dívida ativa não tributária. Por exemplo. O caminhão de uma transportadora colide contra uma ponte municipal e lhe causa danos. O Município pode acionar a empresa causadora do acidente; ou obter o valor da indenização por acordo ou outro meio administrativo. O seu direito de crédito, que não é tributário, evidentemente, na eventual falência da transportadora, será crédito quirografário, e na recuperação judicial, será crédito submetido a esse processo, o que é incontroverso. O fato de tal verba integrar, eventualmente, a chamada dívida ativa, nada lhe acrescenta de especial. É preciso verificar, portanto, a natureza do crédito titularizado pelo Estado, com a insistência de que somente o crédito tributário está expressamente excluído do processo de recuperação judicial. É a natureza e não a pessoa do credor que deve ser considerada para se saber da submissão ou não do crédito. Com isso, avulta dizer que a locução dívida ativa não tem relevância para a conclusão que se pretende estabelecer. A dívida ativa, que abrange tanto o crédito tributário como o não tributário, é fruto de atividade administrativa de controle da administração pública. A inscrição na dívida ativa é atividade interna da Fazenda Pública, e tem a finalidade de controle interno de legalidade, que culmina na formação de um estoque de dívida cobrável em juízo, pelo rito da execução fiscal. Dívida ativa é expressão da quantidade de crédito identificada pela Fazenda Pública sob um procedimento próprio; dívida ativa, locução que identifica a quantidade de crédito que passou pela inscrição, não tem o condão de, por si só, revestir os créditos (inscritos) de prerrogativas excepcionais. Essa expressão - dívida ativa - relevante no âmbito da administração pública, não assume nenhum significado prático no âmbito dos processos de insolvência do devedor. Aliás, a jurisprudência dispensa a certidão de dívida ativa para fins de habilitação do crédito público nos processos de insolvência (STJ, RESP 1591141). É o crédito tributário, e não o produto de um procedimento administrativo que culmina na formação da dívida ativa, que conta com privilégio de natureza substancial. Pode baralhar, ainda, a interpretação, o uso do adjetivo fiscal - que aparece tanto no artigo 29 da Lei de Execução Fiscal, como no §7º do art. 6º da lei 11.101/05 ("execuções de natureza fiscal"). Todavia, como bem advertiu Milton Flacks, "a locução crédito fiscal, quando utilizada nos textos legais, não tem sentido unívoco, tanto podendo significar débito de origem tributária, como débito de um modo geral, para com o poder público, devendo o intérprete se socorrer do contexto onde se encontra inserida" (sem grifo no original). Fisco tanto pode ser a pessoa jurídica de direito público como o crédito tributário ou mesmo o estado fiscalmente considerado. Para que se tenha a necessária harmonização entre o CTN e a LEF, é preciso entender que não é sujeita a concurso "a cobrança judicial da dívida ativa tributária...", pois a locução dívida ativa nada tem de esclarecedora em termos de direito material. E essa harmonização já existe entre o CTN e a lei 11.101/05, pois o artigo 6º, §7º, da Lei de Recuperação e Falência é claramente endereçado às execuções fiscais destinadas à cobrança de tributo, que não são suspensas. Uma lei de ritos, como a lei de execução fiscal, não se sobrepõe à superveniente lei de reestruturação de dívidas de empresas, que, em relação ao crédito público, conta com disciplina própria. Por elementar interpretação a contrário, que se afeiçoa, por sua vez, com o comando oriundo da Lei Complementar que é o Código Tributário Nacional, suspendem-se as execuções fiscais destinadas à cobrança da dívida ativa não tributária. E a razão da suspensão é uma só: a dívida ativa não tributária submete-se ao processo de recuperação judicial. É importante considerar, neste ponto, que o instrumento utilizado pela Fazenda Pública para cobrar, em juízo, o seu crédito, que é a execução fiscal, mera execução por quantia certa contra devedor solvente com algumas particularidades procedimentais, não é o fator estruturante de sua posição jurídica. A ferramenta processual - execução fiscal - nada diz sobre a situação do crédito público na recuperação judicial. Não é à toa que a jurisprudência vai reconhecendo a submissão do crédito não tributário da Fazenda Pública ao processo de recuperação judicial. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a submissão de multa administrativa, por descumprimento da legislação sanitária, ao processo de recuperação judicial. Veja-se o seguinte precedente da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 26/8/2015, rel. Des. Francisco Loureiro: O crédito perseguido pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto tem natureza de multa administrativa decorrente de auto de infração da vigilância sanitária, que resultou na aplicação de penalidade por descumprimento de normas de boas práticas na manipulação e comercialização de alimentos (fl. 201). Em outras palavras, trata-se de multa de natureza administrativa decorrente do exercício do poder de polícia. (...) Como se sabe, nos termos do art. 39, § 2.º da lei 4.320/1964, os créditos inscritos em dívida ativa podem ser tributários ou não. Os créditos tributários constituem a Dívida Ativa Tributária e abrangem os tributos, adicionais e multas. Os créditos que não sejam tributários formam a Dívida Ativa não Tributária: "Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias. (...) § 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais". Desse modo, inaplicável a restrição imposta pelo artigo 187 do CTN, diante da natureza não-tributário do crédito perseguido: "Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento". Nessa linha de raciocínio, e considerando que a natureza do crédito sujeita-se à recuperação judicial, nos termos do artigo 49 da lei 11.101/2005, não se enquadra o caso em tela na exceção prevista nos parágrafos 3º e 4º desse mesmo artigo". Foi decisiva, para a conclusão do v. acórdão, a natureza do crédito, que é o critério necessário e suficiente para bom esclarecimento desse ponto. No mesmo sentido, e pelo mesmo relator, com o mesmo fundamento, o AI 2207236-63.2015.8.26.0000, j. 10/12/2015, com a seguinte ementa: RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Indeferimento de pedido para que os créditos decorrentes das multas administrativas sejam habilitados no processo de recuperação. Multa administrativa aplicada pelo PROCON. Natureza não-tributária. Inteligência do artigo 49 da Lei n. 11.101/05. Inaplicabilidade da restrição do artigo 187 do CTN. Possibilidade de prosseguimento da recuperação com a habilitação dos créditos do PROCON. Recurso provido. As proclamadas garantias e privilégios do crédito tributário, que procuram assegurar a sua satisfação, não têm o condão de alterar a natureza jurídica do crédito público. É o próprio Código Tributário Nacional que assim estatui, conforme artigo 183, verbis: "A natureza das garantias atribuídas ao crédito tributário não altera a natureza deste nem a da obrigação tributária a que corresponda". A natureza jurídica de cada crédito público não é alterada em decorrência da vantagem processual que a lei assegura ao ente público. O precedente acima referido, que admite a submissão do crédito não tributário ao processo de recuperação judicial, segue exatamente o critério preconizado pelo Código Tributário Nacional, de que a natureza jurídica do crédito é inalterável. Ainda que com argumentação distinta, mas em essência idêntica, e igualmente correta, isto é, levando em consideração a natureza do crédito, a partir do exame do artigo 83, VII, da lei 11.101/05, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, no dia 17/2/2016, por meio da 2ª Câmara Reservada de Falências e Recuperações, no julgamento do AI 2047000-40.2015.8.26.0000, relatoria do Des. Ricardo Negrão, assim ementado: AGRAVO DE INSTRUMENTO - Recuperação Judicial - Multa administrativa - Decisão que classifica o crédito como extraconcursal - Pretensão das recuperandas à sujeição a recuperação judicial - Cabimento (LREF, art. 83, VII) - Decisão singular reformada - Agravo provido neste ponto. AGRAVO DE INSTRUMENTO - Recuperação Judicial - Multa administrativa - Decisão que classifica o crédito como extraconcursal - Divergência quanto aos valores - Ausência de análise no Juízo Singular - Determinação de verificação na origem para evitar supressão de instância. Nessa decisão, a Colenda Câmara identificou, por meio do artigo 83, VII, a natureza do crédito relativo a multa titularizada pelo ente público, e, então, reconheceu a submissão ao processo de recuperação judicial. Conclui-se que a jurisprudência, corretamente, orienta-se no sentido de acolher créditos titularizados pelo Estado e que não ostentam natureza tributária. Como se sabe, o Poder Público Federal, por seus órgãos fazendários, participou exaustivamente da elaboração da lei 11.101/05, e, conscientemente, deixou de fora da recuperação judicial os créditos relativos aos tributos. Com isso, fez submeter, com clareza, as multas administrativas ao processo de recuperação judicial, pois a modificação no Código Tributário Nacional, para adequá-lo à estrutura concebida pela Lei de Recuperação e Falências, revela a clara opção do legislador. A lei de ritos da execução - fiscal - não tem o condão de alterar essa clara vontade do legislador, expressa em textos claros (LFR e CTN). Embora possa parecer uma pálida contribuição, é o modo pelo qual o Poder Público colabora com a empresa em crise.
Andre Vasconcelos Roque 1. Jurisprudência instável e incoerente: o novo "banana boat" Olá, meus amigos! Na coluna de hoje, vamos tratar de assunto já objeto de notícia aqui no Migalhas1, e que diz respeito a tema que enseja controvérsia no STJ, mais precisamente entre a 1ª e a 2ª seções: pode haver constrição judicial de bens de empresa em recuperação judicial na execução fiscal? Como se sabe, nos termos do art. 6º, § 7º da lei 11.101/2005, a execução fiscal não será suspensa pelo deferimento do processamento da recuperação judicial. A questão consiste em saber: de que maneira prosseguirá a execução fiscal, enquanto é processada a recuperação judicial? Sobre esse ponto, a lei é silente. Para a 2ª seção do STJ, competente para conhecer de litígios relativos a Direito Privado em geral, a execução fiscal prosseguirá sem a constrição (apreensão e alienação) de bens da empresa recuperanda. A prática de tais atos compete ao juízo da recuperação, a quem incumbirá avaliar a essencialidade dos bens para a empresa. Confira-se: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AGRAVO INTERNO. EXECUÇÃO FISCAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRÁTICA DE ATOS EXECUTÓRIOS CONTRA O PATRIMÔNIO DA RECUPERANDA. LEI N. 13.043/2014. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO DA SEGUNDA SEÇÃO. (...) Contudo, conquanto o prosseguimento da execução fiscal e eventuais embargos, na forma do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005, deva se dar perante o juízo federal competente - ao qual caberão todos os atos processuais, inclusive a ordem de citação e penhora -, a prática de atos constritivos contra o patrimônio da recuperanda é da competência do Juízo da recuperação judicial, tendo em vista o princípio basilar da preservação da empresa. Precedentes. (STJ, AgInt no CC 153.006, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/2/2018, DJe 27/2/2018). Entretanto, nas Turmas que compõem a 1ª Seção do STJ, competente para conhecer de matérias relativas a Direito Público em geral, há precedentes apontando que, nos casos em que a recuperação judicial foi deferida com a dispensa da apresentação das certidões de regularidade fiscal, incumbe ao juízo no qual tramita a execução fiscal decidir a respeito da prática de atos de constrição sobre o patrimônio da recuperanda - não haveria, portanto, vedação a priori à constrição patrimonial: PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA ON-LINE. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. QUESTÕES RELEVANTES. OMISSÃO CONFIGURADA. (...) O segundo ponto discutido nos aclaratórios também possui relevância, pois, não obstante o entendimento da Segunda Seção do STJ, quanto à vedação à prática de atos de constrição nas Execuções Fiscais, o entendimento da Segunda Turma é de que é necessário que as instâncias de origem analisem se a Recuperação Judicial foi deferida com ou sem a exigência da prévia apresentação de Certidão Negativa de Débitos. 7. Com efeito, diante da redação do art. 6º, § 7º, da lei 11.101/2005, e do fato de que no Plano de Recuperação Judicial não há inclusão ou negociação dos créditos tributários, a Execução Fiscal poderá ter regular prosseguimento, inclusive com penhora de bens, caso constatado que não há CND e que os débitos tributários não se encontram suspensos. Nesse sentido: REsp 1.645.655/SC, de minha relatoria, DJe 18/4/2017" (STJ, REsp 1681463/SP, Rel. ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/10/2017, DJe 19/12/2017) Assim é que, no próprio STJ, que possui a incumbência de uniformizar a interpretação da lei federal, há relevante divergência interna sobre o assunto em análise: afinal, a quem competirá (juízo da recuperação judicial ou da execução fiscal) avaliar se é caso ou não de autorizar a constrição sobre o patrimônio da recuperanda? Normalmente, a matéria chega à 2ª seção em sede de conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, ao passo que a mesma discussão é submetida à 1ª Seção, que possui entendimento diverso, na hipótese de interposição de recurso pela Fazenda Pública. Trata-se de eloquente exemplo de jurisprudência instável e incoerente, exatamente ao contrário do que almeja o art. 926 do CPC/2015. Inevitável recordar-se do famoso voto "banana boat", em que o min. Humberto Gomes de Barros, fazendo uma comparação com a oscilante jurisprudência do STJ, assim apontou: "Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme bóia, cheia de pessoas é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da bóia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa graus. O jogo só termina, quando todos os passageiros da bóia estão dentro do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados" (STJ, REsp 382.736, voto vista do Min. Humberto Gomes de Barros). Como podemos evitar esse mais novo "banana boat"? 2. Combatendo a divergência sobre o tema no STJ Diante do impasse verificado sobre a matéria, estão em discussão algumas iniciativas para que se resolva definitivamente a controvérsia, o que traria maior segurança jurídica para todos os profissionais que atuam com recuperação judicial, além de promover o tratamento isonômico relativamente ao assunto em discussão. A 1ª Seção do STJ largou na frente e, em fevereiro de 2018, afetou três recursos especiais ao regime dos repetitivos, na forma do art. 1.036 do CPC/2015. Nesse sentido, os REsp 1.694.261/SP, REsp 1.694.316 e REsp 1.712.484/SP foram afetados para definir a seguinte questão: "possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal". Determinou-se, ainda, a suspensão de todos os processos judiciais no país que tratem de tal questão. Só há um problema nessa história toda: é que tais recursos repetitivos serão julgados pela própria 1ª Seção, e não pela Corte Especial do STJ (que congrega todas as Seções). Não parece que eventual precedente formado pela 1ª seção em sede de recurso repetitivo seja capaz de vincular a 2ª Seção, que também tem apreciado referida matéria em sede de conflitos de competência. Pior: se não há uniformização de entendimento sequer no STJ, parece que também os juízes e tribunais inferiores poderão simplesmente deixar de observar o precedente que vier a ser formado em sede de recurso repetitivo, sob o fundamento de que aderem à orientação da 2ª Seção. Definitivamente, os recursos repetitivos foram estruturados para resolver eventual divergência de cima para baixo - ou seja, impondo a tese jurídica estabelecida pelos tribunais superiores aos juízes e tribunais inferiores -, não se tratando de instrumento adequado, porém, para dirimir divergências internas nos tribunais superiores. Uma alternativa cogitada pela 2ª Seção consistiria na instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) sobre o tema perante a Corte Especial. Não há dúvidas, entretanto, de que o IRDR foi concebido pelo CPC/2015 para ser instaurado originariamente perante os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, tanto assim que os arts. 982, I, e 985, I, ao disciplinarem o âmbito de abrangência da suspensão e de aplicação da tese jurídica, referem-se a estado e região. Embora em sede doutrinária o autor deste artigo tenha sustentado não ser possível descartar a possibilidade de que o IRDR seja instaurado diretamente perante os tribunais superiores2, há ainda muitas dúvidas sobre a matéria, inclusive entre os ministros do STJ. Outra saída promissora seria o incidente de assunção de competência, disciplinado no art. 947 do CPC/2015, o qual é cabível em qualquer tribunal (superando a dúvida quanto à sua possibilidade de instauração perante o STJ, verificada em relação ao IRDR). Mediante tal incidente, que tem entre suas finalidades precisamente prevenir ou compor divergência entre órgãos fracionários do tribunal (art. 947, § 4º), a questão poderia ser submetida à Corte Especial, que estabeleceria a tese jurídica com efeitos vinculantes não apenas para todas as Turmas e Seções do STJ (art. 947, § 3º), mas também para os juízes e tribunais inferiores, na forma do art. 927, III do CPC/2015. Aqui também há problemas, todavia, que dizem respeito ao requisito negativo do art. 947, caput do CPC/2015: para que possa ser admitida a assunção de competência, deve-se estar diante de uma situação "sem repetição em múltiplos processos". É evidente que o propósito do código processual vigente foi estabelecer o cabimento da assunção de competência exatamente nos casos em que não haveria espaço para o IRDR - pela falta de suficiente repetitividade da matéria. O específico tema em análise - constrição judicial em execução fiscal sobre bens de empresas em recuperação judicial - não aparenta ter repetitividade suficiente para afastar o incidente de assunção de competência. Ainda que haja alguma repetição sobre o tema, como se depreende dos precedentes sobre a matéria nas 1ª e 2ª Seções do STJ, não se trata de demandas massificadas, espaço no qual somente seria cabível o incidente de resolução de demandas repetitivas. De toda a sorte, a discussão em questão revela ser este mais um espaço adequado para a incidência do princípio da fungibilidade. Diante da dúvida objetiva sobre o cabimento de tais medidas, não se pode afastar a possibilidade de que um IRDR seja conhecido como incidente de assunção de competência ou vice-versa. E, se nada disso (repetitivos, IRDR ou assunção de competência) funcionar, ainda restara um último remédio para combater a divergência jurisprudencial: o tradicional recurso dos embargos de divergência (arts. 1.043 e 1.044), os quais, entretanto, dependerão de iniciativa de alguma das partes afetadas pela questão em discussão. Uma vez alegada a divergência entre acórdãos da 1ª Seção (ou das duas Turmas a ela vinculadas) e da 2ª Seção (ou das duas Turmas a esta vinculadas), competirá à Corte Especial o julgamento dos embargos (art. 11, XIII do Regimento Interno do STJ), cuja decisão produzirá efeitos vinculantes para os órgãos fracionários do STJ (art. 927, V do CPC/2015). * * * Remédios não faltam, na farmácia processual, para combater a divergência existente no STJ a respeito da prática de atos de constrição, em execução fiscal, sobre o patrimônio de empresas em recuperação judicial. As principais alternativas, como se viu, são o IRDR, a assunção de competência ou mesmo os embargos de divergência. Espera-se que em breve, portanto, haja alguma definição jurisprudencial sobre o assunto. De minha parte, penso que, se já se consolidou a tese de que o juízo da recuperação judicial é o único competente para avaliar a possibilidade de atos de constrição sobre bens da recuperanda relativamente aos créditos fiduciários, que não se submetem aos efeitos da recuperação (art. 49, § 3º da lei 11.101/2005)3, por uma questão de coerência, o mesmo regime deveria ser aplicado aos créditos da Fazenda Pública. Ou seja, os atos destinados à constrição na execução fiscal devem ser igualmente avaliados pelo juízo da recuperação judicial, em prestígio à orientação da 2ª Seção do STJ. Hoje, ficamos por aqui. Um abraço e até a próxima! __________ 1 V. notícia publicada em 2.32018, intitulada "STJ: Seções divergem em questão sobre recuperação judicial e consideram afetar caso para Corte". 2 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 850. 3 Entre outros: "Apesar de o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, o juízo universal é competente para avaliar se o bem é indispensável à atividade produtiva da recuperanda. Nessas hipóteses, não se permite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial (art. 49, §3º, da Lei 11.101/05). Precedentes" (STJ, CC 146.631/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/12/2016, DJe 19/12/2016).
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A alteração da Lei de Gerson

Marcelo Barbosa Sacramone Num contexto de estagnação econômica, a reforma da legislação falimentar brasileira tem sido apresentada pelo governo como uma das alterações estruturais imprescindíveis para promover o desenvolvimento nacional. Criada pela lei 11.101/05 em substituição à concordata, a recuperação judicial deveria permitir aos devedores, em conjunto com os seus credores, a possibilidade de obterem uma solução consensual para que pudessem superar a crise econômico-financeira que impedia o desenvolvimento regular da atividade empresarial e a satisfação de suas obrigações. O ambiente institucional para que a obtenção dessa solução consensual pudesse ser alcançada, entretanto, não conseguiu ser garantido. Embora o comportamento cooperativo dos credores tenha sido incentivado mediante a suspensão de suas ações e execuções com o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial, nem todos os credores foram submetidos a esse procedimento. Sob a justificativa de que o crédito tributário não poderia ser renegociado, o Fisco recebeu tratamento privilegiado pela legislação. Não apenas os débitos tributários não podem ser equalizados pela recuperação judicial, como o não pagamento dos tributos devidos impede que, em prejuízo da concordância da maioria dos outros credores, a recuperação judicial seja concedida. A imposição da apresentação da Certidão Negativa de Débitos Tributários para a concessão da recuperação judicial, contudo, tornaria inviável o próprio instituto diante do enorme débito tributário das empresas. A opção pelo parcelamento especial para empresas em recuperação judicial, como estabelecido pela lei 13.043/2014, todavia, não garante ao empresário melhor solução. Condicionada à renúncia da discussão dos débitos tributários em juízo e à satisfação dos débitos integralmente, sem qualquer deságio, em 84 prestações mensais, o parcelamento impõe a concordância a eventual ilegalidade na cobrança do tributo, bem como não permite qualquer adequação do pagamento às peculiaridades do desenvolvimento da atividade ou ao montante do débito do empresário devedor. Além do Fisco, os credores titulares de créditos garantidos pela propriedade de determinados ativos também ficariam fora de qualquer renegociação coletiva. Chamadas de "travas bancárias", assim conhecidas por serem garantias normalmente titularizadas por instituições financeiras, seu tratamento privilegiado foi justificado em razão de que a submissão desses credores à recuperação judicial aumentaria o spread bancário. Diante da possibilidade de esses créditos serem novados pela vontade da maioria dos demais credores, a instituição financeira repassaria os juros decorrentes do maior risco de inadimplemento aos demais agentes econômicos, em prejuízo de todo o mercado. Não submetidos à recuperação judicial, esses credores podem retomar os bens que lhe foram atribuídos em garantia. Tratando-se de créditos futuros, na cessão fiduciária de recebíveis a performar, pode o credor ter seus créditos satisfeitos com o capital de giro do empresário devedor ou, desde que superado o período de negociação (stay period), pode, na alienação fiduciária em garantia, retirar do estabelecimento do devedor os bens de capital essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, ainda que com o comprometimento dos interesses de todos os demais credores. Criada para propiciar o comportamento colaborativo de todos os credores em prol da superação da crise empresarial, ao não submeter todos os credores ao procedimento, a recuperação judicial incentiva os agentes econômicos justamente ao comportamento contrário, oportunista. Como os débitos tributários não podem ser renegociados e preferem grande parte dos credores na ordem legal de preferência de pagamento na falência, a recuperação judicial será na maioria dos casos a melhor alternativa aos credores, o que permite ao devedor abusar de sua posição. Embora com plano médio de 12 anos para pagamento e com deságio real de aproximadamente 50% do valor do crédito, a recuperação judicial é aprovada pelos credores em 90% dos processos. Os credores, por seu turno, poderão concordar com plano de recuperação judicial de empresa sabidamente inviável e que não atenda aos objetivos da recuperação judicial. Como única forma de se serem satisfeitos, os credores poderão convencionar planos que impliquem a alienação da totalidade ou quase totalidade dos ativos do devedor, na forma de verdadeira liquidação de bens durante o procedimento recuperacional, ainda que em detrimento de todos os demais interessados ou de eventuais credores não sujeitos. Os credores financeiros, outrossim, exigirão garantias que não lhe permitam a submissão ao plano de recuperação judicial. A hipoteca e o penhor, ambos direitos reais de garantia sujeitos à recuperação judicial, serão naturalmente substituídos pela alienação fiduciária de bens ou pela cessão fiduciária de seus recebíveis futuros, o que comprometerá ainda mais a crise econômico-financeira do empresário. Enquanto esses comportamentos oportunistas dos agentes econômicos continuarem a ser incentivados pela legislação, com a não submissão de todos os credores ao procedimento de negociação coletiva, reforma alguma será suficiente para que a recuperação judicial se torne o instituto jurídico apto a superar a crise da empresa e a permitir o desenvolvimento econômico nacional.
Luiz Dellore Umas das principais inovações trazidas pelo NCPC ao sistema processual foi a forma da contagem dos prazos. A novidade está no art. 219 do NCPC que, diferentemente do previsto no sistema anterior (no qual, uma vez iniciados, os prazos fluíam durante os finais de semana e feriados), traz a contagem de prazos somente em dias úteis. A redação do caput do artigo é a seguinte: "Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis". Para (tentar) evitar maiores debates, o Código especificou quais seriam os prazos em dias úteis. Isso está no parágrafo único do art. 219: "O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais". Assim, a previsão legislativa é, na teoria, simples: - prazos processuais em dias úteis; - prazos materiais em dias corridos (em atenção ao art. 132 do CC). Contudo, na prática a questão não é tão simples. Muito ao contrário, há vários pontos de dúvidas decorrentes dessa singela - e insuficiente - previsão legislativa contida no NCPC. Há debate tanto a respeito do que seja um prazo processual e um prazo material, como também em relação a qual legislação a previsão do NCPC se aplica. Assim, dentre outras dúvidas, doutrina e jurisprudência debatem1, com maior ou menor divergência, se o prazo é em dias úteis ou corridos (a) na Justiça do Trabalho, (b) na Justiça Eleitoral, (c) no processo penal, (d) nos juizados especiais, (e) no prazo para pagamento, na execução e no cumprimento de sentença, (f) no prazo para o cumprimento de uma obrigação de fazer, além de, por certo (e) nos prazos previstos nos procedimentos de recuperação judicial e falência. Isso mostra como, infelizmente, a reforma processual não foi adequadamente realizada. Em lugar de prever um procedimento simples e claro, trouxe dúvidas e divergências processuais que podem prejudicar os litigantes e, muitas vezes, impedem que o mérito seja debatido - seja por força de intempestividade, seja porque os tribunais, ao invés de decidirem o litígio (que é o anseio da sociedade), ficam debatendo como se conta determinado prazo... De qualquer forma, considerando os objetivos desta coluna Insolvência Civil no Migalhas, é certo que vamos nos ater apenas ao debate ligado à recuperação judicial. E, mais especificamente, neste momento em relação ao prazo de stay period. Considerando a crise da empresa e a tentativa de seu soerguimento, uma vez deferido o processamento2 da recuperação judicial haverá, pelo prazo de 180 dias, a suspensão de todas as ações - de conhecimento ou execução - que tramitem contra a empresa recuperanda. Este é o chamado stay period, previsto no art. 6º, § 4º da lei 11.101/20053. A finalidade do stay period é permitir que haja um fôlego, logo após o deferimento da RJ, para que a recuperanda consiga reorganizar suas atividades e credores, sem o risco de uma penhora ou outra espécie de constrição que prejudique a construção de um plano para permitir o prosseguimento da atividade empresarial. Dúvida não há quanto à lógica dessa previsão legal. E, como já visto, o prazo indicado pela legislação é em dias. A partir daí, surge a dúvida: trata-se de um prazo de direito material ou de direito processual? E, consequentemente, é contado em dias úteis ou corridos? A lei 11.101/2005 é omissa. O NCPC, também. Resultado: doutrina e jurisprudência divergem... Do ponto de vista da prática forense, pouco tempo após a vigência do Código de 2015, as varas especializadas em recuperação judicial de São Paulo4 definiram que o prazo é contado em dias úteis, aplicando-se o art. 219 do NCPC. E o fizeram sob outro enfoque, e não apenas analisando a questão sob a perspectiva de ser prazo processual ou material. Nesse sentido: (...) Diante disso, a interpretação de que o prazo de automatic stay deva ser contado em dias corridos, quando os demais prazos processuais na recuperação judicial se contarão em dias úteis, poderá levar à inviabilidade de realização da AGC e da análise do plano pelos credores e pelo juízo dentro dos 180 dias. Em consequência, duas situações igualmente indesejáveis poderão ocorrer: o prazo de 180 dias será prorrogado pelo juízo como regra - quando a lei diz que esse prazo é improrrogável e a jurisprudência do STJ diz que a prorrogação é possível, mas deve ser excepcional; ou o juízo autorizará o curso das ações e execuções individuais contra a devedora, em prejuízo dos resultados úteis do processo de recuperação judicial. Nesse sentido, tendo em vista a teoria da superação do dualismo pendular, a circunstância de que o prazo do automatic stay é composto pela soma de prazos processuais e a necessidade de preservação da unidade lógica da recuperação judicial, conclui-se que também esse prazo de 180 dias deve ser contado em dias úteis5. No âmbito recursal, o TJ/SP tem duas Câmaras especializadas em Direito Empresarial, que, portanto, recebem todos os recursos6 decorrentes das recuperações judiciais. E o que ocorreu no âmbito do Tribunal? Após alguma divergência inicial, as Câmaras pacificaram seu entendimento - mas cada qual em um sentido7! A 1ª Câmara Especializada em Direito Empresarial entende se tratar de um prazo processual e, assim, que o stay period deve ser contado em dias úteis, conforme o seguinte trecho de julgado, que bem sintetiza a questão: (...) Admitida essa possibilidade, deve-se ponderar também o entendimento prevalente na 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial no sentido de que a contagem do stay period se dá em dias úteis (Agravos de instrumento nº 2061842-54.2017.8.26.0000, 2072098-56.2017.8.26.0000, 2147893-05.2016.8.26.0000), a fim de se evitar o prolongamento da suspensão além do tempo necessário em prejuízo dos credores. (AI nº 2159576-05.2017.8.26.0000, Relator Des. Carlos Dias Motta, j. 15/01/2018 - grifos nossos). De seu turno, a 2ª Câmara Especializada em Direito Empresarial entende se tratar de um prazo material e que, portanto, o stay period deve ser contado em dias corridos, conforme se vê do seguinte julgado, reproduzido na parte útil: (...) Esta 2ª Câmara acabou fixando o entendimento de que se trata de prazo material e, por isso, a ser contado em dias corridos. Tal o quanto se assentou no julgamento do AI nº 2200368-35.2016.8.26.0000, rel. Des. Fábio Tabosa, j. 27/3/2017". (AI nº 2140075-65.2017.8.26.0000, Relator Des. Claudio Godoy, j. 20/12/2017 - grifos nossos). E isso se repete em inúmeros outros julgados dessas Câmaras8. Cabe acrescentar que essa divergência também se verifica em outros tribunais. Vejamos o exemplo do Rio de Janeiro9: na capital há diversas varas especializadas em direito empresarial (portanto não apenas em recuperação judicial e falência) e, no TJRJ, não há especialização, sendo o tema julgado nas Câmaras Cíveis. Desse modo, as decisões são ainda mais pulverizadas. Para exemplificar, a 22ª Câmara de Direito Privado do TJRJ entende que a contagem é em dias úteis. É o que se vê da ementa a seguir transcrita na parte útil para os fins deste texto: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (...) PRAZO DE SUSPENSÃO POR 180 DIAS (STAY PERIOD). NATUREZA PROCESSUAL DO PRAZO. CONTAGEM. APLICAÇÃO DO ART. 219 DO CPC/2015. (...) O stay period destina-se a permitir que o plano de recuperação judicial seja submetido à votação pela assembleia geral de credores, tendo o condão de repercutir dentro e fora do processo. O prazo tem natureza processual de espera. A regra contida no artigo 6º, caput e § 4º da Lei 11.101/2005, objetiva impedir que se posterguem os prazos para apresentação e aprovação do plano de recuperação judicial, visando remediar novos prejuízos aos credores da sociedade recuperanda. (...). Conhecimento e desprovimento do recurso. (0004393-70.2017.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ROGÉRIO DE OLIVEIRA SOUZA - Julgamento: 01/08/2017 - VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL). Já a 20ª Câmara de Direito Privado do TJRJ diverge, e decide pela contagem do prazo em dias corridos, conforme se vê do seguinte trecho: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (...) PRAZO DE 180 (CENTO E OITENTA DIAS) PARA SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES EM FACE DA AGRAVADA QUE É DECADENCIAL, UMA VEZ QUE O INTUITO DA NORMA É JUSTAMENTE GARANTIR A CÉLERE DEFINIÇÃO QUANTO A DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA OU A APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ASSIM, A INOVAÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 219 E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NÃO MODIFICA A CONTAGEM DO PRAZO PREVISTO NO § 4º DO ARTIGO 6º DA LEI 11.101/2005, MANTENDO-SE EM DIAS CORRIDOS. (...) PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO APENAS DETERMINAR QUE A CONTAGEM DO PRAZO PREVISTO NO § 4º DO ARTIGO 6º DA LEI 11.101/2005, DEVE OCORRER EM DIAS CORRIDOS. (0043744-84.2016.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA - Julgamento: 05/04/2017 - VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL) E a preocupação acerca da forma contagem do prazo não é exclusiva para o stay period, mas também aplicável para outros prazos da recuperação, como o prazo de divergência e impugnação10 - mas o aprofundamento desse debate foge dos limites desta coluna. A divergência jurisprudencial hoje existente é bastante nociva, por trazer incerteza e insegurança aos jurisdicionados, advogados e magistrados. Assim, o que fazer diante desse cenário? A solução que parece ser a mais adequada - inovação do próprio NCPC e que aos poucos começa a ser utilizada no país - é a instauração de um IAC (incidente de assunção de competência, previsto no art. 947 do NCPC11), de modo que cada Tribunal (ou, ainda melhor, o STJ) decida essa questão e enfim afaste a divergência. Vale consignar que, uma vez decidido o IAC, a decisão será vinculante (NCPC, arts. 927, III e 947, § 3º), de modo que terá de ser seguida por todos os magistrados vinculados ao Tribunal que julgar o incidente (e, sendo o STJ o julgador, a decisão será vinculante em todo o país). Mas, até que haja a instauração e decisão em IAC, existem algumas medidas que podem mitigar a insegurança: - se o juiz da recuperação não especificar como é a contagem do prazo de stay period (e há muitos magistrados, especialmente em varas não especializadas em RJ, que não definem isso inicialmente), embargar de declaração, apontando a omissão quanto à foram de contagem de prazo e pleiteando que isso seja esclarecido, inclusive com base no princípio da cooperação (NCPC, art. 6º); - se o juiz definir, desde logo agravar para que se defina qual a Câmara preventa e, conforme o entendimento da turma (se já mapeado), já se ter uma ideia de qual será o entendimento. Esses são problemas decorrentes de uma nova legislação que infelizmente não vislumbra todas as consequências de uma profunda modificação como é a contagem de prazos. Se o Legislativo não fez seu papel adequadamente, agora compete ao Judiciário - com auxílio da doutrina - esclarecer a polêmica. __________ 1 Para aprofundar o estudo do prazo do NCPC, com respostas às dúvidas ora mencionadas, sugere-se ao leitor o Comentários ao Código de Processo de 2015, Editora Método, 2ª ed, 2018, p. 766 e ss., de coautoria deste colunista, em que os comentários ao art. 219 foram elaborados por Andre Roque. De seu turno, disponível na internet, mas escrito antes da reforma trabalhista que alterou a CLT. 2 A respeito do trâmite da recuperação judicial, remete-se o leitor a texto anterior desta coluna. 3 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) § 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial. 4 Vale destacar que São Paulo é a cidade do país em que há mais recuperações judiciais em trâmite, existindo 3 varas exclusivas para recuperações judiciais e falências, sendo que a terceira foi instalada em dezembro de 2017. 5 Diversas decisões nesse sentido são proferidas nas recuperações judiciais que tramitam perante a 1ª Vara de Recuperação Judicial e Falência da Comarca da Capital de SP, de lavra do magistrado Daniel Carnio Costa. Como exemplo, o processo nº 1009944-44.2016.8.26.0100, decisão proferida em 12/04/16. 6 A respeito do cabimento do agravo de instrumento em RJ, vide a coluna anterior. 7 A divergência jurisprudencial no âmbito do TJSP já havia sido bem pontuada por ANDRÉ PAGANI DE SOUZA, em coluna aqui no Migalhas a respeito do NCPC, publicada em maio de 2017. 8 Nesse sentido: Agravo de Instrumento 2251511-63.2016.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Tanabi - 1ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 12/04/2017; Agravo de Instrumento 2210315-16.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Pirangi - Vara Única; Data do Julgamento: 16/03/2017; Agravo de Instrumento 2202567-93.2017.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Caieiras - 1ª Vara; Data do Julgamento: 08/11/2017; Agravo de Instrumento 2147893-05.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 29/03/2017; Agravo de Instrumento 2108896-16.2017.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 26/10/2017; Agravo de Instrumento 2071851-75.2017.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Sumaré - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/08/2017; Agravo de Instrumento 2109116-14.2017.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Marcondes; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 22/09/2017; Agravo de Instrumento 2157617-96.2017.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 27/11/2017; Agravo de Instrumento 2237542-78.2016.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jundiaí - 4ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 11/12/2017; Agravo de Instrumento 2189299-69.2017.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 18/12/2017. E aqui os agradecimentos à acadêmica ADRIANA DE SOUZA LOPES, que realizou pesquisa competente para mapear o entendimento de cada um dos julgadores de cada uma das Câmaras especializadas do TJSP. 9 No Rio de Janeiro tramitam muitas e relevantes recuperações judiciais, sendo que as maiores RJs do país (em valores devidos e quantidade de credores) encontram-se exatamente em São Paulo e Rio de Janeiro - por isso a escolha desses Tribunais, dados os limites de espaço desta coluna. Mas o mesmo cenário de divergência se verifica também em diversos outros Tribunais brasileiros. 10 Nesse sentido, vale destacar o que foi afirmando, em obter dictum, no agravo nº 2200376-75.2017.8.26.000, acima mencionado e proferido pela 2ª Câmara do TJSP, apontando que alguns prazos são materiais (dias corridos) e outros processuais (dias úteis): "Assim, serão contados em dias corridos, v. g., o prazo de apresentação da lista de credores por conta do cumprimento do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/05, assim como o de impugnação previsto nos artigos 7º, § 1º, e 8º do mesmo diploma legal, contando-se em dias úteis o de resposta à impugnação, assim como o de agravo de instrumento das decisões que resolverem as impugnações, as divergências e as habilitações retardatárias". 11 Ainda que existam diversos casos de RJ com essa discussão, não me parece ser o caso de demandas repetitivas a justificar o uso do IRDR (incidente de resolução de demandas repetitivas - NCPC, art. 976). De qualquer modo, é de se reconhecer que existe algum espaço de fungibilidade entre IAC e IRDR. O fato é que IRDR ou IAC, por darem origem a precedente vinculante, resolveriam a questão.
Alberto Camiña Moreira1. É com muita honra que inicio minha modesta participação na coluna Insolvência em Foco, neste prestigiado Migalhas. Espero estar à altura dos meus colegas  e contribuir, de alguma forma, com a discussão dos temas ligados à insolvência.2. Há uma diversidade de regimes de insolvência em nosso país. Ela pode ser reconhecida tanto judicial como extrajudicialmente. Pretendo, nesta coluna, falar de um aspecto da liquidação extrajudicial, decorrente da alteração de redação do artigo 19 da Lei 6.024/74 (Lei das Liquidações) pela Lei 13.506, de 13/11/2017, e que propiciou a participação dos credores nessa espécie de concurso de credores.3. Antes, contudo, seguem algumas noções gerais para situarmos a questão que pretendemos abordar. A insolvência decretada pelo Poder Judiciário pode envolver a falência, propriamente dita, tal como disciplinada na Lei 11.101/05 e a insolvência civil, ainda regulada pelo Código de Processo Civil de 1973. Esses regimes acabam por formar um processo concursal, em que todos os credores concorrem (correm juntos) sobre todo o ativo. Trata-se de um processo expropriatório, uma execução universal, no sentido de alcançar todos os bens do devedor para pagamento de todas as dívidas.4. O requisito para a instauração desses regimes pode ser tanto a insolvência, definida como a não pagamento de obrigação no vencimento, isto é, a impontualidade (insolvência presumida), como a insolvabilidade, isto é, a incapacidade do ativo para satisfazer as obrigações do devedor (déficit patrimonial)1. O artigo 955 do Código Civil, segundo o qual "procede-se à declaração de insolvência toda vez que as dívidas excedam a importância dos bens do devedor", está em harmonia com a dicção do artigo 748 do Código de Processo Civil de 1973: "Dá-se a insolvência toda vez que as dividas excederem à importância dos bens do devedor". Ambos referem-se à insolvabilidade. Tanto a insolvência como a insolvabilidade podem dar ensejo ao pedido de falência, por exemplo. A insolvência civil, prevista no CPC, normalmente, funda-se na insolvabilidade. Não há rigor terminológico nas leis, e mesmo na doutrina. Esse aspecto, todavia, não tem prejudicado a aplicação prática dos institutos.5. A  recuperação judicial, que não é processo concursal universalizante, não é um concurso de credores, não é processo de execução, independe de insolvência ou de insolvabilidade (segundo a noção exposta por Fábio Comparato na nota 1), embora esses fatores estejam na maior parte das vezes presentes nos processos6.  O artigo 49 diz que se submetem à recuperação judicial os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. Pode-se dar que a empresa tenha somente créditos ainda não vencidos, e é possível o ajuizamento da recuperação judicial. Nessa hipótese, não há insolvência, segundo a assenta definição entre nós vigente, pode não existir insolvabilidade, e o ajuizamento da recuperação judicial é possível. 7. Há uma outra noção de insolvência, que pode explicar essa possibilidade presente na recuperação judicial, que é a chamada insolvência de fluxo, isto é, "os recursos gerados pelas operações são insuficientes para cobrir as obrigações correntes. A insolvência associada a fluxos está relacionada à incapacidade de pagamento de dívidas", dizem os autores de administração financeira2. Não é à toa que a lei exige a apresentação de fluxo de caixa. A reestruturação da dívida depende de sua adequação aos fluxos a serem obtidos pela operação da empresa em crise. A reestruturação de dívida não precisa esperar pelo inadimplemento nem pelo passivo a descoberto.8. Pois bem. Para falar da modificação recente na Lei das Liquidações, gostaria, antes de tecer algumas considerações mais gerais sobre o tema, que não prescinde de um certo esclarecimento do que é essa liquidação extrajudicial.9. A liquidação extrajudicial pode ser definida como um concurso de credores administrativo, ou uma falência administrativa. É uma execução concursal, expropriatória do patrimônio do devedor, decretada e efetuada pelo próprio Poder Executivo, e não pelo Judiciário. Em nosso país, atualmente, o Banco Central do Brasil3, a Superintendência de Seguros Privados-SUSEP4, a Agência Nacional de Saúde5, a PREVIC - Superintendência Nacional de Previdência Complementar6, todas autarquias federais, têm competência para decretar a liquidação extrajudicial de certas sociedades empresárias7, isto é, decretar a falência delas.10. A Lei 4595/64, no art. 2º, inciso VI, comete ao Conselho Monetário Nacional a competência para zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras, e a mesma lei, no art. 45, institui a liquidação extrajudicial, a cargo do Banco Central do Brasil. A liquidez e solvência (por certo a lei quis, aqui, se referir à insolvabilidade), tal como previstas na Lei 4.595/64, são elementos que devem estar presentes nas demonstrações das instituições financeiras, sendo incumbência do Banco Central do Brasil, certificar-se da sua ocorrência.  O artigo 2º, VI, da Lei 4595/64 pretendeu dizer que é incumbência do Conselho Monetário Nacional zelar para que as instituições financeiras apresentem-se com liquidez e solvência perante o mercado em que atuam.11. O primeiro fundamento para o decreto de liquidação extrajudicial, em linhas gerais, é a insolvência ou a insolvabilidade, conforme artigo 15, I, "a" e "c" da Lei 6.024/74. A lei fala em ocorrências que comprometam a situação econômica ou financeira, especialmente quando deixar de satisfazer com pontualidade os compromissos. O principal compromisso de um banco é devolver o dinheiro ao correntista, e o risco disso ocorrer já é suficiente para o Banco Central tomar as suas providências e evitar o aprofundamento do dano à coletividade8.12. Com a introdução das normas de Basiléia, a razão entre o capital e o ativo ponderado pelo risco, ao porcentual de 13%, é o critério prático a ser observado, mas o fundamento legal para a liquidação está na Lei 6.024/74, cujas expressões são suficientemente abertas para permitir o uso dos critérios de Basileia e justificar o decreto de liquidação extrajudicial.13. A liquidação extrajudicial pode fundar-se também na repressão a comportamentos ilícitos, conforme a alínea "b" do dispositivo ora referido, "quando a administração violar gravemente as normais legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil". Para essa hipótese, a punição independe de insolvência ou insolvabilidade, pois outros valores do sistema jurídico entram em pauta. No chamado Escândalo dos Precatórios, o STJ decidiu, no julgamento do RESP 1.116.845, que "ainda que não fique caracterizada a completa insolvência da empresa, é cabível a liquidação extrajudicial quando restar comprovado grave desrespeito às normas de regência das instituições financeiras e das determinações regulamentares dos órgãos competentes".14. A previsão da alínea "b" assume papel relevante no sistema financeiro, e é bastante atual, dada a extrema bancarização da vida das pessoas e a possibilidade de a instituição financeira ser colocada à disposição para a prática de ilícitos, como lavagem de capitais. A liquidação extrajudicial, nessa hipótese, deixa de ter caráter mercantil para assumir feição administrativa sancionatória. Norma dessa natureza, bastante aberta, aparece em outras leis, que não se fundamentam na insolvência para o decreto de quebra. Em relação às seguradoras, elas poderão ter as atividades encerradas se praticarem atos nocivos à política de seguros determinada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (art. 96, "a", do DL 73/66). Já os fundos de pensão podem sofrer a liquidação caso não atendam as "condições mínimas" estabelecidas pelo órgão regulador, conforme art. 47 da Lei Complementar 109/2001.15. Enquanto a Lei Complementar 4.595/64 institui a liquidação extrajudicial, a Lei 6.024/74, a Lei das Liquidações, concretiza-a, disciplinando as hipóteses de cabimento, os efeitos e os poderes do liquidante (que se equipara ao administrador judicial, antigo síndico), a cessação desse regime especial, que sofreu recente alteração legislativa, objeto desta coluna, entre outros pontos como a responsabilidade dos administradores. Essa lei acaba servindo de base para diversas outras leis que instituem também a liquidação extrajudicial.16. A atuação dessas autarquias federais no decreto de liquidação extrajudicial é constitucional?17. Em nosso país, apesar de a liquidação extrajudicial ser um instituto antigo, ainda não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal9 a respeito da matéria, isto é, especificamente sobre o cabimento ou não da liquidação pelas autarquias antes referidas. Para mim, a liquidação extrajudicial é constitucional, pois está expressamente referida no artigo 46 das Disposições Constitucionais Transitórias, que assegura correção monetária aos créditos junto a entidades sujeitas aos regimes de intervenção ou liquidação extrajudicial, mesmo quando esses regimes sejam convertidos em falência. Como as normas das Disposições Transitórias têm a mesma força normativa das previsões do Corpo Permanente da Constituição, a referência à liquidação extrajudicial é o suficiente para se admitir a sua presença na legislação ordinária, obedecidos, evidentemente, outros aspectos constitucionais, como o devido processo. Além disso, esse dispositivo impede que se fale em monopólio da primeira palavra ou reserva absoluta de jurisdição. O Judiciário controla a legalidade do ato praticado pela autarquia, como já ocorreu.18. Assentados esses aspectos, tem-se que a lei prevê a forma de encerramento da liquidação extrajudicial. A redação original do artigo 19 da Lei 6.024/74 diz que a liquidação extrajudicial cessará: a) se os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, julgadas a critério do Banco Central do Brasil, tomarem a si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa; b) por transformação em liquidação ordinária; c) com a aprovação das contas finais do liquidante e baixa no registro público competente e d) se decretada a falência da entidade.19. A alínea "d" representa apenas a mudança de locus do concurso. Antes, com caráter administrativo, agora pendente perante o Judiciário, como uma falência qualquer. A alínea "c" significa que a liquidação chegou efetivamente ao fim, com a alienação de todo o ativo e rateio entre os credores. A aprovação das contas do liquidante é o último passo desse concurso de credores, que, após, só precisa da baixa no Registro Público de Empresas Mercantis. A alínea "b", por seu turno, extingue o caráter público, de execução forçada concursal, para se transformar na liquidação ordinária prevista na Lei das Sociedades Anônimas ou no Código Civil, levada a cabo pelos sócios. E, por fim, a alínea "a", ao que parece de incidência nunca havida, pois representa que, após a falência do banco, ele voltou a atuar, recuperando credibilidade no mercado, com as garantias apresentadas ao Banco Central do Brasil.20. No mês passado, com a Lei 13.506, foi alterada a redação do artigo 19, para constar a seguinte prescrição: Art. 19.  A liquidação extrajudicial será encerrada:   I - por decisão do Banco Central do Brasil, nas seguintes hipóteses:   a) pagamento integral dos credores quirografários;  b) mudança de objeto social da instituição para atividade econômica não integrante do Sistema Financeiro Nacional;   c) transferência do controle societário da instituição;  d) convolação em liquidação ordinária;   e) exaustão do ativo da instituição, mediante a sua realização total e a distribuição do produto entre os credores, ainda que não ocorra o pagamento integral dos créditos; ou  f) iliquidez ou difícil realização do ativo remanescente na instituição, reconhecidas pelo Banco Central do Brasil;   II - pela decretação da falência da instituição.   21. Além desses dois incisos, sete parágrafos foram incluídos, a saber:§ 1o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas nas alíneas "a", "b", "d", "e" e "f" do inciso I do caput deste artigo, o Banco Central do Brasil comunicará o encerramento ao órgão competente do registro do comércio, que deverá:   I - nas hipóteses das alíneas "b" e "d" do inciso I do caput deste artigo, promover as anotações pertinentes;   II - nas hipóteses das alíneas "a", "e" e "f" do inciso I do caput deste artigo, proceder à anotação do encerramento da liquidação extrajudicial no registro correspondente e substituir, na denominação da sociedade, a expressão "Em liquidação extrajudicial" por "Liquidação extrajudicial encerrada".  § 2o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas no inciso I do caput deste artigo, o prazo prescricional relativo às obrigações da instituição voltará a contar da data da publicação do ato de encerramento do regime.  § 3o  O encerramento da liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas nas alíneas "b" e "d" do inciso I do caput deste artigo pode ser proposto ao Banco Central do Brasil, após a aprovação por maioria simples dos presentes à assembleia geral de credores, pelos:   I - cooperados ou associados, autorizados pela assembleia geral; ou   II - controladores.   § 4o  A assembleia geral de credores a que se refere o § 3o será presidida pelo liquidante e nela poderão votar os titulares de créditos inscritos no quadro geral de credores, computados os votos proporcionalmente ao valor dos créditos dos presentes.   § 5o  Encerrada a liquidação extrajudicial nas hipóteses previstas no inciso I do caput deste artigo, o acervo remanescente da instituição, se houver, será restituído:  I - ao último sócio controlador ou a qualquer sócio participante do grupo de controle ou, na impossibilidade de identificá-lo ou localizá-lo, ao maior acionista ou cotista da sociedade; ou  II - a qualquer cooperado, no caso de cooperativa de crédito.   § 6o  As pessoas referidas no § 5o deste artigo não poderão recusar o recebimento do acervo remanescente e serão consideradas depositárias dos bens recebidos.  § 7o  Na hipótese em que o lugar em que se encontrarem as pessoas referidas no § 5o deste artigo for ignorado, incerto ou inacessível, ou na hipótese de suspeita de ocultação, é o liquidante autorizado a depositar o acervo remanescente em favor delas, no juízo ao qual caberia decretar a falência.  22. Enquanto algumas modificações são interessantes, outra repetem com palavras diferentes, o que já estava na lei ou presente no sistema.23. O inciso I, "a", é utópico, pois supõe que todos os credores serão pagos. Essa modalidade de extinção não estava expressa na redação original, mas o mesmo resultado poderia ser alcançado com a aplicação da Lei de Falências. O mesmo ocorre com a previsão dos §§ 2º e 5º. 24. A alteração do objeto social da instituição financeira não resolve o problema dos credores, e apenas alivia a situação do Banco Central do Brasil. A alteração do controle de um banco falido tem permitido alguma solução, como ocorreu no caso do Banco Bamerindus. A exaustão do ativo já estava contemplada na alínea "c" da redação original. A alínea "f" é uma alteração interessante, de grande importância prática. Muitas vezes os processos concursais ficam abertos por anos a fio porque o ativo é ilíquido, de difícil alienação em hasta pública.25. É oportuna a modificação introduzida pelo § 3º do artigo 19, ao prever o encerramento da liquidação extrajudicial após aprovação por maioria simples dos presentes à assembleia geral de credores. A dicção legal poderia gerar controvérsia, pois se refere a "maioria simples dos presentes", enquanto o seu similar, o artigo 46 da Lei 11.101/05, fala em "voto favorável de credores que representem 2/3 (dois terços) dos créditos presentes à assembleia". Todavia, o §4º não deixa dúvida, ao esclarecer que a assembleia será presidida pelo liquidante e que poderão votar os titulares de créditos inscritos no quadro geral de credores, "computados os votos proporcionalmente ao valor dos créditos dos presentes".26. Ocorre que essa possibilidade é bastante acanhada, pois a assembleia só pode ter por finalidade (i) a mudança de objeto social e (ii) a convolação em liquidação ordinária. Isto é: para que o caso saia da órbita do Banco Central do Brasil, os credores são chamados a deliberar, sem que tenha havido qualquer discussão sobre o ativo ou forma de pagamento, que é o que mais diretamente interessa aos credores.27. É aplicável, entretanto, à liquidação extrajudicial, o disposto no artigo 46 da Lei 11.101/05, por força da previsão do artigo 34 da Lei 6.024/74. Como a participação dos credores foi, agora, expressamente prevista na liquidação extrajudicial, a previsão do artigo 46 da Lei 11.101/05 não colide com os preceitos da Lei das Liquidações. Qualquer que tenha sido o fundamento para o decreto de liquidação extrajudicial, insolvência ou repressão a ato ilícito, podem os credores aprovar forma alternativa de realização do ativo.28. O procedimento precisa ser melhor esclarecido. O requerimento de encerramento da liquidação será apresentado ao Banco Central do Brasil após a deliberação da assembleia de credores, sem que se diga sobre a convocação, entre outros aspectos.29. Diz a lei que o encerramento pode ser proposto pelo controlador (§ 3º do art. 19), o que dará ensejo, certamente, a discussão sobre a discricionariedade ou não da atuação da autarquia pública.30. Seja como for, é benfazeja a abertura da lei à presença dos credores no processo de liquidação extrajudicial, credores esses que estiveram alijados, durante quase todo o século XX, dos processos concursais em nosso país, não obstante sejam eles os maiores interessados na medida em que é o patrimônio deles que está em jogo. Em consulta ao site do Banco Central do Brasil no dia 16/12/2017, identifiquei que pendem a liquidação de 4 empresas decretadas no ano de 1987 e 3 no ano de 1996, entre outros. Por certo os credores poderiam há muito tempo ter solucionado de outro modo o destino do que lhes pertence.________________1. Escreve Fábio Konder Comparato que "insolvente é aquele que não solve suas obrigações (...) nem todo inadimplemento caracteriza a insolvência. O devedor pode deixar de adimplir porque tem sérias razões jurídicas para fazê-lo. (...) Devedor insolvente é aquele que, sem escusa jurídica, deixa de solver as  suas obrigações. A inaptidão econômica a adimplir refere-se propriamente a um outro conceito: a insolvabilidade. Assim, enquanto a insolvência é um fato que diz respeito a uma obrigação, a insolvabilidade é um estado que interessa à generalidade dos credores do devedor" (O seguro de crédito, São Paulo: RT, 1968, ns. 50 e 51, p. 46-47).2. Ross, Wasterfield e Jaffe, Administração Financeira. Corporate Finance, 2ª ed., trad. Antonio Zoratto Sanvicente. São Paulo: Atlas, 2002, p. 683.3. Art. 1.º da Lei 6.024/74; art. 45 da Lei 4.595/64.4. Art. 36, "i" e art. 97, ambos do Decreto-lei 73/665. Art. 4º, inc. 34, da Lei 9.961/2000; art. 23 da Lei 9.656/98.6. Art. 47 da Lei Complementar 109, de 29//05/2001.7. O Banco Central do Brasil decreta a liquidação de bancos, corretoras de valores mobiliários, distribuidoras de valores mobiliários, cooperativas de crédito (arts.1º, § 1º e 12, § 1º, ambos da Lei Complementar 130, de 17/04/2009 c.c. art.1º da Lei 6.024/74)   e administradoras de consórcio (art. 7º, inc. VI, da Lei 11.795/2008). A Susep decreta a liquidação de sociedades seguradoras e de administradoras de planos de previdência (previdência complementar aberta). A ANS decreta a liquidação de administradoras de planos de saúde, e a PREVIC decreta a liquidação de entidades fechadas de previdência complementar, os fundos de pensão. Essas sociedades todas tem em comum o fato de dependerem de autorização governamental para se instalarem, o que é exceção em nosso regime de livre iniciativa, conforme artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal. Essa autorização leva à fiscalização intensa da atividade e justifica o regime especial de insolvência, que só por lei pode ser criado.8. Existem outros regimes especial que o Banco Central do Brasil pode promover, mas que não serão objeto de exame neste texto.9. Os artigos 33, 34 e 41, todos da Lei 6.024/74 justificaram o decreto de quebra de sigilo bancário por parte do Banco Central do Brasil, quando já decretado o regime de liquidação extrajudicial, e a prova, utilizada em ação penal,  foi considerada legítima pela 2ª Turma do STF, no julgamento do HC 87.167-4, j. 29/08/2006, rel. Min. Gilmar Mendes. O Ministro Cezar Peluso, corretamente, refere-se à massa, para se referir à massa liquidanda, noção própria de uma falência. Em outro caso, o STF aceitou a atuação do Banco Central no âmbito de uma liquidação extrajudicial. Já no julgamento do RE 198.583, a 2ª Turma, em julgamento de 14/03/2006, rel. Min. Nelson Jobim, entendeu que houve ofensa ao direito de propriedade do banco em liquidação extrajudicial quando se deferiu o levantamento de dinheiro do depositante. Não chegou a ser apreciada a constitucionalidade da Lei 6.024/74. É em sentido oposto o resultado do julgamento da 2ª turma, no RE 202.875-4, j. 02/03/99, rel. Min. Marco Aurélio, que deferiu o levantamento de dinheiro sob o fundamento da propriedade, agora do depositante.
terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A importância social e econômica da falência

Daniel Carnio Costa O Brasil vem enfrentando uma das mais graves crises econômicas de sua história. Nesse sentido, colocou-se em destaque nos meios jurídicos e na mídia em geral o sistema legal que lida com a insolvência empresarial. Atualmente, as discussões sobre a falência e a recuperação judicial de empresas deixaram o ambiente técnico das academias e dos jornais especializados em economia e passaram a frequentar o cotidiano das pessoas, ganhando destaque nos jornais mais populares do Brasil. Muito se fala da importância da recuperação judicial de empresas para a superação do momento de crise. E é verdade: a existência de uma ferramenta adequada para ajudar as empresas a vencer a crise e permanecer em funcionamento (gerando os benefícios econômicos e sociais consistentes em empregos, tributos, bens, produtos, serviços e riquezas em geral) é mesmo fundamental para que o Brasil supere esse difícil momento de crise. Entretanto, não é só a recuperação judicial de empresas que possui importância fundamental para o bom funcionamento da economia e para a superação da crise. Também a falência é instrumento legal essencial para que os mesmos valores sejam tutelados. Vale dizer, na falência busca-se tutelar também os mesmos benefícios econômicos e sociais protegidos na recuperação judicial da empresa. Apenas os meios são diversos, na medida em que na recuperação judicial lida-se com uma empresa em crise, mas viável e, portanto, passível de ter suas atividades preservadas. Já na falência, tem-se uma empresa em crise e inviável, sem condições de continuar em funcionamento. Nesse sentido, na falência, a preservação daqueles benefícios econômicos e sociais não será feita pela preservação do que não merece ser preservado, mas sim pela criação de oportunidades de mercado para outras empresas saudáveis e pela realocação de bens de atividades improdutivas para atividades produtivas. Existem empresas que entram em crise porque perderam viabilidade econômica. Em relação a essas empresas, o Estado não deve agir para tentar salvá-las, quando os agentes de mercado (incluindo aqui os consumidores) já atestaram que elas não são mais capazes de gerar os benefícios econômicos e sociais que se espera de seu funcionamento (bons produtos, serviços competitivos, geração de empregos, recolhimento de tributos, dentre outros). Manter em funcionamento de forma artificial empresas inviáveis não atende ao interesse social. Ao contrário, atuar no sentido de tentar salvar empresas inviáveis causa imenso prejuízo social, na medida em que, por exemplo, outras empresas saudáveis poderão falir por não terem condições de competir com empresas que só existem em função da ajuda judicial. Empresas inviáveis devem falir e isso não é ruim. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, a falência é instrumento de saneamento da economia, retirando do mercado empresas inviáveis e abrindo a possibilidade para que outras empresas possam ocupar o espaço deixado pelas falidas, produzindo os benefícios econômicos e sociais delas esperados. A decretação da quebra de uma empresa inviável retira do mercado um agente defeituoso, que ocupava injustificadamente o espaço que poderia ser ocupado por outra empresa capaz de produzir bons produtos, prestar bons serviços, gerar um maior número de empregos (com mais qualidade) e recolher tributos em volume mais expressivo. Assim, ao se decretar a quebra dessa empresa inviável, abre-se o espaço no mercado para que outra empresa o ocupe de maneira social e economicamente mais útil. Por outro lado, a arrecadação e venda dos ativos da empresa falida, fará retornar ao mercado de produção bens que antes estavam vinculados a atividades improdutivas, não geradoras de qualquer benefício econômico ou social. Talvez o mais importante aspecto da falência - muito pouco explorado - é a sua função de realocação de bens de atividades improdutivas para atividades produtivas. A venda dos bens arrecadados pela massa falida irá oxigenar o mercado, de forma que, por exemplo, aquele imóvel (antes arrecadado e sem utilização durante a falência) volte a ser palco de uma atividade produtiva e geradora de empregos, produtos, serviços etc. Da mesma forma, aquela máquina arrecadada no processo de falência (e sem utilização produtiva) também poderá ser vendida a fim de ser integrada a uma nova cadeia de produção, geradora de todos aqueles benefícios econômicos e sociais já mencionados. Ressalta-se, nesse ponto, que a alienação de ativos na falência vai muito além do atendimento aos interesses dos credores. Trata-se de providência que beneficia o resultado social e econômico do processo. E mesmo quando é feito o pagamento aos credores (com atendimento imediato aos seus interesses particulares) se está atendendo aos fins econômicos e sociais do processo. Isso porque, os credores da falida são os agentes econômicos que também dependem do recebimento dos seus créditos para o desenvolvimento de suas próprias atividades de produção e consumo. Normalmente, dentre os principais credores de uma empresa falida estão os seus ex-empregados (que dependem do recebimento dos valores para consumir - e fomentar a economia local) e outros empresários (que dependem do recebimento dos valores para continuar a desenvolver sua atividade empresarial de produção e fornecimento de bens e serviços). Portanto, pode-se concluir que um sistema de falência rápido e eficaz também é essencial para que o Brasil supere o momento de crise econômica. Não só a recuperação judicial de empresas existe em função do princípio da preservação da empresa. Na falência, esse mesmo princípio é tutelado, não pela preservação da atividade inviável, mas sim pela preservação das atividades empresariais que surgirão em função da retirada do mercado daquela empresa falida, com o reaproveitamento de seus ativos antes vinculados a atividades improdutivas.
Andre Vasconcelos Roque 1. Para começar, um aperitivo: entendendo a controvérsia Olá, caro leitor, como está? Uma das principais discussões inauguradas em matéria de recuperação judicial e falência com o CPC de 2015 diz respeito ao cabimento de agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias proferidas nestes procedimentos. É que o atual código processual, como se sabe, pretendeu limitar as hipóteses de agravo de instrumento em seu art. 1.015, o qual não foi estruturado pensando nos procedimentos especiais - pelo menos não naqueles regulados na legislação extravagante, como é o caso dos procedimentos de que aqui se trata1. A dúvida que existe é se, além dos casos para os quais a lei 11.101/2005 contemplou de forma expressa o cabimento do agravo de instrumento (contra a decisão que julga a impugnação, contra a que concede recuperação judicial e contra a que decreta falência - arts. 17, 59, § 2º e 100)2, hipóteses que remete ao inciso XIII do caput do art. 1.015 do CPC, seria admissível tal recurso também contra outras decisões interlocutórias proferidas nestes procedimentos especiais de recuperação judicial e falência. Exemplos não faltam. Eis alguns dos casos para os quais se questiona o cabimento do agravo de instrumento: (i) contra a decisão do juiz que aprecia a competência para a recuperação judicial, ou (ii) contra a que determina que as listas de credores devem ou não ser unificadas no caso de pedido de recuperação apresentado por mais de uma empresa (consolidação substantiva), ou (iii) contra a que defere o processamento da recuperação judicial, ou (iv) contra a que aprecia, na falência, o pedido de continuação provisória das atividades do falido; ou (vi) contra a que indefere, também na falência, o pedido de venda antecipada dos bens arrecadados perecíveis, deterioráveis, sujeitos a considerável desvalorização ou, ainda, que sejam de conservação arriscada ou dispendiosa. Em texto anterior publicado nesta página, ainda na vacatio do atual CPC, sustentei que se deveria interpretar de forma ampliativa as hipóteses do parágrafo único do art. 1.015 do CPC, por não haver perspectiva de interposição de apelação em tempo hábil na recuperação judicial ou na falência para que a matéria objeto da decisão interlocutória seja submetida à apreciação do tribunal3. Isso porque, na recuperação judicial, somente será proferida sentença após o cumprimento de todas as obrigações previstas no plano aprovado e que se vencerem em até dois anos depois da concessão da recuperação (art. 63, lei 11.101/2005). Da mesma forma, sendo decretada a falência, somente será proferida sentença de encerramento após ultimada a arrecadação dos ativos, com a distribuição do produto aos credores habilitados e a apresentação do relatório final pelo administrador judicial (art. 156, lei 11.101/2005). Concluí, dessa maneira, que o cabimento do agravo de instrumento não deveria ficar restrito aos casos previstos de forma expressa na lei 11.101/2005, aplicando-se igualmente às demais decisões interlocutórias proferidas na recuperação judicial e de falência, sob pena de ensejar situações de irrecorribilidade prática não contempladas pelo sistema. No mesmo sentido em que sustentei no referido texto, foi editado o Enunciado 69 da I Jornada de Direito Processual Civil, realizada em agosto de 2017 pelo Conselho da Justiça Federal, segundo o qual "[a] hipótese do art. 1.015, parágrafo único, do CPC abrange os processos concursais, de falência e recuperação". Ainda assim, persiste a divergência sobre o tema na jurisprudência, ensejando insegurança na matéria. Pessoalmente, considero ser hipótese de fungibilidade entre o agravo de instrumento (para os que o entendem cabível) e o mandado de segurança (para os que pensam de forma diversa), dada a existência de dúvida objetiva sobre a matéria4. 2. Radiografia do paciente: como está sendo decidida a questão no país? Em alguns tribunais, os agravos têm sido conhecidos na recuperação judicial e na falência contra qualquer decisão interlocutória sem maiores questionamentos5. Em outros precedentes, o tema tem sido enfrentado de forma mais explícita, entendendo-se pelo cabimento amplo do agravo de instrumento. Confira-se: Preliminar de não conhecimento do recurso, suscitada pelo ministério público (procuradoria de justiça), firme na ausência de previsão legal. Rejeição. Causa regida pelo novo código de processo civil. Hipóteses previstas no seu art. 1.015, parágrafo único, que não admitem a apelação. Impossibilidade de incidência do art. 1.009, §§ 1º e 2º, do mesmo diploma legal. Dispositivos que devem ser interpretados em conformidade com a lei Federal 11.101/2005. Cabimento do agravo de instrumento, sempre que a decisão agravada puder comprometer o soerguimento da empresa ou trazer prejuízo aos credores. Precedente do e. Tribunal de justiça do estado de São Paulo. (TJRJ; AI 0066126-71.2016.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Gilberto Campista Guarino; Julg. 5/7/2017; DORJ 07/07/2017; Pág. 419) Cabimento do agravo. Decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Procedimento especial da lei 11.101/05 que não prevê recurso de apelação contra deferimento de recuperação judicial ou aprovação do plano. Questão que não seria devolvida à apreciação do Tribunal por meio de apelação. Cabimento do agravo de instrumento, sob pena de negativa de tutela jurisdicional e do duplo grau de jurisdição. (TJSP; AI 2054226-28.2017.8.26.0000; Ac. 10545346; Jaboticabal; Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Carlos Dias Motta; Julg. 21/6/2017; DJESP 28/06/2017; Pág. 1909). No mesmo sentido, TJSP; AI 2048349-10.2017.8.26.0000; Ac. 10933980; São José do Rio Preto; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Araldo Telles; Julg. 30/10/2017; DJESP 9/11/2017; Pág. 1970; TJSP, AI 2084028-08.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 25/5/2016. AGRAVO INTERNO. Violação ao princípio da dialeticidade. Ausência. Recurso que embora reapresente argumentos já expendidos, se volta contra a decisão agravada. Recuperação judicial. Processo que visa a preservação da empresa, por meio de plano de execução concursal das obrigações do devedor. Cabimento de agravo de instrumento. Interpretação extensiva do parágrafo único, do art. 1.015, do CPC. Possibilidade. Recurso provido. (TJPR; Rec. 1617783-8/02; Arapongas; Décima Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Vitor Roberto Silva; Julg. 7/6/2017; DJPR 26/6/2017; Pág. 508) "Nesse contexto, ao analisar, inicialmente, acerca do cabimento do agravo de instrumento contra decisão interlocutória atacada, a qual foi proferida em processo de recuperação judicial, entendi pela sua inadequação, pela ausência de correspondência a uma das hipóteses legais taxativamente previstas. Contudo, ao reestudar a matéria, por ocasião da interposição desse agravo interno, deparei-me com entendimentos doutrinários que incluem as decisões interlocutórias proferidas nas ações de recuperação judicial e falência na hipótese autorizativa do parágrafo único do artigo 1.015, do Código de Processo Civil, eis que tais ações possuem natureza de execução universal. Esse entendimento é coerente com as particularidades dessas ações e com a universalidade do juízo, o qual atrai a competência e exclusividade para a prática de atos de execução, de modo que entendo por bem refluir o meu posicionamento sobre o tema e exercer o juízo de retratação (artigo 1.021, § 2º, do Código de Processo Civil), a fim de permitir, no caso em análise, o processamento do agravo de instrumento contra a decisão atacada, com fulcro no artigo 1.015, parágrafo único, do Código de Processo Civil". (TJGO, AI 249780-40.2016.8.09.0000, Rel. Des. Alan Sebastião de Sena Conceição, julg. 18/1/2017) A princípio, o rol constante do art. 1.015 do CPC/2015 pode levar à conclusão apressada de não cabimento do Agravo de Instrumento contra decisões proferidas em processo de recuperação judicial, exceto aquelas expressamente previstas na lei 11.101/2005. A exemplo dos artigos 17, e 59, §2º, da LRE., por força do inciso XIII do dispositivo em questão;. Entretanto, reputo razoável a construção doutrinária segundo a qual, para efeito de cabimento do Agravo de Instrumento, muitas das decisões proferidas nos processos de recuperação judicial guardam, por analogia, estreita similitude com aquelas proferidas na fase de cumprimento de sentença stricto sensu e, consequentemente, atraem a incidência do parágrafo único do art. 1.015 do CPC/2015; (TJPE; AI 0013898-76.2016.8.17.0000; Rel. Des. Cândido José da Fonte Saraiva de Moraes; Julg. 8/3/2017; DJEPE 22/3/2017) No entanto, a questão está longe de ser pacífica, como evidenciam os precedentes abaixo arrolados, todos considerando incabível tal recurso fora dos casos expressos na lei 11.101/2005: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ART. 1.015 DO CPC DE 2015. RELAÇÃO NUMERUS CLAUSUS. DECISÃO NÃO CONTEMPLADA NA LEI 11.101, DE 2005. INCISO XIII, DO ART. 1.015 DO CPC DE 2015. INAPLICABILIDADE. PRELIMINAR ACOLHIDA. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. É taxativa a relação das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento contidas no art. 1.015, de 2015. 2. O inciso XIII, do referido dispositivo legal, dispõe que em outros casos expressamente disciplinados em Lei, o recurso é cabível. 3. A lei 11.101, de 2005 não prevê o cabimento do agravo de instrumento contra o ato judicial que a declaração de não essencialidade de bens em ação de recuperação judicial. 4. Neste caso, portanto, revela-se inaplicável a hipótese aludida no inciso XIII, do art. 1.015, do CPC de 2015, o que panteia a inadmissibilidade do recurso interposto. 5. Agravo de instrumento não conhecido mediante acolhimento de preliminar da agravada. (TJMG; AI 1.0290.15.000902-2/019; Rel. Des. Caetano Levi Lopes; Julg. 4/4/2017; DJEMG 10/04/2017). No mesmo sentido, TJMG; AgInt 1.0042.15.004292-9/002; Rel. Des. Edgard Penna Amorim; Julg. 07/03/2017; DJEMG 15/3/2017. À exceção das hipóteses taxativamente previstas no art. 1015 do CPC, as decisões interlocutórias não serão recorríveis de imediato, mas apenas como um capítulo preliminar do recurso de Apelação interposto contra a sentença ou nas contrarrazões recursais. Cuidando-se de decisão referente ao deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial da empresa Agravada, é descabida a interposição de Agravo de Instrumento, haja vista que tal matéria não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no rol taxativo do art. 1.015 do Código de Processo Civil. A previsão legal específica de cabimento de agravo de instrumento, quanto à recuperação judicial, contempla apenas a decisão judicial que conceder a recuperação judicial, nos termos do art. 59, § 1º, da lei 11.101/2005. Recurso desprovido. (TJDF; Proc 0707.74.2.732017-8070000; Ac. 104.5097; Quinta Turma Cível; Rel. Des. Ângelo Passareli; Julg. 8/9/2017; DJDFTE 18/09/2017). No mesmo sentido, TJDF; Proc 0708.03.2.882017-8070000; Ac. 106.0478; Oitava Turma Cível; Relª Desª Nídia Corrêa Lima; Julg. 17/11/2017; DJDFTE 6/12/2017 Não se encontrando a decisão agravada no rol de hipóteses taxativas do agravo de instrumento, previsto no artigo 1.015 do Código de Processo Civil, o não conhecimento do recurso é impositivo. O processo de recuperação judicial não se enquadra na exceção prevista no parágrafo único do artigo 1.015 do Diploma Processual Civil, que se refere apenas às ações em fase de liquidação ou de cumprimento de sentença, bem como processo de execução e inventário. (TJGO; AI 0192862-16.2016.8.09.0000; Goiânia; Quarta Câmara Cível; Relª Desª Elizabeth Maria da Silva; DJGO 10/08/2016; Pág. 154). Insurgindo-se o agravante contra decisão defere o processamento da recuperação, sem arbitrar os honorários advocatícios ao administrador judicial, nem excluir a restrições ao crédito existentes em nome da recuperanda, é evidente a ausência de cabimento do agravo de instrumento. Não há na lei 11.101/2005, previsão de cabimento do agravo de instrumento contra a decisão que ao deferir o processamento da recuperação judicial à empresa. A lei 11.101/2005 elenca as hipóteses em que é admitido o agravo nos artigos 17, 59 e 100, nos quais não se enquadra a decisão que defere o processamento da recuperação judicial, muito menos aquela que trata da suspensão dos protestos e restrições ao crédito, ou mesmo com relação ao arbitramento de honorários do administrador judicial. Não há espaço para a aplicação da regra contida no art. 1.015, inciso XIII do CPC, uma vez que não há qualquer legislação em vigor que autorize a interposição de agravo da decisão que defere o processamento da recuperação judicial, não cabendo ao judiciário interpretar extensivamente o rol das hipóteses previstas em Lei, flexibilizando-o, sob pena de burlar a taxatividade prevista no novo CODEX. V - Recurso improvido. (TJES; Ag-AI 0004681-79.2017.8.08.0014; Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Manoel Alves Rabelo; Julg. 13/11/2017; DJES 27/11/2017). No mesmo sentido, TJES; Ag-AI 0007800-57.2017.8.08.0011; Terceira Câmara Cível; Relª Desª Eliana Junqueira Munhos Ferreira; Julg. 05/09/2017; DJES 15/9/2017. A nova sistemática processual trouxe mudanças no tocante ao agravo de instrumento, dentre elas a taxatividade das hipóteses de cabimento do referido recurso, o qual somente será aceito nos casos enumerados no art. 1.015 do NCPC ou nas situações expressamente previstas em Leis especiais, de modo que as interlocutórias que não se encontram no rol mencionado se submetem a uma recorribilidade diferida, devendo ser suscitadas através de preliminar de razões ou contrarrazões de apelação. (...) Há de se rechaçar a possibilidade de interpretação extensiva do art. 1.015, parágrafo único, simplesmente por se tratar de questão envolvendo recuperação judicial, já que ausente qualquer discriminação do legislador no sentido de permitir a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que prorroga o prazo de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da lei 11.101/05, seja na nova codificação processual civil ou na lei 11.101/2005. Não procede a tese de esvaziamento da questão caso se aguarde a interposição de recurso de apelação, uma vez que, ainda que não seja aquela mais célere ao caso, foi a opção adotada pelo legislador para o enfrentamento de tais situações. Ainda que não admitida a interposição de agravo de instrumento ou inexistindo recurso de apelação, sempre poderá a parte recorrer a outros instrumentos processuais cabíveis. (TJSC; AG 4017184-96.2016.8.24.0000/50000; Caçador; Câmara Civil Especial; Rel. Des. Luiz Antônio Zanini Fornerolli; DJSC 04/07/2017; Pag. 333). No mesmo sentido, TJSC; MS 4011905-95.2017.8.24.0000; Braço do Norte; Terceira Câmara de Direito Comercial; Rel. Des. Ronaldo Moritz Martins da Silva; DJSC 7/8/2017; Pag. 166. Fora isso, há precedentes em que se ampliou o cabimento do agravo de instrumento, mas de forma mais limitada, abarcando apenas algumas situações específicas: A falência se equipara a um processo de execução coletiva, sendo, a princípio, viável o cabimento de agravo de instrumento, por analogia ao parágrafo único do artigo 1.015, do CPC/2015. O litígio entre o Administrador Judicial. auxiliar do juízo. e o próprio juízo, por outro lado, não pode ser considerado um processo de execução coletiva, sendo mantida a decisão que não conheceu do agravo de instrumento. (TJMG; AgInt 1.0000.17.028253-7/001; Rel. Des. Edilson Olímpio Fernandes; Julg. 31/10/2017; DJEMG 14/11/2017). Quando se observa dos elementos trazidos na decisão concessiva da prorrogação do stay period, efetivamente identifica-se o caráter cautelar da medida, razão pela qual pode ser enquadrada na hipótese do inc. I do art. 1.015 do CPC/15. O legislador, ao criar um tratamento diferenciado para as partes que litigam nas hipóteses do parágrafo único do art. 1.015 do CPC/15, deveria também tê-lo feito para aqueles que pretendem se insurgir de uma decisão no curso da recuperação judicial, sob pena de criar tratamento diverso para situações jurídicas equiparadas, o que seria vedado pelo próprio caput do art. 5º da Constituição Federal. A interpretação restritiva e perfunctória do rol de hipóteses trazidas pelo art. 1.015 do CPC/15 enseja apenas a complexificação desnecessária do sistema recursal, reduzindo sua efetividade e celeridade, princípios caros à nova sistemática processual e à ordem constitucional (art. 5º, PODER JUDICIÁRIO /01 fls. 2inc. LXXVIII).3. Recurso conhecido e provido. (TJPR; Agr 1588420-9/01; Londrina; Décima Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea; Julg. 03/05/2017; DJPR 8/6/2017; Pág. 705). Interposição de agravo de instrumento contra decisão proferida em processo de recuperação judicial. Ausência de previsão expressa de cabimento. Inexistência de prejuízo. Cabimento de agravo de instrumento nas hipóteses previstas no artigo 1.015 do código de processo civil e em outros casos expressamente referidos em Lei. É possível a aplicação analógica do artigo 1.015, parágrafo único, do CPC, nos casos em que a decisão interlocutória agravada causar prejuízo aos credores ou comprometer o soerguimento da empresa em recuperação judicial. Recurso não provido. (TJMS; AgRg 1403684-45.2017.8.12.0000; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Vilson Bertelli; DJMS 15/08/2017; Pág. 98). Como se vê, ao analisar a questão a nível nacional, reina o mais absoluto dissenso na matéria, apesar de alguns tribunais já terem sua jurisprudência razoavelmente consolidada. Nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, por exemplo, os precedentes têm admitido de forma ampla o agravo de instrumento na recuperação judicial. Em outros locais, como no Distrito Federal, Espírito Santo e Santa Catarina, predomina a tese oposta, no sentido de não caber o agravo fora dos casos expressamente previstos na lei 11.101/2005. Finalmente, há estados em que se encontram precedentes com orientações distintas, não se tendo sequer pacificado a jurisprudência local, como em Minas Gerais e Goiás. Tal diagnóstico corrobora a afirmação de que o tema vem ensejando insegurança jurídica. Além disso, dada a evidente situação de dúvida objetiva, demonstrada pelo dissídio jurisprudencial existente sobre o tema, o caso é mesmo de aplicação do princípio da fungibilidade entre o agravo de instrumento e o mandado de segurança. Para o advogado que atua no contencioso da recuperação judicial ou da falência, é fundamental que consulte a jurisprudência local antes de definir a via impugnativa a ser utilizada. 3. Conclusão: prognósticos para a doença da insegurança jurídica Recentemente, foi divulgada a admissão de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas pelo TJMG, exatamente sobre o tema em discussão. Trata-se do IRDR 0417620-30.2017.8.13.0000, que versa sobre o "cabimento ou não de agravo de instrumento contra decisão interlocutória proferida em processo de recuperação judicial ou falência", o qual foi admitido em sessão de julgamento realizada no dia 20 de novembro de 2017. No âmbito desse IRDR, foi concedida ainda a tutela de urgência, nos seguintes termos: "Fica obstado, no âmbito deste Tribunal, o não conhecimento de agravo de instrumento interposto em face de decisões proferidas no processo de recuperação judicial ou falimentar quando fundado no cabimento do referido recurso em face da possível taxatividade do art. 1.015, CPC até que o Tribunal aprecie o mérito do incidente". A providência é bem-vinda: diante da notória divergência jurisprudencial sobre a matéria, deve-se buscar a formação de precedentes vinculantes, como é o caso daquele formado no julgamento do mérito do IRDR (arts. 927, III e 985 do CPC) - o qual, se não observado, autorizará inclusive o manejo da reclamação contra o julgado dissonante (arts. 985, § 1º e 988, IV do CPC). No entanto, o julgamento de um IRDR, em princípio, terá seus efeitos limitados ao tribunal local (no caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais), a não ser que tal decisão venha a ser objeto de recurso especial ou extraordinário e esses sejam conhecidos pelos tribunais superiores, situação em que a tese jurídica a ser definida pelo STJ ou STF produzirá efeitos em todo o país (art. 987, § 2º). Outra situação em que se formaria precedente vinculante a nível nacional seria no caso de julgamento de recurso especial repetitivo sobre a matéria em discussão - cuja afetação se revela improvável por enquanto, tendo em vista que não se tem notícias, até o momento, de que a questão tenha sido apreciada uma única vez sequer pelo Superior Tribunal de Justiça. De todo modo, vamos aguardar a resolução do IRDR em tela pelo TJMG e esperar que a mesma questão venha a ser suscitada em outros tribunais, para que no momento oportuno seja submetida aos tribunais superiores. A questão é relevante e demanda a pacificação da jurisprudência sobre o tema o quanto antes - afinal, trata-se de discussão relativa ao cabimento de recurso, tema sensível na prática do contencioso. Independentemente da tese que venha a prevalecer, o mais importante é que se saibam as regras do jogo. Voltaremos ao tema em outra oportunidade. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Sobre as especificidades do procedimento da recuperação judicial, Andre Vasconcelos Roque, Luiz Dellore. O passo a passo de um processo de recuperação judicial. Migalhas, publicado em 7/11/2017. 2 Confira-se: art. 17 da lei 11.101/2005: "Da decisão judicial sobre a impugnação caberá agravo". Art. 59, § 2º da lei 11.101/2005: "Contra a decisão que conceder a recuperação judicial caberá agravo, que poderá ser interposto por qualquer credor e pelo Ministério Público". Art. 100 da lei 11.101/2005: "Da decisão que decreta a falência cabe agravo, e da sentença que julga a improcedência do pedido cabe apelação". 3 Andre Vasconcelos Roque, Bernardo Barreto Baptista, O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação functional. Migalhas, publicado em 3/8/2015. 4 Admitindo a conversão de mandado de segurança em agravo de instrumento, o que também deve ser aplicado na via inversa: "Agravo de instrumento derivado da conversão de mandado de segurança pelo princípio da fungibilidade. Pretendida liberação de imóvel constritado na execução. (...)" (TJ/SP, AI 2101519-28.2016.8.26.0000, 17ª CDPriv., Rel. Des. Irineu Fava, julg. 19/8/2016). V. tb.: TJ/SP, MS 2100816-97.2016.8.26.0000, 4ª CDPriv., Rel. Des. Hamid Bdine, julg. 24/10/2016; TJSP, MS 2084028-08.2016.8.26.0000, Decisão Monocrática, Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 28/4/2016. 5 Exemplificativamente, entre muitos outros, TJ/SP; AI 2206908-02.2016.8.26.0000; Ac. 10438688; Arujá; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Fabio Tabosa; Julg. 18/05/2017; DJESP 5/6/2017; TJRJ; AI 0049008-48.2017.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. José Carlos Paes; Julg. 25/10/2017; DORJ 26/10/2017; Pág. 376; TJMS; AI 1409759-03.2017.8.12.0000; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Tânia Garcia de Freitas Borges; DJMS 7/12/2017; Pág. 149; TJMT; AI 70263/2016; Poconé; Rel. Des. João Ferreira Filho; Julg. 18/4/2017; DJMT 25/4/2017; Pág. 61.
Marcelo Barbosa Sacramone A operação Lava Jato expôs ao Brasil um modo irregular pelo qual diversas sociedades realizavam contratos com a administração pública, sociedades de economia mista ou empresas públicas. Seja como contrapartida por empréstimo de recursos a partidos políticos, seja mediante contraprestação pela doação de recursos não contabilizados para candidatos em campanha eleitoral, os contratos ilícitos celebrados com a administração pública passaram a ser revelados ao público, cuja ojeriza ou compliance acarretou a suspensão do fornecimento de mercadorias e de aquisição de produtos e serviços, com a consequente crise econômico-financeira dessas sociedades contratantes. A recuperação judicial das sociedades envolvidas com a prática de atos lesivos à administração pública ou que atentem contra seus princípios fez surgir novos questionamentos sobre a possibilidade de preservação dessa atividade empresarial e os limites do acordo de leniência em face desse interesse público. O instituto da recuperação judicial foi estruturado para permitir a superação dessa crise econômico-financeira que pode acometer o devedor. Independentemente de os motivos dessa crise serem imputáveis ou não aos seus administradores, o empresário não poderia ser confundido com a empresa, a qual deveria ser preservada. Com esse objetivo, a lei 11.101/05 procurou criar um ambiente institucional para incentivar o comportamento colaborativo entre os credores e o devedor com o intuito de que, juntos, pudessem garantir o desenvolvimento da atividade empresarial. Pela recuperação judicial, reconhece-se que a preservação da empresa e sua função social repercutem não apenas nos interesses dos credores e devedores. A manutenção da atividade empresarial asseguraria o interesse dos trabalhadores, que teriam mantidos os postos de trabalho, dos consumidores, pois a maior concorrência entre os produtos lhes garantiria menor preço, da nação, pelo desenvolvimento econômico propiciado pela maior circulação de riquezas. Nem toda a atividade econômica, contudo, promove o bem estar social e merece ser preservada, ainda que conte com a concordância dos credores e dos devedores e tenha sido estruturada mediante um plano de recuperação judicial. A Lei Anticorrupção, lei 12.846/2013, esclarece que é ilícita toda forma de fraude ao caráter competitivo de procedimento licitatório público ou a manipulação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração Pública. O contrato celebrado, direta ou indiretamente, com desrespeito a essa norma cogente e que tutela a proteção ao patrimônio público e aos princípios da administração pública, é considerado nulo e deverá ter os seus efeitos desconstituídos, independentemente da vontade das partes contratantes. O reconhecimento judicial dessa invalidade, ainda que confessada pelo próprio agente econômico mediante acordo de leniência, suprimirá os seus efeitos, inclusive retroativamente. O negócio jurídico nulo não poderá ser confirmado pela vontade das partes, nem convalesce pelo decurso do tempo. Todos seus efeitos deverão ser suprimidos, com o retorno das partes ao status quo ante. A supressão desses efeitos do contrato, com eventual interrupção da atividade empresarial, entretanto, poderia comprometer o próprio interesse público a que a norma pretendia proteger. Dentre alguns exemplos, a construção da obra pública poderá ser interrompida, a elaboração de nova licitação poderá gerar maior morosidade e a substituição do agente poderá gerar perecimento de direitos, com prejuízos não apenas a terceiros de boa fé como à própria administração pública. No caso concreto, assim, deverá a Administração Pública zelar para que o controle da invalidade do contrato procure preservar o interesse público a que a norma desrespeitada procurava proteger, sob pena de novamente permitir lesão a esses interesses. O acordo de leniência, nesse contexto, não apenas pode ser instrumento para facilitar as investigações da prática de ilícitos, como originalmente foi concebido, como pode ser ferramenta para assegurar que nova lesão ao interesse público não seja praticada e para que os interesses da recuperanda e dos credores na recuperação da empresa em crise possam ser protegidos. Esse resultado útil, inclusive com a possibilidade excepcional de convalidação do contrato nulo, somente poderá ser produzido, todavia, se o acordo de leniência for convencionado com as condições imprescindíveis para que o vício contratual seja sanado e irregularidades futuras não sejam novamente praticadas. Ainda que apenas no caso concreto cada uma dessas condições possa ser aferida, a anuência de todos os contratantes, a reparação dos danos causados, a revisão dos termos contratuais a parâmetros de mercado e o autossaneamento do empresário, com o estabelecimento de mecanismos para reprimir novos ilícitos e afastamento e punição de administradores envolvidos com a ilicitude, são medidas mínimas exigíveis das composições para garantir o interesse público. A atividade empresarial dos empresários envolvidos com a prática de atos de corrupção, assim, somente será economicamente viável e digna de preservação pelo instituto da recuperação judicial se for baseada em acordo de leniência prévio, que tenha contado com a participação de todos os agentes econômicos envolvidos, mediante procedimento público, transparente e que assegure uma ampla reestruturação da sociedade empresária. Apenas assim a preservação da atividade empresarial da recuperanda envolvida na prática de atos de corrupção poderá ser assegurada em benefício de todos1. __________ 1 Para maiores detalhes sobre o tema, CUNHA FILHO, Alexandre e SACRAMONE, Marcelo. Contratos empresariais e lei anticorrupção: sobre os efeitos do nulo em avenças alcançadas por acordos de leniência. No prelo.
Andre Roque e Luiz Dellore Prezado leitor, este é o segundo texto da recém-criada coluna "Insolvência em foco" aqui no Migalhas1. A ideia deste espaço é contribuir para aqueles que atuam na área e estudam o tema, no que se refere à recuperação judicial, falência, insolvência civil e temas correlatos. O fato é que a crise econômica que assola o país nos últimos anos atingiu em cheio a atividade empresarial e, como consequência, o número de recuperações judiciais e falências cresceu exponencialmente. E, assim, dois fenômenos puderam se verificar: (i) novas questões, antes não enfrentadas, surgiram - de modo que vieram à tona problemas concretos que ainda não tinham sido tratados pela doutrina ou jurisprudência, trazendo dúvidas e controvérsias (e vários pontos seguem não pacificados); (ii) muitos profissionais que não estavam acostumados a lidar com o tema passaram a atuar nessa área; assim, advogados, magistrados, promotores, contadores, administradores e outros passaram a atuar nesse contencioso recuperacional. E em virtude desses dois fenômenos, para contribuir com o debate e reflexão, é que surge a presente coluna, que tem entre seus autores profissionais que atuam exatamente nessa área: tanto advogados (como os ora subscritores), como magistrados e administrador judicial. Os temas serão tanto de Direito Material como processual, permitindo uma ampla visão acerca da temática - e, por certo, sugestões de assuntos pelos leitores serão bem-vindas neste espaço. E o texto de hoje desta coluna tratará especificamente de um aspecto processual: afinal, como tramita uma recuperação judicial? Em síntese, qual é o procedimento de uma RJ? Vale lembrar que, no âmbito do novo CPC, existem dois processos: conhecimento e execução. E, no processo de conhecimento, existem dois procedimentos: comum e especial. Não há mais, no procedimento comum, a subdivisão entre os ritos sumário e ordinário2. Para podermos estabelecer um parâmetro de comparação com a recuperação judicial, vejamos sinteticamente quais são as fases do procedimento comum, à luz do NCPC: 1) petição inicial 2) audiência de conciliação ou mediação 3) contestação 4) réplica 5) saneamento 6) audiência de instrução 7) alegações finais/memoriais8) sentença  É certo que o procedimento da recuperação judicial em nada se assemelha com o procedimento acima exposto. Trata-se de um procedimento especial; ou melhor, um procedimento especialíssimo - e isso, inclusive, traz algumas dificuldades na compatibilização entre as previsões do NCPC e a Lei de Recuperação e Falência (lei 11.101/2005)3. Mas afinal, qual é o procedimento da recuperação judicial? Apresentamos, a seguir, de forma simplificada, o passo a passo mais usual, sendo certo que é possível que existam variações. Assim, tem-se o seguinte em uma RJ4: 1) petição inicial, em que a empresa pleiteia a própria recuperação judicial e indica a relação de credores (art. 51 da lei 11.101/2005)5 2) deferimento da RJ pelo juiz (art. 52 da lei 11.101/2005), com: a) nomeação de administrador judicial (AJ, que pode ser um advogado, contador, economista, administrador de empresas; seja pessoa física ou pessoa jurídica que atue na área da advocacia, contabilidade ou auditoria - art. 21 da lei 11.101/2005); e b) a partir desse momento ocorre a suspensão, pelo prazo de 180 dias, dos processos contra a empresa em recuperação (o chamado stay period, previsto no art. 6º, caput e § 4º da lei 11.101/2005) 3) publicação de edital com a 1ª relação de credores (a partir da listagem apresentada pela recuperanda, conforme art. 52, § 1º da lei 11.101/2005) 4) apresentação, em 15 dias a partir da publicação do edital, perante o administrador judicial, de divergência (caso o credor entenda que os valores ou classe de crédito6 constantes do edital não estão corretos) ou habilitação (caso o crédito não tenha sequer constado da relação da recuperanda), sendo que não há sucumbência quanto a essas peças (art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005) 5) publicação de edital com a 2ª relação de credores (art. 7º, § 2º da lei 11.101/2005), apresentada pelo AJ, trazendo sua resposta a respeito de cada uma das divergências ou habilitações apresentadas pelos credores 6) apresentação, em 10 dias a partir da publicação do 2º edital, perante o juiz, de impugnação (discussão quanto à presença, ausência, valor ou classe de um crédito constante da 2ª relação de credores), que será autuada em apartado e, após contraditório e eventual dilação probatória, terá decisão do juiz, nesse caso havendo a possibilidade de condenação nos ônus da sucumbência (art. 8º da lei 11.101/2005), sendo que da decisão que julgar a impugnação cabe agravo de instrumento (art. 17 da lei 11.101/2005) 7) após as decisões das impugnações pelo juiz, será publicada a 3ª e última relação de credores (o quadro geral de credores - QGC, conforme art. 18 da lei 11.101/2005) 8) em paralelo à apuração dos créditos (itens 4 a 7 acima), apresentação do plano de recuperação judicial (PRJ) pela recuperanda, no prazo de 60 dias contados da publicação do deferimento da RJ (art. 53 da lei 11.101/2005) 9) os credores terão o prazo de 30 dias para apresentar objeção ao PRJ, prazo esse contado a partir da publicação do 2º edital de credores (art. 55 da lei 11.101/2005) 10) caso haja a apresentação de alguma oposição, será designada a Assembleia Geral de Credores (AGC), para que se delibere acerca do PRJ, de modo a ser aprovado ou rejeitado, pelas diversas classes de credores (arts. 35, I, "a" e 56 da lei 11.101/2005) - a AGC não será realizada em juízo, não contará com a presença do juiz e será presidida pelo AJ 11) aprovado o PRJ na AGC, o juiz irá homologar o plano para conceder a RJ7, desde que não haja ilegalidades (art. 58 da lei 11.101/2005)8 12) homologado o plano, haverá a fiscalização de seu cumprimento pelo juízo da RJ, pelo prazo de 2 anos, findo o qual haverá a extinção da RJ e a empresa prosseguirá com sua atuação (art. 63 da lei 11.101/2005)9 Esse é, como já dito, o trâmite de uma RJ que não tenha nada de extraordinário, com sucesso na aprovação do PRJ e sem que haja conversão da RJ em falência. E mesmo assim é um procedimento complexo. Considerando esse cenário, a atuação do advogado do credor submetido à RJ se dará especialmente nos seguintes momentos (sem prejuízo da suspensão das ações contra a recuperanda, por força do stay period, item 2.b acima): a) após a publicação do 1º edital, apresentação de divergência ou habilitação (item 4 acima), a ser protocolada apenas perante o AJ (muitas vezes exclusivamente por meio eletrônico10), ou perante o AJ e também em juízo, a depender da determinação do juiz da causa - essencial, para este fim, que seja consultada a forma de apresentação dessas peças no próprio edital11; b) após a publicação do 2º edital, apresentação de impugnação (item 6 acima), a ser protocolada em juízo; c) após a apresentação do PRJ, apresentação de objeção ao plano (item 9 acima), a ser protocolada em juízo; d) participação na AGC, notadamente para votar pela aprovação ou rejeição do PRJ ou, ainda, pela abstenção (item12 acima). Graficamente, o procedimento básico da RJ pode ser resumido no seguinte diagrama: O cotidiano forense mostra que, infelizmente, muitos profissionais que atuam nas recuperações não conhecem essa tramitação básica quanto à RJ, o que causa uma série de tumultos e dificultam o andamento de um procedimento que, invariavelmente, é complexo e apresenta uma série de incidentes. Assim, o primeiro passo para que haja uma adequada recuperação judicial é, seguramente, que as fases procedimentais previstas na legislação sejam observadas - tantos pelos advogados como pelos juízes, promotores e administradores judiciais. E a presente coluna busca, exatamente, contribuir para isso. __________ 1 A primeira, de autoria de Daniel Carnio Costa, pode ser lida em aqui. 2 A respeito, conferir, com mais vagar, Fernando da Fonseca Gajardoni; Luiz Dellore; Andre Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr., Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - Comentários ao CPC/2015, São Paulo: Método, 2016, p. 1/2. 3 Naturalmente, essas (in)compatibilidades serão tratadas em outros momentos desta coluna. Um exemplo do que se afirma foi objeto de preocupação de um dos autores deste texto ainda na vacatio do NCPC, a respeito da recorribilidade das decisões interlocutórias na recuperação judicial (e também na falência): Andre Vasconcelos Roque, Bernardo Barreto Baptista, O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação funcional. 4 Vale destacar que a lei 11.101/2005 não apresenta o procedimento da RJ de forma linear, mas sim com idas e vindas, o que dificulta um pouco a compreensão do procedimento recuperacional a partir da leitura da lei, sem levar em conta o que se verifica no cotidiano forense. 5 Tem sido relativamente frequente exigir da empresa recuperanda também a relação dos credores extraconcursais (não submetidos aos efeitos da RJ), a fim de que os credores concursais possam avaliar a totalidade da situação econômico-financeira da empresa e de suas probabilidades de soerguimento. O assunto será tratado oportunamente, em outro texto. 6 Os créditos são: classe I, trabalhista; classe II, credor real; classe III: quirografário e classe IV: microempresa e EPP (art. 41 da lei 11.101/2005). Além disso, como visto em nota anterior, há créditos que não se submetem à RJ, ou seja, que são extraconcursais (como a garantia fiduciária do art. 49, § 3º da lei 11.101/2005). 7 Não se confunde, portanto, a decisão que defere o processamento da RJ (passo 2 do procedimento) com aquela que concede a RJ, homologando o plano de recuperação judicial (passo 11 do procedimento). 8 Sobre os limites do controle de legalidade do PRJ pelo juiz, confira-se o anterior texto nesta coluna, referido na primeira nota de rodapé. 9 Eventual descumprimento do plano no prazo de 2 anos autoriza a conversão da RJ em falência (art. 61 da lei 11.101/2005); se o descumprimento se verificar após este período, o credor poderá se valer das vias comuns contra a devedora, quais sejam, a execução do PRJ ou mesmo o ajuizamento de requerimento de falência (art. 62 da lei 11.101/2005). 10 É o que ocorre perante as duas varas especializadas em RJ e Falência da cidade de São Paulo, sendo esse, seguramente, o meio mais efetivo e menos burocrático. 11 Infelizmente, tem sido comum no cotidiano forense, sobretudo por profissionais não acostumados a esse procedimento especial, a apresentação de divergências ou habilitações perante o juízo da recuperação judicial sem qualquer determinação do juiz nesse sentido, o que não encontra respaldo na lei. O art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005 determina expressamente que essas peças sejam apresentadas ao administrador judicial.
Daniel Carnio Costa A recuperação judicial de empresas tem sido um dos assuntos jurídicos mais comentados nos últimos anos. Desde o início da fase mais aguda da crise econômica brasileira, as ferramentas jurídicas que tratam da insolvência empresarial deixaram de ser assunto restrito aos jornais especializados em economia e passaram a ocupar as manchetes dos jornais mais populares do Brasil. Isso porque, grandes empresas de atuação nacional e mesmo alguns dos mais importantes grupos empresariais do Brasil ajuizaram pedidos de recuperação judicial como forma de tentar superar a crise econômica de suas atividades. Assim, ninguém mais pode se tornar indiferente a essa ferramenta jurídica, uma vez que os credores, diante de um pedido de recuperação judicial, se veem impactados pelo processo, ainda que contra sua vontade. E quem são os credores envolvidos num processo de recuperação judicial de uma grande empresa? São os empregados, os consumidores, outras empresas fornecedoras e os financiadores da atividade empresarial, como os bancos e fundos de investimento. Nesse sentido, é importante entender como funciona o mecanismo da recuperação judicial de empresas. Trata-se de instrumento criado pelo sistema de insolvência empresarial para ajudar a empresa viável, mas em crise, a superar esse momento de dificuldade e manter a sua atividade e todos os benefícios dela decorrentes, ou seja, os postos de trabalho, a renda dos trabalhadores, a circulação de bens, produtos, serviços, riquezas em geral e o recolhimento de tributos. No modelo brasileiro inaugurado pela lei 11.101/05, o Poder Judiciário deve ajudar as empresas a superar o momento de crise através da criação, no bojo da recuperação judicial, de um ambiente de negociação equilibrada entre credores e devedores, a fim de que os agentes de mercado possam ajustar um plano de recuperação que atenta minimamente aos interesses da maioria dos credores e, ao mesmo tempo, viabilize a manutenção das atividades da empresa com a preservação dos empregos, dos tributos, da circulação dos produtos, serviços e das riquezas em geral. A negociação entre credores e devedores é verdadeiramente central no processo de recuperação. E deve ser prestigiada a solução encontrada pelos agentes de mercado para a superação da crise da devedora. Bem por isso é que se afirma a existência do princípio da Soberania da Decisão dos Credores em Assembleia Geral de Credores. Segundo esse princípio, os credores deverão decidir de forma soberana, em reunião denominada Assembleia Geral de Credores, acerca do plano de recuperação da empresa, aprovando ou rejeitando as propostas apresentadas pela devedora. Entretanto, esse princípio da Soberania dos Credores deve ser bem compreendido, a fim de não gerar consequências contrárias ao próprio espírito da lei recuperacional, que visa sempre e em última análise tutelar o interesse social, decorrente da preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial. Embora os credores devam decidir sobre as propostas de recuperação apresentadas pela devedora, de forma soberana, deve-se compreender que esse processo de decisão deve ser monitorado judicialmente, a fim de se garantir que a decisão de mercado seja compatível com a preservação dos benefícios econômicos e sociais buscados pelo instituto da recuperação da empresa. A jurisprudência dos Tribunais brasileiros já afirmou - com acerto - que o juiz não deve interferir nos aspectos negociais do plano de recuperação judicial, mas, por outro lado, tem o dever de controlar os aspectos legais do plano de recuperação judicial Não cabe ao juiz decidir, por exemplo, sobre o percentual de deságio proposto pelo devedor, ou sobre o parcelamento do pagamento da dívida, vez que esses são aspectos a serem decididos pelos credores em AGC (Assembleia Geral de Credores). São os agentes de mercado que devem avaliar se a proposta feita pela devedora tem sentido econômico e será capaz de conduzir a atividade à desejada recuperação. Entretanto, deve o Poder Judiciário controlar a legalidade da decisão dos credores e os aspectos legais do plano de recuperação judicial. Muito embora já seja pacífico que o juiz pode fazer o controle de legalidade do plano de recuperação judicial, na prática os problemas de identificação dos limites entre legalidade e mérito se apresentam com frequência. Há casos em que o juiz reputa ilegal uma cláusula que estabelece um percentual exagerado de deságio, com fundamento em algum princípio constitucional. Outras vezes, anula integralmente o plano de recuperação judicial porque a maioria dos credores aprovou a extensão da novação aos fiadores e coobrigados, em desacordo com o que diz a lei 11.101/05. Embora a jurisprudência diga que o juiz deve fazer o controle de legalidade do plano, a lei não apresenta critérios para que magistrado exercite o referido controle. Portanto, a proposta do presente texto é apresentar um critério prático para o exercício do controle de legalidade do plano de recuperação judicial, estabelecendo limites claros entre mérito e aspectos legais das decisões dos credores e orientando a conduta de todos os agentes envolvidos no processo recuperacional. Trata-se do critério tetrafásico que já vem sendo aplicado - com sucesso - na 1a vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. O controle de legalidade do plano de recuperação judicial deve ser feito em quatro fases. A primeira fase, e mais evidente delas, é aquela em que se realiza o controle das cláusulas do plano de recuperação judicial. Deve-se verificar se a cláusula do plano, mesmo que aprovada pela maioria dos credores, viola alguma norma de ordem pública existente no ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, se os credores aprovam uma cláusula que imponha a morte do devedor por enforcamento, caso descumpra o pagamento da dívida renegociada (cláusula que provavelmente seria aprovada por unanimidade em todas as classes de credores), tal cláusula não poderá ser homologada judicialmente por violar normas cogentes, de ordem pública. A vontade dos credores, embora soberana quanto ao mérito do plano, não pode se sobrepor à lei de ordem pública. Um exemplo mais real desse tipo de cláusula, seria o da cláusula que diz que haverá convolação da recuperação em falência em caso de descumprimento de obrigação, mesmo com vencimento posterior aos dois anos de fiscalização legal. As consequências do descumprimento das obrigações da recuperanda são reguladas de forma cogente pela lei 11.101/05, não estando na esfera de disponibilidade dos credores. Feita a verificação da compatibilidade das cláusulas do plano com as normas de ordem pública, passa-se à segunda fase do controle de legalidade. A segunda fase é aquela que impõe a verificação da existência de vícios do negócio jurídico representado pela aprovação do plano pelos credores em AGC. A natureza jurídica da decisão dos credores em AGC é de negócio jurídico e, portanto, cabe ao Poder Judiciário verificar se tal negócio jurídico está isento de vícios de consentimento ou de vícios sociais (Código Civil, Capítulo IV do Livro III). São eles: erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão, simulação ou fraude contra credores. Nessa segunda fase, o juiz deve controlar a higidez da formação das maiorias de aprovação do plano de recuperação judicial, certificando-se de que os credores estavam devidamente informados sobre o conteúdo do plano; se não foram coagidos, enganados ou votaram com a vontade viciada pelo estado de perigo. Da mesma forma, deverá o juiz verificar se não ocorreram simulações entre grupos de credores e a devedora, a fim de garantir a aprovação do plano, ou mesmo a realização de condutas fraudulentas para garantia de aprovação do plano, em prejuízo da maioria dos credores. É evidente que o juiz somente conseguirá exercer eficazmente o controle sobre a higidez da formação das maiores de aprovação do plano, se for municiado de informação suficiente e evidenciadora da existência desses vícios. Essa será a função do administrador judicial e dos credores em geral. Assim, por exemplo, o juiz não deverá homologar plano de recuperação que tenha sido aprovado com base na construção fraudulenta de quórum de aprovação, pela criação de credores inexistentes que atuam no processo como alter-ego da devedora, fundada em cessões de crédito simuladas ou no tratamento desigual de credores titulares da mesma posição jurídica, desinformação de credores ou em práticas fraudulentas de afastamento dos credores do momento da votação do plano. A terceira fase de controle judicial do plano consiste na verificação da legalidade da extensão da decisão da maioria dos credores aos demais credores dissidentes. Trata-se de uma fase muito mais sutil de controle. Muitas vezes, a cláusula é legal e a decisão da maioria dos credores é isenta de vícios. Entretanto, a aplicação da cláusula aos credores dissidentes não pode ser feita para não violar norma de ordem pública. Um bom exemplo é o da cláusula do plano, aprovada pela maioria dos credores, que diz que a novação da obrigação se aplica tanto ao credor principal, quanto ao coobrigado ou avalista. O crédito é direito disponível, não havendo impedimento legal para que o credor perdoe a dívida do devedor principal e também do coobrigado ou do avalista. Portanto, nesse aspecto não haveria ilegalidade nessa cláusula. Entretanto, o art. 49, p. 1º, da lei 11.101/05 diz que os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso. Tem-se, assim, que o credor poderá perdoar o coobrigado ou avalista, se assim desejar, pois o crédito é direito disponível. Entretanto, os credores dissidentes, que não concordaram com essa cláusula, possuem na lei (art. 49, p.1º) a proteção à sua pretensão de preservar seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso. Assim, essa cláusula é válida, mas se aplica apenas aos credores que concordaram expressamente com o seu teor. Os seus efeitos não podem ser estendidos aos credores dissidentes (que votaram contra a cláusula, que se abstiveram, ou que se ausentaram). A extensão dos efeitos dessa cláusula aprovada pela maioria aos credores dissidentes (minoria) viola norma de ordem pública (lei 11.101/05, art. 49, p. 1o). Na prática, o juiz deve homologar a cláusula com a ressalva de que seus efeitos se aplicam apenas aos credores concordantes e que os credores dissidentes preservam os seus direitos contra os coobrigados e fiadoras. Por fim, a quarta fase de controle de legalidade do plano diz respeito à análise da abusividade do voto do credor. O voto do credor será considerado abusivo se não for utilizado de forma compatível com o exercício do seu direito. Nesses termos, o voto que não tem sentido econômico, e que coloca o credor em posição mais desfavorável na falência do que estaria na recuperação judicial, é considerado abusivo. Mas não é só. Será também considerado abusivo o voto do credor que não for exercido de forma compatível com a função social da recuperação judicial. Vale dizer, ainda que o credor vote de forma compatível com a realização do seu interesse particular, sua posição poderá ser desconsiderada na medida em que represente uma barreira intransponível à realização dos interesses público e social buscados pelo processo recuperacional. Por exemplo, se um credor se recusa a negociar, insistindo em receber 100% de seu crédito, ele age, em tese, de forma legítima e de acordo com a realização de seu interesse particular. Entretanto, se esse voto for decisivo para determinar o encerramento de atividade empresarial saudável, com o desaparecimento dos empregos, da renda, dos produtos, dos serviços e dos tributos, o juiz deverá desconsiderar esse voto, fazendo prevalecer o interesse social sobre o interesse particular de um credor específico. Essas situações aparecem sempre que um ou alguns credores, com alto poder de dominância em sua respectiva classe, se recusam a colaborar com o processo recuperacional, agindo exclusivamente no seu interesse particular, ainda que em prejuízo dos demais credores e do interesse social. O exercício do controle tetrafásico de legalidade do plano de recuperação judicial preserva a soberania dos credores no que tange ao mérito do plano - preservando a decisão de mercado quanto à solução para superação da crise da empresa devedora - e ao mesmo tempo garante a higidez da decisão dos credores e a compatibilidade dessa decisão com os fins sociais do processo de recuperação judicial, fazendo prevalecer sempre o interesse social/público sobre o interesse particular.