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Migalhas Infância e Juventude

Temas vinculados ao Direito da Criança e do Adolescente, por meio do exame de diplomas internacionais, CF, ECA, legislações e normas esparsas.

Angélica Ramos de Frias Sigollo, Elisa Cruz, Hugo Gomes Zaher e Marília Golfieri Angella
A violência contra crianças e adolescentes se manifesta de múltiplas e cruéis formas. Algumas, como a agressão física ou o abuso sexual, são mais visíveis, provocando repulsa imediata e mobilização social. Contudo, há uma modalidade silenciosa, crônica e de difícil percepção que, ironicamente, carrega em seu nome a própria atitude que a sociedade muitas vezes lhe devota: a negligência. Esta forma de violência não se materializa por uma ação, mas por uma omissão. É a violência com sinal negativo, um "não fazer" onde a ação protetiva era um dever. A negligência é a falha, intencional ou não, no cumprimento das obrigações de cuidado, proteção e assistência indispensáveis ao desenvolvimento saudável de um ser em formação. Dados do Disque 100 confirmam que esta é uma das formas mais comuns de violação de direitos de crianças e adolescentes e corresponde a grande parte das denúncias no país1. No mesmo sentido, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, recentemente publicado, confirma que a negligência, representada pelos casos de abandono, é uma violência bastante recorrente. Os dados referentes a 2024 revelam um cenário desolador no que tange à violência negligencial tipificada: foram registradas 12.446 vítimas de 0 a 17 anos do crime de abandono de incapaz (art. 133 do Código Penal) e outras 1.365 vítimas de abandono material (art. 244 do Código Penal). O que torna o quadro ainda mais grave é a tendência de escalada: em comparação com 2023, essas modalidades criminosas registraram um crescimento expressivo de 9,4% e 9,3%, respectivamente, figurando entre as maiores altas dentre todas as formas de violência não letal. A essa triste estatística somam-se, ainda, as 480 ocorrências por descumprimento dos deveres do poder familiar, infração que está prevista no art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que também apresentaram um aumento de 5,7%2. Uma análise mais aprofundada dos dados e da prática forense revela um nítido recorte de gênero, que varia conforme o tipo de violência. Em se tratando da violência negligencial, a figura materna frequentemente aparece como a principal responsável. Contudo, isso não ocorre, em regra, por uma deliberação maldosa, mas é um reflexo direto da estrutura social brasileira, na qual a maternidade solo é uma realidade indisfarçável. Sobrecarregada com a dupla ou tripla jornada e sem uma rede de apoio ou a presença de uma figura paterna corresponsável, a mãe acaba, por exaustão e ausência de recursos, incorrendo na omissão que caracteriza a negligência. Em contraponto direto, na violência sexual intrafamiliar, o perfil do agressor se inverte drasticamente: a esmagadora maioria dos casos é perpetrada por uma figura masculina - o pai, o padrasto, o avô ou tio - e as meninas são as vítimas predominantes. Essa dualidade trágica não é coincidência, mas o retrato de papéis de gênero arraigados, onde à mulher recai a responsabilidade (e a culpa) pelo cuidado, enquanto o poder e a autoridade masculina, quando pervertidos, transformam o lar em um ambiente de risco sexual para as mais vulneráveis. Apesar de sua massiva ocorrência prática, a negligência é frequentemente subestimada, tratada como um "problema menor" ou, pior, confundida com as dificuldades inerentes à pobreza (o que enseja uma absurda criminalização das camadas sociais mais pobres). Contudo, nas últimas semanas, um fenômeno digital rompeu essa barreira de indiferença com a força de um tsunami. Um vídeo publicado pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, o Felca, expôs de forma contundente e didática a exploração de crianças e adolescentes na internet. Com dezenas de milhões de visualizações, a denúncia não apenas gerou uma onda de apoio de figuras públicas e anônimos, mas também acendeu um alerta no Congresso Nacional, impulsionando a discussão de PLs para a proteção de menores no ambiente online. O vídeo de Felca, ao mirar em influenciadores digitais que monetizam a imagem infantil, atingiu em cheio o cerne de uma problemática muito mais profunda e disseminada: a negligência parental, mais especificamente no ambiente digital, uma porta escancarada para incontáveis riscos, abusos e violências. 1. O vídeo de Felca, o caso Kamylinha, a adultização e a negligência parental no ambiente digital O vídeo de Felca, intitulado "Adultização", inicia com um tom sarcástico, característico do seu trabalho, ao dissecar a perturbadora tendência de "coaches mirins" e crianças que discursam sobre investimentos, desvalorizando a formação escolar em prol de um suposto empreendedorismo precoce. Contudo, o humor cede rapidamente espaço a uma análise sóbria e assustadora. Felca conecta essa exposição precoce à vulnerabilidade de crianças e adolescentes frente a redes organizadas de pedofilia. Ele explica como os algoritmos das redes sociais, desenhados para maximizar o engajamento, podem ser manipulados por criminosos. Comentários com termos como "trade" (troca) em publicações de crianças não são interações inocentes, mas códigos para a negociação de material de abuso sexual infantil, ocorrendo à vista de todos, inclusive dos pais. O ponto central da denúncia recai sobre o influenciador Hytalo Santos, já investigado pelo Ministério Público da Paraíba desde 2024. Felca o acusa de sexualizar adolescentes sob seus "cuidados", expondo-os a festas, consumo de álcool e comportamentos inadequados para a idade. O caso de Kamylinha Santos, que passou a conviver com o influenciador aos 12 anos, é emblemático. Segundo a denúncia, a jovem foi transformada em um "produto" para gerar engajamento, sendo submetida a um implante de silicone aos 17 anos e aparecendo em incontáveis conteúdos de teor sugestivo. A adolescente, que chegou a ser emancipada aos 16 anos - um ato jurídico que confere capacidade civil plena, mas não maturidade psicológica ou emocional -, teve seu perfil derrubado por publicidade de casas de apostas, prática ilegal para menores. O que mais choca, para além da conduta do influenciador, é a aparente anuência e até defesa por parte da genitora de Kamylinha. Uma conselheira tutelar de Cajazeiras/PB afirmou que a mãe da adolescente nunca se opôs à participação da filha nos vídeos, ao contrário do pai e da família paterna, e que chegou a defender publicamente o influenciador após a repercussão. Esta atitude parental não é apenas uma falha moral; é a materialização da negligência. A omissão em proteger a filha, permitindo sua exposição a riscos imensuráveis, configura um abandono do dever de cuidado. Acertadamente, o Ministério Público da Paraíba estendeu a investigação para apurar a responsabilidade dos pais por omissão. O caso não é isolado; Felca recorda outros, como "Bell para Meninas" e "Karolyne Deher", nos quais as mães eram as principais agentes da exploração vexatória e sexual de suas filhas, evidenciando um padrão doentio. 2. "Abandono digital": Oversharenting e as falhas no dever de supervisão ativa O caso exposto por Felca é a ponta de um iceberg que podemos denominar de "abandono digital". Muitos pais, movidos por uma falsa sensação de segurança - "meu filho está em casa, no quarto dele, seguro e protegido dos males da rua" -, entregam a crianças e adolescentes dispositivos conectados à internet sem qualquer supervisão, letramento ou controle. Essa omissão, mediante a delegação tácita do dever de cuidado a um algoritmo, é uma forma contemporânea e extremamente perigosa de negligência. Essa discussão foi brilhantemente explorada no início deste ano de 2025 pela série "Adolescência", um fenômeno global da Netflix que retrata a história de um garoto de 13 anos, de família estruturada, acusado de matar uma colega. A discussão em torno da série viral acendeu o alerta de que uma noção equivocada de "respeito à privacidade" está, na prática, permitindo que adolescentes se tornem vítimas ou autores de crimes graves cometidos na internet. Essa análise quebra o mito de que o adolescente está seguro apenas por estar em seu quarto, lembrando que o mundo digital oferece tantos perigos quanto o mundo real, ou até mais. Essa falta de supervisão é agravada pelo "oversharenting", a prática de compartilhar excessivamente informações e imagens dos filhos online em redes sociais. Cada foto com o uniforme escolar, cada postagem marcando a localização, cada vídeo expondo a intimidade da criança contribui para uma pegada digital permanente e explorável. Os pais se tornam, ainda que sem intenção, os primeiros agentes da exposição de seus filhos à esfera pública digital e fornecem, mesmo que não queiram, farto material para compartilhamento em grupos de usuários pedófilos mal intencionados. A juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, que vem se destacando ao alertar sobre os perigos da internet para crianças e adolescentes, elenca lições fundamentais que os pais precisam aprender e aplicar no seu cotidiano3: Estudar sobre a adolescência: É preciso compreender que o cérebro do adolescente, com o córtex pré-frontal ainda imaturo, é propenso à impulsividade e tem dificuldade em avaliar riscos. Essa imaturidade os torna presas fáceis para a manipulação online (cybergrooming), desde desafios perigosos até o aliciamento por predadores; Compartilhar experiências e criar vínculos: A melhor proteção não é o controle autoritário, mas a construção de uma relação de confiança entre pais e filhos. Interessar-se pelo universo online do filho, conhecer os jogos que ele joga, os youtubers que ele assiste e criar um canal de diálogo aberto são atitudes que o encorajam a pedir ajuda quando se deparar com algo estranho ou ameaçador; Monitorar a atividade online: É preciso deixar claro que o controle parental não é invasão de privacidade, mas um dever de cuidado. Utilizar aplicativos de controle, ter acesso às senhas para emergências e manter o GPS do aparelho habilitado são medidas de segurança básicas e inegociáveis; Estabelecer limites claros: O uso excessivo de telas está diretamente ligado a problemas de saúde mental (depressão, ansiedade), obesidade e, principalmente, privação crônica de sono, o que afeta drasticamente o desenvolvimento cognitivo e o aprendizado. Em suma, é urgente uma mudança de paradigma: os pais precisam abandonar a postura de um espectador passivo para assumir o protagonismo no cuidado digital dos filhos. As lições elencadas por Vanessa formam um verdadeiro roteiro para uma parentalidade ativa e engajada, que não se fia na proibição cega, mas na orientação consciente. Trata-se, em última análise, de um chamado à responsabilidade que une conhecimento, afeto, vigilância e disciplina, pilares indispensáveis para construir um ambiente digital mais seguro e saudável para as futuras gerações. 3. As múltiplas faces da negligência e as suas consequências jurídicas A negligência, como dito acima, é a violência que deriva de um "não fazer" aquilo que a lei e o dever de cuidado exigem. Ela se manifesta quando a pessoa que está em posição de garantidor - aquela que tem a obrigação legal (pais), contratual (babás, professores) ou fática (um adulto que assume a responsabilidade momentânea) de proteger - se omite. Insta, aqui, diferenciar a negligência deliberada da incapacidade material. A família que não consegue prover o necessário por extrema pobreza não é negligente; ela é vítima de uma falha do Estado e deve ser amparada pela rede de assistência social. Juridicamente, a omissão negligente dos pais pode levar a duas ordens de responsabilização penal. A primeira, e mais grave, é a por omissão imprópria (ou crime comissivo por omissão), prevista no art. 13, § 2º, do Código Penal. Nela, o garantidor que tinha o dever e o poder de evitar um resultado danoso, e não o faz, responde pelo próprio crime que deixou de impedir. É o caso clássico da mãe que, ciente dos abusos sexuais cometidos pelo padrasto contra sua filha, nada faz para protegê-la. Por sua inércia, ela pode ser responsabilizada, juntamente com o agressor, pelo mesmo crime de estupro de vulnerável. Não sei maiores detalhes da participação (ou, melhor, da não-participação) da mãe de Kamylinha no seu processo de erotização e sexualização nas redes sociais. Porém, a título meramente teórico, acaso fosse comprovada a prática de violência sexual contra a garota e que a sua genitora sabia (dolo direto) ou devia e tinha plenas condições de saber (dolo eventual) o que acontecia, mas, ainda assim, preferiu se omitir, seria possível que respondesse na Justiça pela própria prática da violência sexual. A segunda ordem de responsabilização se dá por meio dos crimes omissivos próprios, nos quais a própria lei descreve no tipo penal objetivo uma conduta de omissão. No contexto da violência negligencial, destacam-se: Abandono de incapaz (art. 133, CP): Consiste em abandonar, desamparar fisicamente, pessoa que está sob seu cuidado, guarda ou vigilância, expondo-a a perigo concreto; Abandono material (art. 244, CP): Ocorre quando se deixa, sem justa causa, de prover a subsistência do filho menor, seja com os recursos necessários ou com o pagamento de pensão alimentícia judicialmente fixada; Descumprimento de deveres do poder familiar (art. 249, ECA): Embora seja uma infração administrativa, e não um crime, também reflete a negligência. O ECA autoriza a aplicação de multa ao adulto responsável que "Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar". Essas figuras legais representam a concretização da responsabilidade pela omissão. Elas demonstram que a negligência, em suas formas mais graves e objetivas - o abandono físico, a ausência de sustento e a falha geral no dever de cuidado - deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma conduta objetivamente punível, reafirmando o dever indeclinável do adulto garantidor de proteger ativamente a criança e o adolescente. 4. A lei 15.163/25 e o que mais pode - e deve - vir por aí... Começando a se atentar para essa grave realidade, o legislador promoveu uma importante e necessária alteração com a edição da lei 15.163, de 3/7/25. A nova lei aumentou significativamente as penas para os crimes de abandono de incapaz e de maus-tratos, outrora meras infrações de menor potencial ofensivo, demonstrando uma resposta do Estado ao anseio social por uma punição mais severa a essas condutas. A pena base para o abandono de incapaz, que era de detenção, passou a ser de reclusão de 2 a 5 anos. Nas formas qualificadas, se o abandono resulta em lesão corporal grave, a pena é de 3 a 7 anos, e se resulta em morte, de 8 a 14 anos de reclusão. Trata-se de um avanço inegável na repressão penal. No entanto, a importante denúncia de Felca demonstra que o Direito precisa evoluir para abarcar as novas configurações da negligência parental na era digital. A legislação atual, pensada para um mundo analógico, mostra-se insuficiente para lidar com o "abandono digital". É imperativo que o debate provocado no Congresso Nacional resulte em ações concretas, que podem incluir a responsabilização civil e administrativa das plataformas digitais (as "big techs") pela disseminação de conteúdo prejudicial e pela falha em criar ambientes seguros para menores de idade. É preciso exigir das grandes empresas que implementem mecanismos eficientes para verificação etária e para a célere remoção de conteúdo ilícito (como fotos de nudez e pornográficas). Além disso, precisamos discutir a tipificação de condutas específicas, como a exploração da imagem infantil para fins comerciais pelos próprios pais (o "sharenting" predatório) quando esta gerar situação de risco comprovado. O vídeo de Felca evidencia que a violência sofrida por crianças e adolescentes na internet deriva de uma conjunção de fatores: a ação doentia e perniciosa de pedófilos, o desinteresse das "big techs" e, também, a negligência dos pais. A legislação brasileira precisa evoluir e igualmente atacar esses três fatores. É preciso pensar e implementar mecanismos legais que exijam dos pais e adultos responsáveis uma atuação proativa e vigilante dos filhos crianças e adolescentes em suas interações no meio virtual. Considerações finais O vídeo do youtuber Felca funcionou como um potente farol, jogando luz sobre uma forma de violência que, embora cotidiana e estatisticamente relevante, permanecia nas sombras do debate público e jurídico: a negligência. Ele nos forçou a encarar a verdade incômoda de que a omissão parental, especialmente no ambiente digital, não é um descuido menor, mas uma grave violação de direitos que serve como porta de entrada para violências ainda mais atrozes. Os casos de Hytalo Santos e Kamylinha, assim como as lições da série "Adolescência", ilustram as consequências devastadoras do abandono digital. A responsabilização criminal dos influenciadores que exploram menores de idade é fundamental, mas a reflexão deve ir além, alcançando a inércia, conivência ou até mesmo a participação ativa dos pais nesse ciclo de exploração. O endurecimento das penas promovido pela lei 15.163/25 é um passo na direção certa, mas reativo. A proteção de crianças e adolescentes exige uma postura proativa e sistêmica, que envolva o endurecimento da lei, mas também a educação digital para pais e filhos, a responsabilização efetiva das plataformas de tecnologia e uma mudança cultural na forma como percebemos a infância e a privacidade. A proteção integral, princípio basilar do art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, exige uma postura ativa e vigilante de todos - família, sociedade e Estado -, seja na rua, seja na rede. Negligenciar esse dever é falhar com o nosso futuro. 1 Dados disponíveis aqui. 2 Relatório completo disponível aqui.  3 De acordo com entrevista concedida pela magistrada ao portal BBC News Brasil, em 10 abr. 2025, disponível aqui.
O direito da criança e do adolescente, quando devidamente assegurado no art. 227, da Constituição Federal de 1988, inaugurou uma nova era no que tange ao reconhecimento da criança e do adolescente, todos eles, sem quaisquer distinções, como sujeito de direitos e como tal, dignos de proteção integral. Todavia, foi necessário a instituição e sanção de uma lei federal para enfim, romper com o paradigma da Situação Irregular e estabelecer a Doutrina da Proteção Integral, e a partir deste documento, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecer princípios e diretrizes que garantissem direitos humanos e fundamentais a toda população de 0 a 18 anos incompletos. Ao passar dos anos, e por ser a infância uma fase que muda conforme a sociedade vai evoluindo, foram necessárias algumas complementações aos direitos assegurados em 1990. E, por ser o Estatuto, uma das leis mais avançadas em termos de proteção e garantia de direitos do mundo, o firmamento destas alterações legislativas, vieram a contribuir de maneira eficaz para a persecução de tais direitos. Neste sentido, numa perspectiva cronológica, quando pensamos nos avanços ao longo destes 35 anos, desde sua concepção, podemos primeiramente citar a criação do CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, através da lei 8.242, de 1991. O CONANDA é responsável pela formulação e acompanhamento das políticas públicas voltadas à infância e adolescência e, sem dúvidas, sua criação teve um impacto significativo, haja vista ter institucionalizado a participação social na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Outras mudanças foram deveras essenciais, e desta feita, podemos aqui mencionar a lei da aprendizagem (lei 10.097/00), que regulamentou a contratação de aprendizes por empresas de médio e grande porte no Brasil, propiciando aos adolescentes, maiores de 14 anos, a possibilidade de ter formação técnico-profissional, garantindo a eles que continuassem o ensino regular enquanto adquirissem experiencia pratica no mercado de trabalho. Não podemos deixar de mencionar a sanção do Novo CC através da lei 10.406, de 2002, que promoveu significativas alterações no ECA no que diz respeito aos dispositivos de guarda, tutela, adoção e administração patrimonial, enfatizando o principio do superior interesse da criança e do adolescente. A fim de somar às estas mudanças, foi promulgada em 2009, a lei 12.010 - lei da adoção, que estabeleceu parâmetros com vistas a melhorar o processo de adoção no Brasil, unificando e facilitando o acesso às informações sobre crianças e adolescentes à espera de adoção e de seus pretendentes habilitados. Infelizmente, há ainda situações no Brasil, que após sua ocorrência fatídica, geram respostas legislativas a fim de coibi-las. Foi assim que houve a sanção da lei 13.010, de 2014, que ficou conhecida como lei Menino Bernardo, que proibiu o uso de castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante na educação de crianças e adolescentes. Esta lei representa um avanço significativo no que diz respeito à proteção dos direitos infanto-juvenis e visa garantir um ambiente familiar e educacional livre de violência física e psicológica. A fim de assegurar e fortalecer os princípios da proteção integral e prioridade absoluta, bem como a garantia  dos direitos previstos nos arts. 53 a 59 do ECA, em 2014, através da lei 13.005, foi instituído o Plano Nacional de Educação, que definiu metas e estratégias para a educação no Brasil por um período de dez anos, incluindo a universalização do ensino, a melhoria da qualidade da educação e a redução das desigualdades educacionais. Nesta orbita de inovações, em 2016, foi promulgada a lei 13.257, também chamada de Marco Legal da Primeira Infância, que estabeleceu políticas públicas voltadas para a primeira infância (publico de 0 a 6 anos de idade), enfatizando a proteção e o desenvolvimento integral das crianças nestas faixas etárias. Nos anos seguintes, e não menos importante, foram instituídas a lei da escuta especializada - lei 13.431, de 2017, voltada à escuta especializada de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, visando evitar a ré vitimização durante processos judiciais e administrativos. Esta lei, estabeleceu também, dentre outras garantias, um atendimento humanizado e adaptado às necessidades especificas de crianças e adolescentes nestas situações, e a lei Henry Borel - lei 14.344/22, que reforçou medidas protetivas para crianças e adolescentes vitimas de violência domestica e familiar. Esta legislação ampliou medidas preventivas e punitivas, bem como, estabeleceu diretrizes para serviços especializados, campanhas educativas e acoes preventivas, reforçando a responsabilização dos agressores. Outras inovações também merecem aqui destaque, como a SINASE - lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - lei 12.594/12, que regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional; lei 12.965/14, denominada Marco Civil da Internet, que incluiu alguns artigos que tratam da responsabilidade de provedores de internet em casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, buscando proteger a infância e adolescência no ambiente virtual; lei da semana nacional de prevenção da gravidez na adolescência - lei 13.798/19; lei da política nacional de busca de pessoas desaparecidas - lei 13.812/19; lei 14.154/21, que alterou o art. 10 do ECA e definiu um rol mínimo de doenças a serem rastreadas pelo teste do pezinho; decreto do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência contra crianças e adolescentes - decreto 10.701/21, em alusão ao Maio Laranja, mês de combate ao abuso e à exploração sexual do público infanto-juvenil; lei 14.340/22, que alterou a lei de alienação parental, em que um dos responsáveis manipula a criança ou adolescente para afastá-lo do outro genitor, prejudicando a relação e a convivência entre eles; lei 14.548/23, que cria o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes desaparecidos; lei 14.811/24, que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais; lei 14.826/24, que instituiu a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias de prevenção à violência contra crianças. Mesmo com tantos esforços e avanços legislativos, a proteção integral e prioridade absoluta  aos direitos de crianças e adolescentes ainda não foi totalmente garantida. E os dados estatísticos dos últimos anos comprovam tal afirmação. Em 2023, mais de 115 mil crianças e adolescentes foram vitimas de violência, aumento de 36,2% em relação a 20221. Ainda que com avanços no combate ao trabalho infantil, com a retirada de 6,3 mil crianças e adolescentes em situação de exploração, o problema ainda persiste e, dados da PNAD continua, aponta ainda cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos inseridos em situação de trabalho infantil, dentre as piores formas descritas pela OIT. Em termos de educação, dados do IBGE apontam que mais de 1,4 milhão de crianças de 4 e 5 anos estavam fora da escola em 2024 e, não podemos esquecer de mencionar aquelas que tiveram seus estudos interrompidos por efeito da crise climática, que no Brasil correspondeu a um total de 1,17 milhão de meninos e meninas, como aponta o UNICEF2. Não obstante, o Comitê dos Direitos da criança da ONU3 apontou áreas com graves violações de direitos no Brasil e recomendou medidas urgentes em relação à discriminação, violências, saúde mental e sexual de adolescentes, pobreza extrema, crise climática e desmatamento, e justiça juvenil. Diante destas situações, que são apenas uma amostra dos desafios que persistem em nosso país no que diz respeito à proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes, é ainda mais do que urgente e importante que o Estado brasileiro, junto aos atores do Sistema de Garantia de Direitos, através da interlocução com a sociedade civil promovam e efetivem políticas públicas que possam colaborar para as mudanças necessárias às quais os órgãos oficiais nos recomendam, cujas quais, futuramente, poderão transformar a vida de crianças e adolescentes e, quiça das gerações que delas sucederão. _______ 1 Fonte: Atlas da Violência 2025. 2 Disponível aqui. 3 Relatório ONU. Disponível aqui.
No ano de 2025, o ECA - Estatuto de Criança e do Adolescente, completa 35 anos de sua edição, não tendo sido poucas as mudanças, pelo menos para quem viveu em momentos anteriores e conheceu o Código de Menores, as alterações que ele provocou na vida social e privada da população brasileira. Saímos de um sistema jurídico que regulava as situações que envolvessem tão somente as questões que envolvessem inimputáveis em conflito com a lei penal (adolescentes infratores) e pessoas, abaixo dos dezoito anos de idade, que estivessem em situação de vulnerabilidade social, por conta da incapacidade de seus responsáveis legais proverem suas necessidades mínimas de dignidade, a nominada situação de risco. Com a edição do ECA, crianças e adolescentes, passaram elas, pessoas físicas individuais, a serem sujeitos de direito, estando expressos na legislação, e não mais na vontade de seus responsáveis legais ou agentes públicos que lhes atendessem, o que é melhor para elas. Saímos de um sistema adultocêntrico (pelo menos quando estudamos o ECA), no qual as ideias e opiniões dos adultos tinham em relação a crianças e adolescentes, tiveram que ceder espaço para conceitos previamente previstos em lei. A transposição entre sistemas tão distintos não é fácil, não basta tão somente a edição de leis para que isso ocorra, deve necessariamente haver uma mudança cultural para que não somente os agentes públicos, sejam eles do sistema judicial ou não, mas principalmente a sociedade incorpore essa nova ideia, para que ela possa ensejar uma melhoria na vida de todos. Uma das grandes alterações previstas no ECA em relação a crianças e adolescentes, foi reconhecer, na esteira do que dispõe o art. 12 da Convenção dos Direitos da Criança, firmada pelo Brasil em 1989, o direito de que elas sejam ouvidas nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de organismo adequado, segundo as regras de processo da legislação. Trata-se o direito de ser ouvido nos processos, de um direito fundamental reconhecido a crianças e adolescentes, e por ser um direito fundamental, não comporta uma interpretação restritiva, mesmo sem uma regulação específica nas normas processuais brasileiras, teve sua primeira aplicação em Porto Alegre, no ano de 2003, em uma Vara da Infância e da Juventude, em um processo em que uma criança, com poucos anos de idade, figurava como vítima de uma violência sexual praticada por um adolescente. A criança naquela oportunidade foi ouvida de forma protetiva, em local diverso da sala de audiências, acompanhada de uma psicóloga, depoimento que foi viabilizado por sistema audiovisual, permanecendo o magistrado na presidência do ato processual. O foco dessa primeira experiência não foi a busca do aprimoramento da prova judicial do processo, e com isso conseguir responsabilizar a pessoa apontada como agressora - uma forma juridicamente segura de aumentar as responsabilizações, como alguns doutrinadores chegaram a sugerir naquele momento -, mas sim garantir que o exercício de um direito fundamental não se transformasse numa violência institucional, o que ocorria anteriormente, quando uma criança era ouvida diretamente na sala de audiências, na presença de muitos adultos, que em regra lhe faziam perguntas diretas e inadequadas. Essa primeira experiência no Rio Grande do Sul chamou a atenção de outros profissionais que trabalham na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, tendo sido significativo que no ano de 2007, a CHILDHOOD FUNDATION, organização não governamental fundada por S.M. a Rainha Sílvia da Suécia, tenha se incorporado ao grupo de trabalho que buscou o seu aprimoramento, viabilizando não só que que profissionais brasileiros fossem conhecer as experiências de outros países que estão construindo projetos similares, como também trouxe profissionais estrangeiros para o desenvolvimento de um protocolo de escuta que atendesse à legislação processual brasileira. Em 2010, o CNJ, então presidido pelo saudoso ministro Cezar Peluso, mesmo sem termos ainda uma legislação processual que regulasse a tomada de depoimentos judiciais de crianças e adolescentes, editou a RECOMENDAÇÃO 33, recomendando que todos os tribunais brasileiros aderissem a essa prática. Em 2017, entre idas e vindas de projetos de lei tratando do assunto no Congresso Nacional, foi aprovada a lei 13.431, a qual regula o DEPOIMENTO ESPECIAL na forma como o conhecemos até os dias de hoje. O ECA completa 35 anos de vigência este mês, o DEPOIMENTO ESPECIAL 22 anos, ambos vieram para ficar e dar mais qualidade de vida à população infanto-juvenil. Levantamento sobre o DEPOIMENTO ESPECIAL no Poder Judiciário brasileiro, feito em 2025, apresenta dados positivos e negativos. Positiva é a constatação de que, da primeira experiência em 2003, evoluímos muito na garantia de que crianças e adolescentes possam exercer o seu direito de falar nos processos que lhes dizem respeito, pois somos um dos países que possui o maior número de equipamentos instalados para esse trabalho, em todas as unidades da federação, com milhares de profissionais capacitados para essa tarefa. Negativo é que os números de escuta de crianças e adolescentes nos processos não para de crescer, ano a ano, o que evidencia ser a violência contra crianças e adolescentes uma endemia em nossa sociedade. Estado Salas de depoimento instaladas até 2024 Profissionais capacitados até 2024 Depoimentos realizados em 2019 Depoimentos realizados em 2020 Depoimentos realizados em 2021 Depoimentos realizados em 2022 Depoimentos realizados em 2023 Depoimentos realizados em 2024 AC 22 33 NI NI NI NI 72 182 AL 03 21 NI NI NI NI NI NI AM 23 29 NI NI NI NI NI 474 AP 15 65 NI NI NI NI NI 332 BA 113 364 39 12 28 438 426 NI CE 35 121 680 217 280 1.010 1.794 2.356 DF 11 09 1.309 1.050 1.262 1.689 1.417 1.389 ES 13 93 NI NI 45 NI 456 400 GO 118 797 267 66 271 NI 1.285 2.483 MA 84 236 NI NI NI 140 402 754 MT 81 533 NI NI NI NI 164 988 MS 58 488 1.131 534 1.107 1.366 1.695 2.153 MG 298 696 NI NI NI 1.567 2.562 4.193 PA 79 254 NI NI NI NI 1.235 NI PB 11 35 340 116 429 528 765 1.136 PR 154 481 1.277 930 1.926 2.439 3.389 4.871 PE 07 245 829 370 461 937 1.332 1.453 PI 59 318 NI NI NI 531 675 896 RJ 48 239 399 198 622 1.000 1.451 1.899 RN 29 84 NI NI NI 174 521 NI RS 166 466 1.983 1.116 1.663 2.676 3.840 4.318 RO 23 94 202 185   558 178 727 RR 09 115 100 70 127 271 242 354 SC 114 416 905 1.255 1.684 3.212 4.075 4.566 SE 06 96 314 112 258 400 456 639 SP 339 2.143 6.009 3.456 3.405 8.300 6.530 7.067 TO 26 161 22 43 275 723 531 577 Total 1.944 8.632 15.706 9.730 13.843 27.959 35.493 44.207 Essa trajetória de avanços não seria possível sem a atuação firme e articulada das Coordenadorias da Infância e Juventude dos tribunais, por força da resolução 94/09, do CNJ. Essas estruturas permanentes desempenham papel estratégico nos Tribunais de Justiça, voltado à formulação e implementação de políticas judiciárias voltadas à infância e juventude, assumindo, entre outras funções, a articulação para instalação das estruturas necessárias para a efetivação do depoimento especial, o apoio e a formação de magistrados, entrevistadores forenses e servidores, e o diálogo interinstitucional para o fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes vítimas e testemunha de violência. Um exemplo inspirador dessa articulação entre estratégias e ações concretas ocorreu recentemente na Paraíba. Entre 2 e 13 de junho de 2025, o TJ/PB realizou a Semana da Escuta Protegida, capitaneada pela Coordenadoria da Infância e Juventude local e pelo Centro de Inteligência, Inovação e Governança do TJ/PB, que resultou na tomada de 224 depoimentos especiais, zerando o estoque na Paraíba de audiências atrasadas, instituindo o Núcleo Especializado de Depoimento Especial e apoiando a Escola da Magistratura da Paraíba na formação de entrevistadores forenses. Com efeito, supera-se definitivamente a visão equivocada de que o depoimento especial teria como objetivo central aumentar as responsabilizações criminais. O foco foi, e continua sendo, assegurar às crianças e adolescentes o pleno exercício de um direito fundamental: o de serem ouvidas de forma segura, respeitosa e acolhedora Atualmente, o Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça tem se debruçado sobre estratégias voltadas ao aprimoramento da sistematização dos dados relacionados ao depoimento especial. Como o apoio do COLINJ, foi possível coletar junto às Coordenadorias da Infância dos Tribunais e organizar os dados apresentados neste trabalho, conquanto se reconheça a importância de que o CNJ estabelecer mecanismos e ferramentas que permitam identificar, com precisão e regularidade, o volume e a qualidade desses atendimentos em todo o país, de modo a subsidiar a construção de políticas judiciárias eficazes e baseadas em evidências. Por fim, é importante reconhecer que a escuta protegida foi construída no Brasil por juízes da infância e juventude, em diálogo constante com profissionais do serviço social, da psicologia e da pedagogia. São esses profissionais que, desde a primeira experiência em Porto Alegre até os dias atuais, vêm garantindo que o depoimento especial seja, antes de tudo, um instrumento de proteção e promoção de direitos. Ao completar 35 anos de vigência, o Estatuto da Criança e do Adolescente segue inspirando inovações institucionais como essa, que conferem efetividade concreta aos seus princípios e valores. O depoimento especial é mais do que uma técnica de escuta - é a expressão viva de um novo paradigma de justiça, centrado na dignidade, escuta e protagonismo de crianças e adolescentes.
Neste artigo vamos analisar a recente decisão do CNJ, proferida na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000, que vedou a utilização de assinaturas eletrônicas simples, avançadas (como as da plataforma Gov.br) ou qualificadas para substituir o reconhecimento de firma em cartório nas autorizações de viagem para crianças e adolescentes menores de 16 anos desacompanhados. 1. Introdução A transformação digital impulsionou uma necessária modernização dos serviços públicos, substituindo procedimentos burocráticos por soluções ágeis e acessíveis. Nesse cenário, a lei 14.063/20, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas na interação com entes públicos, e a plataforma Gov.br emergiram como símbolos de um Estado mais eficiente. Contudo, a aplicação irrestrita dessas novas ferramentas suscita debates complexos quando confrontada com searas jurídicas que demandam um grau elevado de segurança e cautelas adicionais, especialmente aquelas que tutelam direitos de pessoas em condição de vulnerabilidade. É precisamente neste ponto de intersecção entre a conveniência tecnológica e o dever de proteção que se insere a questão analisada pelo CNJ na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000. Formulada por uma operadora de turismo, a indagação era direta: a assinatura eletrônica gerada pela plataforma Gov.br ou por um certificado digital comum poderia substituir a exigência de reconhecimento de firma em cartório para as autorizações de viagem de menores de 16 anos desacompanhados dos pais ou responsáveis adultos? A resposta do CNJ foi um sonoro e bem fundamentado "não". Esta decisão, longe de ser um ato de resistência e oposição infundada e arbitrária à tecnologia, representa uma afirmação categórica do primado da proteção infantojuvenil. O presente artigo visa dissecar os fundamentos da decisão do CNJ, demonstrando que a vedação se justifica pela prevalência de normas especiais protetivas (notadamente, o ECA e regulamentações do CNJ) sobre a legislação geral de assinaturas eletrônicas. Abordaremos como a formalidade do reconhecimento de firma, seja física ou por meio da já existente AEV -  Autorização Eletrônica de Viagem, cumpre uma função essencial de garantia da autenticidade e da voluntariedade do consentimento parental, mitigando riscos severos e inaceitáveis. Como se verá, a decisão do CNJ não apenas está correta, mas serve como um importante precedente sobre como a inovação tecnológica deve ser calibrada e implementada, assegurando que o avanço da eficiência administrativa jamais comprometa a salvaguarda dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. 2. A autorização de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados A exigência de autorização para a viagem de crianças e adolescentes não é um capricho burocrático, mas uma manifestação direta das balizas protetivas que fundamentam a doutrina da proteção integral, pilar do direito infantojuvenil brasileiro e consagrada no art. 227 da Constituição Federal. Este dispositivo estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, a vida, a saúde, a alimentação, a educação, o lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, o respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nesse contexto, a regulamentação de viagens é um mecanismo preventivo crucial para evitar que crianças e adolescentes sejam colocados em situação de risco e premente perigo à sua vida, saúde e integridade física e psicológica. Seu propósito é criar barreiras de segurança para proteger crianças e adolescentes de riscos gravíssimos, como o sequestro parental (subtração por um genitor sem o consentimento do outro), o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou trabalho análogo à escravidão, raptos e desaparecimentos. Com efeito, "o desaparecimento, temporário ou definitivo, de crianças e adolescentes sempre despertou preocupação legislativa, manifestada especialmente através de regras proibitivas de deslocamentos desacompanhados dos pais ou responsáveis, ausências eventualmente supridas por autorizações expressas" (Paula, 2024, p. 282). Por isso, estabeleceu o legislador regras para autorização das viagens de crianças e adolescentes desacompanhadas, em âmbito nacional e internacional. A formalidade da autorização, com a intervenção judicial ou notarial, serve para verificar a autenticidade e a livre vontade do consentimento parental, garantindo que a viagem é, de fato, segura e atende ao melhor interesse da criança ou do adolescente. 2.1. Regras gerais para a autorização de viagem nacional A viagem dentro do território brasileiro é regulamentada no art. 83 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e pela resolução 295/19 do CNJ. O art. 83, caput, do ECA, alterado pela lei 13.812/19, e o art. 1º da resolução 295/19 do CNJ possuem idêntica redação. De acordo com esses dispositivos: "nenhuma criança ou adolescente menor de 16 anos poderá viajar para fora da comarca onde reside desacompanhado dos pais ou dos responsáveis sem expressa autorização judicial". O §1º do art. 83 do ECA e o art. 2º da resolução do CNJ, contudo, enumeram exceções que afastam a necessidade de autorização. Em síntese panorâmica, a regulamentação para a viagem de crianças e adolescentes em território nacional parte de um princípio basilar de proteção: a regra geral é a necessidade de consentimento parental expresso e formal. As exceções previstas em lei (e na resolução) são desenhadas para situações em que a segurança da criança ou adolescente é presumida ou já foi previamente aferida, sempre à luz do melhor interesse. As hipóteses excepcionais que afastam a necessidade de autorização judicial para que crianças e adolescentes possam viajar em território nacional desacompanhadas dos pais ou outros adultos responsáveis são as seguintes: a) Autonomia para viagens nacionais (a partir de 16 anos): ao completar 16 anos, o ordenamento jurídico confere ao adolescente (considerado pelo Código Civil brasileiro pessoa relativamente incapaz, ex vi do art. 4º, inciso I) uma autonomia específica para se deslocar dentro do Brasil. A partir dessa idade, ele pode viajar livremente, desacompanhado e sem qualquer tipo de autorização, bastando portar um documento oficial de identificação com foto que comprove sua idade. Essa prerrogativa representa um marco no desenvolvimento de sua autonomia, presumindo-se a maturidade necessária para realizar viagens domésticas com segurança. A previsão, portanto, está alinhada com a autonomia progressiva (evolving capacities of the child) prevista no art. 5º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989. b) Regras de proteção para menores de 16 anos: para esta faixa etária, a lei cria um escudo protetivo mais robusto, cujas brechas são estritamente regulamentadas: b.1) Viagem na companhia de parentes próximos: a lei dispensa a autorização formal quando a criança ou o adolescente (menor de 16 anos) viaja acompanhado de ascendentes (pais, avós, bisavós) ou colaterais até o terceiro grau (irmãos, tios), desde que maiores de idade. Essa exceção se fundamenta na presunção de que o vínculo de parentesco direto e próximo é, por si só, uma garantia de cuidado e segurança. A comprovação dessa relação de parentesco, por meio de documentos de identidade de ambos (viajante e acompanhante), é indispensável para que a exceção seja aplicada. b.2) A "regra de ouro": necessidade de autorização forma: para todas as demais situações - seja viajando completamente desacompanhado, seja na companhia de um terceiro não-parente (como um amigo da família, um professor em uma excursão, etc.) -, a apresentação de uma autorização formal é inafastável. Esta autorização pode se dar por duas vias: b.2.1) Por escritura pública: instrumento de maior formalidade, lavrado por tabelião de notas, que confere ao ato a máxima segurança jurídica; ou b.2.2) Por documento particular, devidamente assinado e com firma reconhecida: é a modalidade mais comum, que utiliza formulários padrão1. O ponto não negociável aqui é a exigência do reconhecimento de firma em cartório. Este ato não é mera burocracia; é o procedimento pelo qual o tabelião, dotado de fé pública, atesta a autenticidade da assinatura do genitor, conferindo validade e segurança ao consentimento. b.3) Facilitação por autorização prévia no passaporte: em uma medida de desburocratização inteligente, a lei valida a autorização para viagem ao exterior, previamente inscrita no passaporte da criança ou do adolescente, também para fins de viagem nacional. A lógica é simples: se os pais já consentiram formalmente com o ato mais complexo (viajar para o exterior desacompanhado), presume-se o consentimento para o ato menos complexo (viajar dentro do Brasil). 2.2. Regras gerais para a autorização de viagem internacional A saída de uma criança ou adolescente do território nacional aciona um nível de rigor e controle significativamente mais elevado. De fato, "quis o legislador que, tratando-se de viagem de criança ou adolescente ao exterior, houvesse maior controle da situação por parte da Justiça da Infância e da Juventude" (Barros, 2018, p. 542). A razão para tal zelo é clara: uma vez que a criança ou o adolescente cruza a fronteira nacional, ele sai da esfera de proteção imediata das autoridades e da jurisdição brasileiras, tornando-se mais vulnerável e dificultando imensamente a atuação do Estado em caso de problemas. É nesse contexto que o Brasil, como signatário da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças de 1980, adota medidas preventivas rigorosas. O objetivo da Convenção é garantir o retorno imediato de crianças ou adolescentes ilicitamente transferidas ou retidas em qualquer outro Estado contratante. As regras brasileiras para autorização de viagem funcionam como a primeira e mais importante linha de defesa para prevenir que um sequestro internacional ocorra, pois remediar a situação a posteriori é um processo judicial e diplomático complexo, demorado e traumático para a criança e para o genitor privado de sua companhia. As regras para viagem de crianças e de adolescentes (ou seja: pessoas menores que ainda não tenham 18 anos completos) ao exterior estão previstas nos arts. 84 e 85 do ECA e na resolução 131/2011 do CNJ De um modo geral, as regras se estruturam da seguinte maneira: a) A regra do consentimento unânime: o princípio fundamental é que nenhuma pessoa menor de 18 anos pode deixar o Brasil sem o consentimento de ambos os genitores ou responsáveis legais. Este consentimento pode ser manifestado de duas formas: a.1) Presencialmente: viajando todos juntos (vale dizer: a criança ou adolescente viaja com todos os seus genitores: pai e mãe; pai e pai; mãe e mãe; etc.); ou a.2) Formalmente: se a criança ou adolescente for viajar com apenas um dos genitores ou com um terceiro, o genitor ausente deve autorizar expressamente a viagem por meio de um documento de autorização de viagem. Este documento deve seguir um formulário padrão2, ser assinado pelo genitor que não acompanhará na viagem e é imprescindível que tenha a firma reconhecida em cartório. A exigência é absoluta. O documento deve ser apresentado em duas vias no momento do embarque, pois uma delas ficará retida pela Polícia Federal como instrumento que prova o consentimento e para fins de controle de fronteira. Na consulta CNJ 0000214-20.2020.2.00.0000 (aqui), o CNJ firmou o entendimento de que um adolescente menor de 16 anos, sendo absolutamente incapaz, não pode se responsabilizar legalmente pela viagem de seu filho menor. A autorização de viagem deve ser preenchida e assinada pelo representante legal do adolescente-genitor. b) Exceções e alternativas seguras: excepcionalmente, não será necessária a autorização de ambos os genitores da criança ou adolescente nas seguintes situações: b.1) Quando houver autorização no passaporte: assim como na viagem nacional, a autorização expressa no passaporte para viajar desacompanhado ou com apenas um dos genitores supre a necessidade de qualquer outro documento. b.2) Nas hipóteses em que se faz necessária a autorização Judicial: em situações de conflito e divergência, onde um dos genitores se recusa a autorizar a viagem de forma injustificada, ou quando um dos genitores está desaparecido ou impossibilitado de assinar, a solução é recorrer ao Poder Judiciário. Nesses casos, um(a) juiz(a), após analisar o caso concreto e sempre visando o melhor interesse da criança/adolescente, poderá suprir o consentimento parental por meio de um alvará judicial. b.3) Cenário de alta vigilância: a lei prevê um controle ainda mais estrito quando a criança ou adolescente brasileiro viaja na companhia de um estrangeiro residente no exterior, exigindo, neste caso, autorização judicial expressa, como forma de prevenir o tráfico internacional de pessoas. Diz o art. 85 do ECA: "sem prévia e expressa autorização judicial, nenhuma criança ou adolescente nascido em território nacional poderá sair do País em companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior". 2.3. AEV - Autorização Eletrônica de Viagem Demonstrando estar atento à evolução tecnológica, mas sem abrir mão da segurança, o CNJ instituiu, por meio do provimento 103/20, a AEV - Autorização Eletrônica de Viagem. Trata-se de uma alternativa digital ao documento físico, que preserva a camada essencial de segurança: a intervenção notarial. Diz o provimento 103/20 do CNJ: Art. 1º Fica instituída a AEV, nacional e internacional, de crianças e adolescentes até 16 anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais, a ser emitida, exclusivamente, por intermédio do Sistema de Atos Notariais Eletrônicos - e-Notariado, acessível por aqui. Art. 2º A Autorização Eletrônica de Viagem obedecerá a todas as formalidades exigidas para a prática do ato notarial eletrônico previstas no provimento 100/20 da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como na resolução CNJ 131, de 26/5/11, e na resolução CNJ 295, de 13/9/19. Art. 4º Os pais ou responsáveis, nas hipóteses em que não seja necessária a autorização judicial, poderão autorizar a viagem da criança e do adolescente por instrumento particular eletrônico, com firma reconhecida por autenticidade por um tabelião de notas, nos termos do art. 8º da resolução CNJ 131, de 26/5/11, e do art. 2º da resolução CNJ 295, de 13/9/19. Art. 6º Para a assinatura da Autorização Eletrônica de Viagem é imprescindível a realização de videoconferência notarial para confirmação da identidade e da autoria daquele que assina, a utilização da assinatura digital notarizada pelas partes e a assinatura do Tabelião de Notas com o uso do certificado digital, segundo a ICP - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira. A AEV representa a ponte inteligente entre a segurança da tradição e a conveniência da modernidade. Instituída pelo CNJ. Com efeito, não se trata de uma forma de flexibilizar as regras, mas sim de digitalizar o procedimento de autorização física, mantendo intacta sua principal camada de segurança: a intervenção qualificada do tabelião de notas. Seu propósito é oferecer aos pais uma alternativa ágil e remota, sem qualquer sacrifício da proteção jurídica da criança ou adolescente. A AEV, "firmada perante o Tabelião pelos pais ou responsáveis, tem o mesmo valor do instrumento particular emitido de forma física (resolução 295/19) e poderá ser apresentada à Polícia Federal e às empresas de transporte rodoviário, marítimo e aeroportuário" (Santos, 2021, p. 510). Aliás, a sua emissão é facultativa, permanecendo válidas as autorizações de viagens emitidas em meio físico (art. 3º do provimento 103/20 do CNJ). Os pilares que garantem a robustez e a confiabilidade da AEV são: a) Plataforma oficial e regulada (e-Notariado): a emissão ocorre exclusivamente através do e-Notariado, o sistema oficial dos cartórios brasileiros. Isso garante que o processo se dê em um ambiente digital seguro, controlado e padronizado, longe de plataformas comerciais sem a mesma chancela de fé pública; b) A Videoconferência notarial: este é o elemento essencial que distingue a AEV de uma simples assinatura digital. A videoconferência é o equivalente digital da ida ao cartório. Nela, o tabelião realiza uma verificação ativa: ele não apenas confirma a identidade dos pais (comparando documentos e biometria facial), mas também avalia sua capacidade civil e, fundamentalmente, afere se o consentimento está sendo dado de forma livre, espontânea e consciente, sem indícios de coação ou dúvida. É a autenticação não só da identidade, mas da vontade; c) Assinaturas de máxima segurança (padrão ICP-Brasil): tanto os pais quanto o tabelião assinam a AEV utilizando certificados digitais do padrão ICP-Brasil (ou notarizados, que seguem a mesma raiz de confiança). Isso cria um documento com presunção legal de veracidade, gerando uma trilha de auditoria eletrônica inviolável; e d) Verificação instantânea e à prova de fraude (QR Code): ao final, a AEV gera um documento digital com uma chave de acesso e um QR Code. Este código permite que companhias aéreas, agentes de imigração e autoridades policiais verifiquem a autenticidade da autorização em tempo real, simplesmente apontando a câmera de um celular. Isso elimina o risco de falsificações, rasuras ou fraudes, comuns em documentos de papel. Em suma, a AEV é a resposta proativa e bem arquitetada do CNJ à era digital, demonstrando que é perfeitamente possível modernizar procedimentos sem precarizar garantias fundamentais. 3. O Governo Digital e as assinaturas eletrônicas A busca por um serviço público mais eficiente e menos burocrático é uma demanda social constante, intensificada pela aceleração da transformação digital durante e após a pandemia de COVID-19. Nesse contexto, a lei 14.129/21 (lei do governo digital) estabeleceu um marco para a digitalização de serviços, determinando que documentos em formato digital e assinaturas eletrônicas devem ser aceitos por órgãos públicos, pondo fim a recusas injustificadas. Essa evolução normativa foi alicerçada pela legislação sobre assinaturas eletrônicas, notadamente a medida provisória 2.200-2/2001, que instituiu a ICP-Brasil - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, e a lei 14.063/20, que classificou as assinaturas em três níveis de segurança. De acordo com o art. 4º da citada lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em: a) Assinatura eletrônica simples: é a mais básica, como um login e senha ou um aceite em um formulário online. Serve para transações de baixo risco, onde a identificação do signatário é suficiente; b) Assinatura eletrônica avançada: oferece um nível de segurança maior. Utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil, como os das contas nível prata e ouro da plataforma Gov.br. Garante a autoria e a integridade do documento, sendo aceita para um número crescente de serviços públicos; e c) Assinatura eletrônica qualificada: é o padrão-ouro de segurança. Utiliza um certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil. Possui presunção legal de veracidade e equivale, para todos os fins, a uma assinatura manuscrita com firma reconhecida. Ocorre que a validade jurídica de uma assinatura não implica sua suficiência para todos os atos. Há situações que, pela sua sensibilidade e pelos bens jurídicos tutelados, exigem camadas adicionais de segurança. A discussão sobre qual nível de assinatura é necessário para a conferir eficácia processual à procuração juntada em processos judiciais, por exemplo, gerou intenso debate. A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (TJ/SP), no processo 2021/100891, inicialmente chegou a restringir a aceitação à assinatura qualificada (ICP-Brasil) (aqui). Entendeu-se que uma procuração com assinatura eletrônica simples ou avançada teria validade entre advogado e cliente (inter partes), mas não poderia ser admitida no processo judicial - admitia-se apenas a assinatura qualificada. Posteriormente, o entendimento foi revisto (parecer 229/24-J) e passou-se a admitir também a assinatura avançada, ressalvando, contudo, a prerrogativa da autoridade judiciária, destinatária da prova, de exigir uma forma mais segura caso as circunstâncias do caso concreto levantassem dúvidas sobre a autenticidade do mandato. Este exemplo demonstra que a lei geral de assinaturas eletrônica (lei 14.063/20) deve ser interpretada em harmonia com as necessidades específicas de cada ato. 4. A inadmissibilidade das assinaturas eletrônicas para as autorizações de viagens de crianças e adolescentes desacompanhadas O cerne do debate analisado pelo CNJ residiu no aparente conflito entre dois movimentos legítimos e desejáveis: a busca por um governo digital eficiente, simbolizado pela ampla aceitação de assinaturas como a da plataforma Gov.br, e a salvaguarda e proteção das crianças e dos adolescentes, pessoas vulneráveis. Nessa toada, a questão analisada não foi se a assinatura eletrônica avançada era válida, mas se seu nível de segurança era realmente adequado para um dos atos jurídicos mais sensíveis e de maior risco do nosso ordenamento. A decisão do CNJ, ao vedar o uso das assinaturas eletrônicas nesse contexto específico, foi uma demonstração de maturidade institucional e de correta aplicação dos princípios jurídicos. A própria lei 14.063/20, ao estabelecer um gradiente de segurança para as assinaturas eletrônicas (simples, avançada e qualificada), reconhece implicitamente que nem todos os atos digitais são iguais. Cada tipo de assinatura corresponde a um nível de confiança, que deve ser proporcional ao risco da transação. Consultar uma situação fiscal ou protocolar um requerimento administrativo são atos de baixo risco, para os quais uma assinatura avançada é plenamente suficiente. Contudo, autorizar que uma criança saia do alcance de seus pais ou responsáveis e da jurisdição nacional é um ato de risco extremo. Exigir, para este ato, o nível máximo de segurança não é excesso de formalismo, mas uma aplicação lógica e prudente da própria lei. Os fundamentos para essa inadmissibilidade, adotados pelo CNJ, são multifacetados e se interligam de forma coesa: a) O princípio da proteção integral como mandamento de otimização: o art. 227 da Constituição não é uma mera carta de intenções; é um mandamento que exige do Estado a otimização dos meios de proteção. Diante de duas alternativas - uma assinatura eletrônica de autoatendimento (Gov.br) e uma assinatura que passa pelo crivo de um profissional com fé pública (AEV ou física reconhecida) -, o Estado tem o dever de escolher aquela que melhor e mais eficazmente protege a criança ou adolescente. A intervenção de um terceiro qualificado, capaz de avaliar a voluntariedade do ato, é objetivamente um meio mais seguro. A escolha, portanto, não é discricionária; é constitucionalmente vinculada à opção mais protetiva. b) O microssistema tutelar e a prevalência da norma específica: o Estatuto da Criança e do Adolescente e as resoluções do CNJ que tratam de viagens formam um microssistema jurídico tutelar. Foram normas pensadas e desenhadas com uma única finalidade: proteger a criança e o adolescente de vulnerabilidades específicas. Uma lei geral sobre assinaturas eletrônicas, cujo escopo é a eficiência administrativa, não pode ser interpretada como uma revogação tácita dessas salvaguardas especiais. O silêncio da lei geral sobre essa hipótese particular não abre uma brecha para a simplificação; ao contrário, reforça a necessidade de se ater à norma especial, que tratou do tema com a profundidade que ele exige. c) A distinção crucial: Autenticação de identidade vs. autenticação da vontade: este é o ponto técnico mais relevante. Uma assinatura eletrônica avançada, como a do Gov.br, é excelente para autenticar a identidade do signatário. O sistema confirma, com alto grau de certeza, que a pessoa que detém aquelas credenciais é quem está assinando o documento. O ato notarial, por sua vez, vai além: ele autentica a identidade e a vontade. O tabelião, na videoconferência da AEV ou no ato presencial, tem o dever funcional de ser um "filtro de consentimento". Ele deve aferir a capacidade da pessoa, entender o ato que ela está praticando e perceber se há qualquer indício de coação, erro ou fraude que vicie a sua vontade. Essa verificação da qualidade do consentimento é uma camada de segurança que sistemas automatizados simplesmente não oferecem e que é indispensável para um ato de consequências tão drásticas. d) A AEV como alternativa já existente e adequada: a recusa em aceitar assinaturas eletrônicas genéricas não decorre de uma visão refratária à tecnologia, mas de uma preferência pela tecnologia adequada. Na verdade, o CNJ, ao criar a AEV, não esperou o surgimento de um problema; ele se antecipou, desenhando uma solução digital que espelha a segurança do mundo físico. Ao fazê-lo, estabeleceu o padrão de segurança para este ato. Rejeitar uma alternativa com um gradiente de segurança inferior não é, portanto, negar a inovação, mas sim reafirmar o padrão de excelência e segurança já estabelecido pelo próprio CNJ. Conclui-se, assim, que a decisão tomada pelo CNJ não é uma escolha entre papel e pixel, mas entre diferentes ecossistemas de confiança digital. Para o ato de autorizar a viagem de uma criança ou adolescente, o ordenamento jurídico brasileiro exige um ecossistema de confiança máxima, que só é alcançado com a intervenção personalíssima, ainda que remota, de um agente dotado de fé pública. 5. Conclusão A deliberação do CNJ na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000 é um marco de sensatez e de compromisso com a doutrina da proteção integral, inaugurada com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, e, no Brasil, com a lei 8.069/1990 (ECA). Ao vedar o uso de assinaturas eletrônicas genéricas para autorizações de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados, o CNJ não nega o progresso, mas o qualifica, subordinando a conveniência tecnológica ao imperativo constitucional de proteção absoluta e prioritária do público infantojuvenil. O CNJ bem demonstrou que a exigência de reconhecimento de firma, seja no tradicional documento físico ou na moderna AEV, não é um formalismo vazio. A bem dizer, trata-se de uma barreira de segurança indispensável, um ato solene que, por meio da fé pública do tabelião de notas, confere autenticidade, certeza e, sobretudo, verifica a voluntariedade de um consentimento cujas consequências são de extrema gravidade. A decisão reforça a aplicação do princípio da especialidade, afirmando que as normas de proteção do ECA e do CNJ prevalecem sobre leis gerais de procedimento administrativo digital. Mais do que isso, orienta a sociedade e os operadores do direito, indicando que a solução digital correta e segura (a AEV) já está disponível, provando que é plenamente possível aliar modernidade e proteção. Em última análise, o CNJ agiu como o guardião que dele se espera, garantindo que, na ânsia por um futuro digital, não se criem vulnerabilidades que ponham em risco o bem mais precioso de uma nação: suas crianças e adolescentes, cuja segurança é inegociável. ________ 1 Diversos modelos de formulários para viagem nacional são facilmente encontrados na internet. No site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estão disponíveis aqui e aqui. 2 O formulário padrão está disponibilizado no site do Conselho Nacional de Justiça, acessível aqui. ________ Referências BARROS, Bruno Mello Correa de. Artigo 84. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir (coords.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 13ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2018. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui. BRASIL. Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui. BRASIL. Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui. BRASIL. Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 103, de 4 de junho de 2020. Dispõe sobre a Autorização Eletrônica de Viagem (AEV) nacional e internacional de crianças e adolescentes até 16 (dezesseis) anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais. Brasília: CNJ, 2020. Disponível aqui. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 131, de 26 de maio de 2011. Dispõe sobre a concessão de autorização de viagem para o exterior de crianças e adolescentes brasileiros. Brasília: CNJ, 2011. Disponível aqui. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 295, de 13 de setembro de 2019. Dispõe sobre a autorização de viagem nacional para crianças e adolescentes. Brasília: CNJ, 2019. Disponível aqui. PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Curso de direito da criança e do adolescente. São Paulo: Cortez, 2024. SANTOS, Ângela Maria Silveira dos. Prevenção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
Este ensaio investiga a complexa questão da competência jurisdicional para a apreciação e o deferimento de medidas protetivas de urgência, previstas na lei 14.344/22, conhecida como lei Henry Borel. Partindo da consolidação de um microssistema de proteção de pessoas vulneráveis no ordenamento jurídico brasileiro, inaugurado pela lei 11.340/06 (lei Maria da Penha), analisaremos as convergências e, sobretudo, as divergências entre os sistemas de proteção da mulher e da criança e do adolescente vítimas de violência doméstica e familiar. Enquanto a competência na lei Maria da Penha se consolidou na esfera criminal, a multiplicidade de juízos que tratam dos direitos infantojuvenis - varas da infância e da juventude, de família, cíveis e criminais - gera notória controvérsia no âmbito da lei Henry Borel. Afinal, nos casos de violência contra crianças e adolescentes no contexto doméstico e familiar, de quem é a competência para deferir as MPU - medidas protetivas de urgência previstas na lei Henry Borel? 1. Introdução A violência doméstica e familiar, fenômeno social complexo, endêmico e multifacetado, representa uma das mais graves violações de direitos humanos na sociedade contemporânea (art. 3º da lei 14.344/22). Historicamente invisibilizada e relegada à esfera privada do lar, essa forma de violência vitimiza, de modo desproporcional, sujeitos em condição de especial vulnerabilidade, como mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. O ordenamento jurídico brasileiro, por muito tempo, permaneceu inerte e omisso, oferecendo respostas fragmentárias e ineficazes que não apenas falhavam em proteger as vítimas, mas também perpetuavam a impunidade dos agressores. Este cenário de negligência estatal começou a ser revertido, de forma paradigmática, com a promulgação da lei 11.340, de 7/8/06, a LMP - Lei Maria da Penha. Fruto de intensa mobilização social, a lei inaugurou um novo capítulo no combate à violência de gênero no Brasil. Dentre suas inovações, destaca-se a previsão das MPU - medidas protetivas de urgência, instrumentos de natureza cível e de tutela inibitória, concebidos para cessar ou prevenir a violência, garantindo a segurança e a integridade da mulher. Contudo, se a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar encontrou um robusto arcabouço legal, a mesma sorte não coube, de imediato, às crianças e aos adolescentes. Apesar de o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) consagrar a doutrina da proteção integral, a violência doméstica e familiar contra o público infantojuvenil carecia de um tratamento legislativo específico e sistêmico, análogo ao conferido pela lei Maria da Penha. A violência contra crianças e adolescentes, embora compartilhe com a violência de gênero o mesmo espaço físico - o lar -, possui dinâmicas distintas, enraizadas não no machismo estrutural, mas em uma cultura adultocêntrica que enxerga a criança como um ser subalterno, passível de correção e disciplina pela força. Essa lacuna histórica foi finalmente colmatada com a edição da lei 14.344, de 24/5/22, mais conhecida como LHB - Lei Henry Borel, que, em notório espelhamento à sua predecessora, estabeleceu mecanismos de prevenção e enfrentamento à violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, prevendo, igualmente, um rol de medidas protetivas de urgência. A aparente simplicidade dessa simetria legislativa, contudo, esconde um profundo e complexo desafio de ordem processual: a definição do juízo competente para apreciar e deferir tais medidas. Se na lei Maria da Penha a competência se consolidou em torno dos juizados e das VVD - Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de natureza criminal, a questão se torna um verdadeiro labirinto no âmbito da lei Henry Borel. Isso porque os direitos e as violações de direitos de crianças e adolescentes perpassam múltiplas esferas de jurisdição: as varas da infância e da juventude, com sua competência protetiva e de execução de medidas socioeducativas; as varas de família, que decidem sobre questões como guarda, alimentos, visitas e alienação parental; e as varas criminais, responsáveis pela apuração dos delitos praticados contra crianças e adolescentes. Diante desse quadro, emerge a tormentosa questão: afinal, quem é o juiz competente para deferir as medidas protetivas da lei Henry Borel? 2. O microssistema de proteção de pessoas vulneráveis: Da lei Maria da Penha à lei Henry Borel O ordenamento jurídico brasileiro tem evoluído, nas últimas décadas, para a construção de um verdadeiro microssistema jurídico de proteção de pessoas vulneráveis. Trata-se de um conjunto articulado de normas materiais e processuais que, reconhecendo as assimetrias de poder e as vulnerabilidades específicas de determinados grupos sociais, busca oferecer uma tutela jurisdicional mais célere, efetiva e especializada. Conforme assinalou a ministra Laurita Vaz, do STJ, no julgamento do conflito de competência 190.666/MG, esse microssistema visa facilitar o acesso da vítima vulnerável "a uma rápida prestação jurisdicional, que é o principal objetivo perseguido pelas normas processuais especiais" (aqui). A pedra angular desse microssistema é, sem dúvida, a lei 11.340/06. Sua promulgação não foi um ato de voluntarismo legislativo, mas a resposta tardia do Estado brasileiro a uma vergonhosa inércia histórica. O caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de feminicídio por seu ex-marido e que viu seu agressor permanecer impune por quase duas décadas, foi levado ao conhecimento da CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em seu relatório 54/01, a CIDH responsabilizou o Brasil por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando, entre outras medidas, a adoção de legislação adequada para coibir tal prática. Para além de definir as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), a lei Maria da Penha previu a criação de estruturas especializadas, como os juizados ou VVD - Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e as DEAM - Delegacias de Atendimento à Mulher. Sua maior inovação, contudo, reside nas medidas protetivas de urgência (arts. 22, 23 e 24). Tais medidas, como o afastamento do agressor do lar ou a proibição de contato, não possuem natureza penal, mas sim de tutela cível inibitória de urgência. Com efeito, "a medida protetiva de urgência deve ser etiquetada como tutela cível de urgência, derivada do direito fundamental de proteção contra a violência, portanto guiada pelo princípio da precaução" (Cunha; Ávila, 2022, p. 131-132). As MPUs visam, primordialmente, proteger a vida e a integridade da vítima, independentemente da instauração de um processo-crime, embora o seu descumprimento, a partir da lei 13.641/18, caracterize o crime previsto no art. 24-A. Por mais de uma década, esse robusto aparato protetivo foi direcionado exclusivamente às mulheres. A violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, por sua vez, continuava a ser tratada de forma difusa e, por vezes, ineficaz. A sociedade e o sistema de justiça pareciam tardar a reconhecer que o mesmo ambiente doméstico que oprime pela misoginia também pode oprimir pelo menorismo. Essa lacuna começou a ser preenchida com a lei 13.431/17, que estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, criando mecanismos para prevenir e coibir a violência institucional, a exemplo de procedimentos para a oitiva protegida, como a escuta especializada e o depoimento especial. Foi um passo fundamental, mas a definitiva superação da omissão legislativa no tratamento deficiente da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes só veio com a promulgação da lei 14.344/22 (lei Henry Borel). Impulsionada pela comoção nacional decorrente da trágica morte do menino Henry Borel Medeiros, a lei de 2022 espelhou-se deliberadamente na estrutura da lei Maria da Penha, estabelecendo um regime de proteção específico para crianças e adolescentes. A nova lei "aproveita" muitos dos avanços já consolidados no âmbito da proteção à mulher, como se observa na previsão de um rol de medidas protetivas de urgência (art. 21) e na tipificação do crime de descumprimento de tais medidas (art. 25). Assim, as leis Maria da Penha e Henry Borel, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), formam um coeso microssistema de proteção. Elas dialogam entre si, aplicando-se a "teoria dos vasos comunicantes", onde os princípios e as interpretações consolidadas em um diploma podem e devem ser utilizados para iluminar e integrar os demais (Ángeles, 2015), sempre com o fito de maximizar a proteção do vulnerável. É sob essa ótica de diálogo das fontes que a questão da competência na lei Henry Borel deve ser analisada. 3. Naturezas distintas, medidas semelhantes: A violência de gênero e a violência adultocêntrica Para compreender a questão da competência, é imperativo analisar primeiro a natureza da violência que cada lei visa combater. Embora ambas tratem da violência doméstica e familiar, as suas causas e as dinâmicas subjacentes são distintas, o que influencia a resposta do sistema de justiça. A violência contra a mulher, no contexto da lei Maria da Penha, é uma violência de gênero. Conforme o art. 5º da lei, ela é baseada "no gênero", manifestando-se como uma expressão da desigualdade histórica e da relação de dominação e poder do homem sobre a mulher. Suas raízes estão no machismo, no sexismo e na misoginia, que permeiam a estrutura social e se manifestam de forma visceral no ambiente privado. O combate a essa violência, portanto, exige uma perspectiva de gênero, que reconheça essas assimetrias e busque o empoderamento da mulher. Por outro lado, a violência contra a criança e o adolescente, objeto da lei Henry Borel, tem sua origem no que a doutrina contemporânea denomina de adultocentrismo. Trata-se de uma visão de mundo que coloca o adulto como centro, medida e norma, e a criança como um ser periférico, incompleto, imperfeito, incapaz e subalterno (Quapper, 2012). Nessa lógica, a criança não é vista como um sujeito de direitos, mas como um objeto de propriedade e de poder dos adultos, especialmente dos pais. A violência, nesse contexto, muitas vezes é justificada como um método legítimo, difundido e socialmente aceito de "educação", "disciplina" ou "correção". Aliás, a lei 13.010/14, mais conhecida como "lei do menino Bernardo" ou "lei da palmada", que alterou o ECA para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, foi um marco no combate a essa cultura. A lei Henry Borel, portanto, não se presta ao enfrentamento da violência de gênero, mas sim da violência motivada pelo abuso do poder familiar e da responsabilidade parental, em uma cultura de raiz adultocêntrica (Oliveira, 2022). Evidentemente, porém, que, em se tratando de vítima criança ou adolescente do sexo feminino, é perfeitamente possível a aplicação conjunta e integrada da lei Maria da Penha (proteção contra a violência de gênero) e da lei Henry Borel (proteção contra a violência adultocêntrica). Apesar dessas naturezas distintas, as ferramentas protetivas previstas nas duas leis são notavelmente semelhantes. O rol de medidas protetivas de urgência do art. 21 da lei Henry Borel é quase uma réplica do previsto nos arts. 22 a 24 da lei Maria da Penha. A bem dizer, de um modo geral, em boa medida, a lei 14.344/22 é quase um "Ctrl+C Ctrl+V" da lei 11.340/06, e essa notória semelhança é especialmente observada na previsão das medidas protetivas de urgência.  Ambas preveem o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação e contato, a restrição de visitas (no caso da LHB), a prestação de alimentos provisionais, entre outras. Essa semelhança instrumental é proposital: as medidas visam, em ambos os casos, o mesmo objetivo fático imediato, qual seja, interromper o ciclo de violência e garantir a segurança da vítima no curto prazo. Inclusive, destaca Cabette (2022) que o rol de medidas protetivas da lei Henry Borel não é taxativo, sendo aplicáveis as medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha (caso não replicadas na lei 14.344/22) independentemente do sexo da vítima. Segundo o autor, a LHB estabelece "uma integração do sistema de medidas protetivas e cautelares em prol da tutela da integridade física e psíquica e da vida das crianças e adolescentes" (Cabette, 2022, p. 22). Da mesma forma, o crime de descumprimento de medida protetiva é tipificado de forma quase idêntica no art. 25 da LHB e no art. 24-A da LMP. Essa paridade legislativa reforça a ideia de que o tratamento processual e as consequências do descumprimento deveriam ser, em princípio, análogos. Mas as diferenças existentes entre as duas violências - contra as mulheres e contra as crianças e os adolescentes - e os seus reflexos no modo de funcionamento das instituições públicas, notadamente do Poder Judiciário, repercute decisivamente na forma como um pedido de MPU para proteção emergencial de uma criança ou adolescente chega ao sistema de Justiça (a porta de entrada), no procedimento adotado para apreciá-lo e, inclusive, na definição do juiz competente para decidir sobre o pleito. 4. O paradigma da competência na lei Maria da Penha Quanto à lei Maria da Penha, a definição da competência para apreciar e decidir sobre as medidas protetivas de urgência, após alguns debates iniciais, pacificou-se de forma relativamente tranquila. O art. 14 da lei determinou a criação, pelos Estados e pelo Distrito Federal, dos juizados e das varas de violência doméstica e familiar contra a mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Apesar da menção à "competência cível", a prática e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que a atuação principal desses juizados é na esfera criminal. Nesse sentido, por exemplo, as questões cíveis (como divórcio, partilha, etc.) são, em regra, remetidas ao juízo de família competente, cabendo à VVD, no máximo, a decisão sobre medidas emergenciais e provisórias. Portanto, a regra de competência para as MPUs da lei Maria da Penha é clara: nas comarcas onde houver Juizado ou VVD - Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a competência é desta, com exclusividade; nas comarcas onde não houver VVD, a competência é da vara criminal comum; onde houver apenas juízo com competência cumulativa, será este o competente para decidir sobre o pedido (havendo mais de um, a competência é decidida por distribuição), no exercício da sua parcela de jurisdição criminal. Bem postas as coisas, essa clareza decorre do fato de que o sistema de justiça não possuía, antes da LMP, uma vara especializada que tratasse da "condição de mulher" de forma transversal. Foi a lei criou a sua própria estrutura. O desafio da lei Henry Borel é justamente o oposto: ela chega em um cenário onde já existem múltiplas varas que, sob diferentes óticas, lidam com a "condição de criança e adolescente". 5. O labirinto da competência na lei Henry Borel: Desatando os nós A aparente ausência de um dispositivo na lei Henry Borel que, à semelhança do art. 14 da lei Maria da Penha, defina um juízo único e expresso para as medidas protetivas, lança os operadores do direito em um aparente labirinto. A solução, contudo, não reside na busca por uma competência fixa e exclusiva, como se consolidou na LMP, mas no reconhecimento de uma competência fluida, móvel e compartilhada, que se amolda à natureza da violência e ao contexto fático em que o pedido de proteção é formulado. Diferentemente da tese que advoga por uma competência invariavelmente criminal, uma análise mais atenta do microssistema de proteção infantojuvenil revela que a jurisdição competente para as MPUs da lei Henry Borel dependerá, fundamentalmente, da existência ou não de um procedimento ou processo criminal instaurado e em curso em razão dos fatos. 5.1. A competência cível e especializada na ausência de persecução penal Um erro de premissa comum é associar toda violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes a um tipo penal. Nem toda conduta violenta, embora grave e apta a justificar a intervenção protetiva do Estado, é tipificada como crime na legislação. O exemplo mais emblemático é a alienação parental, definida expressamente como forma de violência psicológica pelo art. 4º, II, "b", da lei 13.431/17, mas que não constitui ilícito penal, ante o veto presidencial ao art. 10 da lei 12.318/10. Da mesma forma, o bullying, embora hoje criminalizado pela lei 14.811/24, por muito tempo configurou apenas uma forma de violência psicológica (art. 4º, II, "a", da lei 13.431/17) que demandava proteção sem, contudo, ensejar persecução criminal. Tendo isso em consideração, "certo é que a lei Henry Borel, ao definir a violência doméstica contra crianças e adolescentes, contempla algumas espécies de violações que não atingem a categoria de bem jurídico tutelado pelo direito penal, como muitas situações de violência psicológica sem potencial para a configuração, por exemplo, do crime de tortura, ou a retenção de objetos pessoais" (Bianchini et al., 2022, p. 35). Nesses casos, desprovidos de repercussão penal, afigura-se ilógico e contraproducente remeter o pedido de proteção a um juízo criminal. A competência, aqui, será definida pela natureza da questão subjacente. Se os atos de alienação parental emergem no curso de uma ação de guarda, o juízo da vara de família é, inegavelmente, o competente para analisar e deferir as medidas protetivas cabíveis (art. 21, IV e V, da lei 14.344/22, por exemplo). Por outro lado, se a violência é constatada no bojo de um processo de destituição do poder familiar, a competência é do juízo da vara da infância e da juventude. A própria lei Henry Borel sinaliza essa possibilidade. O § 1º do seu art. 25, ao tipificar o crime de descumprimento de MPU, é categórico: "A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida". Como se nota, o legislador previu que um magistrado com competência puramente cível - como o de família ou o da infância e juventude em sua seara protetiva - pode, e deve, deferir as medidas protetivas. Nesse sentido, Cunha e Ávila (2022) destacam que as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da configuração criminal do ato de violência, independem da existência de processo criminal em curso e não se limitam à jurisdição criminal, podendo ser concedidas por juiz com competência cível. Portanto, as "portas de entrada" para os pedidos de proteção da lei Henry Borel são múltiplas. Enquanto na lei Maria da Penha o caminho mais comum é a delegacia de polícia e, em seguida, o juizado de violência doméstica, na LHB o pedido pode surgir em contextos diversos: Vara da infância e da juventude: Quando a violência ocorre em instituições de acolhimento, no seio de família substituta, durante o estágio de convivência, ou, crucialmente, quando o autor da violência também é criança ou adolescente (enunciado 45 do FONAJUV, enunciado 40 do FONAVID e enunciado 5 da COPEVID). Nestes casos, a competência é da Justiça Infantojuvenil, por excelência. Vara de família: Em disputas de guarda, regulamentação de convivência ou em ações de alienação parental, o juiz de família, ao se deparar com a violência, é o competente para aplicar as MPUs. Vara do júri: Nos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados (v.g. homicídio e feminicídio), a competência para deferir as medidas protetivas e para o julgamento é do Tribunal do Júri (enunciado 31 do FONAVID e enunciado 28 da COPEVID). Juízo da custódia: Em caso de prisão em flagrante do agressor, o juiz da audiência de custódia possui competência para analisar e deferir as medidas protetivas de urgência, independentemente da competência para o processo (enunciado 38 do FONAVID). 5.2. A primazia (condicionada) do juízo criminal A competência do juízo criminal, portanto, não é a regra geral e absoluta, mas uma primazia condicionada: ela se estabelece quando a violência praticada contra a criança ou o adolescente ensejar providências na esfera penal, como a instauração de inquérito policial ou o oferecimento de denúncia. Neste cenário é que se aplica a lógica de especialização que inspira a lei Maria da Penha. Aqui, a bússola normativa do art. 23 da lei 13.431/17 torna-se fundamental. A interpretação sistêmica das leis de proteção impõe uma hierarquia de competência: Cenário ideal (vara especializada): Havendo na comarca uma VECA - Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente, a exemplo das três varas especializadas criadas na Capital de São Paulo, a competência será sua, com absoluta primazia; Cenário subsidiário (vara de violência doméstica): Inexistindo a VECA, a competência recai, preferencialmente, sobre o JVDF - Juizado ou Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme o parágrafo único do art. 23 da lei 13.431/17. O legislador, sabiamente, reconheceu a expertise dessas varas para lidar com a complexa dinâmica da violência intrafamiliar; e Cenário comum (vara criminal): Na ausência de ambas as varas especializadas, a competência será da vara criminal comum. 5.3. O poder-dever de decisão imediata e a cooperação entre juízos Independentemente da definição final da competência, um princípio se sobrepõe a qualquer formalismo: a urgência na proteção. Com base no art. 64, § 4º, do CPC, o primeiro magistrado a receber o pedido de medida protetiva - seja ele da Família, da Infância, Cível ou Criminal - tem o poder-dever de apreciar o pleito liminar. A proteção da criança não pode aguardar a resolução de um conflito de competência. A decisão proferida pelo juízo inicialmente acionado, ainda que incompetente, conservará seus efeitos até que o juízo competente a ratifique ou modifique. Nesse sentido, aliás, é o que prevê o enunciado 33 do FONAVID: "A juíza ou o juiz que receber requerimento de medidas cautelares e/ou protetivas poderá apreciá-las e deferi-as antes do encaminhamento ao juízo natural, cabendo a este último ratificar ou não o deferimento após a distribuição e recebimento". Desatar os nós do labirinto significa, antes de tudo, garantir que a criança saia dele em segurança. 6. Conclusão O advento da lei Henry Borel, ao consolidar o microssistema de proteção de pessoas vulneráveis, não estabeleceu um caminho único para a tutela jurisdicional, mas uma rede de proteção com múltiplas portas de entrada. A questão da competência para o deferimento de suas medidas protetivas, longe de ser um labirinto insolúvel, revela uma engenhosa e flexível arquitetura processual, que prioriza a proteção efetiva em detrimento de rigores formalistas. Em resposta à pergunta que intitula este ensaio, conclui-se que a competência para deferir as medidas protetivas de urgência da lei Henry Borel não é fixa, mas móvel e contextual, seguindo as seguintes diretrizes: Se a violência não configurar crime ou se, mesmo configurando, não houver sido iniciada a persecução penal, a competência é do juízo cível ou especializado que já detém a causa principal envolvendo a criança ou o adolescente (vara da infância e da juventude, vara de família, etc.). Estes juízos atuam na sua esfera de atribuições, aplicando as MPUs como instrumentos de tutela inibitória cível. Apenas quando a violência ensejar a instauração de procedimento ou ação penal é que a competência se deslocará, com primazia, para a esfera criminal, observando-se a seguinte ordem de preferência: a) VECA - Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente; b) subsidiariamente, a VVD - Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força do art. 23 da lei 13.431/17; e c) na ausência de ambos, a vara criminal comum, sem prejuízo das competências específicas do Tribunal do Júri e do Juízo da Custódia. Acima de qualquer debate, vige o poder-dever de proteção imediata: qualquer magistrado que receba o pedido de socorro deve decidi-lo liminarmente, garantindo a segurança da vítima antes de, se for o caso, remeter os autos ao juízo que entender competente. A efetivação da lei Henry Borel não depende da criação de uma nova e rígida estrutura, mas da compreensão e da correta aplicação desta lógica de competência compartilhada e cooperativa. Exige que cada juiz, em sua respectiva área de atuação, se reconheça como um guardião imediato dos direitos de crianças e adolescentes, pronto para acionar as ferramentas protetivas sempre que a violência bater à porta do Judiciário, qualquer que seja ela. _______________ 1 ÁNGELES, Jonatán Cruz. Incidência da teoria dos vasos comunicantes na regulação dos chamados "novos modelos de família" no Brasil: uma perspectiva europeia. Revista IBDFAM: Família e Sucessões, v. 11, Belo Horizonte, set./out. 2015, p. 165-180. 2 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia; TEIXEIRA, Tarcila Santos. Crimes contra Crianças e Adolescentes. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. 3 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários à Lei Henry Borel (Lei 14.344/22): temas relevantes. Leme-SP: Mizuno, 2022. 4 CUNHA, Rogério Sanches; ÁVILA, Thiago Pierobom de. Violência Doméstica e Familiar contra Crianças e Adolescentes - Lei Henry Borel: Comentários à Lei 14.344/22 - Artigo por Artigo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. 5 OLIVEIRA, Heitor Moreira de. O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra crianças, adolescentes e mulheres é serviço público essencial: comentários à Lei nº 14.022/2020. In: MARCOLLA, Fernanda Analú; RISTOW, Rogério; TRIDAPALLI, Kassia Grisa. Temas de direito criminal: reflexões sobre violência de gênero; v. 2. Porto Alegre: Paixão, 2022. Disponível aqui. 6 QUAPPER, Claudio Duarte. Sociedades Adultocéntricas: sobre sus orígenes y reproducción. Ultima Década, nº36, CIDPA Valparaíso, julio 2012, p. 99-125. Disponível aqui.
A violência é um fenômeno muito complexo que atinge crianças e adolescentes de qualquer classe social e em qualquer lugar e, não raramente, está relacionada a fatores culturais, sociais e socioeconômicos. Segundo a OMS (2022), violência é definida como qualquer uso de forca física ou do poder real ou ameaça, contra si ou outra pessoa, um grupo ou uma comunidade, que possa resultar ou que tenha a possibilidade de lesões, morte, dano psicológico deficiência de desenvolvimento ou privação. Os tipos de violências são diversos, mas a lei federal 13.431/171, conhecida como lei da Escuta Protegida, os definiu da seguinte forma: 1. Violência física - ação que impacte negativamente a integridade ou saude corporal ou cause sofrimento físico; 2. Violência Psicológica - Discriminação, ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulações, isolamento, xingamentos, ridicularização, indiferença, entre outros, que prejudicam seu desenvolvimento mental e emocional; 3. Violência Sexual - ação que force a criança ou adolescente a praticar ou presenciar ato sexual, de modo presencial ou virtual. A violência sexual inclui o abuso sexual, a exploração sexual comercial e o tráfico de pessoas; 4. Violência Institucional - ação praticada por funcionário público que prejudique o atendimento à criança ou adolescente vitima ou testemunha de violência; 5. Violência Patrimonial - retenção ou destruição de documentos pessoais, bens e recursos, incluindo os necessários para as necessidades básicas. Independente de qual o tipo e, sob qual circunstância, a violência impacta não somente a saúde física, psicológica e emocional da criança ou do adolescente, impacta significativamente seu desenvolvimento e suas relações interpessoais. Pode, resultar em lesões físicas, ist's - infecções sexualmente transmissíveis, ansiedade, depressão, ideação suicida ou mesmo a morte, além de tantas outras consequências negativas. Além disso, causa sérios impactos comportamentais, como aumento da agressividade, introspecção e comportamentos antissociais, abuso de substâncias etílicas e ilícitas, comportamentos sexuais de risco e práticas ilícitas. No Brasil, segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024)2, milhares de crianças e adolescentes, de todas as idades, são vítimas destas violências cotidianamente. O crime de Abandono de incapaz, previsto no art. 133, CP em 2023, chegou ao patamar de 11.215 casos em 2023 (considerando as crianças de 0 a 17 anos); Pornografia Infanto-juvenil, previsto nos art. 240, 241m 241-A e 241-B, cerca de 2790 casos, de 0 a 17 anos; Maus-tratos (art. 136, CP e art. 232, ECA) - 29.469 casos; Exploração sexual infantil (art. 218-B, CP e art. 244-A, ECA) - 1.255 casos; Lesão Corporal em contexto de violência doméstica (art. 129 §9º, CP) - 18.805 casos. No que diz respeito à violência sexual (estupro de vulnerável) foram 61.153 caos; as vítimas seguem um padrão: 88,2% são meninas, 52,2% negras, de no máximo 13 anos (61,6%) e, que foram estupradas por familiares ou conhecidos (84,7%) e dentro de suas casas (61,7%). Muito embora em menor número, 27 meninos e homens são vítimas de estupro todos os dias. Eles representam cerca de 12% dos casos e, mesmo assim, a violência sexual contra este publico é pouco reconhecida e discutida entre os homens. E aqui, vale suscitar que o abuso ocorre também por parte de mulheres ou uma pessoa próxima (de ambos os sexos). A maioria das vítimas, tem entre 3 e 13 anos e, 65% dos abusos ocorreram dentro de suas casas, o que se assemelha aos casos ocorridos contra meninas. Entre os anos de 2022 e 2023, houve um aumento de 7,5% nos casos de estupro de vulnerável, crime tipificado no art.217-A do CP. Numa perspectiva evolutiva, dos últimos anos (2011-2023), o número de casos saltou de 43.869 para 83.988. Suspeita-se que estes números sejam ainda maiores, dada a subnotificação deste crime, muitas vezes, motivado pela vergonha, culpa, descrença da vitima em relação à punição do abusador, pelo descrédito em relação a denúncia ou por ser desencorajada a lavrar o boletim de ocorrência, quando não, sentir-se intimidada a não fazê-lo pelo próprio abusador. Aqui, vale abrir um parêntese para informar que apenas 8,5% dos casos são denunciados. No caso dos meninos, 90% dos casos não são notificados. Isso expõe uma realidade brutal de nossa sociedade, onde crianças e adolescentes estão sendo expostas a estas violências em locais onde deveriam estar protegidas. Os números chegam a ser comparados às mortes violentas de crianças e adolescentes em países em guerra. Outras violências que tanto preocupam na atualidade, é a crescente nos casos de bullying - lei federal 13.185/15 e cyberbullying - lei federal 14.811/24, que são atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivos, praticados com a objetivo de intimidar ou agredir, em relações marcadas pelo desequilíbrio de poder tanto no ambiente físico quanto no digital. Em 2023, no Brasil, foram registrados um recorde de notificações destes crimes, cerca de 121 mil casos. Uma pesquisa do IBGE indicou que cerca de 10% dos estudantes já foram vitimas de cyberbullying. Não diferente destes dados, de acordo com o 2º Boletim Técnico Escola que protege3 - Dados sobre Bullying e Cyberbullying, mais de 2,9 mil crianças e adolescentes foram vitimas destes crimes no Brasil em 2024, e estes dados representam apenas aqueles que dada a gravidade, chegaram às autoridades policiais. Cyberbullying representa 15,7% dos registros, um total de 460 casos. Mas estima-se que este número seja ainda maior, pois assim como o crime de abuso sexual, há muitos casos não notificados. As vitimas, são em sua maioria, adolescentes de 12 a 15 anos. Um reflexo destas violências, é o crescimento no número de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos que se suicidaram. Entre os anos de 2013 e 2023, houve um aumento de 42,7% no número de suicídios. Em relação aos casos de abuso e exploração sexual em ambiente digital, a Safernet4 revelou que em 2023 foram recebidas mais de 71 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil e este número é 77% maior que o número de casos de 2022. De acordo com relatório das Nações Unidas, no mundo, 300 milhões de crianças foram afetadas pelo abuso e exploração sexual online. No ambiente virtual, as meninas em idade escolar, são as maiores vítimas, segundo a ONG Serenas5. 54% dos adolescentes no país já sofreram violência sexual na internet. E, para além desta violência, são vitima de crime de ódio, misoginia, o que causa ainda mais um clima de medo e insegurança. Estamos diante de uma nova realidade, em que apenas supervisionar não é capaz de coibir os crimes em ambiente digital, seja o crime de cyberbullying ou os crimes sexuais. Do mesmo modo, que em se tratando de abuso, não se pode endurecer a legislação com foco a punir ainda mais a vitima, como o que está sendo proposto no PL 1904/24. O Brasil é considerado um país com as melhores leis de cunho protecionista às crianças e aos adolescentes. Além destas, com enfoque ao perfil infanto-juvenil, outras foram sancionadas com fulcro a coibir os crimes citados ao longo deste texto, mas ainda assim, é notória a crescente destes nos últimos anos. Observa-se que, exceto os crimes de bullying, cyberbullying e crimes sexuais em ambiente virtual, os demais, em sua maioria são praticados por quem tem o dever primário de zelar, cuidar, educar e proteger as crianças e os adolescentes, ou seja, suas famílias. Desta feita, faz-se necessário, cumprir o mandamento constitucional do art. 227 e, passados quase 35 anos da concepção do Estatuto da Criança e do Adolescente, prevalecer o disposto no art. 5º, que garante a proteção integral à criança e ao adolescente, proibindo qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Mas principalmente, implementar as políticas públicas já existentes, fortalecer os atores do Sistema de Garantia de Direitos (Judiciário, Saúde, Educação, Assistência Social), capacitar os membros dos Conselhos Tutelares e  Conselhos de Direitos, para que deste modo, possam atuar de forma condizente às demandas que são a eles apresentadas, seguindo os fluxos operacionais contidos nos Planos já construídos. _______ 1 Lei 13.341, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Senado, 2017. Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Dados alarmantes veiculados diariamente nos grandes canais de comunicação nos mostram que a cada dia, mais e mais crianças e adolescentes, são colocadas sob a mira de ações violentas, tanto de quem as deveria proteger quanto de outros agentes. Não é de hoje que o aumento da violência assombra não somente os grandes centros urbanos, mas também regiões, antes consideradas seguras, levando famílias a tentar se proteger sob os muros de condomínios.  Muito embora a desigualdade social seja um dos grandes problemas em nossa sociedade, não podemos creditar somente a ela, a crescente na criminalidade e, por consequência, nas mortes violentas de crianças e adolescentes nas cinco regiões do país. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 (2024) mostram que houve cerca de 46.328 mortes violentas intencionais entre os anos 2022 e 2023. 13,8% de todas as mortes violentas intencionais ocorreram em função de intervenções policiais. Quando reportamos os dados, para mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes, temos que em 2022, foram 2.489 vítimas de 0 a 17 anos, ao passo que em 2023, houve uma leve queda, sendo o número de vítimas, cerca de 2.299 crianças e adolescentes.  Deste total, cerca de 346, foram mortes ocasionadas por intervenção policial. Estas vítimas, em sua maioria, são meninos, entre 12 e 17 anos, representando cerca de 16,6% do total de mortes violentas. A intervenção policial, segundo indicadores do Anuário, é a causa de cerca de uma a cada sete mortes violentas de adolescentes no país.  Não obstante, a desigualdade racial em nossa sociedade, evidência que tais mortes afetam desproporcionalmente crianças e adolescentes negros, representando cerca de 70,3% dos casos, número este que aumenta para 85,4% quando nos referimos apenas aos adolescentes, de 12 a 17 anos. Refletindo sobre o tema, principalmente pela letalidade advinda de agentes públicos de segurança, não podemos deixar de recordar que a Segurança Pública é dever do Estado e é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, conforme preceitua o art.144, da CF/88. Como bem pontua Santin, Manfré e Nascimento (2018), o direito à segurança está interligado ao princípio da dignidade humana e, por ser um direito inerente a todo cidadão, cabe ao Estado, prover pelo mesmo de forma eficaz, adequada e eficiente. Ocorre que, pelos dados acima descritos, é notório que o Poder Público acaba, por vezes, respondendo às insatisfações sociais em relação à criminalidade de maneira despreparada, sem nenhum planejamento estratégico capaz de produzir resultados positivos ao longo do tempo, atingindo aqueles a quem deveria proteger. Este ciclo de despreparo e a crescente na violência, que acontece cotidianamente no país (aqui, abra-se um parêntese e leia-se também, Estados e municípios) entre as forças de segurança pública e os agentes que violam as leis, reflete na sociedade como um todo, pois quanto mais a violência e a criminalidade aumentam, menor é a eficácia do Estado em assegurar aos seus cidadãos os direitos e garantias fundamentais trazidos em seu texto constitucional. É neste contexto, que recente estudo2 promovido pelo UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância e pelo FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que a não adesão da tropa ao uso dos dispositivos (câmeras corporais) tem contribuído não apenas para o aumento da letalidade policial, inclusive entre crianças e adolescentes, como também para maior exposição dos próprios agentes de segurança a situações de risco.  Entre os anos de 2022 e 2024, o número de vítimas fatais em intervenções policiais, em relação a crianças e adolescentes, mais que dobrou, passando de 35 casos (2022) para 77 (2024), ou seja, um crescimento de 120%. Considerando o perfil das vítimas, o crescimento da letalidade policial atingiu de forma desproporcional brancos e negros.  Entre crianças e adolescentes brancos, foi de 0,33 para cada 100 mil, entre os negros, o índice chegou a 1,22%. Ou seja, crianças e adolescentes negros são 3,7 vezes mais vítimas em intervenções letais da PM no Estado (aqui, leia-se São Paulo).  Em 2024, crianças e adolescentes (10 a 19 anos) representaram 14,9% das vítimas de intervenções policiais e das vitimas fatais, 134 não tinham nenhuma informação sobre a idade no boletim de ocorrência, o que pode nos levar a crer em números superiores aos divulgados. 1 a cada 3 adolescentes assassinados em São Paulo no último ano, foram mortos por policiais militares em serviço. É válido pontuar que o aumento da letalidade policial foi registrado tanto em batalhões que utilizam câmeras corporais (+175,4%) quanto naqueles que não utilizam (+129,5%). Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, "as recentes mudanças nas políticas de controle de uso de força resultaram no crescimento da letalidade policial, na evidência de que a tecnologia é importante, mas precisa estar associada a outros mecanismos de controle"3.  Muito embora, decisões recentes no STF, creditem ao uso das câmeras corporais nas fardas policiais, um mecanismo capaz de persuadir ações ilegais e o uso desmesurado da força, elas não têm sido um inibidor sobre a ação policial, pelo contrário.  O uso inadequado coloca em xeque, não a câmera em si, mas as condutas dos agentes que, ainda não se veem convencidos quanto a importância do uso destas para assegurar também, a garantia de seus direitos.  Trata-se de um desafio de governança que está, a cada dia, colocando em risco a integridade física de crianças e adolescentes, desrespeitando os ditames legais que asseguram a proteção integral em todas as circunstâncias de suas vidas em sociedade. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível aqui. 5 SANTIN, V. F. MANFRÉ, Gabriele Delsasso Lavorato; NASCIMENTO, Francis Pignatti do (2018). Segurança pública, serviço público essencial e planejamento para a busca da paz. Revista Paradigma, Ribeirão Preto-SP, a. XXIII, v. 27, n. 3, p.185-206.
O direito à educação está dentre os direitos sociais de segunda geração, possui caráter público subjetivo, ou seja, compete ao cidadão a sua exigibilidade (no caso de crianças e adolescentes, compete ao seus pais e/ou responsáveis o direito e o dever de exigi-lo). Ele deve ser materializado através de políticas públicas básicas, competindo ao Estado supri-lo a todos, sem qualquer distinção. A educação está correlacionada à dignidade humana quando a partir desta é dada ao cidadão a possibilidade de desenvolver-se criticamente e a ter uma vida digna. Trata-se de um direito humano e está assegurado no art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz "1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, está baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos". A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), em seu art. 28, reitera tal garantia, assegurando "1. Os Estados partes reconhecem o direito da criança à educação e, para que ela possa exercer esse direito progressivamente e em igualdade de condições, devem: tornar o ensino primário obrigatório e disponível gratuitamente para todos; estimular o desenvolvimento dos vários tipos de ensino secundário, inclusive o geral e o profissional, tornando-os disponíveis e acessíveis a todas as crianças; e adotar medidas apropriadas, como a oferta de ensino gratuito e assistência financeira se necessário; tornar informações e orientação educacionais e profissionais disponíveis e acessíveis a todas as crianças; adotar medidas para estimular a frequência regular à escola e a redução do índice de evasão escolar; 2. Os Estados partes devem adotar todas as medidas necessárias para assegurar que a disciplina escolar seja ministrada de maneira compatível com a dignidade humana da criança e em conformidade com a presente Convenção; 3. Os Estados Partes devem promover e estimular a cooperação internacional em questões relativas à educação, visando especialmente contribuir para a eliminação da ignorância e do analfabetismo no mundo e facilitar o acesso aos conhecimentos científicos e técnicos e aos métodos modernos de ensino. Nesse sentido, devem ser consideradas de maneira especial as necessidades dos países em desenvolvimento". No Brasil, a primeira ideia de direito à educação surgiu na Constituição de 1824, que introduzia a normatização do direito à educação primária, inclusive aos adultos, através de seu art. 1791. Entretanto, não foi assim que se procedeu, haja vista a tomada escravocrata e a contínua exclusão das classes menos favorecidas à educação e inserção como membros da sociedade. Cabe destacar que escravos e negros alforriados não se enquadravam ao status de cidadãos, assim como crianças e mulheres. Apenas após 30 anos do estabelecimento do status republicano do Brasil que se iniciou um processo de reforma às bases educacionais no país. A partir da Carta Magna de 1934, inicia-se um processo de discussão sobre as bases do direito à educação, onde, de fato, passou a ter a educação como direito comum a todos os cidadãos. O direito à educação na Constituição de 1937 passa a ser vinculado a valores cívicos e econômicos, ao passo de dividir a responsabilização dos estudos não somente ao Estado, mas à família e à sociedade, bem como à indústria, atrelando a educação à formação profissional. A Carta Magna de 1946 traz pela primeira vez a competência da União em legislar sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e determina a obrigatoriedade do ensino primário a todos os cidadãos. A primeira LDB - lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 4.024/61, atendia especificamente aos ditames da Constituição de 1946, estabelecendo que o ensino era de obrigação do Poder Público e livre à iniciativa privada, competindo às famílias o poder de escolha sobre a educação a ser provida a seus filhos e não ao Estado direcioná-las a esta escolha. Após o processo de redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988, o direito à educação passou a ter caráter universal, com capítulo exclusivo para os seus ditames legais. O art. 205 explicitou este direito: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Os mesmos parâmetros foram dois anos depois sacramentados através do art. 53 e seguintes, do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que traduz o dever do Estado quanto à garantia do direito à educação. Nesta seara, importante pontuar que o art. 53 aduz que "A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, sendo-lhes assegurado: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - direito de ser respeitado por seus educadores; III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV - direito de organização e participação em entidades estudantis; V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência". O direito à educação é absoluto, intangível e de obrigação do Estado, seja através da norma constitucional, ou de normas infraconstitucionais, como demonstrado acima através da exemplificação dada pelo ECA, que se complementa com outras normas presentes em nosso ordenamento. Desta feita, importante mencionar que a LDB 4.024/61 foi substituída pela lei 9.394, de 20/12/96, todavia, a segunda manteve em sua base ditames similares aos da primeira, principalmente no que diz respeito ao dever e obrigação do Estado em relação à educação de todos os cidadãos. Esta lei foi alterada pela lei 12.796/13, que, por sua vez, acrescentou itens indispensáveis à ideia da universalização da educação como direito. Não podemos deixar de mencionar a BNCC - Base Nacional Comum Curricular, o PNE - Plano Nacional de Educação, o Novo Ensino Médio e a criação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, iniciativas que visam promover não só o acesso, mas a permanência dos alunos desde o ensino infantil até o ensino médio. Muito embora as políticas voltadas à educação estejam sendo implantadas ou implementadas pela União, Estados, Distrito Federal e municípios, dados atuais demonstram que o acesso a este direito e sua permanência seguem sendo um desafio à política nacional de educação. Dados do IBGE, de 2023, apontam que mesmo a taxa de escolarização no Brasil tendo atingido o patamar de 92,9%, cerca de 54,5% dos brasileiros possuem apenas a educação básica e muitos também se encontram em distorção série-idade. A mesma pesquisa do IBGE denuncia a desigualdade no acesso à educação, principalmente entre pessoas pretas e pardas. Não obstante, os eventos climáticos têm contribuído ainda mais para o afastamento de crianças e adolescentes do ambiente escolar. Só no ano de 2024, cerca de 1,17 milhão de crianças foram afastadas das escolas. Exemplificando, as chuvas de maio, no Rio Grande do Sul, deixaram cerca de 740 mil estudantes sem aula; a seca da Amazônia fechou mais de 1.700 escolas, incluindo 100 em áreas indígenas, deixando 436 mil estudantes sem aula (UNICEF, 20252). Assim, analisando os dizeres legais, sendo o direito à educação fundamental ao desenvolvimento pleno do cidadão, bem como inerente à personalidade humana, se o Estado não o assegura, ou prepara adequadamente seus profissionais a fim de incluir aqueles que buscam por melhor qualificação educacional e/ou mesmo profissional, perde-se o real sentido da universalização trazido pela Declaração Universal do Homem e pelas leis que a sucederam. A prestação de uma educação plena e acessível a todos deve estar para além de uma norma constitucional ou infraconstitucional, deve estar para além de todo arcabouço jurídico, deve ser uma prática exequível e necessária para o desenvolvimento a todo e qualquer indivíduo que o buscar. O direito à educação é um importante instrumento de transformação social nas mais diversas fases da vida do cidadão, cabendo à sociedade, às famílias e entes públicos ou privados exigi-lo quando em situação de negação, fundamentadamente por todas as leis que o asseguram. 1 A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição, pela maneira seguinte: [...] 32. A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos. 2 Disponível aqui. 3 Brasil. Lei 8.069, de 13/7/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990. Disponível aqui. 4 Brasil. Lei 12.796, de 4/4/13. Lei de Diretrizes Básicas da Educação. Brasília, DF: Senado, 2013. Disponível aqui. 5 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível aqui. 6 ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível aqui.
Janeiro, para muitos, em especial para as crianças e adolescentes, é sinônimo de férias escolares. Como parte do desenvolvimento humano, é de suma importância que esses sujeitos possam usufruir desses momentos de lazer, cabendo à sociedade, famílias e às autoridades públicas garantirem a elas o exercício pleno deste direito. O direito ao brincar é um direito fundamental de crianças e adolescentes garantido por nossa legislação, mas também pela ONU. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 16, define, dentre alguns aspectos do direito à liberdade, ".o direito de praticar esportes, brincar e divertir-se.". Nesta mesma seara, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelece que ".toda pessoa tem direito ao lazer." (Art. 24) e a Convenção sobre os direitos da criança, em seu Art. 31, 1, indica que "Os Estados Partes reconhecem o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade.". Especialistas ponderam ser o "brincar" uma atividade essencial ao desenvolvimento integral, pleno e saudável das crianças e, uma das premissas contidas no Marco da Primeira Infância, que também indica em seu art. 17 que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios deverão organizar e estimular a criação de espaços lúdicos que propiciem o bem-estar, o brincar e o exercício da criatividade em locais públicos e privados onde haja circulação de crianças, bem como a fruição de ambientes livres e seguros em suas comunidades". A fim de reforçar este direito, em 20/3/24, foi sancionada a lei 14.826, que instituiu a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias intersetoriais de prevenção à violência contra crianças. Em seu art. 3º da referida lei, é pautado "É dever do Estado, da família e da sociedade proteger, preservar e garantir o direito ao brincar a todas as crianças". A referida legislação, em seu art. 7º, pautou a base principiológica desta lei, reforçando como direito o "brincar livre de intimidação ou discriminação; relacionar-se com a natureza; viver em seus territórios originários; e receber estímulos parentais lúdicos adequados à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento". Mas será que de fato esses direitos são assegurados a todas as crianças? Numa tentativa de responder a tal questionamento, justo pontuar que férias escolares para muitas crianças, Brasil afora, representa muito mais do que o gozo ao direito de brincar, representa risco, exposição e exploração. É sobre a realidade destas crianças que falaremos, a priori, mas cujas situações podem abranger as crianças de modo em geral. No tocante aos riscos, podemos suscitar a precária zeladoria e conservação dos espaços e equipamentos públicos. Não raro, encontramos praças e parques com jardins mal conservados (mato alto), brinquedos quebrados, calçamentos irregulares que expõem ao risco de acidentes ou falta de segurança que possibilitem à criança brincar, quando não, nos deparamos com a ausência destes espaços, em especial nas periferias das cidades. A questão da acessibilidade também é uma mazela presente e que requer atenção das autoridades competentes nos espaços públicos, pois nem todos os locais são adaptados às crianças com deficiência e isso causa ainda mais exclusão. Em relação à exposição, o principal fator é sem dúvidas a questão da violência urbana. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, 263 crianças e 2.036 adolescentes foram vítimas por mortes violentas intencionais (MVI), totalizando 2.299 vidas interrompidas precoce e de forma violenta. A maioria das vítimas estavam na faixa etária entre 12 a 17 anos, com aproximadamente 1.670 casos. A maioria das mortes ocorreram nas comunidades onde essas crianças residiam. Local de moradia, onde crianças e adolescentes deveriam se sentir seguros, se tornaram espaços hostis e de insegurança (às vezes, até mesmo dentro de suas casas, quando da ocasião de balas perdidas). Concernente à exploração, basta sairmos de casa para nos depararmos com mães, pais ou responsáveis legais (ou não), em cruzamentos, ruas ou esquinas, acompanhados de seus filhos, sobrinhos, netos, vendendo balas nos semáforos, água e outros bens materiais, expondo-os a todos e quaisquer riscos. E, muito se engana aquele que acredita ser essa a realidade de locais mais vulneráveis. Esta é a situação da maioria das cidades de nosso país. Muito embora a taxa de desemprego tenha apresentado queda no último trimestre de 2024, como aponta os dados da PNAD Contínua (a menor taxa de desemprego da série histórica), o período de férias escolares coincide com aquele em que pais, mães, avós, se veem sem ter com quem deixar as crianças para sair para suas atividades laborais (sejam elas formais ou informais), haja vista algumas cidades não ofertarem atividades extracurriculares nas escolas neste período ou as Organizações da Sociedade Civil não conseguirem atender toda demanda local, e não raramente, é a rua o local onde essas crianças se encontram e são expostas ao trabalho, de forma irregular, precária e prejudicial ao seu desenvolvimento. É importante mencionar que a exploração abarca não somente o trabalho, aquele proibido aos menores de 14 anos, mas também a de cunho sexual ou como via de cooptação para outras práticas ilícitas, colocando estas crianças e adolescentes em situações ainda mais vulneráveis. Não obstante, para além destas ponderações, nas férias escolares, mas também em outras épocas do ano, o direito de brincar ou o brincar livre também se vê "ameaçado" pelo uso excessivo das telas, da exposição contínua e sem fiscalização nas redes sociais (o que pode suscitar outras violações, como pornografia infantil, cyberbulling, abusos) e aos jogos de videogame ou de conteúdo online. São trocas (o brincar livre pelas tecnologias), que pelas constantes notícias que acompanhamos, são perigosas e que prejudicam o desenvolvimento físico e mental das crianças e dos adolescentes, merecendo, portanto, a atenção dos adultos, como responsáveis pelos cuidados a eles devidos. Muito embora o direito de brincar tenha sido instituído por lei há menos de um ano, ele como citado acima, já estava garantido tanto em nossa legislação, como indicado na legislação internacional, mas ainda, tal como tantas outras legislações existentes em termos de proteção aos direitos de crianças e adolescentes, necessita ser implementado. Por fim, pelas elocubrações aqui trazidas, é notória a importância de tratarmos das questões apontadas, fomentar as políticas públicas locais, para que estas caminhem de encontro ao efetivo cumprimento das legislações nacionais e internacionais (das quais o Brasil é signatário), mas também, reforçar junto às famílias e sociedade, a importância da responsabilidade coletiva no trato devido às crianças e adolescentes no país, evitando deste modo, a perpetuação das situações de risco, exposição e exploração não somente em períodos de férias escolares, mas todos os dias, tal como preconiza o art. 227 da CF/88. ___________________ 1 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível aqui. 2 Brasil. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990. Disponível aqui. 3 Brasil. Lei 13.257, de 08 de março de 2016. Marco legal da Primeira Infância. Brasília, DF: Senado, 2016. Disponível aqui. 4 Brasil. Lei 14.826, de 20 de março de 2024.Brasília, DF: Senado, 2024. Disponível aqui. 5 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2024 6 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível aqui. 7 ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível aqui.
Falar da exploração do trabalho infantil no Brasil, nos remete a tempos anteriores até mesmo do Código de Menores de 27. E mais, nos faz trazer para pauta, um histórico de trabalho forçado, desumano, violento e cruel para uma parcela da população infanto-juvenil. No Brasil, o período de escravização negra perdurou por aproximadamente 388 anos, sendo o último país a abolir o regime de escravização. Milhares de crianças e adolescentes foram trazidos do continente africano para o trabalho nas "Casas Grandes", mas também nas atividades agrícolas. Mary Del Priore, no texto "A criança negra no Brasil" (2012)1, aponta que dos escravos desembarcados no Brasil, cerca de 4% eram crianças, destas, apenas 1/3 chegava a completar 10 anos e, na maioria das famílias, aos 4 anos, já começavam a trabalhar sozinhas ou com os pais. Com o fim do período de escravização, a situação das crianças negras tornou-se ainda mais invisibilizada, sem quaisquer tipos de proteção social na legislação brasileira. Assim como seus pais, ficaram à margem. Há aqui de se mencionar que, registros históricos, como os descritos nas obras de Irene Rizzini, Irma Rizzini e da já aqui mencionada, Mary Del Priore, apontam que muitas destas crianças, se alocavam em trabalhos como jornaleiras, engraxates, sem mencionar as atividades perigosas, como nas fábricas. Em 1917, em decorrência das inúmeras violações de direitos, de crianças e mulheres, que eram a maioria da mão de obra em trabalhos exaustivos e perigosos, houve uma grande greve, tendo por pauta a abolição do trabalho infantil. Com a criação da OIT - Organização Internacional do Trabalho, em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, surgiram as primeiras leis trabalhistas, que objetivavam a proteção de crianças e mulheres no trabalho. Entretanto, foi apenas com a edição do primeiro Código de Menores que foi estabelecida a proibição do trabalho em todo território nacional para crianças e adolescentes com menos de 12 anos. Muito embora dispusesse sobre a proibição do trabalho, o referido Código, permitia o trabalho nas ruas, punindo e estigmatizando as crianças que denominava como "menores", que em sua maioria, eram crianças negras, filhas de escravizados libertos. Ali, começava a ser delineado um longo e cruel percurso de uma história de estigmatização, preconceito, discriminação e exclusão social. Para as crianças das famílias abastadas, o bom e melhor, para as crianças negras, o trabalho e a correção por suas condutas. As Constituições Federais que sucederam o Código de Menores de 27, previram em seu escopo a proibição do trabalho infantil, aumentando a faixa etária para o ingresso no mercado de trabalho, de certa forma, protegendo a população infanto-juvenil. A Constituição de 1934, previu a idade de 14 anos, a de 46 - 16 anos, mas em plena ditadura, isso retrocedeu e estipulou-se a idade mínima de 12 anos. Foi a Constituição de 1988, a "Constituição Cidadã", como fora denominada, que por fim, em seu artigo 7º que delimitou as condições para o ingresso de adolescentes no mercado de trabalho, que foi estendido ao art.403 da CLT e ao artigo 60 do ECA. Mas qual a importância deste resgate histórico para falar sobre o trabalho infantil no Brasil? Para falar que, muito embora tenhamos no artigo 227 da Constituição Federal a previsão de Proteção Integral aos direitos de crianças e adolescentes, este princípio está muito longe de ser alcançado. Não raro, nos deparamos, em pleno 2024, com situações de exploração em nossa sociedade. Segundo o PnadC2, 2019, IBGE, quase dois milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, em sua maioria negra, continuavam a trabalhar, muitas delas, nas piores formas de trabalho infantil enumeradas na Lista TIP da OIT3, sujeitas a todos os tipos de violência, acidentes, prejuízos no seu desenvolvimento físico e psicossocial. E aqui, oportunamente, abro um parêntese para abordar a questão do tráfico de drogas que, muito embora considerado uma das piores formas de trabalho infantil pelas leis nacionais e internacionais, é causa ainda de responsabilização de adolescentes que, ao invés de serem reconhecidos como vítimas de sua exploração, são apreendidos e, não raramente, inseridos em medida socioeducativa em meio fechado. Mas, retornando aos números, dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua Trimestral (Pnad Continua), apontam que entre os 1,40 milhão de adolescentes brasileiros de 14 a 17 anos ocupados no primeiro trimestre de 2024, 1, 12 milhão estavam envolvidos em trabalho infantil. Em um levantamento da Fundação Abrinq, 44% destes adolescentes, estavam inseridos nas piores formas de trabalho infantil. Frente a esta situação, não podemos deixar de mencionar que o Brasil foi condenado em uma decisão (2020) da Corte Internacional de Direitos Humanos4 no caso de trabalho infantil numa fábrica de fogos de artificio no município de Santo Antônio de Jesus/BA, após a morte de 64 pessoas, dentre elas, 22 crianças e adolescentes, com idade de 9 a 17 anos. Estas informações e dados numéricos reforçam um estigma perpetuado em nossa sociedade, que há tempos naturalizou a presença de crianças e adolescentes em condições de exploração de trabalho infantil, tanto que não é raro, numa roda de debates nos deparar com falas do tipo: "O trabalho da criança/adolescente ajuda na formação do caráter", ou "É melhor trabalhar do que roubar", ou "O trabalho da criança/adolescente ensina regras e disciplinas". Sendo assim, compete-nos lembrar que, para além destas colocações retrogradas, devemos coibir tais práticas, pois é direito de toda criança e adolescente, realizar atividades próprias da sua idade, ter seu desenvolvimento pleno, estar em um ambiente seguro, que lhe permita o alcance a todos seus direitos fundamentais. Devemos enquanto sociedade, ter a consciência de que combater o trabalho infantil é romper com a perpetuação dos ciclos de exclusão social, oportunizando às crianças e adolescentes, o acesso às políticas públicas setoriais, respeitando os preceitos constitucionais e normativas internacionais das quais o Brasil é signatário, garantindo a proteção integral das mais diversas infâncias e adolescências brasileiras que seguem excluídas e invisibilizadas. Lembrando que, em caso de trabalho infantil, denuncie: Disque 100 ou acesse www.mpt.mp.br e http://http://ipetrabalhoinfantil.trabalho.gov.br __________ 1 Disponível aqui.   2 Disponível aqui. 3 Decreto 6.481/2008. 4 CIDH, Relatório 15/18. Caso 12.428.
Todos os dias, não somente no Brasil, crianças e adolescentes são obrigados a enfrentar as consequências e efeitos advindos das mudanças climáticas. Não bastasse os danos causados pela degradação do meio ambiente, ainda são acometidas por tantas outras violências que impactam suas vidas de maneira significativa e prejudicial ao seu pleno desenvolvimento. Não se pode negar que a mudança climática é hoje, uma ameaça a capacidade de sobreviver, crescer e prosperar de crianças em regiões mais atingidas, principalmente, para aquelas que são frutos de famílias mais pobres e vulneráveis, posto estarem menos protegidos pelas políticas públicas. Segundo o estudo do Índice de Risco Climático das Crianças1 (UNICEF, 2021), no mundo existem mais de dois milhões de crianças expostas a mais de um risco, choque ou estresse climático/ambiental. Se levarmos em conta a situação do Brasil, mais de 40 milhões de crianças e adolescentes estão expostas a mais de um risco analisado pelo referido estudo. Os dados são deveras alarmantes e, se agravam a cada dia. Dentre os países do Caribe e América Latina, o Brasil é considerado um pais de risco alto, assim como o México. Cerca de 8,6 milhões de crianças, meninos e meninas brasileiros, estão expostos ao risco da falta de água potável; mais de 7,3 milhões expostos ao risco de enchentes ou inundações; 1,8 milhões expostos ao risco de enchentes costeiras; 13,6 milhões expostas ao risco de ondas de calor; 24,8 milhões expostos ao risco de poluição do ar ambiente; 27,8 milhões vivendo em áreas com alto risco de exposição à poluição por pesticida. Este mesmo estudo menciona que nos próximos 30 anos, aproximadamente 1,5 milhão de crianças no Brasil serão deslocadas devido a inundações, tempestades e outros fenômenos naturais. É deveras preocupante a situação de crianças e adolescentes acometidas por tais impactos. Em 2023, a seca no Amazonas deixou mais de 2 mil crianças e adolescentes sem acesso à escola, segundo dados do governo do Amazonas. As enchentes no Rio Grande do Sul, com início no último dia 3 de maio, já afetaram cerca de 1060 escolas estaduais, com 568 danificadas, impactando mais de 378 mil alunos (dados divulgados pela Secretaria de Educação/RS publicados em 23/05/2024). Num recorte socioeconômico, cultural, político, a situação acima se agrava ainda mais quando nos referimos às crianças e adolescentes negras, indígenas, quilombolas, migrantes e ou refugiados, com deficiência e meninas. Com a emergência climática, cada vez mais presente em nossas cidades, as crianças e os adolescentes estão sendo privados de seus direitos básicos, como moradia, convivência comunitária, saúde e educação. Não obstante, estão sujeitos a outros impactos negativos em suas vidas como: danos físicos e psicológicos; agravamento da vulnerabilidade socioeconômica; escassez de água e alimentos; deslocamentos formados e perdas de laços; falta de acesso à proteção social, dentre tantos outros. O relatório Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil, lançado pelo UNICEF (2022) enumera os direitos a serem garantidos e protegidos, dentre os quais podemos aqui brevemente elencar: 1. Direito à vida, à saude e ao desenvolvimento; 2.Direito a aprender; 3.Direito à proteção contra violências; 4. Direito a água potável e saneamento e 5. Direito à proteção social. Este mesmo documento, apresenta uma lista de recomendações para que crianças e adolescentes sejam prioridade absoluta na pauta climática e para que hoje e, no futuro, não tenham que crescer privados da plena realização de seus direitos. É importante registrar que em julho de 2022, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Agência da ONU para as Migrações (OIM), a Universidade de Georgetown e a Universidade das Nações Unidas (UNU) lançaram os Princípios Orientadores para Crianças e Adolescentes em Movimento no Contexto das Mudanças Climáticas2 a fim de promover o debate acerca do impacto da crise ambiental e os deslocamentos forçados ao redor do mundo, o que de certo modo, dados os eventos climáticos no país, poderão servir de base para as políticas públicas futuras no que tange ao deslocamento forçado entre as regiões do Brasil. Neste mesmo sentido, em 2023, face ao agravamento da crise climática no mundo, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU publicou orientações oficiais aos Estados sobre como devem fazer para defender o direito de crianças e adolescentes a um ambiente limpo, saudável e sustentável. O Comentário Geral nº 263 (2023), traz em seu escopo que os Estados são responsáveis não só por proteger os direitos de crianças e adolescentes contra danos imediatos, mas também por violações previsíveis de seus direitos no futuro devido a atos dos Estados - ou omissão de ação - hoje. A tragédia que acometeu o estado do Rio Grande do Sul, nos mostrou recentemente que, embora haja um direcionamento do orçamento público para a prevenção de desastres e, ou emergências climáticas, os governos não fazem o uso de tais recursos de maneira eficaz e assertiva ao ponto de atuar preventivamente e, minimamente, evitar catástrofes de tamanha proporção como as vistas desde o ultimo dia 3 de maio. Tampouco, é direcionada verbas para o Orçamento Criança e Adolescente - OCA a fim de garantir proteção aos direitos básicos e necessários às crianças e adolescentes em situação de emergência climática. É crucial que as políticas públicas e ações para combater as crises climáticas levem em consideração as necessidades especificas de crianças e adolescentes, priorizem a proteção aos seus direitos. Muito embora, tenhamos expresso no artigo 225 da Constituição Federal que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como, no artigo 227 que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e devem ter seus direitos garantidos e protegidos, as situações às quais estão submetidos, nos mostra que estamos falhando no cumprimento de ambos mandamentos constitucionais. __________ 1 Disponível aqui.   2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
A partir de 1990, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como, com a efetiva ruptura da Doutrina da Situação Irregular, instalou-se no país uma nova lógica para o atendimento e acompanhamento de adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional. Esta substituição de paradigmas, representou a inclusão social do adolescente em conflito com a lei, que deixou de ser um mero objeto de intervenção como era no passado. No Título III do ECA, entitulado "Da Prática de Ato Infracional", a legislação, sem descrever o 'modus operandi' trouxe em seu escopo, normas para a apuração de ato infracional, tipificação do que é o ato infracional, direitos e garantias aos adolescentes e as medidas socioeducativas a serem aplicadas em caso de cometimento destes. Passados 12 anos da concepção do ECA, dada a ausência de diretrizes quanto à execução das medidas socioeducativas, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), enquanto responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e a adolescência no país, e a SEDH/SPDCA (Secretaria Especial dos Direitos Humanos), em parceria com a ABMP (Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude) e o FONACRIAD (Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendimento à Criança e ao Adolescente) realizaram encontros nacionais, regionais e estaduais a fim de debater a respeito da Lei de Execução das Medidas Socioeducativas, a prática pedagógica a ser desenvolvida nas Unidades socioeducativas em todo país, e principalmente, a elaboração de parâmetros e diretrizes para a execução das medidas socioeducativas. O resultado destas ações, foi a Resolução 119/2006, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providencias, que em 2012, serviu de escopo para a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamentou a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional (art.1º). E por que se faz importante a retrospectiva destes importantes marcos normativos? Primeiramente, para reforçar a importância dos parâmetros pedagógicos das medidas socioeducativas, os objetivos às quais estas se destinam, mas principalmente, reforçar a competência da União, dos Estados e dos Municípios enquanto responsáveis pela implementação dos programas de atendimento e financiamento destes, partindo da lógica da incompletude institucional descrita no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que, em meados do ano de 2019, um projeto entitulado "Novo Socioeducativo", estruturado pela Caixa Econômica Federal, em conjunto com o então, Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia (SPPI), os governos estaduais, em parceria com o UNOPS (organismo das Nações Unidas especializado em infraestrutura e gestão de projetos), tendo por principal objetivo, a construção e manutenção de novos centros socioeducativos e a contratação de infraestrutura e gestão dos serviços realizada por meio de parceria público-privada, colocando em risco a efetiva proteção e garantia de direitos dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de restrição e, ou privação de liberdade nos estados brasileiros. Como é sabido, a medida socioeducativa de internação, prevista no art.121 do ECA, tem caráter excepcional, devendo ser aplicada somente nos casos dispostos na lei, com atenção aos princípios da brevidade, excepcionalidade e, fazendo prevalecer desta forma, o direito à liberdade e de convivência familiar e comunitária, cabendo ao Estado, como segue no disposto do art.125, do mesmo mandamento legal, zelar pela integridade física e mental dos internos. É importante salientar que, a par deste mandamento, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Habeas Corpus Coletivo nº 143.9881, em consonância com o previsto nas legislações nacionais e internacionais, reforçou ser o Estado o responsável pela garantia dos direitos desses adolescentes, tornando ainda mais equivocada a parceria firmada e disposta no Decreto supracitado. Aqui, importante abrir um parêntese, para mencionar que no Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo2 publicado em novembro de 2023, foi demonstrada a queda no número de adolescentes e jovens nas medidas socioeducativas restritivas e de privação de Liberdade, o que não justifica a construção de novos centros educacionais, proposta nesta parceria firmada e que já vem sendo efetivada em alguns estados, como no caso de Minas Gerais, que, em pouco tempo de Cogestão, já conta com histórico de denúncias de violações de direitos, como restou explicitado na Nota Técnica nº 10/20223, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. Fica demonstrado que a lógica adotada por este "Novo Socioeducativo" é perversa e implica na perda de direitos já garantidos nas legislações nacionais e internacionais aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de semiliberdade e, ou, internação. Não diz respeito só ao orçamento público ou corte de gastos, implica em retrocessos, de tornar o adolescente mero objeto de 'per capitas' recebidas, de sucatear as politicas públicas voltadas ao atendimento devido aos adolescentes em conflito com a lei, como no caso da educação, da capacitação ao mundo do trabalho, esportes, cultura, dente outras. Para além da questão orçamentária, a proposta deixa explicitada a tentativa de aproximação do sistema socioeducativo às práticas já existentes no sistema penal brasileiro, de reforçar os estigmas e a seletividade que há tempos resta demonstrada nos relatórios oficiais, ou seja, criminalizando ainda mais a adolescência negra, periférica, de baixa renda, na perspectiva de "Quanto vale? Ou é por quilo?", metaforicamente, fazendo alusão ao filme de Sérgio Bianchi, de 2005. Jus aqui mencionar que o CONANDA, em 27 de junho de 2023, emitiu uma Nota Técnica4, manifestando-se contrário ao Projeto "Novo Socioeducativo", salientando que, em caso de aprovação deste, deve-se prever formas de redução de danos em relação às possíveis perdas nos direitos dos adolescentes, enumerando as seguintes recomendações: a) A garantia e proteção dos direitos de adolescentes e jovens inseridos no sistema socioeducativo brasileiro em conformidade com a Lei do SINASE; b) A redução do tempo previsto de 30 para 5 anos da proposta, no que se refere à operacionalização e funcionamento das unidades socioeducativas, após a construção das unidades, bem como que não sejam propostas novas experiências antes da finalização da avaliação das presentes, caso sejam implementavas; c) Recomenda-se a revogação do Decreto 10.005/19, de forma a se fazer cessar as possibilidades de novas experiências neste sentido; d) Recomenda-se a produção de um plano educacional que seja implementado apenas pelo poder público nas unidades geridas pelo setor privado para manutenção do caráter pedagogicamente da medida conforme estabelecido pelo ECA, no SINASE, e na Resolução CNE/CEB nº 3, de 13 de maio de 2016, do MEC; e) A garantia da manutenção dos agentes socioeducativos e das equipes técnicas como corpo prioritário dentro das unidades socioeducativas sem transformá-los em agentes de segurança. Cabe neste momento, uma franca reflexão acerca deste movimento contrário às garantias de direitos de adolescentes inseridos ou não no sistema socioeducativo, uma vez que, aqueles que já se encontram ingressos no sistema, sofrerão com as consequências desta politica orçamentária neoliberal que assombra a politica socioeducativa e, aqueles que porventura não adentraram o sistema, caso venha a ser apreendido, já serão acometidos por uma série de violações e desrespeito aos seus direitos antes mesmo da elaboração do seu PIA (Plano individual de Atendimento). Não se trata somente de uma parceria ou uma cogestão, se trata de uma expressa incompatibilidade com os parâmetros e diretrizes pedagógicas previstas pelo SINASE (2006), de descumprimento dos dispostos no ECA e na Lei do SINASE, e principalmente, uma negação ao previsto no artigo 227 da CF, que declara ser dever do Estado, da Sociedade e da Família, a proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes. Permitir o avanço desta proposta, é romper com todos os avanços alcançados até aqui, é aceitar que a vida de um adolescente é medida pelo lucro que o setor privado vai obter, e, deste modo, negar a doutrina da Proteção Integral. __________ 1 HC 143988/ES. Supremo Tribunal Federal. Julgado em 24.08.2020. 2 BRASIL. MDHC. Levantamentos Nacionais do SINASE. 3 MPCT. Nota Técnica nº 10, 2022, Sistema de Cogestão de unidades de internação e APAC juvenil no Sistema Socioeducativo do estado de Minas Gerais. 4 Nota Técnica nº 21/2023/CONANDA/GAB.SNDCA/SNDCA/MDHC.
Passados seis anos desde a realização do último Levantamento Nacional do SINASE, em dezembro passado, foi divulgado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, dados oficiais pertinentes ao atendimento socioeducativo no país, neste caso, em especial, ao meio fechado. Aqui, importante abrir um parêntese para suscitar que o adolescente que comete ato infracional deve ser compreendido como um sujeito em processo peculiar de desenvolvimento (ECA, 1990, art. 6º), que se encontra em contextos político, social, familiar, econômico, cultural e histórico específicos, onde a transgressão figurou como meio de resposta aos impasses e tensões vivenciadas. Neste sentido, por ser considerado um sujeito em desenvolvimento, como apontado acima, e descrito como ser em busca de sua autonomia, o adolescente está mais propenso a transgredir e a se opor às tradições impostas pela sociedade, às normas culturais a eles imputadas, potencializando deste modo, a ameaça à ordem civilizatória impostas a todos os indivíduos adultos na sociedade. Portanto, para compreender aquele que se envolve em condutas infracionais, é necessário levar em consideração, dentre outros aspectos, os fatores de risco que estão relacionados à entrada no mundo infrator, nos quais se apontam algumas variáveis importantes, como: elevada vulnerabilidade; tendência à exclusão social; situações de negligência e abandono; pobreza; criminalidade e violência na família, na escola, na comunidade e na sociedade em geral; e abuso de substâncias psicoativas. O cometimento de um ato infracional não é explicado pela presença isolada de um fator adverso, mas sim, através da complexa cadeia de eventos da trajetória do jovem (Costa e Assis, 2006), que pode refletir a frágil condição da infância e da juventude no cenário mundial. As trajetórias de vida dos adolescentes aos quais se atribui a prática de atos infracionais evidenciam a sua invisibilidade no âmbito das políticas públicas, identificada por meio do não-acesso a elas ou na sua desqualificação quanto ao reconhecimento das reais necessidades do sujeito e produção de respostas adequadas. Em uma realidade de exclusão e de negação dos direitos, de desigualdade social e de ausência de oportunidades, de falta de expectativas sociais e a desestruturação das instituições públicas, o adolescente influenciado pela ideia de desejo e de consumo, passa a buscar, muitas vezes, na ilicitude, a resposta para a superação de sua realidade. Uma vez inserido em um sistema que o excluí, busca no meio ilícito, um lugar de aceitação, pertencimento e reconhecimento (COSTA, 2005). Segundo o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o ato infracional é uma conduta comparável ao crime ou contravenção penal. Crime é toda infração penal que se caracteriza com a conduta tipificada pela lei penal como ilícita ou antijurídica, passível de punição. Contravenção penal, possui as mesmas características, porém, com menor gravidade. Os atos infracionais cometidos por adolescentes constituem um fenômeno complexo em virtude das múltiplas causas envolvidas. Por isso, requer uma visão mais integral, que possa considerar aspectos da pessoa e dos seus diferentes contextos de inserção, especialmente a família (Nardi e Dell'Aglio, 2012), tendo em vista que o envolvimento com o ato infracional corresponde apenas a um dentre outros agravos que compõem o quadro de vulnerabilidade dos jovens (Costa e Assis, 2006). O crime é um acontecimento na vida do adolescente, e olhar para o ato infracional exclusivamente inviabiliza a compreensão sobre a motivação pela prática daquela conduta, da forma como se desconsidera a sua história pessoal, que gera sentido para o ato infracional. O levantamento do perfil de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apresenta indicadores de que, em algum momento de sua vida pregressa ou de seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos, estaria em condições de vulnerabilidade e, ou, risco social, inseridos em núcleos familiares pertencentes às camadas mais pobres da sociedade, sem ou com algum indicio de uso ou abuso de álcool e, ou, outras drogas, em baixa escolaridade (ou em distorção série-idade), quando não, exclusos do sistema educacional e, em sua maioria, negros. Mas, a fim de evitar quaisquer generalizações, cabe desde logo, salientar que, embora os dados nos levem a este perfil, é importante mencionar que nem todo adolescente negro, morador periférico, pobre é ou está envolvido no meio infracional. Entretanto, este perfil, historicamente, pertence a um grupo de pessoas que foi excluido socialmente no Brasil e, como sabido, a exclusão social está dentre um dos fatores de vulnerabilidade que interfere na ressocialização e socioeducação de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. Os dados do último levantamento demonstram que houve uma redução no numero de adolescentes cumprindo medidas de privação de liberdade (semiliberdade, internação, internação provisória e internação-sanção), correspondendo a aproximadamente, 11.556 (dados apresentados até 30 de junho de 2023), ao passo de que em 2017, eram 24.803 adolescentes. Destes 11.556, apenas 4,21% correspondem a meninas cisgênero (461), ou seja, a prevalência na incidência no cometimento de ato infracional, tal como descrito em 2017, continua sendo masculina (cerca de 11.167 - meninos cisgênero). Do total, 117 adolescentes eram PCD's, 241 adolescentes encontravam-se gestantes e, ou, com filhos e 55 meninos com filhos. Relativo à incidência infracional, diferentemente do meio fechado, a maior incidência é de ato infracional tipificado como tráfico de drogas, seguido de roubo e furto (no meio fechado, a prática de roubo supera ao de tráfico). Aqui, se faz importante abrir um parêntese, para talvez justificar a maior incidência da prática infracional de ato equiparado ao crime de tráfico de drogas que, o referido crime embora sua hediondez, não dá ensejo por si só, a aplicação de medida socioeducativa em meio fechado, embora muitos magistrados ainda assim, entendem de forma diversa, por não apresentar violência ou grave ameaça à pessoa (requisitos estes presentes no art. 122, ECA, para justificar a aplicação da medida mais gravosa, no caso, internação). Neste sentido, após a impetração de alguns habeas corpus1, o ato infracional de tráfico de drogas passou a ser motivo para o ensejo das medidas em meio aberto, tanto Liberdade Assistida, quanto Prestação de Serviços à Comunidade. É importante suscitar que o tráfico de drogas, conforme a OIT, é considerado uma das piores formas de exploração de trabalho infantil e, merece um olhar diferenciado frente aos demais atos infracionais, pois para além da venda da droga, estamos diante da criminalização dos pobres e da juventude e das próprias estratégias de sobrevivência dessa população. Embora não seja este o enfoque que queremos dar, a questão do tráfico, muitas vezes, está interligada às questões de classes sociais e raça, para tanto, basta observarmos a dinâmica do aprisionamento e criminalização desta juventude. Também importante mencionar que, diferentemente do que é debatido em sociedade, que ainda defende a coercitividade e a punição como resposta ao crime, e muitas vezes defendido na mídia (sensacionalista), os números de casos de atos infracionais relacionados aos crimes contra a vida, são ínfimos. E, independentemente de ser medida em meio aberto ou fechado, o próprio levantamento do SINASE, já aponta números baixos de crimes contra a vida na internação. Majoritariamente, os adolescentes são apreendidos ou por cometimento de ato infracional - crime contra o patrimônio (roubo, furto) ou por envolvimento no tráfico de drogas (associação ao tráfico, tráfico ou porte de drogas). As práticas infracionais, às quais nos referimos, são muitas vezes, justificadas em pesquisas, pelo viés consumerista que já retratamos acima e, as motivações, tantos dos meninos, quanto das meninas são muito similares. Surgem como os principais fatores para o ingresso nessa prática delitiva: alcançar a visibilidade social, conquistar uma posição que lhe permita o exercício do poder, ganhos financeiros, além de status e possibilidades de ostentação de bens materiais e de consumo. No que tange à raça, embora seja o Brasil, um país de uma diversidade étnica racial, o ingresso no Sistema Socioeducativo, continua sendo predominantemente de adolescentes que se declaram de cor parda ou preta, sendo estes 63,8% do total de ingressos, contra 22,3% daqueles que se declaram brancos, o que nos suscita a importância de refletirmos sobre como o racismo também impacta de maneira significativa o atendimento socioeducativo no país e, principalmente, debater a respeito da seletividade penal, punitivismo e criminalização das classes, consideradas ainda "perigosas" pela sociedade. Muito embora queiramos desvincular a questão econômica ou de classe social da incidência de atos infracionais, 19,1% dos adolescentes, estão inseridos em famílias com renda de até 1 salário-mínimo, e 58,9% de famílias que sobrevivem de atividades informais ou sem qualquer renda. Estes adolescentes, ou são oriundos de centros urbanos (30,1%) ou de regiões periféricas (26,7%). Em relação a outros dados relevantes, temos que no que tange à educação, à época da coleta dos dados, o levantamento demonstra que 10.465 adolescentes estavam inseridos na escola, 6.690 frequentavam cursos ou atividades de profissionalização, 1.020 em atendimento no CAPSi e 647 em acompanhamento pelo CAPS AD. Diante destes números, fica explicito que a realidade de desigualdades e exclusão social de adolescentes em conflito com a lei reforçam ainda as mesmas violações de direitos e exposições às mais diversas formas de violências vivenciadas por eles cotidianamente e, muito embora, tentemos fugir dos esteriótipos já descritos, retornamos ao status quo, ou seja, de adolescentes com vínculos familiares fragilizados, situação de abandono escolar, desemprego ou em condições de sub-empregos, baixo nível socioeconômico e exposição precoce na marginalidade ou situações de violências, sendo cooptados pelo tráfico de drogas e outras práticas delitivas que os levam ou ao Sistema de Justiça, ou à morte, nos casos mais extremos. __________  Referências BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providencias. Brasília: Presidência da República, 1990. BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Levantamento Nacional do Atendimento de dados do SINASE - 2023, Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023. COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processualista e o direito penal juvenil: como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. NARDI, F.L.; DELL'AGLIO, D.D. 2012. Adolescentes em conflito com a lei: Percepções sobre a família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, p.181 - 191. __________ 1 HC 173636 PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 16/09/2010, DJe 04/10/2010. HC 180953 PE, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 05/05/2011, DJe 18/05/2011. HC 185474 SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 07/04/2011, DJe 28/04/2011.  HC 213778 RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 22/05/2012, DJe 28/05/2012. HC 231459 PE, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 03/05/2012, DJe 14/05/2012. 
O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069/90, inaugurou uma nova ótica frente aos adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional, principalmente, ao instituir por intermédio do artigo 112, medidas cujas quais, para além da responsabilização, tem o viés socioeducativo, capaz de proporcionar a este sujeito de direitos, a reflexão perante sua ação e a ressignificação desta ação em sociedade. Em 2006, passados 16 anos desde a sanção do ECA, é apresentado o SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, cuja construção concentrou-se especialmente num tema, que há tempos já mobilizava a opinião pública em diversos segmentos da sociedade: como enfrentar situações de violência que envolviam adolescentes enquanto autores de ato infracional ou vítimas de violações de direitos no cumprimento de medidas socioeducativas. O SINASE, bem como sua implementação, tinha por objetivo, lá em 2006, o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios de Direitos Humanos. Entretanto, mesmo sendo um documento com diretrizes e parâmetros claros sobre a Política Socioeducativa, principalmente, em relação a natureza pedagógica da medida socioeducativa, a Resolução 113/06, que instituiu o SINASE, não trouxe em seu escopo, o modus operandi para a execução das propostas incutidas nesta resolução, deixando um "vácuo normativo" para a concretização destas com vistas a garantia de direitos e proteção aos adolescentes autores de ato infracional. A fim de suprir essa "carência normativa" e, por também ter sido traçado como meta, foi apresentado em 2007, o projeto de lei 1.627, cujo objetivo era a instituição do SINASE e o estabelecimento de um padrão de execução das medidas socioeducativas em todo território nacional. O mesmo foi aprovado em plenária pela Camara dos Deputados em junho de 2009 e, finalmente sancionado pela Presidência da República, transformado na Lei 12.594, de 12 de janeiro de 2012. A Lei do SINASE, como assim ficou "popularmente" conhecida, além de instrumentalizar a execução das medidas, trouxe em seu escopo parâmetros claros em relação a responsabilidade dos entes na esfera nacional, estadual e municipal. Para além de padrões arquitetônicos, normas relativas aos Sistemas Estaduais, Municipais e Distritais, a Lei trouxe a obrigação da elaboração de planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei, possibilitando um novo olhar a este adolescente, a partir de sua individualidade e história de vida. Contudo, passados 11 anos de sua sanção, é notória a (in) visibilidade da efetividade da politica socioeducativa, haja vista que, mesmo sendo uma ferramenta de efetivação ao principio basilar do ECA, que é a proteção integral de crianças e adolescentes, aqui no caso, adolescentes autores de ato infracional, ela ainda segue os mesmos padrões estigmatizadores e exclusivos da situação irregular. A lei, em seu artigo 1º, §2º, inciso II, refere que a medida socioeducativa tem por objetivo a reintegração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio de seu plano individual de atendimento, mas o que se percebe ainda é a negação aos seus direitos, haja vista, as altas taxas de exclusão escolar, discriminação em decorrência de raça e cor, violência institucional e policial, dentre tantas outras violações. Outro dado que nos faz refletir sobre a executoriedade da lei, são os processos de avaliação e monitoramento dos Planos Decenais de Atendimento Socioeducativo, nas esferas nacional, estadual e municipal. Estes planos, com período de dez anos, tinham por meta de inicio a elaboração do plano nacional, sequencialmente, o estadual e por fim, o municipal/distrital e, sua elaboração não tinha por escopo o cumprimento de mera formalidade burocrática ou de cumprimento de uma determinação legal, mas sim, promover a intersetorialidade entre as politicas, capazes de ensejar um atendimento de qualidade, individualizado e especializado não só aos adolescentes, mas extensivo aos seus familiares. O Plano Nacional foi aprovado pela Resolução CONANDA nº 160, de 19 de novembro de 2013, 22 meses depois da publicação da lei do SINASE. E competia, passados 360 dias, a elaboração e aprovação dos planos estaduais e, por fim, municipais e distrital. Aqui, necessário abrir um parêntese à competência atribuída à União de manter o processo de avaliação dos Sistemas de Atendimento Socioeducativo, seus planos, entidades e programas (art. 3º, VII, lei 12.594/12), mas que desde 2017, não realiza o Levantamento Nacional Socioeducativo, instrumento utilizado para coleta de dados sobre adolescentes em conflito com a lei (em especial, nas medidas de internação e semiliberdade). Ainda sequer há um cruzamento que nos permita ter acesso a dados precisos quanto aos adolescentes egressos do sistema que tiveram êxito quanto à sua "ressocialização". O aumento nos números de jovens de 18 a 24 anos encarcerados no Sistema Penitenciário pode ser um reflexo negativo das ações que deixaram de ser efetivadas no momento oportuno quando do egresso do Sistema Socioeducativo. Tampouco observamos uma interface SUAS - SINASE, ao passo de que seja, minimamente, traçado um perfil do adolescente autor de ato infracional, que por fatores diversos, ingressou no sistema socioeducativo nas medidas em meio fechado ou aberto, como mecanismo de fomento às politicas públicas necessárias ao desenvolvimento deste sujeito de direitos, principalmente, a fim de fazer prevalecer o princípio da Incompletude Institucional prevista no art. 86 do ECA, na garantia plena dos direitos deste público alvo. Não podemos também deixar de pontuar que o CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos atributos de suas funções, nos últimos anos deixou de efetivamente avaliar e monitorar as ações previstas no Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo, e num efeito dominó, isso refletiu negativamente, nas ações do CONDECA - Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos Estados e Municípios. Estes fatos, nos mostram que, embora criada para uniformizar e padronizar as politicas, serviços e programas de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, a Lei do SINASE, segue na (in)visibilidade das politicas públicas. E, passados 11 anos de sua sanção, muitos de seus parâmetros e diretrizes, foram "engavetados"junto com seus Planos Decenais pelas políticas governamentais dos últimos anos, enfraquecendo, de certo modo, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, que necessitará romper com os fragmentos deixados pelas gestões passadas, a fim de promover politicas intersetoriais efetivas com vistas a garantia dos direitos da população infantojuvenil dentro do campo das medidas socioeducativas.
O mês de agosto, a partir da sanção da lei 14.617/23, passou a ser considerado o Mês da Primeira Infância no país. Esta iniciativa visa, principalmente, promover e dar visibilidade a pauta da primeira infância no Brasil, discutindo a importância a qual deve ser dada aos cuidados na fase que vai desde a gestação até os primeiros seis anos de vida da criança. A referida Lei Federal prevê ações integradas de conscientização sobre o tema e fomenta o atendimento multiprofissional a crianças de 0 a seis anos, conforme descritas no Marco da Primeira Infância1, lei 13.257, de 08 de marco de 2016, que completou 7 anos de sua existência. A primeira Infância é importante porque, como aponta Gaby Fujimoto2, nela se estruturam as bases fundamentais do desenvolvimento humano, tanto físicas como psicológicas, sociais e emocionais, as quais vão se consolidando e se aperfeiçoando nas etapas seguintes do desenvolvimento3. Estudos científicos comprovam que, do nascimento aos primeiros seis anos de vida, uma criança é capaz de desenvolver-se das mais diversas formas e, a partir das experiências vivenciadas neste período, pode ser impactada positiva ou negativamente ao longo de sua vida. Estes estudos, iniciados há décadas, vem acumulando inúmeras evidências da importância dos primeiros seis anos de vida no desenvolvimento do ser humano e, se por um lado este período pode ser considerado como aquele de maiores oportunidades para a plenitude da vida, ele também é aquele de muitas vulnerabilidades e de extrema suscetibilidade às influências e ações externas, como a violência e a pobreza. Deste modo, se a criança nasce e cresce em um ambiente cercado de afeto, respeito, estímulos positivos ao seu desenvolvimento, muito provavelmente terá um desenvolvimento sadio. Contudo, se ela nasce e cresce num ambiente hostil, permeado das mais diversas formas de violações a seus direitos e garantias, é provável que terá impactos negativos em sua saúde, educação, relacionamentos sociais etc. Entretanto, cabe aqui uma breve reflexão: a qual infância estas legislações se destinam afinal? Pois, é sabido que o Brasil é multicultural e possui não só uma infância, mas várias infâncias, cada qual com suas particularidades. Será que, de fato, todas as infâncias são objetos deste cuidado? Segundo dados prévios da coleta do Censo Demográfico de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que há no país cerca de 68,6 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos. Segundo pesquisa recente do UNICEF, deste total, cerca de 32 milhões de crianças e adolescentes vivem na pobreza (aqui abarcando a pobreza em suas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e moradia) E, numa situação ainda pior, 10,6 milhões de crianças e adolescentes4 (de 0 a 14 anos) vivem em condições de extrema pobreza. Ou seja, parte de toda uma população submetida às mais diversas violências, em que as politicas públicas elencadas como prioritárias no Marco da Primeira Infância, não são contempladas em sua integralidade, pelo contrário, é escassa, quando não, ausente. Não obstante retratar em números a questão socioeconômica na qual grande parcela da população infantojuvenil se encontra, faz-se importante retratar outras violências às quais as crianças são cotidianamente submetidas. E, num recorte por faixa etária e cor, as crianças negras são as maiores vítimas. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança apontam que 67,1% de crianças vítimas de mortes violentas intencionais eram negras, numa faixa etária de 0 a 11 anos; sendo que 55,8% foram mortas por arma de fogo. Ainda neste sentido, dados do "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil", que é fruto de uma parceria entre a UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que de 2016 (ano de sanção do Marco da Primeira Infância) e 2020, foram 35 mil crianças e adolescentes mortos de forma violenta no Brasil. Este mesmo levantamento reforça os dados citados do Anuário Brasileiro, ou seja, a maioria das vítimas eram meninos negros, cerca de 1.070, entre 0 e 9 anos. Cabe aqui ressaltar que, só no primeiro semestre de 20235, houve um aumento de 24% de denúncias e 53% de violações contra crianças e adolescentes no país. Diante destes dados, reforço o questionamento deste texto, "A quais infâncias as referidas legislações se destinam?", considerando que no Brasil a primeira infância carece de uma atenção mais focada, sensível às particularidades da idade e, infelizmente, nem todas as crianças nesta faixa etária terá efetivo o acesso às políticas públicas e/ou cuidados essenciais ao seu desenvolvimento. Historicamente, a infância no Brasil foi e tem sido marcada por diversas formas de privações e violações, de maus tratos, a abusos sexuais, mas repensar este marco temporal que fixa a prioridade de políticas estatais para esse público, pode minimizar tais situações a fim de assegurar acesso e proteção aos mais diversos direitos fundamentais. Não podemos resumir a defesa da infância à leis ou datas comemorativas, mas sim, tratá-la como uma missão cotidiana, capaz de produzir frutos que nos levem de fato a ações propositivas, mas que venham a ser efetivadas. E mais, ter como premissa que estas leis atenderão desinteressadamente crianças reais, distintas da criança universal, abstrata e conceitual, a cuja qual tudo é possível - apenas no papel. Deverão atender, sem quaisquer distinções, todas as crianças que tem rosto e nome, que em sua maioria moram nas regiões periféricas de nossas cidades, que necessitam de creche ou pré-escola de qualidade, que buscam atendimento nos postos de saúde, querem atenção e espaços adequados para exercer o seu direito de brincar e, acima de tudo, desejam ter o pleno desenvolvimento do artigo 227 da Constituição Federal, bem como os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçados pelo Marco Legal da Primeira Infância. Trata-se de um grande desafio olhar as infâncias a partir das distintas realidades em que crianças de 0 a 6 anos encontram-se inseridas, em especial sob o argumento das diferenças econômicas, sociais e culturais às quais são submetidas. Mas, ainda assim, requer-se das políticas estatais, com máxima urgência, a devida proteção e cuidados no desenvolvimento integral da criança nesta fase de sua vida. __________ 1 Nota: No Brasil, considera-se primeira Infância o período até os seis anos de idade (72 meses de vida). 2 Doutora em Educação, Especialista em Primeira Infância. 3 CRC/C/GC/7/ Rev.1, OBSERVAÇÃO GERAL nº 7 (2005). "Definição da primeira Infância (.) varia nos diferentes países e regiões, segundo suas tradições locais e a forma em que estão organizados os sistemas educacionais. Em alguns países, a transição da etapa pré-escolar à escolar ocorre pouco depois dos 4 anos de idade. Em outros países, esta transição ocorre por volta dos 7 anos". 4 Relatório Fundação Abrinq "Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil 2023" 5 Fonte: Disque 100/MDHC.
O abuso sexual contra crianças em ambiente digital transcende fronteiras. Na medida em que a tecnologia avança, as modalidades para o cometimento dos crimes em meio virtual fortalecem a possibilidade do anonimato dos autores, necessitando de uma grande rede de proteção para combater e prevenir os atos criminosos em face desse grupo tão vulnerável que, no Brasil, representa um terço da população. O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90, prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação. Importante destacar que a terminologia "Pornografia Infantil", conforme as Diretrizes de Luxemburgo (2016), deve ser substituída por "Abuso Sexual", a fim de que sejam abarcadas as condutas criminosas de produzir, possuir e/ou compartilhar os materiais ilícitos em desfavor de crianças e colocando-as devidamente como vítimas, haja vista a impossibilidade de consentimento em situação de abuso. Não custa lembrar que o art. 227 da Constituição Federal do Brasil de 1988 prevê que É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  Exige-se, portanto, uma cooperação efetiva não só entre os Estados, mas entre a sociedade como um todo, bem como aos membros das famílias, a fim de que sejam garantidos os direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes, com a absoluta prioridade que preconiza a nossa Carta Magna. Assim, em que pesem os riscos oferecidos pelas ferramentas tecnológicas que podem inserir as crianças em situação de risco e vulnerabilidade, necessário se faz o uso dessas mesmas ferramentas para combater o abuso sexual contra elas no ambiente virtual. Nesse sentido, importante frisar o papel crucial das plataformas digitais para a cooperação internacional na transferência de dados às autoridades locais, a fim de apurar os fatos a partir de conteúdos suspeitos, bem como para identificar a autoria que se busca esconder através do anonimato na internet, a fim de cessar a conduta criminosa e punir os agentes. O NCMEC - National Center for Missing & Exploited Children, por exemplo, é uma organização não governamental e sem fins lucrativos que recebeu apoio do Governo norte-americano para estabelecer mecanismo centralizado de recebimento indicativos de materiais de abuso sexual infantil. No Brasil, a ONG SaferNet oferece um canal de denúncias para crimes identificados em meio virtual. Neste ano de 2023, as denúncias relacionadas às imagens de abuso e exploração sexual infantil online compartilhadas pela plataforma com as autoridades aumentaram 70% no primeiro quadrimestre. A empresa Google, uma das principais big techs, consegue filtrar em suas plataformas como Gmail, Photos e Drive, e identificar material com suspeita de conteúdo ilícito. A partir dessa ferramenta, é feita a procurar de hashes, identificador numérico, a fim de verificar se as imagens já fazem parte de algum acervo que visa o combate ao abuso sexual infantil ou, através do uso de machine learning, se trata de produção nova. A partir dessas informações, as empresas passam a compartilhar os dados dos usuários suspeitos às autoridades competentes, para que sejam identificados os agentes criminosos e apurada a conduta ilícita para promover a proteção às vítimas. Conforme abordado acima, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação. No que tange à tipificação das condutas previstas nos artigos 241-A e 241-B do Estatuo da Criança e do Adolescente, recente informativo do Superior Tribunal de Justiça (n. 782) aponta a autonomia das condutas e inaplicabilidade do princípio da consunção, o que indica, portanto, a possibilidade de reconhecimento de concurso material dos crimes, fortalecendo os mecanismos de combate a ações conflitantes com a lei que resultam nas vulnerabilidades ora tratadas ao público infantoadolescente. Assim, é de suma importância o compartilhamento das informações detalhadas trazidas pelas instituições que recebem as denúncias pelas plataformas digitais, a fim de enriquecer o arcabouço probatório para configurar as condutas criminosas praticadas. Com efeito, é sabido que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobres os Direitos da Criança, conforme o Decreto n° 99.710/90. O art. 34 da referida Convenção prevê que os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual, e tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir a exploração sexual infantil. Dessa forma, imperiosa se faz a observância quanto à legalidade do compartilhamento de informações entre as empresas e instituições internacionais que se dispõe a reportar os materiais ilícios e os dados dos usuários que praticam as condutas ilegais para fins de apuração pelas autoridades do Brasil. Ademais, como mencionado acima, o art. 227 da Constituição Federal prevê o dever não só estatal, mas social, com prioridade absoluta, em proteger as crianças e adolescentes de toda forma de abuso, principalmente considerando a hipervulnerabilidade desse grupo social. Por fim, vê-se inquestionável a necessidade em utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para prevenir e denunciar os abusos sexuais infantojuvenis sofridos em ambiente virtual, a fim de tornar o meio virtual um ambiente seguro paras as crianças e adolescentes do nosso país. Referências BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023. HENRIQUES, Isabella. Direitos Fundamentais da Criança no Ambiente Digital: o dever de garantia da absoluta prioridade. São Paulo, Thomson Reuters Brasil - Revista dos Tribunais, Ano 2023. FEAC. ''Combater abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes é uma luta de todos''. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. SAFERNET. ''Denúncias de imagens de exploração sexual infantil online compartilhadas pela SaferNet com as autoridades tem aumento de 70% em 2023''. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.
No último dia 12 de junho, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil lançou a campanha "Proteger a infância é potencializar o futuro de crianças e adolescentes. Chega junto para acabar com o trabalho infantil"1, que propõe um chamado à sociedade para erradicar o trabalho infantil, observando que a proteção à infância é fundamental tanto para o enfrentamento do trabalho infantil, como para o florescimento das potencialidades de crianças e adolescentes. A data (12 de junho) foi instituída no ano de 2002, pela OIT - Organização Internacional do Trabalho, como Dia Mundial contra o trabalho infantil e no Brasil no ano de 2007 pela Lei nº 11.542/2007 (Dia Nacional de Combate ao Trabalho Infantil). Mas, a questão do trabalho infantil não é uma problemática dos tempos atuais. Há informações na literatura de ocorrência da exploração de crianças e adolescentes desde a Antiguidade, pelas sociedades escravocratas. Não muito diferente, era a inserção de crianças e adolescentes nos mais diversos tipos de trabalhos, na Idade Média, como forma de contribuir para a situação financeira de suas famílias. Ou seja, desde os primórdios, já normalizavam a inserção e exploração servil da mão de obra infanto-juvenil, sem levar em consideração seu desenvolvimento enquanto ser em condição peculiar. E o que é o trabalho infantil? Segundo a Convenção 1382 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, o trabalho infantil é aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima de contratação exposta pela legislação local. Essa prática persiste em todo mundo, e em suas piores formas, aquelas descritas na Convenção 182 da OIT3, principalmente, nos casos de crianças e adolescentes, cujas famílias, encontram-se em condições de pobreza ou de extrema pobreza. Vale mencionar que a Convenção 138, foi ratificada pelo Brasil através do Decreto 4.134, de 15 de fevereiro de 2002 e a Convenção 182, pelo decreto 3.597, de 12 de setembro de 2000. Embora considerada uma prática condenável, principalmente, por ser uma grave violação de direitos humanos de crianças e adolescentes, até o ano de 2019, cerca de 1,8 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se em condição de exploração de trabalho infantil no Brasil segundo dados do PNAD4 (Programa Nacional por Amostra de Domicilio) do IBGE, com idades entre 5 e 17 anos; deste montante, cerca de 706 mil, encontravam-se inseridos nas piores formas de trabalho infantil, previstos na lista estabelecida no país por intermédio do Decreto 6.481/2008. Vale aqui mencionar que, dentre as 89 modalidades, estão o trabalho doméstico, venda de bebidas alcoólicas, coleta de materiais recicláveis, trabalho na rua (comércio de rua, guardador de carros, carregador de bolsas em feiras, etc.), exploração sexual, trafico de drogas, além de trabalhos análogos a escravidão. Esta situação agravou-se com a decretação do estado pandêmico, no ano de 2020, quando, aumentou-se os casos de famílias em situações de extrema pobreza e moradores de ruas. Outro fator preponderante para este aumento, foi o fechamento das escolas, em especial, nos locais em que era mais dificultoso o acesso a modalidade de ensino a distância, aumentando o tempo ocioso das crianças e adolescentes e propiciando sua permanência na rua para fins de trabalho. Deste modo, não podemos falar de exploração de trabalho infantil sem relacioná-la a condição de pobreza e desigualdade social, uma vez que esta demanda atinge em sua maioria, crianças e adolescentes, residentes em regiões periféricas. A referida pesquisa de 2019 confirma as características do trabalho infantil apontadas em pesquisas anteriores. A maioria dos trabalhadores infantis eram meninos (66,4%) negros (66,1%); 21,3% (337 mil) estão na faixa etária de cinco a 13 anos. A faixa etária de 14 e 15 anos corresponde a 25% (442 mil). A pesquisa apontou também que 53,7% têm entre 16 e 17 anos (950 mil). O trabalho infantil fere o disposto no art.2275, da Constituição Federal, e responsabiliza o Estado, a Sociedade e a Família a promover ações com vistas a prevenir e erradicar sua ocorrência, com vistas a proteção integral de crianças e adolescentes. Equivoca-se aquele que ainda reproduz que a premissa de que "é melhor trabalhar do que roubar" ou que equipara crianças e adolescentes em situação de trabalho nas ruas a empreendedores mirins, justificando cenas cotidianas de exploração de trabalho infantil nas ruas dos grandes centros. O trabalho infantil acarreta inúmeros prejuízos ao desenvolvimento físico, moral, psíquico e social de crianças e adolescentes, ao expô-los a situações perigosas, insalubres, penosas, e é isto que todos devemos coibir e não alimentar. Crianças e adolescentes, em quaisquer classes socioeconômicas, devem ter seus direitos, aqueles assegurados no art. 227, da CF e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente6, protegidos, não violados. É de suma importância ressaltar que a Constituição Federal criminaliza a exploração do trabalho infantil, a Consolidação das Leis do Trabalho7, estabelece normas para a inserção de maiores de 14 anos no mercado formal de trabalho e o ECA o faz a partir do capítulo V, reforçando a proteção necessária para os casos de trabalho infantil. Cumpre-nos destacar que o Brasil assumiu o compromisso junto a OIT e à ONU, por intermédio da Agenda 2030 (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) - Meta 8.78, de promover ações com vistas a erradicação do trabalho infantil até o ano de 2025, e em análise aos dados dos últimos relatórios sobre o tema, é notório que ainda há muito que se fazer, sendo a principal ação, o cumprimento efetivo da legislação vigente de proteção integral das crianças e adolescentes, de proibição do trabalho infantil. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.
No dia 15 de junho de 2023 o site do Superior Tribunal de Justiça divulgou julgado no qual a Corte entendeu pela possibilidade do filho atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais1, cujo número não foi divulgado em razão do sigilo processual. Do que se lê da notícia, o STJ interpretou o artigo 447, § 2º, inciso I, do Código de Processo Civil, cujo texto diz: "Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. (...) § 2º São impedidos: I - (...) o ascendente (...) salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito". Pela literalidade da lei, como se vê, os filhos (ascendentes em primeiro grau) são impedidos de depor como testemunha. O STJ, contudo, entendeu que tal regra de impedimento só é válida quando o filho presta depoimento como testemunha em processo no qual o seu pai e/ou a sua mãe litiga contra uma terceira pessoa, não incidindo, porém, nos casos em que a demanda é proposta pelo pai em desfavor da mãe, ou vice-versa. Para o STJ, nas hipóteses em que a pessoa que presta depoimento possui idêntico vínculo com ambas as partes não há presunção de parcialidade e a regra não tem razão para se aplicar. A notícia divulgada no portal eletrônico do Superior Tribunal de Justiça não esclarece se o filho ouvido como testemunha é maior ou menor de idade. De todo modo, a idade não parece ter sido o objeto da divergência levada à apreciação pelo Tribunal Superior, e sim o alcance da regra objetiva que impede o ascendente de atuar como testemunha. Sem embargo, com a resposta positiva do STJ, que confirmou que o filho pode sim atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais, uma nova questão se abre no horizonte: o filho menor de 18 (dezoito) anos de idade pode atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais? O mesmo artigo 447 do Código de Processo Civil prescreve, no § 1º, inciso III, que "§ 1º São incapazes: (...) III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos". Trata-se de reprodução do artigo 405, § 1º, inciso III, do Código de Processo Civil de 1973. De acordo com o texto literal do CPC, portanto, as crianças (pessoas até doze anos de idade incompletos) e os adolescentes que tenham entre doze e dezesseis anos incompletos não poderão ser ouvidos como testemunhas. São incapazes de testemunhar. A ratio da regra está indisfarçavelmente conectada ao artigo 3º, caput, do Código Civil (antigo art. 3º, inciso I, na redação anterior à lei 13.146/2015), que dispõe: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos". A propósito, a mesma previsão estava contida no artigo 5º, inciso I, do Código Civil de 1916. Logo, toda pessoa com menos de dezesseis anos de idade é considerada pela legislação civil brasileira, material e processual, como incapaz. Incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil. Incapaz de testemunhar. Assim sendo, levando em conta apenas e tão somente a literalidade da lei em cotejo com a recente decisão do STJ, concluiríamos que o filho pode atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais, mas, desde que tenha mais de 16 (dezesseis) anos de idade. Entretanto, desprendendo-se da letra "fria" da lei, a conclusão deixa uma inquietante lacuna e uma dúvida que carece de adequada solução: o filho menor de 16 (dezesseis) anos não poderá prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais? A nosso ver, ainda que não venha a ser admitida formalmente como testemunha, a criança e/ou o adolescente que tiver menos de 16 (dezesseis) anos de idade poderá ser ouvida no processo de divórcio de seus pais, mesmo que a título de "informantes". Em primeiro lugar porque ser ouvido e manifestar os seus pontos de vista e as suas opiniões é um direito que é reconhecido a toda criança e a todo adolescente pelo artigo 12 da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, que diz ser assegurado "à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança" e que, por consequência, deve ser proporcionado à criança "a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma" (BRASIL, 1990). A doutrina especializada aponta que o artigo 12 da Convenção da ONU agasalha o direito à participação, conceito que projeta a criança como sujeito pleno de direitos, "capaz de formar e expressar opiniões, participar de processos decisórios e influenciar soluções"2 (PAIS, 2000, p. 93). Ou seja, a criança e o adolescente têm o direito de participar de todos os processos judiciais que sejam de seu interesse ou que tenham o condão de afetar as suas vidas, como é o caso da ação de divórcio, na qual pode ser decidido, por exemplo, a qual dos genitores será concedida a guarda da criança ou do adolescente. Porém, lamentavelmente, "muitos são os processos judiciais nas Varas de Família e nas Varas da Infância e da Juventude que trazem a criança e o adolescente não como sujeitos a serem ouvidos, mas sim como objetos de disputa acirrada entre os familiares" (BRETZ, 2023, p. 89). É preciso mudar esse cenário, de exclusão, em que os rumos da vida dos filhos são tomados à sua revelia, como se fossem meros objetos de intervenção, e não sujeitos de direitos cuja vida pode ser sensivelmente impactada pela decisão tomada pelos adultos. Noutras palavras, é preciso dar voz às crianças, ouvindo-as. E mais: é insuficiente apenas tomar os seus depoimentos, pois "não basta apenas dar às crianças o direito de serem ouvidas. Também é importante levar a sério o que eles têm a dizer"3 (LANSDOWN, 2005, p. 03), sem que isso signifique que o juiz deva acatar, necessariamente, o desejo da criança. Não. Mas, deve levá-lo em conta no momento de decidir, devendo fundamentar as razões por que entende ser mais prudente e benéfico à criança decisão contrária à sua manifestação. Em segundo lugar porque a oitiva da criança ou do adolescente, de modo irrestrito, em laudos e estudos psicossociais, por meio do setor técnico do juízo (assistentes sociais e psicólogos judiciários), pode não ser a solução mais consentânea com o direito à participação em todo e qualquer caso. Nesse sentido, aliás, a lei 13.431/2017 deixou claro que deve se assegurar à criança e ao adolescente também o protagonismo para decidir sobre a forma de sua participação. A criança e o adolescente têm o direito de prestar depoimento, seja através de métodos adaptados de inquirição (depoimento especial), seja diretamente ao magistrado. Inclusive, é preciso deixar claro que a criança e o adolescente têm o direito de depor, mas não o dever. A participação é um direito a eles assegurado e não uma obrigação imposta. Foi o que reconheceu a Diretriz 46 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças: "O direito a ser ouvido é um direito, e não um dever, da criança". Como consequência, algumas regras formais devem ser flexibilizadas e não há que se falar em condução coercitiva da criança ou adolescente arrolada como testemunha e que não comparece para depor (CARVALHO, 2021) e tampouco deve ser tomado o compromisso da criança ou adolescente de dizer a verdade sob juramento (nesse sentido, aliás, o artigo 22 da Lei Modelo para a Justiça em Matérias que envolvam Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes prevê que "crianças testemunhas recebam total imunidade de processo criminal por prestar falso testemunho"4 (UNODC/UNICEF, 2009, p. 51). Em terceiro lugar porque depor em juízo, seja como testemunha ou um informante, confere agência às crianças e adolescentes e podem trazer-lhes benefícios. De fato, dentre as vantagens da participação, MILLER (2009) indica que as crianças aprendem a expressar os seus próprios interesses, desenvolvem habilidades de cooperação, negociação e resolução de problemas e assimilam que contribuíram para a decisão, o que aumenta seu compromisso em efetivá-las. Além disso, "as percepções obtidas das crianças ajudam os adultos a trabalhar com mais eficiência e garantem que os serviços prestados sejam relevantes para as necessidades das crianças"5 (MILLER, 2009, p. 05). À vista do que foi dito, respondendo à pergunta lançada acima, é forçoso concluir que, nada obstante a literalidade do texto do Código Civil e do Código de Processo Civil (cujo teor se assentam em bases adultocêntricas que se baseiam no critério exclusivo da idade, desconsiderando as competências infantojuvenis e que, por isso, merecem urgente revisão, assunto que ultrapassa os limites desse artigo), o filho menor de 16 (dezesseis) anos poderá sim prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais, notadamente quanto às questões existenciais envolvidas na lide e que estejam diretamente envolvidas, como a guarda e o regime de visitação, excluídas, portanto, questões meramente patrimoniais como a disputa por bens. Nesse sentido, diz o Enunciado nº 138 da III Jornada de Direito Civil do CJF: "A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto". Assentado o direito das crianças e dos adolescentes de participarem dos processos de divórcio de seus, sendo ouvidas como testemunhas, é preciso salientar, por derradeiro, que nem sempre será recomendável a oitiva em todo e qualquer hipótese. Pelo contrário, é recomendável que, previamente à escuta, seja feita avaliação preliminar, pelo setor técnico, a fim de averiguar o impacto da entrevista para a criança e o adolescente. Afinal, não se olvida que "os acirrados embates entre os genitores, em disputas judiciais, acabam por tornar a vida das crianças e dos adolescentes um campo de batalha minado, em que não raro há conflitos de lealdade dos filhos em relação aos genitores" (BRETZ, 2023, p. 90), razão pela qual é preciso perquirir (e a avaliação preliminar é ideal para tanto) até que ponto depor em juízo pode colocar a criança ou o adolescente num conflito de lealdade que, ao fim e ao cabo, viola o seu interesse de manter uma boa e harmoniosa convivência com ambos os pais. Justamente por isso, é preciso que a criança e o adolescente sejam informados das possíveis consequências de seu depoimento e que se colha o seu consentimento informado para participação voluntária. Em outras palavras, é preciso que, previamente ao depoimento, crianças e adolescentes sejam consultados acerca de sua participação como testemunhas, momento no qual devem ser repassadas informações importantes acerca de tal participação. E é preciso se pensar, inclusive, o modo como deve ser feita tal consulta. Nas palavras de MELO (2021, p. 29), "para garantir o livre exercício do direito de ser ouvido, é importante não apenas proporcionar um contexto institucional onde ele se sinta confortável e seguro para entender o significado e o impacto da participação, mas também que essa consulta possa ser significativa e compreensivo"6. Não se admite, pois, que as partes (no caso, o ex-casal que litiga em juízo, genitores das crianças e adolescentes) arrolem a prole como testemunhas e o magistrado simplesmente defira o pedido e designe audiência. Não. É imprescindível cautela: as crianças e os adolescentes devem ser consultados e se recomenda a avaliação preliminar.  Em suma, "antes de decidir se os filhos devem testemunhar em questões familiares, deve-se levar em consideração a sua posição vulnerável na família e o efeito que tal testemunho pode ter nos relacionamentos presentes e futuros. As crianças devem ser informadas das consequências de testemunhar ou não" (IAYFJM, 2017, p. 81). Por fim e finalmente, caso se decida pela oitiva da criança e/ou do adolescente como testemunhas em ações de divórcio, é fundamental que se pense como ocorrerá, na prática, essa escuta. De fato, o depoimento deve ser prestado em ambiente e em formato que mais favoreça o exercício das competências da criança ou do adolescente, portanto, em ambiente adaptado e amigável (child-friendly), sendo recomendável que seja tomado em sala especial, com a intermediação de entrevistador forense e seguindo-se protocolos específicos7. O divórcio dos pais é uma matéria que perpassa por uma série de questões que afetam diretamente os filhos e, por isso, nos termos do artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989), mesmo sendo crianças e adolescentes têm o direito de serem ouvidos como testemunhas, observadas as cautelas necessárias. É chegada a hora de trazer as crianças como participantes dos processos, como sujeitos de direitos, que têm voz e não como meros objetos a quem se imporão os efeitos práticos das decisões judiciais. Referências bibliográficas  BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023. BRETZ, Talita. Os conflitos familiares na justiça: desafios da atuação integrada e protetiva da infância. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, v. 56, Belo Horizonte, MG, IBDFAM, mar./abr. 2023, p. 86-122. CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. A impossibilidade da condução coercitiva de criança e adolescente, vítima ou testemunha de violência, no Processo Penal brasileiro. Revista do CNMP, n. 9, Brasília, DF, CNMP, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 21 jun. 2023. IAYFJM. International Association of Youth and Family Judges and Magistrates. Diretrizes: crianças em contacto com o Sistema de Justiça. IAYFJM, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023. LANSDOWN, Gerison. Can You Hear Me? The right of young children to participate in decisions affecting them. Working Papers in Early Childhood Development, No. 36. Bernard van Leer Foundation, The Hague, The Netherlands, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023. MILLER, Judy. Never too young. How young children can take responsibility and make decisions. London, Save the Children, 2003.  MELO, Eduardo Rezende. Child participation in family and protection matters: an AIMJF's collaborative research. AIMJF 's Chronicle, vol. 1, No. 1, 2021b. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023. PAIS, Marta Santos. Child Participation. Documentação e Direito Comparado, nos 81/82. Lisboa, Portugal, 2000, p. 92-101. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023. UNODC. United Nations Office on Drugs and Crime; UNICEF. United Nations Children's Fund. Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime. Model Law and Related Commentary. United Nations: New York, 2009. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2023. 2 Tradução livre. No original: "the child is envisaged as a subject of rights, who is able to form and express opinions, to participate in decision-making processes and influence solutions". 3 Tradução livre. No original: "It is not sufficient just to give children the right to be listened to. It is also important to take what they have to say seriously". 4 Tradução livre. No original: "child witnesses be given complete immunity from criminal prosecution for giving false testimony". 5 Tradução livre. No original: "Insights gained from children help adults to work more effectively and ensure that services provided are relevant to children's needs". 6 Tradução livre. No original: "To grant a free exercise of the right to be heard, it is important not only to provide an institutional context where he or she will feel comfortable and secure to understand  the  meaning  and  impact  of  the  participation,  but  also  that  this consultation could be meaningful and comprehensive". 7 A Portaria nº 359, de 11 de outubro de 2022, do CNJ, instituiu Grupo de Trabalho para debater e propor protocolo para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes em ações de família.
O triste caso do ataque que resultou na morte de quatro crianças em creche de Blumenau reavivou novamente o debate, cuja temática é caríssima: como garantir a segurança de nossas crianças no ambiente escolar? Tal pergunta ressoa na sociedade há muito tempo e ainda carecemos de respostas efetivas. Desde o "massacre de Columbine", episódio de violência ocorrido em 1999 com grande cobertura midiática que chocou os norte-americanos, bem como toda a comunidade internacional, enfrentamos de perto casos de notória crueldade em ações que comumente possuem como alvo estudantes e professores. A respeito de Columbine, segundo descrição do The New York Times no documentário "Haunted by Columbine"1 (tradução livre: Assombrados por Columbine), o que se pôde observar a partir de então foram ondas de violência no ambiente escolar. E a grande preocupação é explicar o porquê de um episódio que a princípio parecia isolado ter se tornado um fenômeno de grande escala pelo mundo desde então, segundo apontam levantamentos. Segundo o jornal Washington Post, mais de 349.000 (trezentos e quarenta e nove mil) estudantes nos Estados Unidos experienciaram a violência armada nas escolas desde Columbine2. Este fato alarmante fez com que milhões de dólares fossem empreendidos no país para promover a segurança escolar. Tal feito, que evidentemente tem uma preocupação compreensível, a proteção de nossas crianças, contudo, não impediu novos ataques. De um lado, altos investimentos financeiros e materiais para aumentar a segurança escolar. De outro, um crescente número de massacres em escolas e universidades. Ressaltamos que embora seja legítima a preocupação com a segurança de crianças e adolescentes nas escolas, de modo que seja natural e esperado um aumento nos investimentos em câmeras de segurança, monitoramento, contratação de segurança local, entre outras medidas, principalmente nos momentos logo após os atentados violentos, deve-se ter em mente que reação se difere de prevenção. Segundo reforça o especialista em violência nas escolas e bullying da University of Southern California, Ron Avi Astos, "tornar as escolas parecidas com prisões tende a ter um impacto negativo a longo prazo (...) a solução passa por medidas amplas para prevenir, e não simplesmente reagir a esses episódios"3. Dessa forma, diferenciando reação de prevenção, é esta última que torna necessário um amplo debate para encontrar soluções adequadas e eficazes em um mundo cada vez mais complexo e dinâmico. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada autor está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível -  Foucault, Vigiar e Punir. Embora o foco deste arquivo não sejam as críticas feitas ao panóptico foucaultiano no ambiente escolar, o que nos surge a partir desta leitura é a seguinte dúvida: mesmo que as escolas passem a ser amplamente vigiadas, como controlar as relações externas a ela, sobretudo quando estamos considerando o vasto ambiente digital na sociedade atual? Como monitorar as redes sociais de estudantes e funcionários de instituições de ensino, considerando as questões relacionadas ao algoritmo das plataformas virtuais, a fim de evitar atentados de ódio voltados às crianças, adolescentes, Professores e ao próprio ambiente escolar? Parece-nos uma tarefa de difícil execução e controle, discussão que também se vincula à pauta da regulação das mídias e das redes sociais, mas é fato que, com o uso de inteligência artificial, podemos como sociedade acompanhar e evitar situações de fomento ao ódio e à violência, o que, ao final, pode ter um efeito positivo ao ambiente escolar vez que favorável à promoção de uma Cultura de Paz, tema que vem sendo trabalhado pela UNESCO.4 Voltando à diferenciação aqui proposta de reação e prevenção, segundo a entidade, mais do que teoria e prática contra atos violentos, a prática da não violência nas escolas deve ser uma atitude que permeia o ensino, envolvendo os profissionais de educação e os estudantes da escola, os pais e a comunidade, em um desafio comum e compartilhado entre todos e todas. Essa não violência integrada à vivência escolar conferiria ao professor outra visão do seu trabalho pedagógico - vez que não se limitaria apenas a este papel educacional -, de modo que a escola se posicionaria em favor do diálogo, da troca e do  compartilhamento comunitário. Assim, a escola passaria a ocupar um lugar de verdadeiro centro para a vida cívica em comunidade, fomentando o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, garantindo o acesso à educação de qualidade, e fortalecendo a própria rede de proteção, na qual se inclui a família. E sobre a temática aqui debatida, cabe frisar o importante papel da família no combate à violência escolar, de modo que, através de medidas educacionais e assistencialistas pela migração do papel da escola na sociedade, os ciclos familiares - em especial os mais vulnerabilizados - também estariam mais informados para trabalhar em conjunto na garantia de direitos infantojuvenis com a prioridade legal estabelecida no Art. 227 da Constituição Federal. Desse modo, medidas relacionadas a valores, atitudes e modos de comportamento que rejeitam a violência podem ser frutíferas e é nesse contexto que propomos uma visão sociojurídica sobre o dilema da segurança nas escolas, rechaçando a ideia de que a mera reação, muitas vezes motivada pelos ideais midiáticos e políticos, não é suficiente. No âmbito do Direito, tornam-se cada vez mais presentes as discussões sobre meios alternativos de resolução de conflitos, mormente daqueles vinculados à autocomposição a partir da busca de um maior protagonismo das partes na solução do problema. Pela implementação de novas políticas judiciárias e até mesmo por meio de alterações legislativas, a prática da mediação e da conciliação no âmbito do Poder Judiciário é já parte do cotidiano dos atores do Sistema de Justiça. Exemplo disso é a inovação garantia pelo Art. 334 do Código de Processo Civil em 2015 e a promulgação da Lei de Mediação no mesmo ano, que, para além da garantia da prática, aprimoram o sistema, fomentando discussões sobre a remuneração adequada dos profissionais que atuam junto aos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, presente nos Fóruns, e sua frequente e constante formação para a condução assertiva da questão posta em debate pelas partes na busca pelo consenso e pelo diálogo. Torna-se a prática, assim, mais assertiva, resolutiva e eficaz, contribuindo para o desafogamento do Judiciário e em prol da citada Cultura de Paz. Nesse mesmo sentido é que avançam as discussões sobre a prática da mediação escolar, importante aliada ao fomento da segurança nas escolas, e que mereceria mais detida atenção por parte do Poder Público na prevenção do conflito, seja internamente na escola, entre alunos, entre professores e alunos, entre professores, permitindo várias composições diferentes de trabalho, ou mesmo no âmbito das famílias e da própria comunidade. Isto é: a mediação escolar não se resume a uma tentativa pontual de resolução de conflitos (ou seja, como reação), mas também se coloca como prevenção e transformação dos indivíduos e da coletividade através de um maior empoderamento, vivenciando boas práticas para saber resolver outros problemas no futuro, da garantia de informação e formação em direitos sociais, ou mesmo da validação de si e do outro, com alteridade e empatia. Dentro da Cultura de Paz e do papel da escola antes explicado, como centro de cidadania, pois, a medida se apresenta como uma solução legítima para o dilema da segurança nas escolas. Com efeito, uma das medidas instituídas pelo Governo de São Paulo, em resposta à crescente demanda da sociedade civil pela prevenção e combate à violência nas escolas, foi a contratação de psicólogos para efetuar o acompanhamento dos alunos no ambiente escolar. Dentro do contexto que se propõe, tal presença tende a ser benéfica, em um primeiro momento, como forma de acolher os alunos, os professores e as famílias, receosos diante dos episódios e ameaças reiteradas à segurança dentro do ambiente escolar. No mais, em termos preventivos a curto prazo, os psicólogos podem ser decisivos na identificação precoce e mapeamento de casos de violência e bullying no ambiente escolar, orientando o corpo acadêmico em como atuar diante de situações de conflito, além de prestarem suporte psicológico àqueles estudantes e professores que apresentam questões emocionais ou comportamentais neste cenário específico e exacerbado de ameaça às escolas. Contudo, tal presença se faz pertinente não apenas para "conter ameaças" à segurança escolar, mas visando ações de longo prazo na convivência nesse ambiente como um todo. É evidente que o trabalho desses profissionais é de extrema relevância no contexto atual das escolas no Brasil, porém é necessário ter a clareza que a mera introdução dos psicólogos nas escolas da rede estadual não é uma solução imediata e suficiente para resolver o problema histórico da violência no ambiente escolar. Mais do que contratar esses profissionais em um momento de crise, é fundamental que eles permaneçam nas escolas e passem a integrar regularmente o quadro de funcionários da educação básica no Brasil, colocando-se a promoção da saúde mental e emocional dos alunos, dos professores e da comunidade escolar como um todo. Esta iniciativa poderia garantir o desenvolvimento de políticas públicas estruturantes, fomentar as práticas de mediação escolar e contribuir com a criação de um ambiente escolar mais acolhedor e preparado, onde os alunos se sintam seguros e amparados emocionalmente, fortalecidos em sua autoestima também pelo cultivo, de forma coletiva no ambiente escolar, do respeito mútuo, da tolerância e da empatia entre seus membros. A prática de ações de ordem preventiva, que também se soma ao exercício pleno da cidadania, busca mitigar estruturalmente os riscos de que se desenvolvam problemas graves que estão na raiz do dilema da violência nas escolas, tal como o bullying, os discursos de ódio, a depressão, a ansiedade e outras questões que afetam significativamente a qualidade de vida e saúde mental dos alunos. Dentro da ótica sociojurídica proposta, acreditamos que possa ser mais produtivo ações contínuas pautadas na prevenção, tais como, o monitoramento das redes sociais com o apoio de núcleos de Coordenação de Inteligência Cibernética, como vem sendo trabalhado no âmbito do Governo Federal, a realização de mediação de conflitos nas escolas, principalmente da Educação Básica, em um projeto de longo-prazo, com formação de profissionais e empoderamento dos próprios alunos, e a adoção do trabalho estrutural de um corpo de psicólogos de forma permanente. Isto porque medidas de segurança estão sendo propostas pelos Estados e pelos Municípios de forma difusa e visando a mera reação, apresentando-se propostas diametralmente opostas variando entre um diálogo mais intenso com os alunos, ou mesmo maior ostensividade na segurança física, com o uso de detectores de metais e a presença de policiais durante o horário de funcionamento das unidades escolares, esquecendo-se de modo geral da Cultura de Paz proposta pela UNESCO. As conclusões sobre a temática certamente não são absolutas e se prestam, aqui, apenas para tecer reflexões a partir de algumas medidas benéficas que podem ser trabalhadas no ambiente escolar e, igualmente, apresentadas pelos profissionais do Direito, enxergando-se a necessidade de que o Sistema de Justiça não esteja distante e alijado das pautas sociais existentes.  __________ 1 Disponível aqui; acesso em junho/23. 2 COX, John Woodrow; RICH, Steven; CHONG, Linda; TREVOR, Lucas; MUYSKENS, John; ULMANU, Monica. More than 349,000 students have experienced gun violence at school since Columbine. There have been 377 school shootings since 1999, according to Post data. The Washington Post, 11 de abril de 2023. Disponível aqui; acesso em junho/23. 3 CORRÊA, Alessandra. As medidas adotadas nos EUA para combater massacres em escolas. Folha de S. Paulo, 18 de março de 2019. Disponível aqui; acesso em junho/23. 4 "A cultura de paz no Brasil". Brasília: UNESCO. Disponível aqui; acesso em junho/23.
No próximo dia 18 de maio, completará 50 anos do caso Araceli, que foi assassinada aos oito anos de idade, em Vitória, Espírito Santo. À época dos fatos, como é de conhecimento de toda sociedade, seu corpo foi encontrado seis dias após sua morte brutal, com sinais de violência, abuso sexual e desfigurado por uso de ácido. Os acusados, após reexame do processo, foram absolvidos pela Justiça. Nos anos 2000, a data tornou-se símbolo do Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Mas por que recordar estes fatos em 2023? Simplesmente, porque em pleno ano de 2023 temos que mostrar o óbvio a toda sociedade a fim de evitar que mais casos brutais como o de Araceli continue acontecendo bem debaixo de nossos olhos. Proteger crianças e adolescentes de qualquer forma de violência não é uma opção do governante, seja ele de qual partido for, é uma imposição da Constituição, que através do artigo 227, estabeleceu ser dever do Estado, Sociedade e Família tal obrigação. É válido nos recordar que antes mesmo da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente ser sancionado e ter entrado em vigor no país, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, no princípio 9, trazia em seu texto que "A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral", demonstrando o quão importante era proteger e prevenir quaisquer tipos de violências contra as crianças e os adolescentes. Esse princípio, reiterado na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, cuja qual foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, através de seu artigo 19, item 1, reforçou tal mandamento recomendando "Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela". Entretanto, mesmo diante de legislações tidas progressistas e protecionistas, as violências, às quais crianças deveriam ser protegidas, seguem estampadas nas principais manchetes jornalísticas. Não obstante, estas violências, traduzidas em números, nos mostram o quão falha é a rede de proteção existente. Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública elucidam o aumento dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no país. A cada hora, 4 meninas são vítimas de estupro no país. São 100 crianças violentadas por dia no país. E o perigo está dentro dos lares: 76,5% dos casos ocorrem no ambiente doméstico, sendo o abusador, conhecido da vítima. A ineficiência das políticas públicas e o silêncio seguem perpetuados na sociedade, tal como há cinquenta anos atrás, quando Araceli foi vítima. E por que o tema ainda segue sendo um tabu? Justamente por ser tão difícil falar sobre educação sexual com crianças e adolescentes, muitas vezes, motivado por crenças familiares e interferência de líderes religiosos. E nós, adultos, responsáveis para que essas orientações e informações cheguem ao público alvo, no caso crianças e adolescentes, seguimos inertes, omissos, delegando tal tarefa à terceiros ou, no pior dos casos, às redes sociais. Aí que mora o perigo. Quem está de fato educando nossas crianças e adolescentes? Às vezes, e por que não afirmar, na maioria das vezes, pedófilos, que usam de meios ardilosos para atrair, corromper e violenta-los das mais diversas formas (como por exemplo, os casos de estupro virtual). Estamos falhando. Não podemos negar. As alterações legislativas que sucederam o Estatuto da Criança e do Adolescente, tal como a Lei Menino Bernardo1 e Lei Henry Borel2, vieram a criar novos mecanismos de punição aos indivíduos que praticam quaisquer tipos de violências contra crianças e adolescentes, porém, elas estão, de fato, responsabilizando quem de direito? Diante de mais este questionamento, basta refletirmos sobre a Lei de Alienação Parental3, que por vezes, coloca as crianças e os adolescentes sob tutela dos abusadores. Neste sentido, é fato que enquanto o Sistema de Justiça também continuar violando os direitos das crianças, esse crime continuará entre nós. Frente a tantas mazelas e desapontamentos, cumpre-nos por fim, aqui destacar as iniciativas que a sociedade civil, por intermédio de organizações não governamentais, que vem atuando de forma a promover a discussão sobre o tema, trazendo luz à problemática que segue vitimando crianças e adolescentes em todas as regiões do país, para que tenhamos, de fato, um Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes que acolha, defenda e escute as infâncias. Referências: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 10 mai. 23. 23 _______. LEI 8.069 (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23 FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23. ONU. Declaração dos Direitos das Crianças, 1959. Disponível aqui. Acesso em 10 mai. 23. ____. Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, 1989. Disponível aqui. Acesso em: 11 abr. 23. __________ 1 Lei 13.010 de 26 de junho de 2014 - Lei Menino Bernardo. 2 Lei 14.344 de 24 de maio de 2017 - Lei Henry Borel. 3 Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010 - Lei de Alienação Parental.
terça-feira, 2 de maio de 2023

Alienação parental não é tudo igual!

famílias, uma das temáticas mais polêmicas é a referente ao termo alienação parental, que, no ordenamento jurídico brasileiro atual, é mencionado em diversas leis ordinárias. As leis que tratam sobre o tema alienação parental vêm, equivocadamente, sendo apontadas, por parte da sociedade, como instrumentos que contribuiriam para separar pais ou mães de filhos, proteger abusadoras ou abusadores, ocultar ilícitos praticados contra crianças e adolescentes, etc. Entretanto, ao contrário do entendimento desta parcela da população, as leis que versam sobre alienação parental têm exclusivamente viés protetivo preventivo ou  em último caso, repressivo, buscando colocar as pessoas crianças e adolescentes, cidadãos hipervulneráveis, sujeitos de direito, a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, almejando, com isso, dar efetividade a mandamentos constitucionais.   Questão ainda pouco explorada pela doutrina jurídica, de grande importância para realçar o caráter protetivo das leis que abordam a questão da alienação parental, é o fato de que alienação parental não é tudo igual, pois os possíveis atos ilícitos promovidos ou induzidos pela pessoa alienadora possuem naturezas jurídicas distintas, múltiplas, conforme será a seguir demonstrado. A alienação parental, na forma tratada na Lei Federal nº 12.318/2010, tem natureza jurídica de abuso de direito, abuso moral, praticado através de atos objetivos, conscientes ou inconsciente, com mero potencial de interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por ascendentes, familiares ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua responsabilidade, guarda ou vigilância para que repudie(m) familiar(es) (nuclear, extenso, socioafetivo ou por afinidade) ou para que cause prejuízo ao estabelecimento, à manutenção, ao fortalecimento ou à reconstrução de vínculos saudáveis com este(s). A lei Federal 12.318/2010 tem caráter protetivo preventivo, uma vez que exige apenas a presença de indício de atos que potencialmente, hipoteticamente, possam vir a causar danos psicológicos à criança ou ao adolescente, ou impactar, negativamente no constitucional direito de tais pessoas à convivência familiar e comunitária saudável, em ambientes que lhe garantam seu desenvolvimento integral. Assim, as medidas protetivas previstas no artigo 6º da lei Federal 12.318/2010, ostentam caráter preventivo e pedagógico, buscando evitar que pessoas crianças e adolescentes sofram efetivos danos psicológicos, tal qual garantir a tais cidadãos o direito constitucional à saudável convivência familiar e comunitária, direito esse que está compreendido no fundamental direito à liberdade, do qual ninguém pode ser privado sem o devido processo legal. O caráter preventivo e pedagógico de tais medidas protetivas, constantes da lei Federal 12.318/2010, foi confirmado e reforçado com a revogação, pela lei Federal 14.340/2022, do antigo inciso VII, que figurava em seu artigo 6º, onde era previsto a suspensão da autoridade parental, medida essa com nítido escopo protetivo repressivo. Eventual descumprimento de tais medidas protetivas preventivas, atrairá a incidência de sanções de caráter unicamente processual ou cível, como, por exemplo, astreintes, multa por ato atentatório à dignidade da justiça, redução de prerrogativas parentais, etc. A competência para solucionar conflitos derivados de ato de alienação parental, na  forma prevista na Lei Federal nº 12.318/2010, que detém natureza jurídica de abuso de direto, abuso moral, abuso no exercício do poder familiar, pertence às Varas de Família, devendo a atuação do Judiciário ser prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a pessoa criança e adolescente deve permanecer, preferencialmente através da adoção de medidas de caráter pedagógico, que visem ao fortalecimento, manutenção, criação ou reconstrução dos vínculos familiares e comunitários saudáveis, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial devidamente fundamentada. Noutro giro, a alienação parental abordada nas leis Federais 13.431/2017 e 14.344/2022, possui natureza jurídica de violência psicológica, forma de violação dos direitos humanos, praticada através de atos conscientes ou inconscientes, que causam efetiva interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por ascendentes, familiares ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua responsabilidade, guarda ou vigilância, que, causando sofrimento psicológico, leve ao repúdio de familiar(es) (nuclear, extenso, socioafetivo ou por afinidade) ou que provoque prejuízo ao estabelecimento, à manutenção, ao fortalecimento ou à reconstrução de vínculo saudáveis com este(s).                Referidas Leis Federais, tal qual as medidas nelas indicadas, ostentam caráter protetivo repressivo, pois buscam a efetiva cessação da violência psicológica em curso, conceder proteção prioritária e integral às vítimas, às pessoas crianças e adolescentes, visam dar efetividade à prerrogativa constitucional outorgada a tais sujeitos de direito, de serem colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Eventual descumprimento de tais medidas protetivas repressivas, atrairá a incidência de sanções de caráter cível e penal, pois sua inobservância poderá tipificar o crime previsto no artigo 25 da lei Federal 14.344/2022, Lei Henry Borel. A competência para solucionar conflitos derivados da alienação parental, no modalidade prevista nas leis Federais 13.431/2017 e 14.344/2022, que ostenta natureza jurídica de efetiva violência psicológica, forma de violação dos direitos humanos, pertence às Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente ou  às Varas da Infância e Juventude e, no caso de inexistência dessas, à Vara Criminal Comum, devendo a atuação do Judiciário ser prioritariamente voltada à proteção e socorro imediato das crianças e adolescentes, em quaisquer circunstâncias, através de atuação precoce, mínima e urgente, tão logo a situação de perigo seja conhecida, sendo assegurado a tais cidadãos o direito de exprimirem suas opiniões livremente nos assuntos que lhes digam respeito, consideradas a sua idade e a sua maturidade, garantido o direito de eventualmente permanecerem em silêncio. Por fim, importante salientar que qualquer que seja a natureza jurídica do ato de alienação parental, abuso de direito ou violência psicológica, a respectiva ação sempre terá, desde sua distribuição, prioridade absoluta de tramitação, independente de prévia declaração de indício de ato de alienação parental, pois, só assim, aos vulneráveis, às crianças e aos adolescentes, reais destinatários das normas protetivas preventivas ou repressivas, serão disponibilizados, de forma precoce e célere, os meios aptos que viabilizarão o seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições familiares de liberdade e de dignidade.
Uma dúvida comum que surge, usualmente quando há a separação de genitores que possuem diferentes religiões, inclusive, é como agir em relação aos filhos. Na constância da união, um diálogo respeitoso se torna possível, fazendo com que a convivência da criança com diferentes religiões seja um processo equilibrado e natural, alternando-se a participação da criança com ambos os genitores para na vida religiosa, por exemplo. Mas quando a separação acontece, a situação pode se inverter, ocasionando até mesmo crimes de intolerância religiosa. Importante lembrar que desde 1997 é crime qualquer atitude que resulte em discriminação ou preconceito em relação à religião, inclusive ações que induzam ou incitem tal ato. Assim, para além da empatia e conhecimento sobre a lei, é necessário respeito ao próximo e um cuidado de pais e responsáveis na condução da questão junto aos infantes. Nesta coluna, abordaremos algumas considerações sobre religião e infância. O ECA garante à criança e ao adolescente o direito à liberdade religiosa. Este direito é, inclusive, independente dos pais e/ou de seus responsáveis. O Art. 16, inserido no capítulo sobre liberdade, respeito e dignidade, garante à criança o direito à crença e ao culto religioso, tanto quanto garante o direito da criança de brincar, praticar esporte e se divertir, dada a relevância do tema na proteção e desenvolvimento integral infantojuvenil. Contudo, um levantamento feito pelo movimento Agenda 227, indica que somente na internet os crimes de ódio ligados à intolerância religiosa aumentaram em 456% em 2022, segundo dados coletados da Central Nacional de Denúncias. O movimento também relembra os ataques contra as religiões de matriz africana ocorridos na época da publicação do livro infantil "AMORAS", do cantor e escritor Emicida, o qual trata do tema, fazendo com que a intolerância religiosa esteja presente no cotidiano de vários meninos e meninas, principalmente indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais e praticantes de religiões de matriz africana, como nos provam tristes reportagens encontradas nos noticiários sobre crianças serem alvo de ataques violentos por intolerância religiosa. O livro "Nascer do Rio", de Paola Odònílé, disponível online na íntegra, discute o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente em terreiros de candomblé. Em seus estudos, a autora aponta que a introdução de crianças no candomblé ocorre com ativa participação das famílias, quando "ensinamentos são transmitidos, a fé é estimulada, as regras são instituídas, os limites são postos, para que encontrem o discernimento de vivenciar ou não essa prática religiosa" (p. 105). Da mesma forma ocorre com outras religiões, a família ocupa um importante papel na garantia do apoio religioso às crianças, garantindo-se sua introdução na comunidade religiosa de forma respeitosa e compatível com a idade, o que também encontra reflexo na responsabilidade legal que a família tem de zelar integralmente pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, como preconiza o Art. 227 da Constituição Federal e o Art. 4º do ECA. Em artigo publicado no site da CNBB, a psicóloga Aline Rodrigues indica a importância da prática religiosa para o desenvolvimento de comportamentos humanizados, tais como compaixão, solidariedade, respeito, amor e clareza do certo e do errado em diversas situações. A participação das crianças em comunidades religiosas é comumente retratada a partir da alegria e da diversão, com simbolismos comuns atrelados à infância, como ocorre nas festas de Cosme e Damião, normalmente realizadas pelo catolicismo e também pela umbanda, representando os Orixá Ibeji, filhos de Inhançã e Xangô, e outras celebrações voltadas à religiosidade infantojuvenil. Igualmente, o aprendizado religioso se dá normalmente pela vivência e prática nas comunidades religiosas, com atividades lúdicas. Nesse sentido, o Ministério Infantil da Catedral Evangélica explica que a introdução da criança na crença religiosa deve garantir seu desenvolvimento com segurança adequada à cada idade, o que também tem previsão legal, vez que devem ser respeitada a "condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento" (ECA, Art. 6º). No mesmo sentido, o Portal Lunetas traz uma fala da pedagoga Ana Paula Ramos, a qual informa que a umbanda é um ambiente de formação, construção de valores e compreensão de mundo para as crianças que dela participam, demonstrando que, independentemente da religião, a preocupação com a formação da criança recebe uma atenção especial, o que lhe garante os direitos fundamentais à vida, à saúde, física e psíquica, bem como à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, tão presentes na vivência religiosa. Esses breves apontamentos, assim, nos mostram que há uma coesão das religiões no tocante à participação e ao papel da criança na vida religiosa, devendo ela ser tratada como sujeito de direitos, merecedora de especial atenção por seu estágio de desenvolvimento ainda em formação. Ainda, pode a criança ocupar lugares de destaque dentro das celebrações, atuando de forma ativa junto à sua comunidade religiosa, quando há atenção e cuidado dos pais ou responsáveis em relação à sua maturidade, necessitando que estas ações estejam em consonância com os direitos previstos no ECA, em especial a atenção ao desenvolvimento pleno com respeito e liberdade. Na lei, portanto, não há qualquer óbice à participação religiosa da criança junto à sua comunidade e nem tampouco proibição que faça com que a criança precise escolher apenas uma religião ou aquela que é professada por seus pais ou responsáveis, já que se trata de direito autônomo da criança previsto no ECA. A chave do êxito é o diálogo e respeito, ao outro, à criança e à sociedade. Estamos avançando nas discussões sobre uma educação crítica, inclusive de ordem religiosa, que permita que as pessoas possam compreender e combater atos de discriminação de qualquer espécie, uma vez que vivemos em um país plural, democrático e livre. Com isso, promoveremos cada vez mais um ambiente livre de violências na infância, respeitando-se os direitos previstos no ECA, com uma atuação coordenada e coesa por parte do Estado, da sociedade e da família, como determina a lei.
A alienação parental é um tema presente nos debates jurídicos e que de tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas ou outros produtos culturais, como filmes, séries, podcasts e afins. É impossível ignorar a sua existência e os apoios ou críticas que atrai. A atração pelo tema, a meu ver, tem relação com a empatia que um momento crítico na parentalidade é capaz de gerar, aliado a percepções bastante subjetivas sobre quem agiu certo, errado, que é forte ou frágil na relação entre pais e/ou mães, afinal, falar sobre família é falar sobre os nossos pertencimentos nas nossas próprias famílias e sobre o projetamos como desejo a ser realizado. É, assim, um produto cultural com forte capacidade de persuasão e adesão. No Brasil, a alienação parental foi disciplinada pela lei 12.318/2010 (e leis que parcialmente a modificaram) e é entendida como "a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este". Trata-se da positivação de um pensamento proposto por Richard Gardner e pela manipulação de Gardner dos resultados de sua pesquisa e possível apoio a práticas pedófilas, a lei tem sofrido um profundo rechaço e movimentos para sua revogação tem aumentado. Ao lado disso, denúncias de utilização machista da lei tem sido cada mais frequentes, angariando apoios públicos a favor de sua revogação. Todas as críticas feministas contra a lei são terrivelmente verdadeiras e a pesquisa de Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes é um excelente caminho para provar isso a partir de pesquisa empírica em tribunais de justiça da região sudeste. A pergunta que remanesce sem ser feita (ou é feita por muitas poucas pessoas) é: a alienação parental é sobre pais e/ou mães? Essa é a pergunta que, a despeito da minha concordância com todos os vieses machistas sobre a lei de alienação parental, me afastam e me fazem recusar a revogação da lei. Infelizmente ainda vivemos num mundo em que a pessoa adulta é o centro de referência da subjetividade e de direitos. Mesmo com a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção sobre Direitos da Criança, não tivemos, de fato, o reconhecimento de crianças e adolescentes enquanto pessoas e sujeitos de direito. A falta dessa passagem teórica faz com que o Direito tenha como referência os adultos, no caso, pais e/ou mães, quando a questão inerente à alienação parental é a disfuncionalidade do exercício da autoridade parental perante crianças e adolescentes. Ou seja, o elemento central da alienação não são adultos, mas a criança e adolescentes que são filhos ou filhas. Mais, a alienação parental envolve o exercício disfuncional e abusivo da autoridade parental, porque a pretexto de proteger a criança ou adolescente, se suprime deles a possibilidade de entender, avaliar e construir as suas próprias memórias sobre episódios de violência (aqui, usada em sentido amplo) e de decidir quais os papeis relevantes seus pais e/ou mães exerceram na sua vida. Essa substituição, me parece, está circunscrita na incapacidade de entender que o melhor interesse não se trata do que pessoas adultas acham melhor, mas da permissão em que crianças e adolescentes tenham "o caminho livre" para avaliar suas vidas e decidir sobre si e seu futuro. Uma segunda importante consideração sobre a alienação parental é feita por Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes, para quem não basta olhar e "corrigir" o comportamento do(a) alinador(a), devendo a alienação ser tratada como fenômeno familiar que deve exigir intervenção judicial e psicoterápica que envolva toda a família, pois apenas assim será possível construir um ambiente socialmente adequado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. A junção da proposta de Helena e Martha e da reformulação do sentido do princípio do melhor interesse vai ao encontro do direito à convivência familiar, previsto no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, definido por Ana Carolina Brochado Teixeira e Marcelo de Mello Vieira como "um direito de toda população  infantojuvenil,  independentemente de origem,  etnia  ou  classe  social (princípio da não discriminação), à formação e manutenção de vínculos, buscando assegurar que as crianças e os adolescentes façam parte de uma família, o que não se resume a ter os nomes dos genitores na certidão de nascimento. É fazer com que eles sintam que pertencem àquele núcleo familiar, integrando e participando ativamente das rotinas e dos rituais da família, sendo, também, respeitados em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua autonomia (princípios da participação e da autonomia progressiva). É, também, o direito de viver em um ambiente saudável, livre de situações ou de pessoas que possam obstaculizar o seu processo de amadurecimento, incluindo a preservação do contato com os familiares e outras pessoas, desde que tal relação seja benéfica à criança. Excepcionalmente, a inserção em família substituta poderá ocorrer quando tal medida for necessária para a garantia da integridade biopsíquica e para o desenvolvimento sadio da personalidade e da autonomia (princípios da proteção à vida e ao desenvolvimento e do melhor interesse)". Compreender o sentido do direito fundamental à convivência familiar e sua conexão com a alienação parental permite perceber que a revogação da lei não tem o impacto imaginado por determinados movimentos. No TJRJ e no TJSP, por exemplo, existem precedentes anteriores a lei de 2010 que fundamentavam as decisões no art. 19 do ECA. E, trazendo direito comparado, nos EUA, que não conta nem com diploma similar ao ECA nem é signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, a alienação parental é um tema objeto de análise judicial por interferir no direito da criança em ter os pais e/ou mães como atores participantes do seu desenvolvimento. Assim, é perceptível que nesse momento a alienação parental tem como pano de fundo um debate sobre a proteção de direitos de mulheres e de direitos de crianças. Qualquer resposta em casos concretos deve pender, como regra, em favor da criança, pois ela é destinatária de proteção integral e prioridade no atendimento de seus interesses, que, são diferentes dos interesses e direitos de sua mãe. Talvez seja essa a mais difícil percepção no campo jurídico e falha no conhecimento sobre o conteúdo do melhor interesse e da proteção integral: o interesse dos pais e/ou mães não se confunde com os dos filhos(as). A alteração da ordem de prioridade exige justificação forte no caso concreto, item que tem sido apontado como insuficiente nas decisões judiciais. Em suma, o movimento de revogação da lei de alienação parental é importante para pautar a aplicação machista da lei, mas revela-se insuficiente para resolver o fenômeno do machismo e patriarcalismo no sistema judicial, até porque, o direito à convivência familiar supre de forma autônoma o fundamento jurídico de uma LAP revogada. O enfrentamento do machismo e patriarcalismo no sistema judicial envolve muito mais do que a revogação de uma lei, sendo essencial que os discursos feministas sejam apropriados e articulados judicialmente. De outro lado, são bem conhecidos os efeitos negativos no desenvolvimento psicossocial da alienação parental sobre crianças e adolescentes, de modo que a desconsideração completa do fenômeno não irá contribuir na proteção desse grupo de pessoas. Por isso, no confronto entre direitos de crianças e direitos de mulheres, é imprescindível se despir de pré-conceitos e tentar olhar cada caso como único e buscar em relação a cada um deles a melhor resposta, tendo como diretriz a maximização dos direitos de todos e todas os(as) envolvidos(as).
O ano é 2023, porém, poderíamos facilmente dizer que vivemos tempos que nos remetem ao período anterior a redemocratização e do alcance a direitos fundamentais e essenciais à vida em sociedade. Tempos sombrios nos chocam, mas isso ainda é pior para uma parcela da população, que, para além da supressão de direitos, ainda se vê mais à margem da sociedade e em condições de riscos. Os dados estatísticos falam por si e demonstram quão frágeis são. Eles são vítimas e algozes, numa sociedade que não pensa políticas públicas que visem minimizar a desigualdade, o acesso e a permanência, seja na educação, na saúde ou no mercado de trabalho. Retratando em números, o Levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 traça o perfil daqueles que mais sofrem com as violências, não somente advindas de agentes estatais, mas de uma sociedade que é preconceituosa, racista, aporofóbica etc. Não raro a arma que fere ou mata o adolescente periférico é a mesma que o faz vítima de sua violência, o agente estatal à serviço do Estado. Este mesmo levantamento, aponta que nos casos de mortes violentas, as vítimas são negras (77,9%), possuem entre 12 e 29 anos (50%) e são predominantemente do sexo masculino (90%), ou seja, a letalidade incide sobre um mesmo segmento: negros, jovens e pobres que circulam ou residem nas periferias. É inegável dizer que há uma seletividade. Neste viés, a letalidade e o recorte racial também são observados entre crianças e adolescentes. Entre os anos de 2016 e 2021, cerca de 35 mil crianças e adolescentes até 19 anos foram mortos de forma violenta no país, como aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 83,6% das vítimas são adolescentes negros e em sua maioria (87,8%), do sexo masculino; 88,4% foram vítimas de arma de fogo e 43,4% destes crimes ocorreram em vias públicas. Ou seja, em nada se difere do que ocorre com a população adulta. O alvo é sempre o mesmo. Não bastassem os números absolutos em casos de mortes violentas, outro recorte que nos faz refletir recai sobre a população encarcerada no país. Os dados refletem não somente a questão racial, mas a desigualdade social que assola o país. No ano de 2021, de um total de 820.689 presos, cerca de 429.255 presos, um total de 67,5% eram negros; em detrimento de 184.682 (29%) brancos. Em relação à faixa etária, 46,4% correspondem à idade de 18 a 29 anos, o que equivale também a população que mais é vítima das violências estatais e sociais. Por muito tempo, quiçá ainda hoje, a prisão e o Direito Penal desempenham esse papel de alojar os excluídos da dinâmica social e econômica. Os dados que demonstram o expressivo encarceramento de pessoas por crimes patrimoniais ou praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa corroboram essa noção2. Essa lógica em nada se difere quando nos referimos aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2021, apontou que haviam 13.684 adolescentes internos e sob a égide do Sistema Socioeducativo, sendo 4.847 (34%) só no estado de São Paulo. Destes, segundo o Levantamento do SINASE, publicado em 2019, porém, com dados relativos a 2017, haviam sido apreendidos por: roubo (38,1%), seguido de tráfico de drogas e associação ao tráfico (26,5%) e homicídio (8,4%), ou seja, os crimes contra o patrimônio continuam sendo os principais responsáveis pela apreensão e internação de adolescentes. Diante destes dados, é incontestável que a desigualdade econômica e social brasileira dificulta o pleno crescimento e o desenvolvimento de milhões de adolescentes, que se veem privados de oportunidades de inclusão social em seu contexto comunitário, vivendo em moradias inadequadas e à mercê de diversas problemáticas, como: restrições severas ao consumo de bens e serviços; estigmas e preconceitos; falta de qualidade no ensino; relações familiares e interpessoais fragilizadas; e violência em todas as esferas de convivência (Assis e  Constantino, 2005). Corroborando com as autoras, Volpi (2001) salienta que os adolescentes em conflito com a lei são meras vítimas de um sistema social, ou "produto do meio", e o delito é uma estratégia de sobrevivência ou uma resposta mecânica a uma sociedade violenta e infratora em relação aos seus direitos. A análise que fazemos é que o Sistema Socioeducativo, assim como o Sistema Penal, possui uma seletividade nata, abarcando adolescentes negros, periféricos e privados ou com pouco acesso às políticas públicas básicas, muitas vezes, desde o momento de seu nascimento e, os dados acima comprovam tal teoria. E ressaltamos que, ainda que haja a possibilidade de meios alternativos para a responsabilização destes adolescentes, que não a medida de internação (para os casos que não correspondem ao art. 122, I, ECA), eles seguem sendo "encarcerados", como resposta aos anseios da sociedade e que, não raramente, remete à política higienista e de exclusão marcada pelos dois códigos de menores que antecederam o ECA. Por fim, frente à tamanha problemática, acredita-se que, enquanto houver inflexibilidade por parte do Estado, em especial, na garantia dos direitos fundamentais e constitucionais devidos a esta população, de maneira preventiva e na promoção desses direitos e da cidadania, haverá ainda mais o aumento da vulnerabilidade destes jovens negros, pobres e marginalizados, cabendo aos agentes estatais, um olhar mais humano a eles,  maiores ofertas nos campos da educação e trabalho, podendo, no futuro, haver uma mudança nestas estatísticas, no quadro do encarceramento e na desigualdade social entre as raças.  Referências ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2005. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Ciência & Saúde Coletiva, p. 81-90. FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui. MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.1.12592. VOLPI, M. Sem Liberdade, Sem Direitos: A experiência de privação de liberdade na Percepção dos adolescentes em conflito com a lei. São Paulo: Cortez, 2001. __________ 1 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Acesso aqui. 2 MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289.
O início do ano de 2023 foi marcado pela revelação da tragédia Yanomami, que estampou a capa dos mais importantes noticiários e jornais do nosso país e do mundo, evidenciando um quadro de vulnerabilidade e abandono extremos, marcado pelo esquecimento dos povos indígenas pelo Governo Federal. O texto dessa primeira coluna do ano pretende chamar atenção para os indicadores deste drama, especialmente em relação às meninas, crianças e adolescentes indígenas, sob a ótica do Direito Infanto-Juvenil. Em pesquisa sobre o tema, é possível enxergar que as mulheres sofrem mais durante o quadro de crise, inclusive com altas taxas de estupro, sucedidos de abortos e más-formações fetais causados pelo mercúrio, usado no garimpo ilegal, conforme reportagem da Agência Sumauma. Uma reportagem publicada pelo Portal UOL, produzida pelo jornalista Leon Ferrari, demonstra que ao menos 30 meninas Yanomami estão grávidas de garimpeiros e que há adoções irregulares em andamento, com crianças acolhidas ilegalmente por famílias não indígenas, sendo impossível não associar tais fatos à denúncia contra a ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos  a respeito da irregularidade na retirada de Lulu Kamayurá de sua tribo e família de origem quando ainda era criança. Os abusos sexuais, portanto, avassalaram a história de vida de várias gerações de meninas e adolescentes Yanomani, demonstrando que a infância feminina indígena assumiu um papel de protagonista de um filme de terror anunciado. A denúncia atual escancara ainda um quadro de intensa vulnerabilidade infantil: uma morte lenta e dolorosa de crianças por fome. Segundo o Ministério da Saúde e Agência Sumauma, em levantamento feito pelo Fantástico, entre 2019 e 2022, ao menos 152 crianças morreram de desnutrição, um aumento de 360% frente a dados do passado. Lastimável ver como alguns atacam as notícias afirmando que tal quadro é histórico e não atribuível ao governo anterior, numa tentativa insensível de explicar o inexplicável. Acusam os meios de comunicação de sensacionalismo e manipulação política. A verdade, contudo, é que em 2019 o UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância já havia divulgado dados sobre desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em aldeias inseridas no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, revelando o cenário de desnutrição crônica de oito em cada dez crianças menores de 5 anos1. A alimentação é um direito social garantido pela Constituição Federal a todas as pessoas, inclusive com dotação orçamentária destinada diretamente para sua garantia, recebendo especial atenção no Art. 227, pelo qual família, sociedade e Estado são obrigados a assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde e à alimentação, entre outros, a crianças e adolescentes. A regra se repete integralmente logo no início do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Art. 4º, dispondo também sobre a atenção especializada às gestantes e lactantes, que precisam receber alimentação complementar saudável para garantir o desenvolvimento saudável de suas crianças. Na realidade do povo Yanomami, todavia, as gestantes e as lactantes já sofrem de restrição alimentar, além de consumirem alimentos e água contaminados pelo mercúrio. Da mesma forma, sem apoio médico são infectadas pela malária, e passam a doença aos filhos através da amamentação. Mais uma vez, o protagonismo às avessas do público infanto-juvenil. Vê-se que o direito à alimentação, à saúde e à vida, básicos no corpo juris internacional e nacional como garantias humanas e fundamentais, tão caros na legislação pátria e tão presentes no cotidiano do Poder Judiciário, passam ao largo da população indígena, que carece de tais direitos e mesmo de acesso à justiça, como se fossem "não gente". O protagonismo da infância na legislação, a partir da absoluta prioridade na proteção garantida pela Constituição Federal, encontra reflexo em um protagonismo às avessas de crianças na crise Yanomami, já que elas são as mais atingidas pelos quadros severos de abusos, fome e mortes. Não se quer com isso minimizar as demais vítimas dessa catástrofe humanitária, flagelados que foram e continuam sendo em suas histórias, mas evidenciar que o Princípio Constitucional da Prioridade Absoluta - de forma simplificada, segundo o qual crianças e adolescentes têm prioridade em relação a outros sujeitos de direito - tem sido solenemente ignorado e deixado de ser perseguido pelos atores que compõe o sistema de proteção desses direitos. __________ 1 A pesquisa foi financiada e requisitada pelo UNICEF e implementada em parceria com Fiocruz, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (Cgan), do Ministério da Saúde, e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, dentre outras coisas, concluiu que 81,2% das crianças menores de 5 anos pesquisadas tinham baixa estatura para a idade (desnutrição crônica), 48,5% tinham baixo peso para a idade (desnutrição aguda) e 67,8% estavam anêmicas. Disponível aqui. Acesso em 13 fev, 2023.
As eleições se aproximam e as evidências são notadas: horário eleitoral gratuito na TV e rádio, campanhas eleitorais em pleno 7 de setembro (embora vedadas), manifestações políticas espalhadas ali e acolá, discursos de ódio e fake news em redes sociais. Sim, de fato, as eleições se aproximam. Por força do art. 77 da Constituição Federal, a eleição presidencial ocorrerá dia 02.10.22, primeiro domingo de outubro (e no último domingo de outubro, em 2º turno, se houver), juntamente com as eleições de senadores, deputados federais, deputados estaduais e governadores. E, enquanto muitos cidadãos nem se deram conta de que votar é exercício democrático (mergulhados em alienações, mentais ou políticas), apenas poucos se debruçam sobre programas de governo, procurando motivação para justificar suas escolhas. No Brasil o voto é obrigatório a partir dos 18 anos, mas já aos 16, adolescentes podem votar se quiserem. Trata-se de estímulo à cidadania ativa voluntária e ato de responsabilidade política. Mas então, se crianças não votam (0 a 12 anos) e se apenas uma pequena parcela de adolescentes pode votar (maiores de 16 anos, inscritos na justiça eleitoral e que efetivamente desejem), por que, afinal, as eleições têm a ver com eles? Tudo a ver, se considerarmos que o Brasil deve conferir prioridade absoluta à crianças e adolescentes; se tivermos claro que isso foi uma decisão constitucional e que não se trata de uma mera sugestão aos eleitos. Todas as pessoas são iguais perante a lei no Brasil, sem distinção de qualquer natureza (art 5º, caput da CF), contudo, ultrapassada essa igualdade formal, existe uma vantagem constitucional conferida à crianças e adolescentes frente aos demais sujeitos de direito. Isso mesmo, muitos desconhecem, mas o público infanto-juvenil (0 a 18 anos incompletos) é "destinatário privilegiado" de todos os direitos fundamentais e de outros direitos exclusivos do grupo. Infelizmente pouco se fala a respeito, mas crianças e adolescentes brasileiros ou estrangeiros residentes no país são pessoas elevadas a um status especial em comparação às demais pessoas, como jovens1 (15 a 29 anos), adultos (maiores de 18 anos) e idosos2 (maiores de 60 anos), devendo ocupar posição prioritária tanto na elaboração de políticas públicas como na concretização de direitos e garantias. Você pode estar se perguntando: como assim? o porquê dessa prioridade? E a resposta é simples: porque NÓS assim quisemos em 1988, quando, representados por membros da Assembleia Nacional Constituinte, promulgamos a Constituição Federal, prevendo expressamente tal prioridade no art. 227: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  Tratou-se, portanto, de decisão do poder constituinte originário ao inaugurar a nova ordem constitucional brasileira, revelando formal e expressamente a intenção de valorizar de forma diferenciada crianças e adolescentes, como sujeitos de direitos imprescindíveis na construção de um futuro social e economicamente sustentável para toda a sociedade, incluindo gerações presentes e futuras3. A despeito de tudo isso, infelizmente, não há unanimidade entre os presidenciáveis quanto à prioridade absoluta, sendo que dos 12 postulantes ao cargo poucos incluíram em seus planos de governo a necessidade de aprimorar e fortalecer o sistema de garantia dos direitos das crianças e adolescentes e, mesmo os que previram não necessariamente concretizarão práticas nesse sentido, a se basear por seus históricos. Pensando na importância do tema e no intuito de conscientizar a população antes de irem às urnas, o Portal Lunetas, em parceria com o Instituto Alana, selecionou o que cada candidato descreve para crianças e adolescentes em seus planos de governo4. Uma preocupação que se depreende da leitura dos planos de governo está na limitação das propostas quanto a problemas estruturais, sendo simbólicos e midiáticos, sem a devida formulação e implementação de políticas públicas de forma integrada e articulada com os demais programas de governo. Ademais, as sondagens demonstram que os presidenciáveis não abordam como pretendem enfrentar os gargalos de financiamento e articulação com Estados e Municípios, tudo a demonstrar a desimportância que conferem à pauta. Quem sabe o tema ainda possa ser devidamente explorado pelos candidatos nos próximos debates, a partir de cobranças de entidades de proteção ao público infanto-juvenil, de atores dessa área de atuação e mesmo da opinião pública, que devem exigir cumprimento dos ditames constitucionais. Volto a dizer, propor e implementar políticas públicas para garantir direitos de crianças e adolescentes não é mera recomendação eleitoreira ou sugestão aos candidatos, mas sim um mandado constitucional explícito e prioritário, do qual nenhum eleito pode se eximir, estejam ou não previstas em seu plano de governo. Por isso, a coluna Migalhas Infância e Juventude não poderia deixar de abordar o tema, ainda que sem posicionamento político-partidário eis que, embora crianças e adolescentes não votem são destinatários diretos de políticas públicas por parte dos "ditos" mandatários da democracia, sendo urgente recuperar5 e robustecer investimentos na área da infanto-juvenil. __________ 1 Art 16, §1º da Lei 12.852/13. Disponível aqui. Acesso 12.09.2022. 2 Art 1º da lei 10.741/03. Acesso 12.09.2022. 3 Segundo dados do IBGE, em 2021, o número de crianças e adolescentes entre zero e 19 anos residentes no Brasil era de 69 milhões, representando cerca de 33% da população total. Disponível aqui. Acesso 21.09.2022. 4 Disponível aqui. Acesso 13.09.2022. 5 Disponível aqui. Acesso 21.09.2022.
No mês em alusão ao combate à violência contra a mulher, faz-se oportuno debater a respeito das diferentes formas como a mulher enfrenta situações de violência na sociedade brasileira, a qual se transforma em ciclo vicioso, afetando a criança e adolescente que delas descendem. A despeito do atual panorama sociojurídico brasileiro, o qual se caracteriza pela concepção da proteção integral à infância e à adolescência como pilar de todas as normativas elaboradas desde a Constituição Federal de 1988, tendo como seu primeiro desdobramento o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), a partir da concessão de direitos e do estabelecimento de obrigações a diversas instituições - temos atualmente um panorama que indica a necessidade de avanços na aplicação das leis e na transformação da cultura, para maior entendimento dos preceitos que sustentam o arcabouço legal contemporâneo. Acerca dessa temática, faz-se necessário, a princípio, verter ponderações sobre a historicidade que envolve as práticas e políticas públicas de assistência às crianças e adolescentes e suas famílias, notadamente, aos mais vulneráveis. Segundo Alves (2007), esse contexto histórico não é linear, posto que se caracteriza por uma tendência secular de contradições do Poder Público em relação à criança e adolescente, coexistindo paradigmas conservadores e progressistas, que influenciaram a legislação, assim como a efetivação de serviços e programas governamentais implementados ao longo das décadas. Em virtude disto, há uma tendência entre autores que debatem essa temática em dividir essa trajetória histórica em cinco períodos distintos, assim denominados: período assistencial-caritativo (1554 a 1874), período filantrópico-higienista (1874-1924); período assistencial (1924 a 1964); fase institucional (1964 a 1990); e, finalmente, o período de desinstitucionalização, iniciado em 1990 e vigente até os dias atuais. A demarcação temporal destes períodos não representa um limite rígido de existência destas práticas e concepções no debate público, na construção das políticas públicas e na implementação dos serviços. Muitas são as iniciativas que tramitam no legislativo, baseadas em ideias conservadoras de atendimento à criança e adolescente vulneráveis. As propostas de redução da maioridade penal, a culpabilização de famílias pobres, a exemplo da produção de conceitos como "famílias incapazes", as quais são responsabilizadas como as únicas fomentadoras da violência, da pobreza e da negligência com os mais vulneráveis, fazem parte de iniciativas dentro do Congresso Nacional, que tendem a marginalizar ainda mais as classes sociais subalternizadas. Porém, é necessária uma reflexão mais aprofundada, avaliando a atuação do Estado, perante os grupos sociais que vivem às margens do acesso a bens e serviços socialmente produzidos. Aqueles que não estão inseridos formalmente no mercado de trabalho, não têm escolaridade mínima para desempenhar funções mais complexas e atingir melhores condições de renda, dependem fortemente da atuação do poder público, por meio das políticas públicas que possam lhes oferecer acesso a ações que viabilizem a transformação de suas condições de vida.  Diante desta realidade de fortes negligências vividas por toda a sua trajetória, com o dilema da impossibilidade de assumir as responsabilidades de maternagem, muitas mulheres, ou casais, optam por entregar o filho para adoção. Tais condutas, entretanto, são consequência de outra prática também bastante comum na realidade brasileira: a entrega de bebês por suas próprias genitoras, realizadas à margem da lei. Prática conhecida como entrega direta - intuitu personae -, ou ainda como adoção à brasileira, quando o bebê entregue é registrado por terceiros como se fosse seu filho biológico. Mesmo quando a mulher, ou a família, opta pelo caminho legal, observamos que existe forte (pré)conceito a respeito da entrega de crianças para adoção. O episódio da atriz que recentemente foi exposta na mídia nacional, por ter tomado a decisão de entregar o filho que gerou, após sofrer violência sexual, para adoção, apontou holofotes para o forte desconhecimento da sociedade a respeito da lei e de sua fundamentação.                 Quando falamos da gritante necessidade de maior debate a respeito da entrega legal de crianças recém-nascidas para adoção, casos como este nos indicam que a estratégia de informação e esclarecimento da população se faz cada vez mais necessária. A culpabilização das mulheres se evidencia mais quando o assunto é debatido na perspectiva de famílias pobres, diante da produção jurídica das "famílias incapazes" - como debatido na obra "Produção Sociojurídica de Famílias Incapazes", da Graciele Feitosa de Loiola (2020). Nos referimos aqui à "subjetividade socialmente compartilhada" (apud, 2020), de uma realidade que não se refere a uma família isoladamente, mas a uma conjuntura macrossocial, na qual os sujeitos não possuem as estruturas mínimas para superação de suas vulnerabilidades, diante das condições sociais impostas à maioria da população. Esta é a realidade da maioria das mulheres que entregam seus filhos para adoção - mulheres que se percebem "incapazes" de cuidar de seus filhos, e que de forma "despolitizada", alienada, não têm consciência da condição de classe social desfavorecida, que não lhes possibilita a superação de sua atual condição, o que as impede de oferecer a seus filhos a garantia de direitos fundamentais, fazendo com que se sintam incapazes e se culpem e se julguem negativamente diante de sua decisão. Em diversas comarcas por todo o país existem programas de acolhimento a mulheres/famílias que desejam entregar o filho para adoção. No Tribunal de Justiça da Paraíba, desde 2011 existe o Programa Acolher. De acordo com os dados do Programa, entre os anos de 2015 a 2020, foram atendidas 66 (sessenta e seis) gestantes/puérperas nas Comarcas de Campina Grande e João Pessoa, que manifestaram seu desejo de entregar os filhos para adoção, e foram devidamente acompanhadas pelas equipes interprofissionais do TJPB, por meio do referido Programa. Destas, aproximadamente 40 (quarenta) entregaram os filhos efetivamente para que fossem adotados. Dentre as demais, 20 (vinte) desistiram do processo e 3 (três) tiveram gestações que resultaram em morte do feto durante o acompanhamento (SILVA, 2022)1. Estes dados indicam que, com o devido acompanhamento pelas equipes interprofissionais, com as decisões tomadas pelos(as) magistrados(as), a respeito de possível acolhimento da criança, acompanhamento da família ou da mulher pelas equipes da Rede de Proteção, é possível realizar um trabalho permeado pela garantia dos direitos da criança, desde a primeira infância e da mulher, consequentemente. Porém, tendo a falta de conhecimento sobre o direito da entrega legal como uma realidade concreta, associada a diversos fatores que advêm de uma sociedade constituída culturalmente no alicerce do patriarcado e da misoginia, como garantir que essas mulheres consigam decidir qual o seu futuro e o futuro do filho gerado? Apontamos para este desafio pois, de acordo com "A advogada Gabriela Souza, especializada no direito das mulheres [...] mais de 95% dos crimes envolvendo vazamento de informações pessoais na Internet têm mulheres como alvo e que, por isso, trata-se de um crime de gênero". Ela aponta para este dado quando se refere ao crime de violência institucional, cometido pela equipe de um hospital, ao fornecerem informações para pessoas externas publicarem a história da entrega do filho de uma atriz para adoção. A entrega legal não foi evidenciada na mídia nacional por ser um mecanismo judicial de garantia de proteção a mulheres e crianças, mas foi estopim para levantar o debate de forma mais abrangente em relação a como os profissionais que fazem parte da Rede de Proteção estão executando esse trabalho. Em qual momento alguns destes profissionais escolhem por possíveis "recompensas" e deixam de lado o compromisso ético e a obrigação de atender à mulher e à criança recém-nascida com o respeito e a dignidade que lhes são garantidos por lei - de forma sigilosa e humanizada. Considerando que é direito da mulher decidir realizar a entrega sob sigilo e ser resguardada de qualquer tipo de constrangimento, por parte de qualquer profissional que lhe atender, direitos estes garantidos pelo Art. 19-A do Estatuto Da Criança e do Adolescente, a questão que devemos fazer diz respeito a como trabalhar para que haja uma reeducação e preparação da Rede de Proteção, a qual envolve Saúde, Assistência Social, Educação, Segurança Pùblica, entre outros, para que atuem na perspectiva do que preconiza a lei. Para isso, entendemos que se faz necessária uma formação profissional com ênfase na necessidade de condutas mais comprometidas com as diretrizes e princípios éticos de cada categoria, tendo em vista que estão  em consonância com a defesa dos direitos humanos, entendendo também que somente tendo uma Rede que se implique com estas mulheres, se conseguirá viabilizar seus direitos e, assim, proteger a mulher, a criança, a família e a sociedade como um todo. __________ 1 Artigo do Trabalho de Conclusão de Curso de Lyzandra Teixeira da Silva, ex-estagiária da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Campina Grande/TJPB, 2022 - o qual inspirou a elaboração do presente artigo.
Trinta e dois anos se passaram desde a promulgação do estatuto da criança e do adolescente e, na atual conjectura em que o país se encontra, cabe-nos um questionamento: O paradigma da proteção integral está em risco? Os dados abaixo demonstram tamanho temor. Hoje no Brasil, temos mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, como aponta o 2º inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil1, publicado no último dia 8 de junho. De acordo com o referido inquérito, o número de crianças em situação de insegurança alimentar, quase dobrou entre os anos de 2020 e 2022, de 9,4% para 18,1%. Cerca de 74% de crianças de 2 a 9 anos, não tem acesso a três refeições diárias. Em função do quadro pandêmico e a deflagração da crise sanitária, que resultou no fechamento das escolas, 13% das crianças brasileiras deixaram de comer na pandemia. Não obstante à ausência de proteção aos direitos à alimentação, observamos o crescente número de crianças em situação de rua e em exploração de trabalho infantil. No ano de 2020, pesquisa feita pela UNICEF2, indicou um aumento de 26% no número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Conforme relatório da Fundação Abrinq3, cerca de 1,7 milhão de crianças e adolescentes estão ocupados com trabalho. Referente à educação, no final de 2020, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se fora da rede escolar, agravando ainda mais a situação de exploração de trabalho infantil (dados Unicef). No ano de 2021, dados do relatório da Fundação Abrinq, aponta que cerca de 25,3% de crianças deixaram de ser matriculadas no ensino infantil, o que compromete seu desenvolvimento, ainda na primeira infância. Além destes dados alarmantes, outros são ainda mais assustadores. No ano de 2021, mais de 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda mais grave é o fato de que a cada vinte minutos, uma criança dá à luz4. Casos de maus-tratos contra crianças, nestes dois anos, subiram 21,3%5. Diante destes dados, não resta dúvidas quanto a ausência de proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Mais do que isso, explicita violação de direitos assegurados constitucionalmente, sendo-nos necessário lembrar os ditames do art. 227 da CF/88, que traz em seu escopo que "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela EC 65/10), que é reforçado pelo art. 4º do ECA, reforça "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Há falhas. E por isso, reforço meu questionamento inicial: o paradigma da proteção integral está em risco? O Brasil é signatário da convenção sobre os direitos da Criança, ratificada em 1990 e assumiu o compromisso em assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Contudo, os dados não mentem e a negligência a estes sujeitos de direitos é a cada dia mais notória, colocando o paradigma da Proteção Integral em risco. Desta feita, compete-nos reforçar que enquanto Estado, sociedade e família, devemos assegurar que crianças, já na primeira infância, tenham acesso e prioridade absoluta aos direitos fundamentais apontados nos arts. 227 da CF e 4º do ECA, além dos cuidados que possibilitem seu desenvolvimento saudável, tal como disposto também no marco da primeira infância, através dalei 13.257/16, haja vista que, cerceada destes cuidados e direitos, poderá, consequentemente, permanecer em situação de vulnerabilidade e violação. Cabe investimento em prol da infância e juventude (e não redução de investimentos, como vem ocorrendo desde o final do governo Temer e persistido no atual governo), implementação de políticas públicas, fiscalização e monitoramento das ações já iniciadas, pois somente deste modo, poderemos dar um futuro digno às crianças e adolescentes no país. Por fim, embora haja poucas pessoas que nos sugiram haver motivos para celebrar o aniversário de promulgação do ECA ocorrido no último 13 de julho, o que nos denota tamanha incoerência diante de todos os fatos aqui brevemente mencionados, e mesmo sendo esta lei um feito histórico e de suma importância à proteção e defesa de crianças e adolescentes em nosso país, ainda há muito que ser feito para que tenhamos reais motivos para comemorar o fato de termos uma lei progressista e garantista como o Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente nos últimos tempos em que, ao invés de garantia de direitos, temos nos deparado com constantes violações de direitos. _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Rede feminista de saúde. 5 Disponível aqui.
No sistema de mau trato (reprimir bebês, dando tapinhas, ou ajustar adolescentes a enganosas instituições totais que se dizem... de bem estar), todos sabemos, basta usar a agressividade e a violência (mesmo que sutis, como em certos casos de tapinhas no bebê e no ajuste do adolescente). Com o uso da agressividade e da violência (sutis, leves, disfarçadas ou manifestas, duras, declaradas), os choques se resolvem (ou se agravam). Mas, claro, com mau trato (um trato que não é bom, é mau, sendo ou não ele um crime, porque há formas de mau trato que não são crimes), os choques se resolvem ou se agravam sempre em detrimento do pensar mais débil, do querer mais exposto à imposição alheia e do agir inacessível a um sistema (pessoal, comunitário ou internacional) de proteção à cidadania.1 Essa epígrafe diz muito sobre o que conhecemos: formas violentas de lidar com crianças e adolescentes. Apesar dessa obviedade (há os que recusarão o termo violência, preferindo "disciplina", "ordem", "regras", "impor autoridade"), também se fala da importância da participação na área da infância e juventude, a partir das diretrizes internacionais. Muito se fala, mas pouco se escuta. É importante definir que nomeamos de infância a construção social, historicamente variável, sobre as idades da vida e criança "o sujeito empírico concreto que vivencia suas experiências na sociedade"2. Assim, na infância o direito à participação deve ser exercido de modo lúdico e ocorrerá a depender do ciclo de vida em que aquela criança está para que, depois, na adolescência, a participação ganhe inventividade e postura crítica.  A questão é que participar sem nunca ter sido realmente escutado é quase uma tarefa impossível. A ausência de escuta adequada pode afetar os processos identitários e gerar diversos prejuízos ao pleno desenvolvimentos', já que ausentes as oportunidades de participação e expressão. Ao contrário, em linhas gerais, a escuta ativa possibilita um diálogo efetivo, com vistas a ver aquele que fala em toda sua complexidade, ofertando segurança. Conduzimos, nós, os adultos, os supostos maduros da relação, os caminhos ao direito de participação para que, por este meio, crianças e adolescentes encontrem a vida adulta e possam dela participar plenamente. Não podemos fazer isso se ofertamos uma escuta precária como se crianças e adolescentes não fossem sujeitos de direitos, mas objetos de tutela. Essa responsabilidade em conduzi-los para a vida adulta deveria ser o que mobiliza a implementação do princípio da condição peculiar de desenvolvimento. A questão é que se conduzimos com nossas violências, conscientes ou não, pouco enxergamos se estão adequados os caminhos que ofertamos. E quando não encontramos as respostas que buscamos não entendemos qual é o problema. Queremos transformar a infância, alegar ser ela o lugar privilegiado do futuro, mas sem pensar no presente, nas ofertas de uma série de ações violentas como caminhos para encontrar "boas" respostas. A violência não nasce com a infância, ela é algo que se aprende e se reproduz. E se aprende na relação com uma pessoa adulta responsável, seja na família ou em vínculos ampliados, no braço do Estado que atende ou presta um serviço público e na comunidade que os cercam. Em março essa coluna já apontou a importância de ações que visem o fortalecimento do plano Nacional da convivência familiar e comunitária, alertando sobre um potencial retrocesso legislativo em torno do tema: Além da articulação entre governo e sociedade civil, é marcante nesse Plano Nacional a definição de família como processo social, histórico, transgeracional e interindividual; a aplicação da doutrina da proteção integral e que crianças e adolescentes são titulares de direitos; o reconhecimento da multiplicidade de vínculos familiares no país; e, o reconhecimento da importância da comunidade no desenvolvimento de crianças e adolescentes3. Conduzir esses caminhos inclui ofertar apoios para que o desenvolvimento aconteça, não de modo autoritário, "eu sei o que é melhor", mas a partir do que as pessoas necessitam. Ouvir essas necessidades é o primeiro passo. Práticas contrárias ao que prescreve a legislação, em nome da suposta paz social, podem levar à uma reprodução e ampliação de abismos sociais. Normalizamos esses abismos e queremos respostas universais que não os levam em consideração, perpetuando ciclos de violências. Há um mundo de possibilidades na escuta. Ao invés de dar as respostas, formular boas perguntas, como ensina Paulo Freire, abre um universo de possibilidades, tão vastas quanto a história brasileira, sua diversidade e injustiças sociais que precisam ser denunciadas. Com perguntas possibilitamos a emergência de outras histórias. Histórias talvez mais justas do que as que deixamos nascer quando interrompemos as escutas do que não queremos ouvir. Não vim aqui, disse eu, para fazer um discurso, mas para conversar. Farei perguntas, vocês também. As nossas respostas darão sentido ao tempo que passaremos juntos aqui4. Mas, porque falar de escuta? Há dois procedimentos em uso atualmente - a escuta especializada e o depoimento especial que provocam essas questões, mesmo que os operadores do direito não as percebam ou as problematizem. Há outros espaços que ainda não existem legalmente - como nas questões relacionadas à adoção ou entrega de crianças -, mas nos quais se faz necessário e urgente pensarmos em como realizar uma escuta que seja protegida, uma escuta que cuide das necessidades das pessoas para podermos fazer bom uso da proteção ao invés de mantermos as práticas filantrópicas, tutelares e menoristas5, em nossa sociedade. São espaços, em tese privilegiados, criados pela legislação para escutar crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas (lei 13.431/17) por meio da escuta especializada ou depoimento especial. O art. 7º prescreve que a "escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade".  Já no Art. 8º define que "depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária". Tais procedimentos unem a defesa da infância e juventude e as questões relacionadas à saúde mental em sentido amplo, já que se propõe um espaço de fala preparado, a fim de ofertar os cuidados adequados evitando qualquer processo de revitimização ou tratamento que as "use" como objeto de prova, estritamente com a finalidade de identificar e apurar essas situações de violências vivenciadas. Ser ouvido, nesses casos, deve incluir o direito de silenciar e a ser escutado na medida da sua idade, com as interpretações adequadas ao seu universo de linguagem. Mas, há uma limitação porque operadores do direito não são ensinados a escutar. O Direito precisa olhar para o saber da psicologia para além do modo instrumental - "produza quesitos, por gentileza!" - e caminhar com ele de mãos dadas para atingir o ideal legislativo. Nessa legislação o art. 4º, inciso IV, enuncia: "violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização". A legislação está preocupada em como os adultos conduzem, mas no Direito sabemos dar respostas e não escutar. Esse é um desafio que essa lei coloca e, por isso, há mais a ser explorado e aprofundado neste tema, na união dos saberes, em nome dos direitos das crianças e adolescentes Espaços de escuta podem proporcionar o encontro com as respostas que precisamos para atender as necessidades dessa parcela da população e, ofertar, legitimamente participação. Participar é também proporcionar sair da invisibilidade, das injustiças e dos processos de assujeitamento e, portanto, deve ser algo diferente da punição. Participar e escutar não são práticas separadas, suponho quando sua finalidade é possibilitar o exercício da alteridade. Para isso, é fundamental o preparo de quem escuta, especialmente no que diz respeito aos valores e visões de mundo. Não é possível escutar se há presente o desejo, por aquele que escuta, de encaixar o que recebe em determinado padrão. O que não se entende, porque não, novamente, perguntar? A criatividade e flexibilidade, o desejo de apoiar e incluir, devem estar presentes, especialmente quando aquele que escutamos são crianças ou adolescentes. Muito já se avançou em termos legais, mas ainda há muito por fazer, para que possamos devolver liberdade e vida ao invés de violências, ausência de direitos, estigmatizações e punição. Proponho essas reflexões como uma forma de ampliarmos o debate sobre esse tema, sem qualquer pretensão de ponto final. _____ 1 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança - a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso em https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/edson_seda/crianca_fiel.pdf  p. 10. 2 SANTOS, Benedito R. Por uma escuta de crianças e adolescentes culturalmente contextualizada. In: Escuta Protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências: aspectos teóricos e metodológicos. Brasília, DF : Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020, p29.  3 Disponível aqui. 4 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021, p. 69. 5 Práticas vinculadas à Doutrina da Situação Irregular ao invés da Doutrina da Proteção Integral. 6 Conselho Federal de Psicologia A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2010. 7 Escuta protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências [recurso eletrônico] : aspectos teóricos e metodológicos : guia de referência para capacitação em escuta especializada e depoimento especial / organizadores, Benedito Rodrigues dos Santos, Itamar Batista Gonçalves. - Brasília/DF: Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020.  8 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021. 9 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança - a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso aqui.
Em 18 de maio de 1978 a pequena Araceli Crespo foi brutalmente assassinada, após ter sido sequestrada e violentada. Vinte e dois anos depois, a data foi consagrada como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, através da lei 9.970/2000, como forma de incentivar a realização de ações que alertem a sociedade sobre o tema. Infelizmente até hoje o tema é de certa maneira invisibilizado. Dados apresentados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, referentes aos anos de 2018 e 2019 mostram que o Disque 100 recebeu por volta de 17.000 denúncias de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes. Esse tipo de violência em sua maioria ocorre na casa da vítima ou do suspeito; pais e padrastos representam 40% dos suspeitos informados e 82% das vítimas são do sexo feminino, ou seja, grande parte do abuso sexual contra essa parte da população ocorre dentro de casa e tem como algoz alguém com relação de proximidade com a vítima. Nos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes perpetrado por um dos genitores é comum que o fato seja apurado na seara penal e tenha repercussões no direto de família, na discussão de guarda, além das medidas protetivas urgência no bojo da Lei Maria da Penha que podem ser concedidas para a proteção da criança ou adolescente. Infelizmente essa diversidade de processos expõe a criança ou adolescente a um processo de revitimização. A doutrina diferencia a vitimização em três níveis:  (i) vitimização primária, no qual a vítima é o sujeito diretamente afetado pela prática do ato delituoso; (ii) vitimização secundária, quando essa vítima primária sofre as consequências de sua relação com o Estado em razão do delito, como por exemplo a burocracia do sistema, que expõe às vítimas à várias oitivas (revitimização) e (iii) vitimização terciária, no qual o sujeito envolvido no ato delituoso é exposto a sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei1. No que tange a proteção de crianças e adolescentes em relação aos processos de vitimização, a lei 13.431/2017 estabelece um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, tendo em vista o reconhecimento da condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, a proteção integral a eles destinada e a absoluta prioridade, conforme art. 227 da Constituição Federal. A referida lei reconhece a violência institucional e a possibilidade de vitimização secundária (4º, IV) como forma de violência na qual crianças e adolescentes estão expostos e ressalta, ao tratar da escuta e do depoimento especial, a não admissão de tomada de novo depoimento, salvo quando demonstrada sua imprescindibilidade e houver a concordância da vítima, da testemunha ou de seu representante legal (art. 11, §2º), a fim de evitar a revitimização. Apesar das considerações acima expostas, observa-se que a proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar ainda tem falhas, seja na demora na oitiva das vítimas, bem como na determinação de repetição de oitivas em contextos diferentes como em perícia, estudo psicológico e na coleta de depoimento especial. Uma das ferramentas processuais a ser utilizadas nesses casos é a prova emprestada, prevista no art. 372 do Código de Processo Civil. Em que pese a regra geral, na qual as provas devem ser produzidas no próprio processo, a admissão de uma prova emprestada nos casos aqui discutidos pode ser justificada pela necessidade de se evitar a revitimização de crianças e adolescentes, além dos benefícios de otimização, racionalidade e eficiência, atendendo a garantia constitucional da duração razoável do processo. Além da prova emprestada, outra medida importante se evitar a revitimização é priorizar a oitiva especial da criança ou adolescente. Nos casos concretos, observa-se uma demora na requisição dessa oitiva no âmbito penal, que só ocorre meses após os fatos. Se há ainda demanda cível no caso de guarda e visitas, não raro ter a determinação de estudo psicossocial com a criança e família. A título exemplificativo, em um caso concreto de possível abuso de uma criança perpetrado por seu genitor, ocorrido em 2019, a oitiva em estudo psicossocial se realizou antes da oitiva especial de âmbito penal, isso apenas no ano de 2021. Nesse meio tempo a criança foi exposta a visitas do genitor que, ainda que de forma monitorada, lhe causaram diversos traumas. Felizmente, na Ação Cautelar que buscava a produção de prova antecipada por meio de depoimento especial, a Juíza responsável avaliou que o estudo psicológico realizado na ação de guarda trazia a narração dos fatos ocorridos com precisão de detalhes e que foi constatado intensos e variados sentimentos, sendo que uma nova oitiva poderia agravar a situação emocional da vítima. Assim, a magistrada oficiante no caso considerou que nova oitiva causaria a revitimização ou vitimização secundária, concretizada na prática com a ação dos responsáveis pelo processo de resolução de conflito sem a devida consideração e proteção em relação às expectativas e ao sofrimento da criança. Interessante que a criança, durante o estudo psicológico da ação de guarda, expressou não querer mais falar dos fatos pois já falou sobre o assunto "um milhão de vezes". Essa criança foi exposta à revitimização e sua fala expressa de forma inequívoca o seu sofrimento. Os processos que deveriam protegê-la acabam por machucá-la. São casos como este que ocorrem na prática forense e que lutamos para evitar, pois constata-se que apesar da iniciativa da lei 13.431/2017, não há efetividade na proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual se não houver maior agilidade em suas oitivas no âmbito penal, que deverão ser aproveitadas em outros âmbitos como no direito de família, por meio de prova emprestada (art. 372 do CPC). Também é salutar que psicólogos e médicos envolvidos nos processos estejam alertas à questão, para que se lance mão de ferramentas para evitar mais sofrimento a essas vítimas. __________ 1 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 54-55.