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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
O Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol (IBESAF) realizou nova pesquisa, dirigida pelo pesquisador Iago Espírito Santo, voltada à avaliação do grau de conformidade das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), participantes das séries A e B do Campeonato Brasileiro, em relação ao disposto no art. 8º1 da lei 14.193/2021 (Lei da SAF). O referido artigo impõe às SAFs a obrigação de manter, em seus sítios eletrônicos, os seguintes documentos e informações: (i) estatuto social; (ii) atas das assembleias gerais; (iii) composição do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria, acompanhada das biografias de seus membros; e (iv) relatório da administração sobre os negócios sociais, contemplando o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE) e os principais fatos administrativos. A previsão legal tem como propósitos (i) criar um ambiente informacional compassado com as práticas das companhias e (ii) promover a disseminação da cultura de compartilhamento de informações. Cabe ressaltar, ademais, que o parágrafo 3º do art. 8º da Lei da SAF determina que os clubes em recuperação judicial, recuperação extrajudicial ou sujeito ao Regime Centralizado de Execuções (RCE) também devem manter, em seus sítios eletrônicos, a relação ordenada de credores. Esse aspecto, contudo, não foi objeto da presente pesquisa, e será abordado em estudo posterior. Ressalta-se, ademais, que a inobservância das normas supracitadas pode ensejar a responsabilização dos administradores das respectivas SAFs desconformes. A pesquisa, que envolveu 14 SAFs, resultou nos seguintes dados2: Clique aqui e confira na íntegra. __________ 1 Art. 8º A Sociedade Anônima do Futebol manterá em seu sítio eletrônico: I - (VETADO); II - o estatuto social e as atas das assembleias gerais; III - a composição e a biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria; e IV - o relatório da administração sobre os negócios sociais, incluído o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, e os principais fatos administrativos. § 1º As informações listadas no caput deste artigo deverão ser atualizadas mensalmente. § 2º  Os administradores da Sociedade Anônima do Futebol respondem pessoalmente pela inobservância do disposto neste artigo. § 3º  O clube ou pessoa jurídica original que esteja em recuperação judicial, extrajudicial ou no Regime Centralizado de Execuções, a que se refere esta Lei, deverá manter em seu sítio eletrônico relação ordenada de seus credores, atualizada mensalmente. § 4º  Os administradores do clube ou pessoa jurídica original respondem pessoalmente pela inobservância do disposto no § 3º deste artigo. 2 As fontes utilizadas para elaboração da pesquisa foram as informações disponíveis nos sítios eletrônicos das respectivas SAFs, acessados, pela última vez, em 20.10.2025.
Em artigo denominado "os tricolores e a profissionalização", publicado na edição de sexta-feira, 10/1025, do Estadão, Rodrigo Capelo trata dos projetos apresentados pelo Fluminense e pelo São Paulo, e, após breves explicações sobre um e outro, conclui: "[c]á de minha parte, é pela profissionalização que eu torço". Pretendo, neste texto, fazer algumas considerações às proposições do brilhante articulista e, talvez, estabelecer alguns contrapontos. Logo no primeiro parágrafo, ele afirma que ambos os clubes têm um objetivo: a aprovação de medidas para reduzir a ingerência do amadorismo no futebol. A premissa merece investigação - e confirmação. Os projetos, para começar, são inconciliáveis. Enquanto, pelo que se extrai de matérias divulgadas pela imprensa, o Fluminense debate um modelo transformacional, o São Paulo - ou os seus (ou alguns de seus) dirigentes - tenta aprovar um que envolve apenas a base, sem modificação dos modelos de propriedade do futebol e da atual governação do clube. Em seguida, no segundo parágrafo, o autor afirma que o caminho do Fluminense é semelhante ao que outros clubes, como Bahia, Botafogo e Cruzeiro, teriam aceitado. Aqui surge outro ponto para debate: não se trata de aceitação, mas de subsunção à lei da SAF, a qual, aliás, serve, na forma, justamente para que se possa oferecer segurança e previsibilidade, mesmo em ambiente de discordâncias e conflitos, em contrapartida às históricas imprevisibilidades de leis como a Zico e a Pelé, que estimularam e resultaram em projetos que até hoje cobram o preço aos respectivos clubes e torcedores.  Isso não significa que a lei da SAF seja insensível às diferenças clubísticas; ao contrário, como, ao que me parece, o próprio Rodrigo Capelo expõe, ao narrar as características específicas de cada projeto. E aí surge outro ponto de debate: o projeto do Atlético Mineiro não se assemelha, conforme informações publicizadas pela imprensa, com o do Fluminense. Este, pelo que se noticiou, compõe-se de elementos únicos, que o qualifica como, talvez, o mais promissor desde o advento da mencionada lei, ao lado do projeto do Bahia - e, eventualmente, um dos mais promissores do planeta. Enquanto, no Galo, a SAF ficou sob o controle de poucos torcedores-associados-conselheiros-mecenas-investidores (a expressão não denota uma crítica), que detinham créditos milionários contra o clube, oriundos de empréstimos realizados antes da constituição da SAF, para salvar ou viabilizar momentos esportivos históricos (e que os coloca, no plano potencial, em situação de conflito), no Fluminense - novamente, pelo que se noticiou - deverá ser constituído um veículo de investimento, um fundo, gerido e administrado conforme normas legais e infralegais, com recursos aportados por algumas dezenas de torcedores milionários1, sem relações políticas prévias, que, apesar de terem intenções econômicas (e é bom que assim seja), caracterizam-se pela ligação identitária com o time e a sua história. Algo, vale reforçar, inédito no ambiente da lei da SAF, sem a descaracterizar (ao contrário), ou de qualquer companhia relevante que controla times de futebol no Brasil ou no exterior. A semelhança entre os projetos de ambos os clubes se evidenciaria, porém, porque "em todas elas o ativo vai para a mão de um novo proprietário". Sim, mas não do investidor. O proprietário final é a própria SAF, da qual o clube que a constituir, necessariamente, faz parte, como acionista. Essa é a essência da lei da SAF: oferecer uma alternativa à propriedade clubística do futebol, historicamente sob a esfera de associações sem finalidades econômicas, que comandaram, sob uma lógica político-associativa, com raríssimas exceções, projetos de destruição de valor, estima, respeitabilidade, legado e perspectiva, e na acumulação de estoques bilionários de passivos. Daí, pois, o principal paradoxo do texto: o São Paulo não se distingue pela criatividade de seu modelo, que ofereceria, em tese, uma progressão até se alcançar a "privatização" total. Primeiro porque o São Paulo, como qualquer outro clube, é uma pessoa jurídica de direito privado e, assim, não tem natureza pública para ser privatizado.  Segundo, porque os movimentos que têm sido implementados ou apresentados, desde o já famoso (e escudeiro) FIDC, o qual não resolveu problemas financeiros e econômicos, e a suposta associação a determinado investidor grego, não integram um projeto estruturado, concebido com início, meio e fim, consistente, ao cabo, com o ingresso de investidor relevante ou de uma oferta pública aos seus torcedores. Logo, não se presta a "montar nova governança, sem abrir mão das decisões sobre o negócio do futebol". Mas a entregar parte da base para resolver compromissos imediatos, sem modificações estruturais e com a negação justamente do objeto da torcida de Rodrigo Capelo: a profissionalização. Pois a (des)governança do clube - processo de eleição, diversos grupos políticos, conselheiros vitalícios, escolha da diretoria pelo conselho (sem participação de associados), influência da área social sobre a diretoria, associados torcedores de outros times, inclusive rivais, participando do processo eleitoral, dezenas de diretores, intransparência, etc - permanecerá a mesma. Terceiro, por fim, porque a qualidade do projeto, ou a falta dela, não tem nada a ver com o momento político (e a inédita reprovação pública do presidente do clube, que costumava ser apoiado por quem, circunstancialmente, agora o reprova), mas com sua própria estrutura e a capacidade, ou a incapacidade, de resolver problemas, sejam conjunturais ou estruturais. A crise do futebol, inclusive a do São Paulo, decorre, sobretudo, do secular e obsoleto modelo de propriedade, e não da falta, no clubismo, de técnicas de governança e de profissionais oriundos do mercado - iniciativas que costumam evaporar na chapa quente das relações associativas, e que continuará a esquentar sem uma solução transformacional. Por esses motivos, não me parece razoável a comparação entre os projetos e as intenções dos tricolores, e, muito menos, a redução da problemática do futebol à ausência (sempre passível de ser suprida por narrativas) de profissionalismo, ideia dogmatizada pelo status quo para que, como Giuseppe Tomasi di Lampedusa verbalizou (em "O Leopardo"), com outras palavras, mudanças ocorram para que as coisas fiquem como estão. Ou para que piorem. ________ 1 Cf.: Disponível aqui, acesso em 13/10/25.
A aprovação da lei da sociedade anônima do futebol (lei 14.193/21) e a adoção do modelo por mais de uma centena de clubes em apenas quatro anos marcam o início de uma verdadeira revolução na estrutura do futebol brasileiro. Para compreender esse processo sob a ótica de Nicolau Maquiavel, é útil recorrer aos conceitos de fortuna e virtù expostos em O Príncipe. Em termos maquiavelianos, virtù refere-se às habilidades, à astúcia e à competência do governante (ou líder) para alcançar seus objetivos, enquanto fortuna diz respeito à sorte, ao acaso e às circunstâncias externas que escapam ao controle direto. Maquiavel argumenta que o sucesso político depende da conjugação desses dois fatores: um líder eficaz deve aproveitar a fortuna favorável com virtù, ajustando suas ações ao contexto para obter êxito. A virtude, portanto, diz respeito às características pessoais do líder que se incumbe de realizar determinado empreendimento. E, nesse caso, por mais que o processo de construção da SAF tenha contado com diversas figuras importantíssimas, o líder originário e fundamental chama-se Rodrigo Monteiro de Castro. Conheci Rodrigo em uma reunião de um grupo político do São Paulo Futebol Clube, quando eu ainda achava que valia minimamente a pena gastar tempo com política interna de clube. Naquele dia, sabendo tratar-se de um brilhante advogado de direito societário, abordei-o sobre a necessidade de modernização dos estatutos do nosso time do coração. A resposta de Rodrigo foi cortante: "Mudar os estatutos de um único clube é como despejar uma garrafa de um litro de água no Rio Tietê. Em poucos segundos, a água limpa vai se misturar com a água suja. Precisamos, na verdade, pensar em uma lei que incentive os clubes a adotar o modelo das companhias." Respondi: "Mas nós não somos parlamentares; como uma lei proposta por nós será aprovada?" Ele então me convidou a pensar no texto junto com ele - e me colocou na maior aventura de toda a minha vida. Eu, sempre cético; Rodrigo, sempre determinado. Ali nasceu a ideia central da lei da SAF. A maior virtude de Rodrigo, enquanto líder da iniciativa, foi acreditar que a mudança tão necessária seria também possível - e persistir mesmo nos momentos em que tudo indicava que nada iria acontecer... como sempre dizia eu. Meses depois, lançamos, em coautoria, o livro Futebol, Mercado e Estado (...), no qual estão os pontos fundamentais da ideia da SAF, além do seu projeto de lei original. No lançamento, muita gente nos prestigiou - mas a enorme maioria acreditava que aquilo não sairia do papel. Depois, com a participação de colegas brilhantes como Tácio Lacerda Gama, Juliana Bumachar, Marcelo Sacramone e Carlos Eduardo Ambiel, lançamos ainda outros dois livros sobre SAF. Com o projeto de texto legal redigido e registrado, encontramos o deputado Otávio Leite, que se interessou em apresentar o PL à Câmara dos Deputados, em meados de 2015. O deputado também teve papel fundamental ao ter a coragem de propor um projeto que previa uma mudança potencialmente mal-recebida por dirigentes aferrados a seus postos e poderes - como de fato ocorreu. Entre 2015, quando a primeira versão do texto foi escrita, e sua aprovação, em 2021, houve raros dias em que Rodrigo Monteiro de Castro não realizou ao menos uma ação efetiva pela aprovação da SAF. Foram inúmeros encontros com jornalistas, dirigentes e colegas operadores do Direito, além de viagens a Brasília para discutir com parlamentares e demonstrar como o futebol brasileiro precisava de uma mudança profunda e urgente. Quando o PL da SAF foi à votação, "SAF" já não era apenas mais uma sigla estranha para a opinião pública e os parlamentares. Graças a todos esses encontros, ao tempo e aos recursos investidos - dos quais tive a sorte de participar na maioria - recebemos críticas e sugestões que foram acolhidas e realmente melhoraram o texto. Rodrigo Monteiro de Castro foi o abnegado que mais fez - e segue fazendo - pelo futebol brasileiro entre aqueles que nunca chutaram uma bola, treinaram um time ou dirigiram uma entidade. Ao lado de sua virtude, veio a fortuna que, em vários momentos, agraciou a ideia da SAF. O destino, de fato, conspirou pela revolução do futebol brasileiro. A maior fortuna foi termos encontrado, no senador Rodrigo Pacheco, o entendimento e o senso de urgência sobre o projeto da SAF. Primeiro, o senador foi o autor do texto do PL que efetivamente se tornou a lei da SAF. Depois, ao tornar-se presidente do Senado, pautou a votação do projeto e, graças à sua proverbial capacidade de diálogo e articulação, aprovou-o por unanimidade. Com o então presidente do Senado, a SAF encontrou, entre parlamentares, o apoio essencial de que necessitava. Durante a tramitação da lei no Congresso Nacional, as atuações dos relatores - no Senado, Carlos Portinho, e na Câmara, Fred Costa - foram decisivas. A fortuna também bafejou o futebol brasileiro quando, no momento da votação do PL no Senado, estava presente o senador Romário, que fez um pronunciamento detalhado e preciso sobre o tema, com a autoridade de quem foi um dos maiores jogadores de todos os tempos. Na sanção presidencial, o veto ao regime tributário especial proposto pela então presidência da República poderia ter colocado tudo a perder, criando uma carga tributária que desestimularia a adoção do modelo. E, novamente, o futebol brasileiro teve sorte: o senador Carlos Portinho liderou o movimento que derrubou o veto e tornou a SAF economicamente viável. O Cruzeiro não foi a primeira SAF, mas a atenção conferida ao seu processo de constituição - seja por se tratar de um clube gigante do futebol brasileiro, seja pela presença de outro gênio dos campos, Ronaldo, como investidor - atraiu ainda mais a atenção da opinião pública em favor do movimento. O Cruzeiro vinha de um período de enormes dificuldades e, menos de quatro anos após a adoção da SAF, voltou a liderar competições e a reassumir o protagonismo que nunca deveria ter perdido. E tantos outros clubes, que vinham enfrentando enormes dificuldades, se reestruturaram a partir da SAF. Quem, em 2022, por exemplo, afirmaria, numa conversa com amigos, que em 2024 o Botafogo SAF seria campeão brasileiro e da Taça Libertadores no mesmo ano? Em 30/7/25, neste mesmo espaço, Rodrigo Monteiro de Castro publicou um estudo do IBESAF, por ele liderado (incansável que é), apontando que já existem 117 SAFs no Brasil. Muitas indicaram o caminho da recuperação para diversos clubes. Outras recolocaram grandes clubes - como Botafogo, Cruzeiro e Bahia - de volta ao cenário das grandes competições. Outros, como o Coritiba, enfrentaram dificuldades no início, mas estão entrando nos trilhos, enquanto o Mirassol reverte os prognósticos com sua ótima campanha na Série A. E o Vasco? O Vasco e suas dificuldades servem para mostrar que a SAF não é uma "varinha mágica" e que o processo de constituição deve contar com estudos profundos na escolha dos parceiros e na celebração dos contratos - mas mesmo isso é uma lição que serve para aprimorar os modelos. O futebol brasileiro, que tanto encantou o mundo com seus craques geniais e suas conquistas, encontrou em virtù e fortuna o caminho pavimentado para uma revolução que já está em curso e poderá recolocá-lo no lugar de destaque no esporte mais popular do planeta. Na linda Florença, que tanto aprecia a arte e a beleza, Nicolau Maquiavel sorri satisfeito.
O anteprojeto de Lei da SAF que deu origem ao projeto de lei de autoria do Senador da República e então Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, pretendia criar um dos mais pujantes mercados de futebol do planeta. Esse propósito sempre esteve acompanhado de uma espécie de irmão siamês, consistente na afirmação desse mercado como necessário instrumento de desenvolvimento e de mobilidade social. Essa característica se expressa na Seção II, do Capítulo II, da Lei da SAF1, consagrada ao Programa de Desenvolvimento Educacional e Social - PDE, que estabelece o seguinte: a SAF deverá instituir PDE para, em convênio com instituição pública de ensino, promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação (conforme art. 28 da Lei da SAF). No âmbito do PDE, a SAF pode verter recursos para: (i) reforma ou construção de escola pública; (ii) manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol; (iii) instituição de sistema de transporte de alunos qualificados à participação no convênio; (iv) criação de programa de alimentação de alunos durante os períodos recreativos ou de treinamento; (v) capacitação de ex-jogadores profissionais; dentre outras atividades. O PDE, pelo seu propósito, é um dos pilares essenciais e justificadores da estrutura interna da Lei da SAF, e não deve, ou melhor, não pode, em hipótese alguma, ser ignorado, desde a concepção até a consumação de qualquer projeto de SAF. Não há fundamento que afaste a sua adoção, mesmo que, na origem, o programa seja menos audacioso do que se poderia esperar pela relevância do respectivo time, por motivo de ordem financeira ou de outra natureza. Partindo dessa concepção, o IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da SAF - promoveu um questionário que foi dirigido a 29 SAFs, todas integrantes de uma das quatro divisões do campeonato nacional, a fim de apurar o índice de atendimento da norma e as características dos convênios existentes. Em 27 de agosto de 2025, foi enviado e-mail às SAFs selecionadas, informando sobre a relevância do mapeamento do PDE e solicitando o envio das informações necessárias ao levantamento, por meio de formulário específico. Os destinatários correspondiam, em sua maioria, a profissionais que ocupavam cargos executivos ou de direção jurídica nas respectivas SAFs. Esses contatos foram obtidos a partir de informações públicas disponibilizadas nos portais oficiais das SAFs ou por meio de rede de contatos pessoais, o que permitiu a formação de uma base de destinatários supostamente crível e representativa para a pesquisa. O prazo inicial para o envio das informações foi fixado em 12 de setembro de 2025, posteriormente prorrogado para 23 de setembro de 2025, conforme comunicado encaminhado por e-mail em 15 de setembro de 2025. Das 29 SAFs convidadas a participar, apenas 4 responderam ao questionário.  Uma delas informou a existência de convênios com diversas prefeituras, por meio dos quais se promovem ações como capacitação de professores, fornecimento de materiais e uniformes, bem como incentivo à prática esportiva pelos alunos da rede municipal de ensino. Apesar dessas iniciativas, o PDE, previsto na Lei da SAF, não foi implementado.  Outras duas reconheceram não possuir PDE. A quarta, por fim, alegou que, em razão de regras internas de confidencialidade e de compliance corporativo, não poderia fornecer as informações solicitadas. Extrai-se, do resultado, que: (i) as SAFs não deram importância ao questionário; (ii) não responderam porque não quiseram reconhecer a falta de conformidade; ou (iii) preferiram manter sigilo a respeito de seus convênios. A terceira hipótese parece ser a menos próxima da realidade. A primeira talvez possa ter ocorrido em uma ou outra SAF, seja por falta de interesse ou por conta das prioridades esportivas. Por exclusão, a segunda hipótese, ao menos em tese, parece representar a verdadeira motivação do silêncio. Se ela se confirmar, terá revelado um seríssimo problema que precisará ser enfrentado imediatamente, inclusive no plano sancionatório, para que a norma possa ter a eficácia transformacional pretendida em sua concepção. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30/9/2025.
O anteprojeto de lei da SAF nasceu de uma iniciativa anterior, bem menos abrangente: uma "simples" proposição de reforma do modelo de governança do São Paulo Futebol Clube. A proposta foi encaminhada aos seus órgãos internos e não prosperou. Naquele momento, portanto, ainda não existia a ideia da SAF e muito menos de uma lei que a criasse. A proposta consistia apenas em um conjunto de normas que pretendia colocar aquele clube em nível elevado de governação e de controle. Lembre-se, aliás: a dívida do clube, em 2015, estava longe ser um problema, ou um grande problema, ou, pior, um problema de dimensões quase catastróficas. Olhava-se, pois, com (tímido) otimismo para o futuro e como se construiria uma ponte para a sustentabilidade.    A decepção com a captura política da proposta fez surgir, por outro lado, a percepção, ou a convicção, de que: primeiramente, técnicas de governança, em clubes, tendem a ser instituídas para preservação do status quo; segundamente, quando instituídas, também tendem a ser, com o tempo, manipuladas por grupos de interesse e, como consequência, utilizadas para finalidades grupais ou pessoais (e não para os fins que, ao menos em tese, as justificam); e, terceiramente, não haveria um caminho para o sistema do futebol brasileiro sem uma solução sistêmica, que pudesse ser adotada por qualquer clube, a critério e pela vontade de seus associados. A sistematização viabilizaria, ademais, a ocorrência de eventos sucessivos, sem conexões diretas, mas que influenciariam uns aos outros, de modo a evoluir para padrões de referência no futebol, que forjariam um ambiente sem precedentes e, idealmente, seguro e previsível. Mais, ainda: a sistematização democratizaria a acessibilidade às ferramentas consertadoras de problemas históricos, pois criaria alternativas à dependência de mecenas ou de castas políticas, provedoras de soluções paliativas aos problemas causados por eles próprios - soluções que, ao mesmo tempo, deixavam (ou deixam) sequelas irreversíveis. Partia-se, assim, no âmbito da propositura do sistema, de uma premissa: a inevitável revisão do modelo de propriedade no cenário futebolístico. Logo, a introdução de técnicas de governança seria uma consequência, e não a finalidade. Em outras palavras, identificava-se que o associativismo, como forma de organização e exploração da empresa futebolística, havia se esgotado, mesmo que, nele, se emulassem aquelas técnicas típicas das empresas mercantis, e, com isso, novo caminho poderia ser iluminado pelo acesso aos mercados financeiro e de capitais. Em 2016 o anteprojeto de lei transformou-se em projeto de lei e, em 2021, sob a liderança do Senador da República e, naquele ano, Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, em lei. A Lei da SAF (lei 14.193/2021) criou a SAF e ofereceu instrumentos para que se promovesse a necessária separação dos interesses clubísticos (norteados por relações associativas e políticas) da empresa do futebol (que afeta, em menor intensidade, associados do clube e, com maior profundidade, o povo, representado pela massa torcedora). Tomou-se cuidado para que o processo não distanciasse ou subtraísse o clube do futuro do futebol; ao contrário, pois nele se reconheceu a capacidade pelo zelo em relação a elementos fundamentais, como história, hino, cor e localidade. Foi-se além: também se cuidou para que o clube não perecesse e, por via de vasos comunicantes, a SAF o alimentasse com recursos oriundos de, dentre outros, dividendos, royalties e aluguéis, para manutenção de seus equipamentos, estruturas, esportes amadores e demais iniciativas sociais. Respeitando-se a autonomia existencial e patrimonial de cada entidade, i.e., do clube, como criador e acionista da SAF, e da SAF, como criatura e investida, também se projetou a dualidade governativa, essencial para que se atinjam (e se exercitem), de maneira isolada, os propósitos estatutários de cada entidade. A manutenção do clube, sem SAF, não significa que será malsucedido, no plano futebolístico, com ou sem "boa" governança. Mas se estará no plano da exceção, conjuntural ou estrutural. Pois o clube não foi forjado para administrar uma empresa e a empresa, não econômica, não resiste, no tempo, aos assédios associativos, a despeito da narrativa que seja fabricada sobre os atributos administrativos do próprio clube - e de seus administradores. Enfim, a crise do futebol, como regra, não deriva do sistema de (boa ou má) governança, mas do modelo de propriedade.
Desde a inauguração desta coluna, há quase dez anos, poucos temas geraram tanto interesse como o tema da semana passada, que é mais uma vez aqui abordado. O interesse, porém, conforme mensagens recebidas pelo autor, revela, como tem acontecido em debates sobre SAF, uma conotação negativa (ou preconceituosa). Em resumo, aponta-se, com frequência, que negócio entre partes relacionadas do controlador da SAF, e a própria SAF, sinaliza mais uma (suposta) anomalia do sistema, em desfavor do clube, geralmente sócio minoritário da SAF, que não se aproveita de tal negócio. Ou seja: assume-se que além da apropriação de riqueza (ou de patrimônio) por parte de terceiro, que, de alguma forma, beneficia, direta ou indiretamente, o controlador da SAF, o clube ainda se prejudica por não participar do resultado útil negociado. Há nessa visão um equívoco de origem - e, ao mesmo tempo, uma inclinação pessimista ou tendenciosa em relação à Lei da SAF e à própria SAF. O fenômeno - ou a prática - de negócios com partes relacionadas não foi inaugurado com o advento da mencionada lei e, muito menos, no âmbito de qualquer SAF. Ao contrário. Parte relacionada, como se apontou no texto publicado semana passada, é a "pessoa física ou jurídica que está relacionada com determinada entidade, seja uma sociedade empresária, uma associação sem fins econômicos ou de outra natureza (ou seja, em princípio, uma SAF ou um clube)"; e negócio com parte relacionada consiste na "transferência de recursos, serviços ou obrigações entre uma entidade que reporta a informação e uma parte relacionada, independentemente de ser cobrado um preço em contrapartida". Assumindo, portanto, que tanto o clube sem fins econômicos como a SAF são, para efeitos de enquadramento, as entidades reportantes, ou melhor, as entidades geradoras de oportunidades e contratantes ou fornecedoras de produtos ou serviços que podem ter, como contraparte, uma parte relacionada, é dentro do clube, de modo geral, que o ambiente para desvios de conduta se revela mais fértil pela ausência de legislação repressiva, pela inexistência de normas autorregulatórias e, do ponto de vista prático, pela ineficácia dos instrumentos estatutários (quando existentes). Clubes fazem parte da tecitura social desde o século retrasado; a introdução da SAF no sistema - com uma reforçada estrutura de governação - ainda não completou cinco anos. E negócios da natureza aqui estudada são parte do cotidiano clubístico desde a fundação do modelo. Não é incomum, aliás, que presidentes estatutários de clubes sejam submetidos, após o término de seus mandatos, a procedimentos disciplinares, que culminam em algum tipo de sanção, invariavelmente associada a eventos de gestão temerária e condutas afins; mas, ao que se sabe, inexistem acusações, julgamentos e condenações pelos atos capturados pelo conceito de negócio com parte relacionada. Lembre-se, ademais, que, no âmbito da associação sem fins econômicos, que não tem um dono e o poder de mando e de alocação de recursos é imputado, por um processo político, a um associado (ou a pequeno grupo de associados), que o exerce sem contrapartida financeira ou risco patrimonial, o incentivo para extração de valores é incomparavelmente maior do que o incentivo existente no âmbito da SAF. Considerando uma hipotética SAF cujo capital seja distribuído entre investidor, com 90%, e clube, com 10%, para cada negócio com parte relacionada realizado sem a devida justificativa e a necessária justa contrapartida, o investidor se beneficia, em tese, de apenas 10% do todo, pois 90%, se convertidos em lucro, seriam destinados a ele. Quando a situação se opera dentro do clube, para cada real malversado, em negociações indevidamente verificadas pelos sistemas de controle, a totalidade da malversação beneficiará algum terceiro, consistente em uma parte relacionada, em desfavor justamente do clube, que é prejudicado pelo todo (e não pela proporcionalidade). Mais: a SAF tem objetivo específico, qual seja, o futebol, enquanto a associação sem fins econômicos, na maioria dos casos, além de uma série de outros propósitos, como o desenvolvimento de modalidades esportivas amadoras, também se dedica à organização de eventos sociais, que podem ser utilizados, todos ou alguns deles, para finalidades indesejadas. A crise da maioria dos clubes, ainda mais injustificável, em determinadas situações, pelo tamanho de suas torcidas e de suas receitas, invoca um problema que antecede a Lei da SAF e a SAF, que são, estas, ao mesmo tempo, (possível) solução e vítimas tardias do associativismo corrosivo. No plano da SAF, os dilemas emergem e podem ser enfrentados, sob diversas óticas, como a contratual ou a regulatória, e os eventuais infratores, mesmo com base no arcabouço jurídico existente, sujeitam-se a uma estrutura de responsabilização prevista na legislação societárias. Eis, pois, a diferença de perspectiva: com a SAF, vislumbram-se caminhos para reforçamento da higidez sistêmica, ao contrário do secular e hermético associativismo, que é dotado, não por acaso, de instrumentos de autoproteção e de proteção de indivíduos, em detrimento da coletividade.
A provocação, adianta-se, não se aplica apenas às sociedades anônimas do futebol, criadas pela Lei da SAF (lei 14.193/2021). A problemática se estende, com adaptações, aos clubes de futebol, constituídos sob a forma de associações sem fins econômicos.1 A necessidade de enfrentamento, porém, intensifica-se a partir da tentativa de construção do mercado do futebol e das perspectivas de acesso a recursos nos mercados financeiro e de capitais. Daí o enfoque que se dará às relações que se estabelecem no âmbito das companhias e, consequentemente, da SAF. Para simplificar, parte relacionada é a pessoa física ou jurídica que está relacionada com determinada entidade, seja uma sociedade empresária, uma associação sem fins econômicos ou de outra natureza (ou seja, em princípio, uma SAF ou um clube)2. Negócio com parte relacionada consiste em "transferência de recursos, serviços ou obrigações entre uma entidade que reporta a informação e uma parte relacionada, independentemente de ser cobrado um preço em contrapartida". O conceito vem de norma contábil, aprovado e adotado pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM3. Para melhor compreensão, a parte que reporta a informação, também designada companhia, pode ser compreendida como, no âmbito do futebol e para os fins pretendidos neste texto, a entidade de prática esportiva, ou seja, a SAF ou o clube. São exemplos de negócios com partes relacionadas, conforme Política para Transações com Partes Relacionadas e Demais Situações de Potencial Conflito de Interesse ("Política") da B3 S.A. - Brasil, Bolsa, Balcão4 (maior bolsa do País e uma das maiores das Américas5), aplicável a ela própria (servindo, portanto, como parâmetro às demais companhias): (i) compra ou venda de produtos ou serviços; (ii) contratos de empréstimos ou adiantamentos; (iii) contratos de agenciamento ou licenciamento; (iv) avais, fianças ou outras formas de garantia; (v) transferência de pesquisa ou tecnologia; (vi) compartilhamento de infraestrutura ou estrutura; e (vii) patrocínio ou doações. Pessoas físicas ou entidades jurídicas podem ser enquadradas como partes relacionadas. No primeiro grupo, a mencionada Política lista a pessoa física ou membro próximo da família que: (i) tiver controle pleno ou compartilhado da companhia; (ii) tiver influência significativa sobre a companhia; e (iii) for integrante do pessoal com influência relevante da administração da companhia ou de sua controladora, entendendo-se como pessoal com influência relevante da administração aqueles que têm autoridade e responsabilidade pelo planejamento, direção e controle das atividades da companhia, direta ou indiretamente. Consideram-se membros próximos da família, além de outros, (i) os filhos da pessoa, cônjuge ou companheiro, (ii) os filhos do cônjuge da pessoa ou de companheiro e (iii) dependentes da pessoa, de seu cônjuge ou companheiro. No segundo grupo, a Política lista a entidade que: (i) controlar a companhia; (ii) for uma controlada da companhia; (iii) estiver sob controle comum; (iv) tiver influência significativa sobre a companhia; (v) for coligada da companhia ou coligada de terceira entidade que estiver sob mesmo controle; (vi) tiver relação com pessoa com influência relevante ou membro próximo da família; dentre outras. Importante relembrar: a companhia pode (ou deve) ser substituída e adaptada, conforme aplicável, pela SAF ou pelo clube.   Um negócio com parte relacionada, envolvendo a companhia (assim como a SAF ou o clube) não é, por definição, ilegal ou inadequado. Mas exige, pelas características, uma série de cautelas. O Regulamento do Novo Mercado6, que é o segmento que adota as regras mais altas de governança, estabelece, no art. 32, que a companhia deve elaborar e divulgar política de transações com partes relacionadas, contendo, no mínimo, conforme o art. 35: "(i) critérios que devem ser observados para a realização de transações com partes relacionadas; (ii) os procedimentos para auxiliar a identificação de situações individuais que possam envolver conflitos de interesses e, consequentemente, determinar o impedimento de voto com relação a acionistas ou administradores da companhia; (iii) os procedimentos e os responsáveis pela identificação das partes relacionadas e pela classificação de operações como transações com partes relacionadas; e (iv) a indicação das instâncias de aprovação das transações com partes relacionadas, a depender do valor envolvido ou de outros critérios de relevância". O tema também é tratado na lei 6.404/1976 (a Lei das Sociedades por Ações), no art. 122, que atribui competência privativa à assembleia geral de acionistas para deliberar, quando se tratar de companhia aberta, sobre "a celebração de transações com partes relacionadas, a alienação ou a contribuição para outra empresa de ativos, caso o valor da operação corresponda a mais de 50% (cinquenta por cento) do valor dos ativos totais da companhia constantes do último balanço aprovado".  Apesar de as normas mencionadas acima destinarem-se, de modo geral, a companhias abertas, a problemática também se destina às companhias fechadas - como são, aliás, todas as sociedades anônimas do futebol constituídas, até o momento, no país -, sobretudo com o propósito de tutelar direitos (ou posições) de acionistas minoritários. Nesse sentido, o item 6.3.1 do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa - 6ª Edição, formulado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC, prevê que "o conselho de administração, os seus comitês de assessoramento ou a diretoria, quando for o caso, devem monitorar transações com potenciais conflitos de interesses, ou aquelas que, direta ou indiretamente, envolvam partes relacionadas, como, por exemplo, conselheiros, diretores, sócios, entre outros, conforme definido na respectiva política"7. Em todas as principais operações de SAF (Cruzeiro, Galo, Botafogo, Bahia, Coritiba etc.) o clube originário ostenta posição minoritária, e o tratamento da relação com parte relacionada, que outrora afetava (ou ainda afeta) apenas o próprio clube, passou a se deslocar para as negociações estabelecidas dentro da SAF. Trata-se, pois, de fenômeno a ser compreendido, estudado, direcionado, disciplinado (sobretudo no plano contratual) e, eventualmente, (auto)regulado, de modo que continuará a ser abordado em futuros textos desta coluna. __________ 1 Na lei 10.406/2002 (Código Civil): "Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos". 2 Nos termos da Resolução CVM 94/2022, "Parte relacionada é a pessoa ou a entidade que está relacionada com a entidade que está elaborando suas demonstrações contábeis (neste Pronunciamento Técnico, tratada como "entidade que reporta a informação"). (a) Uma pessoa, ou um membro próximo de sua família, está relacionada com a entidade que reporta a informação se: (i) tiver o controle pleno ou compartilhado da entidade que reporta a informação; (ii) tiver influência significativa sobre a entidade que reporta a informação; ou (iii) for membro do pessoal chave da administração da entidade que reporta a informação ou da controladora da entidade que reporta a informação. (b) Uma entidade está relacionada com a entidade que reporta a informação se qualquer das condições abaixo for observada: (i) a entidade e a entidade que reporta a informação são membros do mesmo grupo econômico (o que significa dizer que a controladora e cada controlada são inter-relacionadas, bem como as entidades sob controle comum são relacionadas entre si); (ii) a entidade é coligada ou controlada em conjunto (joint venture) de outra entidade (ou coligada ou controlada em conjunto de entidade membro de grupo econômico do qual a outra entidade é membro); (iii) ambas as entidades estão sob o controle conjunto (joint ventures) de uma terceira entidade; (iv) uma entidade está sob o controle conjunto (joint venture) de uma terceira entidade e a outra entidade for coligada dessa terceira entidade; (v) a entidade é um plano de benefício pós-emprego cujos beneficiários são os empregados de ambas as entidades, a que reporta a informação e a que está relacionada com a que reporta a informação. Se a entidade que reporta a informação for ela própria um plano de benefício pós-emprego, os empregados que contribuem com a mesma serão também considerados partes relacionadas com a entidade que reporta a informação; (vi) a entidade é controlada, de modo pleno ou sob controle conjunto, por uma pessoa identificada na letra (a); (vii) uma pessoa identificada na letra (a)(i) tem influência significativa sobre a entidade, ou for membro do pessoal chave da administração da entidade (ou de controladora da entidade); (viii) a entidade, ou qualquer membro de grupo do qual ela faz parte, fornece serviços de pessoal chave da administração da entidade que reporta ou à controladora da entidade que reporta.". Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025. 3 Conforme a Resolução CVM nº 94/2022. Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025. 4 Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025. 5 Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025. 6 Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025. 7 Disponível aqui. Acesso em 09.09.2025.
A Lei da SAF (lei 14.193/2021) está transformando o modelo de propriedade do futebol no Brasil. Antes dela, o proprietário do futebol era, em quase todos os casos, um clube, que é, juridicamente, uma associação civil sem fins econômicos. No nível do clube, não existe um dono, mas diversos donos, que adquirem títulos associativos e, com eles, o direito de votar. Cada título confere direito a um voto. Associados milionários, ricos, de classes média ou baixa se equiparam, em tese, em peso, importância e influência. Na prática, porém, sobressaem-se as pessoas, independentemente de suas condições financeiras, ou os grupos de pessoas, que compreendem o funcionamento político da associação e arregimentam votos em torno de uma liderança ou uma chapa. Mais: que utilizam o processo eletivo, direto ou indireto, conforme o caso, para dominar a instituição e, em última análise, definir a alocação de seu patrimônio (logo, de seus recursos disponíveis e futuros). O sistema que norteia o associativismo contempla a entrega do todo a uma ou poucas pessoas, sem contrapartidas econômicas e, pior, sem freios eficientes para impedir desmandos e outras coisas mais. As falhas sistêmicas mostraram-se muito mais imponentes do que suas eventuais virtudes, e contribuíram para a acumulação de dívidas e para o sucateamento da indústria do futebol. Após décadas de monopólio do associativismo como forma de organização da atividade e após tentativas malsucedidas, contidas nas Leis Zico e Pelé (Leis nº 8.672/1993 e 9.615/1998, respectivamente), operou-se, no Brasil, a iniciação de um processo de redefinição do modelo de propriedade, viabilizador do acesso a capitais, por intermédio da sociedade anônima do futebol (SAF). Essa é, aliás, uma das características da sociedade anônima, tipo societário do qual a SAF (como subtipo) faz parte: a sujeição a um chassi regulatório que a habilita a acessar recursos para financiar suas atividades. Desde o advento da Lei da SAF já se constituíram, no país, 117 exemplares, com as mais distintas características ou finalidades, que acessaram investidores com distintos perfis. Um modelo de negócios consiste na integração de uma SAF, que por definição é uma companhia constituída no Brasil e sujeita às leis brasileiras, a um grupo de outros times (ou sociedades), de origem local ou internacional. O caso mais emblemático é o do Bahia, que se integrou ao poderosíssimo Grupo City e, desde então, apesar da pouca atenção midiática, vem, ano após ano, se afirmando como uma expressiva força nacional. O Botafogo é outro exemplo. A Eagle, companhia controladora da SAF Botafogo, controlava ou participava de outras sociedades, sediadas em outros países, que, localmente, comandavam times com maior ou menor tradição. Sem levar em conta a conceituação brasileira de grupo de sociedades, até porque a situação envolve múltiplas jurisdições, a estrutura de capital e os propósitos empresariais, os dois casos são muito distintos. Grupo City e Eagle se tocaram, se é que se tocaram, apenas na perspectiva de comandar times espalhados por diferentes países. Mesmo com diferenças, manejos intragrupo podem ocorrer no interesse do controlador e, consequentemente, em desfavor de um dos integrantes do grupo. Essa situação não implica, necessariamente, uma ilicitude. Ao contrário: a Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/1976) admite, nos termos nela estabelecidos, a constituição de grupo, por convenção, e a submissão de interesses das controladas à sociedade de comando. Mas, no plano do futebol, sobretudo de estruturas internacionalizadas, além de o interesse individual, em tese, não convergir com o do comandante - ou seja, com a perspectiva grupal -, eventuais decisões podem causar danos imediatos e irreversíveis, como, eventualmente, o esvaimento da esperança de título. Por exemplo, com a transferência de jogador fundamental para outro time do grupo em momento crucial da temporada. Por outro lado, a própria perspectiva de título talvez advenha, exclusivamente, da atuação e dos investimentos do comandante, emprestando-lhe certa legitimidade para arbitrar sobre a decisão mais adequada, esportiva ou economicamente. Tanto no Bahia como no Botafogo, as novas projeções de competividade, em relação ao primeiro, e os títulos conquistados, ao segundo, seriam apenas sonhos (ou devaneios) sem a Lei da SAF e as estruturas societárias dela derivadas. Esses cenários revelam que não há solução óbvia ou única para a problemática. Cada caso é um caso e envolve, inevitavelmente, características singulares. Mas já há, sem dúvida, no Brasil e no exterior, um desafio que pode se agigantar. O desafio deve ser analisado sob três perspectivas distintas: contratual, legislativa ou (auto)regulatória. No âmbito contratual, o receptor de um investimento pode impor restrições à atuação do investidor, condicionando a imposição à consumação do negócio. Em outras palavras, determinando que, sem as imposições, não seguirá com as negociações. Essa posição será eficaz se (i) o clube tiver condição de prescindir do investimento, em caso de recusa, (ii) o investidor tiver escolhido aquele time para compor seu grupo e (iii) não houver alternativa de investimento em outro time. Se houvesse, porém, uma norma estatal de natureza intervencionista, que impedisse ou restringisse certos negócios, apesar da proteção em abstrato do clube investido e do afastamento do custo e do desgaste da negociação, jamais se abrangeriam todas as situações e, pior, o resultado implicaria o afugentamento de investimentos relevantes, como os do Grupo City. O tema pode, ainda, ser avaliado sob o ângulo regulatório, aí sim direcionado a soluções sistêmicas, supraestatais e, na medida do possível, orientadoras de condutas dos agentes regulados. Nesse plano, parece-me que somente a FIFA tem autoridade - e competência regulatória - para arquitetar um modelo de alcance e eficácia globais. 
A Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") foi criada em 1976, como parte de um conjunto de medidas que tinha como propósito introduzir um ambiente favorável ao acesso de companhias brasileiras ao mercado de capitais. Além da lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que previa a sua criação, também foi promulgada, simultaneamente (sob perspectiva histórica), a lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que refundou o sistema de funcionamento das sociedades anônimas no país. Apesar de sua importância para a sustentabilidade das companhias brasileiras e para a organização dos mercados - e, consequentemente, de sua relevância para o desenvolvimento econômico e social -, a CVM, "entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministério da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira orçamentária" (conforme art. 5º da Lei 6.385/1976), vem sendo, desde então, esquecida pelos governos de quaisquer origens políticas. Faltam-lhe estrutura física e tecnológica, recursos humanos e financeiros e, não menos importante, reconhecimento, nos planos estatal e governamental, de sua função vital para afirmação do país como economia de mercado, dotado de ambiente seguro do ponto de vista jurídico, (relativamente) previsível e confiável em relação ao funcionamento institucional. Apesar de tanta carência, a autarquia cumpre, com bravura, às vésperas do quinquagésimo aniversário de sua criação, os propósitos para os quais foi criada. Alguns dados1, referentes a 2024, ilustram as proposições e chamam atenção para os resultados autárquicos: (i) emissões no mercado brasileiro da ordem de R$ 966 bilhões; (ii) 89.771 participantes regulados (logo, sujeitos à fiscalização da autarquia); (iii) R$ 15,43 trilhões de montante total regulado (após exclusão dos produtos derivativos, que totalizam R$ 24,89 trilhões); e (iv) mais de R$ 1,1 bilhão de arrecadação em taxas2. Tudo isso com aproximadamente apenas 400 funcionários3, sendo que se estima a necessidade de algo entre 800 e 1.200, e com uma destinação orçamentária de irrisórios 27% do total arrecadado com taxas4, para emprego em todas as suas atividades, inclusive de funcionamento. Para complexizar, a CVM, que é administrada por um presidente e quatro diretores, com mandatos de cinco anos, e funciona como órgão colegiado, está, atualmente, desfalcada de dois membros (incluindo o presidente), de modo que atua e serve com 60% de sua composição5. E é aí que, em momento tão delicado, o Governo não pode errar: as escolhas, inclusive do diretor que presidirá a autarquia, devem privilegiar pessoas que, além de profundo conhecimento técnico, compreendam a importância da função para o fortalecimento do mercado de capitais e da imagem do país. Aliás, mais do que a compreensão pessoal dos escolhidos, é fundamental também que os agentes que integram (ou que venha a integrar) o sistema, locais ou estrangeiros, se convençam de que as mensagens explícitas ou implícitas derivadas das escolhas refletem o real apoio governamental ao desenvolvimento e à segurança do mercado de capitais.  E o que o futebol tem a ver com isso? Muita coisa. Já se começaram a estruturar operações que atraem o poder regulatório e fiscalizatório da CVM e outras, mais midiáticas, não tardarão a ser anunciadas. O mercado de capitais deverá ser uma fonte importante de financiamento da atividade futebolística, por via de operações de dívida e, no futuro, de ofertas de ações. O bom funcionamento da instituição contribuirá para a formação do novo (e maior) mercado do futebol do planeta, orientado, aliás, pelo Parecer de Orientação CVM nº 41, de 21 de agosto de 20236. Enfim, não há democracia pujante que não ostente um mercado financeiro competitivo e um mercado de capitais sólido. E não há solidez sem apoio governamental e da sociedade ao regulador e fiscalizador, ou seja, no caso do Brasil, à CVM e ao seu corpo técnico.    __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025. 2 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025. 3 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025. 4 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025. 5 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025. 6 Disponível aqui. Acesso em 26.08.2025.
quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O Botafogo, o Cruzeiro e os erros da Lei da SAF

O 3º Congresso de Direito Empresarial do Distrito Federal1 reuniu, na segunda semana de agosto de 2025, centenas de pessoas, dentre professores, magistrados, reguladores, advogados, pareceristas e estudantes, para debater diversos temas relacionados ao seu propósito existencial (ou seja, o direito empresarial, em sua essência, e suas intersecções com outras disciplinas). Uma das palestras tinha como mote, em suma, o que vinha dando errado na Lei da SAF. A provocação foi ótima, e reforça a preocupação que venho manifestando sobre o negativismo midiático, intencional ou não, em torno de uma lei que, apesar da curta existência, já transformou o ambiente do futebol no país. Pouco se fala, com efeito, dos acertos e das melhorias conjunturais ou estruturais, ou das transformações em movimento; ocupam-se os espaços midiáticos, por outro lado, com o criticismo negativo. Mesmo - ou sobretudo - quando o "erro" resulta em sucesso. Para me explicar, adotarei a proposição de um consagrado professor de direito empresarial, cuja identidade, por respeito a ele, manterei anônima. Ao se dirigir a mim, antes da palestra, ele disse-me, reservadamente, que o maior erro da Lei da SAF havia sido a viabilização dos títulos do Botafogo, pois o transformara em algo que se distanciava de sua história de dramas e desastres explicáveis apenas no plano da metafísica. Tratava-se, evidentemente, de uma broma, oriunda de um torcedor adversário ferido com a mudança de status do time rival. Mesmo assim, acabei suscitando a bromaria no painel e trazendo-a ao debate. Afinal, o argumento tem, sob determinada perspectiva, validade - e pertinência. Quem conhece um pouquinho de reestruturação empresarial sabe que se trata de um desafio, de modo geral, complexo e sujeito a obstáculos e percalços, até que se estabeleçam condições internas de competir em alto nível, e se inicie o processo de soerguimento e, na sequência, crescimento, conforme premissas adotadas pelos reestruturadores. O imediatismo se expressa, não raro, em medidas com efeitos internos e externos, que propiciam resultados mediatos. Exceto em situações muito específicas se colhem, com exuberância, já no curtíssimo ou curto prazos, os produtos do esforço da reorganização. No plano empresarial ou societário, o empresário ou o acionista costuma ter um pouco mais de paciência com relação ao momento das colheitas futuras, projetadas conforme planejamentos de que tenha participado, direta ou indiretamente, da elaboração. Essa postura, já se devia ter percebido, será diferente em relação ao futebol. Em outras palavras, a perspectiva do torcedor - e dos agentes que participam da atividade futebolística, incluindo a imprensa - é imediatista, mesmo quando (superficialmente) se apoia, na origem, uma planificação racionalizada e contida. O verniz da paciência se esvai, pois, na primeira (ou na segunda) quarta-feira após iniciada uma competição. Repiso dois casos mencionados nos dois últimos textos desta coluna. Primeiro, o Cruzeiro. Ronaldo Nazário, o salvador, que apostou no que talvez fosse, naquele momento, pelos riscos envolvidos, o menos recomendável e mais incerto negócio de SAF no Brasil, traçou, com sua excelente equipe executiva, um projeto que pressupunha o rápido acesso à primeira divisão e, ao chegar lá, um par de anos de contenção e sofrimento, até que as contas se estabilizassem e o time voltasse a ser competitivo. Naquele período intermediário, o objetivo era permanecer na primeira divisão - pouco audacioso para a história do time, mas concatenado com a sua realidade conjuntural. E o que deu errado? A percepção da torcida, que não se conformou com a manutenção do plano, e em certos momentos hostilizou o salvador e contribuiu para a sua decisão de vender as ações da SAF - com grande lucro, certamente. Aliás, dizia-se que o investidor em SAF brasileira morreria com o investimento porque inexistiria, no Brasil, mercado secundário, viabilizador de operações entre o primeiro investidor e um novo, que tomaria sua posição. Trata-se, pois, de mais um erro, extraído do caso cruzeirense. O segundo caso envolve, por motivos óbvios, o Botafogo, que anunciou em 2022 a constituição da SAF e a chegada de John Textor. Em 2023, contra qualquer prognóstico, liderou o campeonato desde o início e por diversas rodadas, e apenas deixou escapar o título por uma fatalidade, digna de suas lendas: a não conversão em gol de um pênalti, em partida que ganhava com folga, que resultou em uma virada histórica e na perda de confiança (e do próprio título), na reta final do campeonato. Quando se imaginava que a grande (e única) chance fora desperdiçada, o time estarreceu o país e faturou, no ano seguinte, sua primeira Libertadores da América e, simultaneamente, o Campeonato Brasileiro, o mesmo que deixara voar no ano anterior. Os resultados, independentemente dos métodos utilizados pelo investidor - que, neste texto, não estão em questão - mostram que aquele professor de direito empresarial, mencionado no início do texto, estava, ao contrário do que ele próprio racionalmente dizia, e por outros motivos, certo: não se deverá ver, com tanta rapidez, resultados tão contundentes, exceto se caminhões de dinheiro forem imediatamente despejados no projeto, sem alguma racionalidade; algo que não se verá com frequência. Enfim, para fechar o tema, problemas existem, e de diversas naturezas, e devem ser debatidos, corrigidos e redirecionados, ao mesmo tempo em que as virtudes precisam ser, num país tão atacado por suas mazelas, enaltecidas. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 19/8/2025.
O jornalista Juca Kfouri escreveu artigo, publicado no Blog do Juca Kfouri, sobre a ingratidão do torcedor na hora da derrota1. Ele lembra, para realçar a importância de Abel Ferreira - que vem sofrendo críticas de parcela específica da torcida -, que o Palmeiras ganhou, sob a sua direção, nada mais, nada menos, do que dez títulos em cinco anos, e títulos expressivos, como duas Libertadores da América, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil. A ingratidão, ao que me parece, vai além. Antes do argumento, uma advertência: não pretendo e não chegarei perto de tratar de aspectos políticos do clube e de defender uma ou outra posição ou uma ou outra pessoa. Passo, como dito - mas prefiro reiterar -, longe disso. A argumentação decorre, como se notará, das mesmas premissas de que parte o texto jornalístico mencionado acima. Além de Abel, a presidente do clube, Leila Pereira, também vem sendo hostilizada, e, junto com o treinador, seriam figuras dispensáveis para parcela da torcida. Foi o que se cantou na derrota para o Corinthians: "meu Palmeiras não precisa de você", dentre outras coisas, muito piores, e com expressões de baixo calão. Leila Pereira também é uma dirigente inquestionavelmente qualificada, competente e bem-sucedida, fora e dentro do futebol, e, neste ambiente, coleciona títulos relevantes desde que assumiu o cargo.  Ambos, Abel e Leila, passaram a enfrentar, com inusitada violência, a lógica político-clubista, que se manifesta não apenas nesse clube, mas em muitos outros - talvez, em todos os outros -, quando uma situação de adversidade se apresenta, mesmo após retumbantes conquistas. É dessa lógica que deriva parte do problema do futebol no Brasil, pois o associativismo atua em uma posição, ou melhor, em uma função que não lhe é própria: a de empresário (isto é, de organizador de atividade econômica). Daí, aliás, o distanciamento entre times brasileiros e europeus, localizados nos principais centros de prática do esporte. Naquele continente, poucas associações permanecem na disputa de campeonatos relevantes e, quando isso acontece, remanescem de estruturas específicas de poder, que não são replicáveis. São os casos de Real Madrid e Barcelona, beneficiários de privilégios históricos decorrentes de seus papeis ou de suas representações, um como símbolo do regime central espanhol e, outro, da resistência e orgulho separatista catalão. Mas os países europeus perceberam que o futebol se tornara uma atividade altamente competitiva, demandadora de recursos e carente de governação e de planejamento, e impuseram, sob distintas diretrizes, legislações com propósitos transformacionais. O associativismo, consequentemente, passou a ser a exceção, e não a tendência. No Brasil, mesmo com o advento da Lei da SAF, ainda se encontram barreiras aos sinais dos tempos. E, o que mais se ouvia - ou ainda se ouve - é que Flamengo e Palmeiras provam a tese de que clubes bem geridos podem resistir sob a forma de associação. Talvez pudesse ser verdade se, e apenas se - e isso vale para qualquer clube - não existissem grupos de interesses internos e externos, de situação e oposição, rachas entre grupos, lideranças partidárias e torcedores ingratos ou conflitados que se movem conforme suas percepções de oportunidade.  Mais do que isso: num ambiente político-clubista, o presidente eleito (ou a presidente) destina parte de sua energia vital, desde o primeiro dia de mandato, a construir proteções contra ataques amigos ou inimigos, ao mesmo tempo que se dedica ao propósito para o qual, em tese, foi eleito (a), que consiste na gestão do futebol. Mas, quando a fabricação de situações conjunturais se sobrepõe aos próprios times, pois viabilizadoras de movimentações políticas ou dominativas, o interesse das massas torcedoras se curva a propósitos patrimonialistas, individuais ou grupais. Assim se explica o permanente estado de crise de clubes brasileiros. Mesmo que se projete de onde não se espera. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 12/8/2025.
quarta-feira, 6 de agosto de 2025

As crises no futebol e a lei da SAF

Atlético-MG vive crise financeira e acende alerta sobre modelo das SAFs. Esta foi a chamada de matéria veiculada na edição de 24 de julho de 2025, da Folha de São Paulo1. O negativismo que assola o Brasil e os brasileiros, talvez de origem ibérica, fruto da (de)formação colonial, merece mais do que estudo; já chegou a hora de um redirecionamento, mesmo que carregado de ufanismo, para o bem geral. Afinal, o olhar, quase sempre negativo, contribui para a manutenção daquele já conhecido (ou impregnado) complexo de vira-lata. A crise do Galo não é uma crise da SAF, do modelo da SAF ou de seus controladores. Ela é anterior, de um modelo retrógrado, que já se tornara insustentável quando a SAF foi constituída como uma saída, talvez a única, para reverter problemas que, sob o associativismo, não se resolveriam, jamais. Apesar de não conhecer em detalhes a situação, exceto pelas informações públicas, o time, controlado pela SAF, com todas as suas dificuldades, tem, como quase nenhum outro, um conjunto de acionistas com repertório para tentar e - espero não estar errado - mais do que isso, encontrar soluções para dificuldades que podem aparecer para qualquer empresa ou qualquer SAF. Aí está uma diferença existencial: enquanto em associações as crises são varridas para debaixo do tapete e comprometem o futuro esportivo, em SAFs, como regra, elas tendem - ou tenderão - a ser enfrentadas, como devem ser, sem apego a movimentos imediatistas ou populistas. Não quer dizer que toda SAF será bem-sucedida. Aliás, numa hipotética competição com vinte SAFs, quatro necessariamente cairão para série inferior. Mais do que isso: mesmo que as rebaixadas não passassem por crises econômicas, a probabilidade de tal ocorrência, em alguma delas, inclusive naquelas que se mantivessem na série principal, beiraria a certeza. Nem todo casamento tem final feliz, nem toda empresa atinge a liderança de seu setor, nem todo produto lançado é abraçado pelo mercado, nem todo filme do melhor diretor é bem recebido, e assim por diante. SAFs também poderão passar por seus dramas. Essas situações, porém, não deveriam nortear a percepção das coisas, exceto se se tornarem a regra (e não a exceção). Nem isso vale para a situação do Galo e, muito menos, como juízo final da lei da SAF, que ainda não completou seus 5 anos e já deu, ao país, 117 SAFs, conforme estudo apresentado pelo IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol2. Houvesse, por outro lado, memória (ou aversão) em relação à história de apropriações nas associações sem fins econômicos, que produziram um estoque bilionário (e, em alguns casos, impagáveis) de dívidas, e, por outro lado, conhecimento dos propósitos da lei da SAF, como instrumento de política pública, a temática, mesmo que pautada por uma crise, poderia ser colocada como um importante momento na curta trajetória da lei. É assim, na verdade, que o momento do Galo deveria ser visto: como uma mudança paradigmática na forma de enfrentamento de problemas; problemas que, provavelmente (para não se afirmar categoricamente), não deverão ser deixados para sucessores políticos resolverem. Quanto às proposições de que o próprio Galo e outras SAFs gastam mais do que deveriam e repetem os excessos das associações, elas escancaram uma realidade que o país logo deverá enfrentar, não apenas nos planos autorregulatórios ou regulatórios, mas, também, no legislativo. Sem normas de "fair play", sem limites de gastos com remunerações, sem delimitação da transferência entre clubes de um mesmo grupo, sem freios à atuação de intermediários, dentre outros aspectos, as despesas continuarão a se descolar das receitas e induzirão movimentos contraintuitivos. Nesse sentido, a matéria da Folha alerta para a luz amarela que teria acendido ao Cruzeiro, em função da dívida contraída pela nova gestão, após período de contenção, imposto por Ronaldo, o salvador (e, posteriormente, vendedor) do clube. Curioso que Ronaldo era criticado pela racionalidade econômica - em suposto detrimento do resultado esportivo -, e o novo controlador, Pedro Lourenço, um conhecido e bem-sucedido empresário, alertado para o excesso (ou irracionalidade) dos gastos. A lei da SAF ainda engatinha, seus operadores aprendem a dominar os instrumentos criados por ela e resultados já aparecem: dentre os dez primeiros colocados na série A do Campeonato Brasileiro, quatro são SAFs e um é sociedade empresária limitada. Além do que um deles é o atual campeão da Libertadores e do Brasileirão. Mas este é tema para outro texto. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
quarta-feira, 30 de julho de 2025

Segunda atualização do mapa da SAF no Brasil

O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol - promoveu a 2ª atualização do mapeamento das sociedades anônimas do futebol constituídas desde o advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"). No trabalho de atualização, o pesquisador Iago Fernandes Espírito Santo utilizou as mesmas ferramentas de consulta adotadas na pesquisa inaugural1 e na primeira atualização2, disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, inclusive aquelas oferecidas pela Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - REDESIM, sob a regulamentação e fiscalização do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI. Nesta segunda atualização foi mantida, ademais, a denominação empresarial como critério de pesquisa, englobando todas as sociedades que possuem os termos "Sociedade Anônima do Futebol" e a sigla "S.A.F." em sua denominação, conforme dispõe o art. 1°, §3º, da Lei da SAF3. Além disso, a busca incluiu times que não disputam alguma divisão do campeonato brasileiro, de modo que toda SAF, detectada até a data de corte de 22 de julho de 2025, foi catalogada nesta pesquisa. Aí está, pois, a referência da nova atualização: o dia 22 de julho. A partir de mais essa iniciativa do IBESAF, pode-se compreender o impacto da Lei da SAF. Com efeito, apurou-se que, desde a divulgação da última atualização, em 26 de fevereiro de 2025, o número saltou de 99 para 117. Cabe, aqui, uma alerta importante: o acréscimo de 18 sociedades anônimas do futebol não representa o total de novas constituições no período. Isso porque a metodologia adotada considera apenas SAF's com CNPJ ativo. No intervalo entre as duas atualizações foram constituídas 19 novas SAF's4, mas uma das que constavam no levantamento anterior teve seu CNPJ suspenso e, por isso, foi excluída do presente mapeamento5. Dentre as 19 novas SAF's, observou-se o seguinte: (a) Em relação à região: 7 com sede no Sudeste6; 4 no Sul7; 4 no Nordeste8; 3 no Centro-Oeste9; e 1 no Norte;  (b)Em relação às unidades da Federação: as novas SAF's estão distribuídas entre 9 Estados e o Distrito Federal, sendo 6 em São Paulo, 4 em Santa Catarina, 2 em Goiás e 1 no Distrito Federal e em cada um dos seguintes Estados: Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Alagoas e Amazonas; (c) Em relação ao momento esportivo: 1 disputa a 2ª divisão do Campeonato Brasileiro, 2 disputam a 3ª divisão do Campeonato Brasileiro e 16 não estão qualificadas para o Campeonato Brasileiro. A pesquisa do IBESAF apresenta, por fim, o mapa da SAF, com a indicação de cada uma delas, conforme planilha disponível aqui. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 29.07.2025. 2 Disponível aqui. Acesso em 29.07.2025. 3 Art. 1º Constitui Sociedade Anônima do Futebol a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional, sujeita às regras específicas desta Lei e, subsidiariamente, às disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da lei 9.615, de 24 de março de 1998. (...) § 3º A denominação da Sociedade Anônima do Futebol deve conter a expressão "Sociedade Anônima do Futebol" ou a abreviatura "S.A.F.". 4 São as seguintes: Abecat Ouvidorense SAF; Amazonas FC - Sociedade Anônima do Futebol; Araçatuba Futebol Clube Sociedade Anônima do Futebol; Blumenau Esporte Clube SAF; Botafogo PB Sociedade Anônima de Futebol; Brusque Futebol Clube Sociedade Anônima do Futebol; Clube Atlético Paulista S.A.F; Esporte Clube Noroeste SAF; Industrial Sociedade Anônima do Futebol; Inter de Lages - Sociedade Anônima do Futebol; Juventude Sociedade Anônima do Futebol Juventude SAF; Lemense Sociedade Anônima do Futebol; North Esporte Clube Sociedade Anônima do Futebol; Núcleo de Futebol Cristais - SAF; Real Brasília Futebol Clube - Sociedade Anônima do Futebol; Rio Verde - SAF; Unibol S.A.F; Valinhos Hyper FC S.A.F; e VS Sociedade Anônima do Futebol. 5 A SAF mencionada é a Sociedade Esportiva Porto Real Sociedade Anônima de Futebol. 6  As seguintes novas SAFs possuem sede na região Sudeste: Araçatuba Futebol Clube Sociedade Anônima do Futebol (SP); Clube Atlético Paulista S.A.F (SP); Esporte Clube Noroeste SAF (SP); Juventude Sociedade Anônima do Futebol Juventude SAF (SP); Lemense Sociedade Anônima do Futebol (SP); North Esporte Clube Sociedade Anônima do Futebol (MG); e Valinhos Hyper FC S.A.F (SP). 7 As seguintes novas SAFs possuem sede na região Sul: Blumenau Esporte Clube SAF (SC); Brusque Futebol Clube Sociedade Anônima do Futebol (SC); Inter de Lages - Sociedade Anônima do Futebol (SC); e Núcleo de Futebol Cristais - SAF (SC). 8 As seguintes novas SAFs possuem sede na região Nordeste: Botafogo PB Sociedade Anônima de Futebol (PB); Industrial Sociedade Anônima do Futebol (BA); Unibol S.A.F (PE); e VS Sociedade Anônima do Futebol (AL). 9 As seguintes novas SAFs possuem sede na região Centro-Oeste: Abecat Ouvidorense SAF (GO), Real Brasília Futebol Clube - Sociedade Anônima do Futebol (DF) e Rio Verde - SAF (GO). 10 A nova SAF constituída com sede na região Norte é o Amazonas FC - Sociedade Anônima do Futebol (AM).
Não mencionarei o nome da criança que me fez refletir sobre alguns conceitos durante a final da Copa do Mundo de 2022, para poupá-la. Ela não escondia a preferência pela França; eu pendia para a Argentina, por um motivo extrafutebolístico: o suposto vínculo regional. E foi com essa suposição que provoquei a criança a celebrar certo gol da seleção argentina, por ser oriunda de país sul-americano, inferiorizado pela incontornável e eterna convicção colonialista europeia, e por outros motivos mais, os quais pareciam um blábláblá sem sentido aos ouvidos dela. Ao cabo do meu inoportuno sermão, proferido enquanto o jogo seguia em ritmo incomum para uma final de copa do mundo (assemelhando-se, em certos momentos, a uma pelada varzeana, pela irresponsabilidade tática e pela prevalência da vontade sobre a estratégia), ela, com os olhos na tela e sem se dirigir a mim, disse: "os franceses são pretos como os brasileiros e jogam como os brasileiros. Os argentinos se acham europeus e desprezam o Brasil. Você devia torcer para a França". A construção infantil, realizada sem malícia e influenciada pelos excessos que o ambiente futebolístico tolera (ou tolerava, como o tratamento preconceituoso dispensado com frequência a jogadores brasileiros), apresentava aparentes contradições, que não importam, neste momento. Aquele diálogo, que estava esquecido (ou armazenado) até a presente copa do mundo de clubes, foi reavivado pela exposição das diferenças econômicas e qualitativas entre times europeus e sul-americanos - e suas motivações. Mais: também pela percepção de que as estruturas de poder no Brasil e na Argentina, apesar de suas diferenças, abraçaram-se para preservar sistemas futebolísticos arcaicos e dominados por interesses antinacionais e patrimonialistas, enquanto ambos os Estados se dobraram a tais interesses (isso quando não participaram, diretamente ou por meio de seus agentes, da apropriação das perspectivas - e do futuro, que vem a ser o presente - do futebol). Consequentemente, além de terem oferecido, como se fossem colônias, os elementos (e os talentos) para que times europeus se equipassem, foram incapazes de desprender-se de suas estruturas de privilégio e adotar modelos que competissem num ambiente cada vez mais competitivo e ao mesmo tempo oligopolista. A situação argentina é mais grave do que a brasileira - apesar de sua seleção ser a atual campeã do mundo - como demonstra o fracasso de seus principais times. E como vem demonstrando, há anos, pela preponderância brasileira na Copa Libertadores. Lá se trava, aliás, uma guerra entre o atual Presidente do país e o presidente da AFA, associação que comanda o esporte, pela liberdade de definição do modelo jurídico de propriedade do futebol. Enquanto o primeiro tenta romper com o monopólio (ou ditadura) do associativismo, e assim viabilizar o acesso de times a capitais, o segundo o defende com todas as forças, inibindo, de maneira inversa, o ingresso de recursos que poderiam financiar a retomada do protagonismo ou do co-protagonismo regional e, quem sabe, mundial. O êxito de Palmeiras e Fluminense - por enquanto, especialmente do Fluminense, que passou para as quartas após derrubar um poderoso clube europeu -, revela a um só tempo as oportunidades que são ignoradas, há anos, pelos respectivos poderes públicos, de reformular os sistemas jurídicos para afirmação da atividade futebolística, e a viabilidade de criação, no hemisfério sul, precisamente na América do Sul - continente reduzido a exportador de jogadores -, de ambientes ou mercados comparáveis ou superiores esportiva e economicamente aos europeus. O mesmo êxito, e sobretudo se ainda se intensificar com a possível passagem de um ou dos dois times brasileiros às fases seguintes e finais, não pode turvar a visão geral em relação à realidade: ao fim da copa, ambos voltarão ao Brasil com receitas não recorrentes, que ajudarão no direcionamento dos objetivos imediatos (e eventualmente mediatos), mas continuarão a atuar em um campeonato cujos jogadores saem muito cedo para os mercados europeus e retornam ao final de suas carreiras, para suprir lacunas deixadas pela falta de acesso a recursos, falhas no modelo de propriedade e fragilidades das técnicas de governação. Ainda pior na Argentina, cujo status quo demoniza as formas jurídicas e econômicas que a transformaram, em conjunto com o Brasil, de modo geral, em um país periférico. A copa do mundo de clubes deveria servir, enfim, para além da alegria das torcidas do tricolor carioca e do palmeiras, para que os dirigentes do Brasil e da Argentina acordassem para as riquezas sobre as quais estão sentados, ao invés contemplarem o horizonte (ou a Europa) de binóculos.
quarta-feira, 25 de junho de 2025

O Peru, o Brasil, a gastronomia e o futebol

Paira mesmo entre gastrônomos o dogma de que o Brasil, com destaque para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, é um centro gastronômico mundial, dotado de restaurantes especiais, criatividade, produtos e tradição. Em termos midiáticos, a dogmática não se sustenta. Duas referências confirmam a proposição. Desde que iniciou sua aventura pelas mencionadas cidades, o secular Guia Michelin1 ainda não encontrou um restaurante que merecesse as cobiçadas três estrelas, que indicam a excepcionalidade do local, merecedor de uma viagem por si, independentemente de qualquer outra atração. Ademais, na edição de 20252, apenas três estabelecimentos em São Paulo e outros dois no Rio de Janeiro receberam duas estrelas, que reconhecem a excelência e o merecimento de um desvio de rota. A lista do 50 Best3, uma publicação digital que ajuda a democratizar a informação sobre restaurantes, divulgada no dia 19.6.20254, elegeu 4 restaurantes latino-americanos entre os 10 melhores do planeta; nenhum brasileiro. Dentre eles, dois peruanos, sendo um deles considerado o melhor do mundo. O único brasileiro entre os 50 melhores ocupa a 27ª posição. Aliás, outro peruano, que não consta da lista atual, já havia alcançado o topo, em 2023. Jamais um restaurante brasileiro foi reconhecido como o melhor.  Quem acompanha a cena peruana costuma reconhecer os atributos que contribuíram para formar a convicção (ou a impressão) de que, nesse país de aproximadamente 35 milhões de habitantes, acontece algo diferente: uma geração talentosa e trabalhadora, heterogenia racial, produtos locais e peculiares, pesquisas e propaganda, muita propaganda. A ênfase na propaganda não diminui a qualidade e a importância da gastronomia peruana, mas reforça a eficiência organizacional do setor que compete regional e mundialmente com outros países, pelo consumidor internacional. Foi assim, com a reunião de todos aqueles atributos, que o país vizinho se tornou uma referência da culinária e um destino de comensais oriundos de diversas localidades do planeta. A Copa do Mundo de Clubes, realizada nos Estados Unidos da América, país que desde os anos 1970 tenta, sem êxito, protagonizar e dominar o esporte mais praticado no mundo, causou certa comoção no público brasileiro e na imprensa brasileira, pelos resultados positivos inicialmente obtidos pelos times nacionais, em tese (e na prática) menos estrelados e competitivos do que os europeus. O novo formato de copa oferece uma experiência diferente, consistente na reunião de diversos times regionais, que não formam uma federação ou um grupamento com fins comuns, mas que, pelas origens, acabam sendo integrados para finalidades comparativas - e de medição de força. Em tal sentido, apesar de se tratar de mero exercício de futurologia, John Textor, o controlador do Botafogo, um dos times brasileiros participantes, afirmou que, em sua opinião, um representante da América do Sul fará a final da Copa. Talvez. Mesmo que a profecia não se realize, o momento deveria chamar atenção dos governantes e dos dirigentes brasileiros. Ao contrário da indústria gastronômica - e da cena peruana -, o futebol em geral e especialmente o futebol brasileiro estão presentes direta ou indiretamente na vida de parte relevante da população mundial: são aproximadamente 3,5 bilhões de torcedores5 que os acompanham sem necessidade de esforço específico por parte das autoridades ou de dirigentes futebolísticos. Nesse ambiente, a FIFA indica que, em 20246, o país com maior número de transferências foi o Brasil, com 2.350 jogadores (o segundo colocado foi a Argentina, com 1.217), e os valores envolvendo jogadores brasileiros também ficaram no topo, com a marca de USD 1,9 bilhão, seguidos pelos franceses, que atingiram USD 926,9 milhões. Mesmo que um torcedor do Laos ou de Moçambique não acompanhe o futebol no Brasil, ou que um brasileiro não jogue em seu time local, se ele acompanhar o futebol europeu, o que é intuitivo, deverá se deparar, no time de preferência ou em seu rival, com brasileiros. Apesar disso tudo, o Brasil, nos últimos anos, passou por um terrível processo de deterioração de imagem - e de marca -, além de uma evolução de receitas, de modo geral, em ritmo inferior à dos times europeus, que se tornaram referências e destinos de jogadores de países de outros continentes. O complexo de vira-lata atingiu patamar de certeza e se tornou uma verdade, apesar da inverdade. Nenhum clube sul-americano (incluindo-se, obviamente, brasileiro), mesmo que venha a avançar e, eventualmente, ganhar a Copa do Mundo, tem orçamento comparável aos orçamentos dos pares da Europa. A maior receita de um europeu está muito distante da maior de um sul-americano, bem como a diferença da segunda receita de cada região é enorme, e assim sucessivamente. Apesar disso, no que se refere ao Brasil, alguns movimentos iniciais e não conectados, como a lei da SAF e a lei do mandante, começaram a reanimar o sistema (que ainda está longe de atingir um nível aceitável de tamanho e importância), em função da qualidade de jogadores produzidos localmente, da tradição de seus clubes e do tamanho da torcida local - isso sem contar as possibilidades (ou necessidades) de internalização e a conquista de parte do consumidor mundial. Ao contrário do enorme esforço peruano para criar uma indústria gastronômica e um fluxo internacional de turistas por conta de uma atividade restritiva (e de elite), o Brasil domina as técnicas do mais popular esporte do planeta, que acessa bilhões de aparelhos (celulares, televisões etc.) e de pessoas, e poderia ser um de seus softpowers. As perspectivas grandiloquentes não aguçaram, até agora, o interesse de qualquer Governo brasileiro, que não reconheceu - e não reconhece - a importância do futebol para o país e sua gente, mais necessitada. Uma pena, pois, enquanto a inércia governamental (ou estatal) prevalece, outros países avançam e dominam posições que deveriam ser brasileiras - e, com isso, se apropriam de ativos e de receitas que também deveriam contribuir para o desenvolvimento da Nação. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
Neste último artigo da série (que complementa os dois textos anteriores), abordam-se determinados aspectos da lei das sociedades desportivas portuguesa (lei 39/23, de 4/8) inseridos em capítulos denominados "disposições comuns", "fiscalização, regulação e supervisão", "contraordenações" e "disposições finais e transitórias". O art. 26º dispõe sobre a publicidade da sociedade desportiva e determina a publicação na respectiva página na internet do contrato social consolidado, das contas dos últimos três anos, da composição dos órgãos de administração e de fiscalização, dos contatos oficiais, dos dados relevantes relacionados ao cumprimento de deveres de transparência e de determinadas comunicações com os sócios. Dentre os deveres previstos na lei, inclui-se o dever atribuído à pessoa ou entidade que passar a deter participação qualificada no capital social ou se tornar a maior acionista da sociedade desportiva, de informar o fato à própria sociedade empresária e à federação desportiva, que deverão publicar o conteúdo em suas páginas na internet. Ademais, a pessoa ou entidade enquadrada deverá identificar o beneficiário efetivo (final) da participação, mesmo que se sujeite a lei estrangeira (ou seja, mesmo que seja domiciliado ou residente no exterior). As sociedades desportivas são fiscalizadas - mediante a realização de inquéritos, inspeções, sindicâncias e auditorias externas -, pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, sem prejuízo do disposto no Código das Sociedades Comerciais, no Código dos Valores Mobiliários e demais legislações aplicáveis. Os titulares de ações e os administradores de sociedades desportivas devem ser pessoas com idoneidade. Considera-se idoneidade, segundo a lei, a aptidão para o exercício de determinada função, aferida pela probidade, por características pessoais, pelo modo de atuação e pela situação profissional e financeira. O art. 32º discorre sobre avaliação de idoneidade, apreciação de idoneidade e presunção de idoneidade. A lei estabelece que será idônea a pessoa que, cumulativamente, preencher os seguintes requisitos: "a) Seja maior não afetada por qualquer incapacidade de exercício; b) Não seja devedora de qualquer sociedade desportiva; c) Não tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por crimes em matéria de dopagem, pelos crimes previstos no regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva e no regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, até cinco anos após o cumprimento da pena; d) Não tenha sido sancionada por crimes praticados contra o património de sociedades desportivas ou clubes desportivos, até cinco anos após o cumprimento da pena, salvo se sanção diversa lhe tiver sido aplicada por decisão judicial; e) Não tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem, branqueamento de capitais, associação criminosa, terrorismo, furto, abuso de confiança, burla, extorsão, infidelidade, abuso de cartão de garantia ou de crédito, usura, emissão de cheque sem provisão, falsificação de documento, insolvência dolosa, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, abuso sexual de crianças, tráfico de pessoas ou auxílio à imigração ilegal, até cinco anos após o cumprimento da pena". A pessoa que pretender adquirir participação qualificada deverá demonstrar capacidade econômica para o investimento e procedência dos meios. O art. 33º prevê que a sociedade desportiva que não estiver com a situação tributária e contributiva regularizada por um período superior a três meses seguidos ou seis intercalados, no mesmo ano civil, ficará sujeita a sanções desportivas, aplicáveis pela respectiva federação. Aliás, o art. 28º estabelece que o regime fiscal das sociedades desportivas consta de lei especial (lei 103/1997, de 13/9)1, aplicando-se, nas omissões, as leis tributárias gerais portuguesas. O capítulo VIII, denominado contraordenações, é dividido em: coimas, que se referem a sanções pecuniárias decorrentes de inobservâncias da lei; sanções acessórias, que envolvem, dentre outras, a inibição ao exercício de funções administrativas na sociedade desportiva; medidas cautelares, abrangendo, por exemplo, a suspensão preventiva de atividade ou função; responsabilidades pelas contraordenações, em que se identificam responsáveis ou se atribuem responsabilidades pelas ilicitudes; e outros subcapítulos que versam sobre elementos pessoais, formas de infração, cumprimento do dever violado, prescrição, custas e impugnação judicial. Assim se conclui a série de textos sobre a lei portuguesa, que oferece interessante material de análise, estudo e comparação com o modelo brasileiro. 1 Disponível aqui. Acesso em 17/6/25.
Em complemento ao artigo apresentado há uma semana neste espaço, trata-se, desta vez, de aspectos relacionados à governação, aos deveres e ao funcionamento da sociedade desportiva em Portugal. De lá para cá, uma novidade: a seleção nacional portuguesa tornou-se, no dia 8 de junho, bicampeã da Copa das Nações, reafirmando-se como uma das principais forças europeias. À falta de dados empíricos, favoráveis ou contrários, não seria descabido associar a reafirmação vitoriosa ao processo interno de organização da atividade no país, sobretudo por intermédio da iniciativa legislativa. Mas não sendo este o propósito do texto, volta-se à apresentação do conteúdo da lei 39/20231. A sociedade desportiva deve ser administrada por órgão composto pelo número de membros previsto no estatuto, devendo ao menos dois ser membros executivos (ou apenas um, se se tratar de sociedade unipessoal). Além disso, um dos executivos deve atuar em regime de exclusividade. A identidade dos administradores deve ser reportada anualmente à entidade de administração do esporte e, se aplicável, à liga da qual a sociedade desportiva participe. Caso a sociedade desportiva tenha ações admitidas à negociação em mercado regulado, a comunicação de identificação esportiva não será aplicável. O artigo 20º estabelece que a proporção de pessoas de cada sexo não pode ser inferior a 33%, incluindo membros executivos e não executivos (observado, para companhias listadas, o disposto na lei 62/2017, de 1º de agosto).     Assim como ocorre na Lei da SAF, o art. 21º estabelece uma lista de incompatibilidades e considera nula a indicação de:   "a) [...] titulares de órgãos sociais de federações, ligas profissionais, associações desportivas regionais ou distritais, de outras sociedades desportivas ou clubes desportivos, salvo no caso do clube desportivo fundador; b) Quem detenha capital social, direta ou indiretamente, de outra sociedade desportiva participante em competições nacionais da mesma modalidade; c) Os praticantes desportivos profissionais, membros de equipas técnicas e árbitros, em exercício, da respetiva modalidade; d) Quem possua ligação a empresas ou organizações que explorem, promovam, negoceiem, organizem, conduzam eventos ou transações relacionadas com apostas desportivas; e) Quem, na mesma época desportiva, tenha ocupado cargos de administrador ou gerente em outra sociedade desportiva constituída no âmbito da mesma modalidade; f) As pessoas singulares ou coletivas que se dediquem à atividade, ocasional ou permanente, de intermediação de jogadores e treinadores; g) As pessoas singulares que, por força de relações pessoais ou profissionais, possam gerar uma situação, real, aparente ou potencial, suscetível de originar interesses incompatíveis daqueles que estão obrigados a defender; h) Pessoas estreitamente relacionadas com as referidas nas alíneas anteriores".  Consideram-se pessoas estreitamente relacionadas:  "a) Cônjuge, unido de facto ou parente em 1.º grau, no caso de pessoas singulares; b) Sociedade na qual uma das pessoas ou entidades referidas no número anterior ou um familiar próximo referido na alínea anterior: i) Detém uma participação qualificada ou direitos de voto; ii) Pode exercer uma influência significativa; ou iii) É membro do órgão de administração."  A lei portuguesa também trata de deveres de transparência. Os titulares de participações qualificadas devem ser comunicados às entidades fiscalizadoras, à federação desportiva e, se o caso, à liga. A comunicação compete à sociedade desportiva, observados certos procedimentos previstos na lei2. Em relação ao funcionamento, os acionistas ou sócios terão preferência para participar de aumentos de capital. Além deles, os associados do clube fundador, mesmo que não sejam acionistas, também poderão preferir aos demais, caso exista previsão estatutária. O artigo 23º ainda prevê que a subscrição pelo público em geral pode se realizar em condições mais onerosas àquelas previstas aos associados do clube em transformação ou fundador. O legislador português tomou cuidado com a preservação de ativos da sociedade desportiva, incluindo intangíveis, ao prever que a alienação ou a oneração de bens imobiliários que representem mais de 20% do ativo, bem como de símbolos, incluindo o emblema e equipamentos, sigam ritos próprios, previstos no art. 24º, devendo-se, assim, obter a autorização da assembleia geral ou do sócio único, se o caso. Por fim, o art. 25º impõe limites ao exercício de direitos de sócios, quando se verificar participação em mais de uma sociedade, nos seguintes termos: "(...) os direitos de titulares de ações ou quotas em mais do que uma sociedade anónima desportiva que tenham por objeto a mesma modalidade desportiva só podem ser exercidos numa única sociedade, com exceção dos direitos à repartição e perceção de dividendos e à transmissão de posições sociais. 2 - A restrição prevista no número anterior aplica-se, igualmente, a sociedades relativamente às quais a sociedade anónima desportiva e o acionista se encontrem em relação de domínio ou de grupo". (grifou-se)  Cabe a cada acionista o dever de informar aos destinatários da informação, quais sejam, cada sociedade desportiva, a federação desportiva e, se o caso, a liga, sobre as participações detidas em sociedades desportivas. A lei ainda admite a alteração da escolha quanto à sociedade na qual os direitos de sócio serão exercidos, desde que se obtenha autorização da federação desportiva, e nos termos definidos por ela. No próximo - e último - texto da série serão apresentados outros aspectos relevantes (e interessantes) a respeito da sociedade desportiva em Portugal. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 10 de junho de 2025. 2 "Artigo 22.º Deveres de transparência (...) 2 - A comunicação referida no número anterior deve ser feita pela sociedade desportiva até ao início de cada época desportiva ou no prazo fixado em regulamento, dela devendo constar: a) A identificação e discriminação das percentagens de participação e dos direitos de voto detidos por cada titular; b) A identificação e discriminação de toda a cadeia de pessoas e entidades a quem a participação deva ser imputada, independentemente da sua eventual sujeição a lei estrangeira, bem como a identificação do beneficiário efetivo dessa mesma sociedade, de acordo com os termos estabelecidos no artigo 30.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo; c) A indicação de eventuais participações, diretas ou indiretas, daqueles titulares noutras sociedades desportivas. 3 - A informação referida no número anterior deve ser renovada e atualizada, no prazo de 15 dias úteis, contados da celebração da respetiva transmissão de propriedade ou de uso, consoante o que ocorra em primeiro lugar. 4 - A identificação dos titulares ou usufrutuários, individuais ou coletivos, de participações no capital social de sociedade desportiva e toda a cadeia de pessoas e entidades a quem cada participação deva ser imputada são comunicadas à federação desportiva da respetiva modalidade ou, no caso das sociedades desportivas participantes em competições profissionais, à respetiva liga profissional, sendo criada para o efeito uma base de dados, em conformidade com o disposto no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, designadamente o respeito pela finalidade da recolha dos dados, sem prejuízo do cumprimento dos deveres declarativos previstos legalmente. 5 - As entidades às quais é permitido o acesso aos dados a que se refere o número anterior devem limitá-lo aos casos em que este seja necessário para conhecimento da identidade dos titulares ou usufrutuários de participações sociais e ao cumprimento das finalidades de promoção da transparência, integridade e credibilidade das competições desportivas, e não devem utilizar a informação para fins diversos dos que determinam a recolha, devendo o tratamento da informação prestada ser realizado em estrita observância ao RGPD. 6 - A violação do disposto no presente artigo constitui contraordenação muito grave. 7 - A reincidência na violação do disposto nos números anteriores determina a aplicação de sanções de natureza desportiva, nos termos regulamentares aprovados pela federação desportiva da respetiva modalidade ou, no caso das sociedades desportivas participantes em competições profissionais, pela respetiva liga profissional. 8 - O disposto nos números anteriores não é aplicável à sociedade desportiva cujas ações estejam admitidas à negociação em mercado regulamentado, à qual se aplica o regime previsto no Código dos Valores Mobiliários. 9 - O registo e publicidade das sociedades desportivas regem-se pelas disposições constantes da legislação aplicável às sociedades comerciais, devendo a conservatória do registo comercial, oficiosamente e a expensas daquelas, comunicar às entidades referidas no n.º 4 a sua constituição, os respetivos estatutos e suas alterações".
Crise no futebol não é uma característica exclusiva do Brasil. Outros países enfrentaram problemas sistêmicos e encontraram saídas próprias, em função de suas realidades, na maioria dos casos, de natureza legislativa. Os principais modelos mundiais, especialmente europeus, foram estudados antes da proposição do anteprojeto da lei da SAF. Nenhum foi copiado; eventualmente, alguma solução sofreu adaptação ao ambiente local. O produto, concebido para situação do país - e de seus clubes -, justifica o sucesso, consubstanciado na quantidade de SAFs existentes. Apesar disso, e ao mesmo tempo de modo paradoxal, ainda persiste em alguns clubes brasileiros, ou melhor, sobretudo em alguns dirigentes dominantes de certos clubes, a aversão ao novo - mesmo que o novo seja necessário. O tema de hoje - e de colunas futuras - envolve a análise dos modelos adotados em países relevantes no plano esportivo. Esse exercício talvez ajude a fixar a ideia de que a SAF, no Brasil, não representa uma invenção tropicalista. Mais do que isso: apesar de não consistir em uma solução mágica para problemas conjunturais ou estruturais, consiste numa condição necessária para que times se reorganizem, passem a se submeter a um novo modelo de propriedade, arquitetem suas formas de governação e protagonizem no plano esportivo. Inicia-se com Portugal. A lei 39/23, de 4 de agosto1, estabelece o regime jurídico das sociedades esportivas e revoga o decreto 10/13. Nota-se, logo na partida, que o caminho português é diferente do brasileiro. Lá se estabelece o regime jurídico de sociedades que atuam em modalidades de competições esportivas, e não em competições futebolísticas, apenas. Porém, a reforma de 2023 apresenta soluções que, ao que parece, foram influenciadas pela legislação brasileira. Se não foram, assemelham-se, por acaso.    Entende-se por sociedade desportiva "a pessoa coletiva de direito privado, constituída como sociedade comercial, cujo objeto consista na participação, numa ou mais modalidades, em competições desportivas, na promoção e organização de espetáculos desportivos e no fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva da modalidade ou modalidades que estas sociedades têm por objeto, sob a forma de sociedade por quotas ou sociedade anónima". A participação em competições esportivas é reservada às sociedades desportivas. Se a sociedade desportiva tiver por objeto a pluralidade de modalidades, o clube que a constituir pode ser titular de apenas uma; mas poderá participar de outras sociedades esportivas, desde que cada uma tenha por objeto uma única modalidade ou, tratando-se da mesma, se se diferenciarem por gênero. A sociedade desportiva pode ser constituída: "a) de raiz; b) por transformação de um clube esportivo; c) pela personalização jurídica de uma equipa de um clube desportivo que participe ou pretenda participar em competições esportivas". A lei proíbe a fusão entre sociedades esportivas, exceto se também houver fusão entre os clubes (ou times). Em decorrência da constituição da sociedade esportiva, devem ser transferidos para ela (i) os direitos de participação no quadro competitivo em que estava inserido o clube desportivo fundador, (ii) os contratos de trabalho desportivos e (iii) os contratos de formação desportiva relativos a praticantes da modalidade ou modalidades que constituem objeto da sociedade constituída. Paralelamente, o clube e a sociedade esportiva devem regular a utilização (i) das instalações, (ii) da propriedade industrial e (iii) de outros sinais distintivos de comércio. No âmbito da constituição, o clube fundador deve estabelecer por escrito inventário de direitos e obrigações transferidos, que será avaliado por revisor de contas. Passivos transferidos devem ser acompanhados da transferência de ativos de valor, ao menos, equivalente aos passivos.   Após a constituição, a sociedade desportiva representará ou sucederá o clube desportivo que lhe deu origem nas relações com a federação desportiva de sua modalidade de prática. A denominação das sociedades esportivas deverá conter a modalidade que praticará, se for apenas uma, e a abreviatura indicativa do tipo societário adotado: SAD; SDQ, Lda.; ou SDUQ, Lda. (conforme seja uma sociedade anônima, sociedade anônima unipessoal, sociedade por quotas ou sociedade unipessoal por quotas). A lei estabelece, ademais, capitais mínimos, no momento da constituição: 250 mil euros, para sociedades que participem da 1ª Liga e 50 mil euros, para as participantes da 2ª Liga. A sociedade que ascender de Liga deverá ajustar o capital, previamente ao seu ingresso. Para sociedades que participem de outras competições, o capital social mínimo também será de 50 mil euros. O art. 11 trata da participação do clube fundador na sociedade esportiva. Se a constituição decorrer de transformação ou for de raiz, o percentual será de 5% e as quotas ou ações do clube conferirão direitos especiais2. Mencionado artigo ainda trata da possibilidade (i) de o estatuto da sociedade desportiva sujeitar deliberações assembleares à autorização do clube fundador e (ii) de o clube fundador constituir uma sociedade gestora de participações. A lei estabelece que as ações de emissão das sociedades anônimas desportivas são de duas categorias: A e B. Categoria A se destina apenas ao clube fundador, na hipótese de constituição derivada da "personalização jurídica de uma equipa de um clube desportivo que participe ou pretenda participar em competições desportivas". Na hipótese de constituição de sociedade por quotas, uma quota com direitos especiais deverá pertencer ao clube fundador. A pessoa que detiver participação qualificada numa sociedade desportiva não poderá ter participação qualificada em outra sociedade que participe em competições nacionais relacionadas à mesma modalidade. O conceito de participação qualificada é definido no Código dos Valores Mobiliários3. Ademais, uma sociedade desportiva não pode participar do capital de outra sociedade desportiva. No próximo texto da série serão apresentados aspectos relacionados à governação, deveres e funcionamento da sociedade anônima desportiva em Portugal.   1 Disponível aqui. Acesso em 3/6/25. 2 "a) O direito de veto das deliberações da assembleia geral que tenham por objeto a fusão, cisão ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube desportivo, designadamente, emblema, equipamento, logótipos e outros sinais distintivos de comércio; b) O poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração e de fiscalização, com direito a participar em todas as reuniões e com direito de veto das respetivas deliberações com objeto idêntico ao da alínea anterior". 3 Conforme art. 16 do Código dos Valores Mobiliários, é considerado titular de participação qualificada aquele que atingir ou exceder 5% dos direitos de voto vinculados ao capital social de uma sociedade emitente de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado de valores mobiliários.
quarta-feira, 28 de maio de 2025

Quanto vale a seleção brasileira de futebol?

Quanto vale a seleção brasileira de futebol? A pergunta pode parecer estranha, pois se trata de uma atividade exercida por uma associação sem fins econômicos, a CBF - Confederação Brasileira de Futebol, que não está à venda. Mesmo assim, ela poderia ser precificada. Eventual preço, ou melhor, o debate sobre como precificar e, consequentemente, as projeções de preços serão objeto de outro texto. Para responder à questão, entretanto, retoma-se a ideia, já proposta nesta coluna, de criação de uma nova companhia pela CBF (associação), aqui denominada CBF S.A., que receberia os ativos relacionados à seleção de futebol e que seria integralmente detida pela própria CBF, conforme ilustração abaixo:   Na sequência, federações, clubes e SAFs subscreveriam aumentos de capital e passariam a ser acionistas da CBF S.A., em conjunto com a CBF. A permanência da CBF no capital da CBF S.A., a qualquer momento de sua existência, seria condição para resguardar a história e a tradição da seleção, e a CBF seria titular de direitos especiais e de vetos em relação a matérias essenciais. Com a entrada dos novos acionistas (federações, clubes e SAFs), a estrutura societária ficaria assim:     Na sequência, os acionistas poderiam escolher entre dois caminhos: (i) abrir o capital da CBF S.A., momento em que federações, clubes e SAFs venderiam suas ações e embolsariam, dependendo das participações que tivessem, bilhões de reais; ou (ii) vender suas ações a acionista estratégico, que contribuiria, ao lado da CBF, para o desenvolvimento da seleção brasileira e, ao mesmo tempo, direcionaria, sob as mesmas premissas, bilhões de reais a federações, clubes e SAFs. Parcela dos recursos também poderia ir para a CBF em contrapartida de eventual venda de parte das ações de sua titularidade, sem perda de direitos especiais e vetos, mencionados acima. Após um ou outro movimento, a estrutura da CBF S.A. passaria a ser a seguinte:   No plano societário, o caminho para que se promova uma das mais deslumbrantes, atrativas e singulares operações da história do mercado planetário de capitais, está traçado. Mas, resgatando-se a pergunta inicial, que ainda não será respondida aqui: quanto valeria, ou quanto poderia valer a seleção brasileira? Mais: quanto a CBF, federações, clubes e SAF's poderiam receber? As respostas deverão ser construídas a partir de números ou dados da CBF, nos quais se guarda o potencial da seleção brasileira, isoladamente considerada. Em 2024, por exemplo, a CBF arrecadou R$ 1.302.334.000,00 (um bilhão, trezentos e dois milhões, trezentos e trinta e quatro mil reais), reportou custos com o futebol de R$ 1.078.732.000,00 (um bilhão, setenta e oito milhões, setecentos e trinta e dois mil reais)1 e, após despesas operacionais e outros resultados operacionais, gerou um resultado antes de tributos de R$ 167.601.000,00 (cento e sessenta e sete milhões, seiscentos e um mil reais). Não é muito difícil extrair dos números as contribuições da seleção, em todas as linhas de receitas, como de patrocínios, direitos de transmissão e comerciais, bilheteria e premiações, registros e transferências, programa de desenvolvimento e CBF Academy. Também não será difícil isolar as destinações de custos e despesas da própria seleção brasileira de outras, relacionadas às demais atividades da CBF; e, ao final, chegar-se às contribuições da seleção brasileira para o resultado da CBF e, consequentemente, ao seu valor. A partir daí, a precificação poderia ser feita levando em conta algumas (ou todas) as seguintes referências, dentre outras: (i) valor de ligas internacionais, inclusive de modalidades distintas; (ii) valor de clubes internacionais, negociados em bolsa ou não; (iii) valor de empresas esportivas, negociadas em bolsa ou não; (iv) empresas brasileiras de alta rentabilidade; ou (v) projeções de fluxo de caixa, considerando os valores que serão destravados com a passagem ao modelo empresarial. Ao que parece, e isso será indicado em texto futuro, o futebol brasileiro poderia gerar, do "nada", bilhões de reais, que seriam destinados ao desenvolvimento do futebol e à construção do maior mercado do planeta. Nada além disso. _____________ 1 Do total, R$ 734.119.000,00 (setecentos e trinta e quatro milhões, cento e dezenove mil reais) foram destinados para contribuição ao fomento do futebol nos Estados e competições.
quarta-feira, 21 de maio de 2025

A CBF, os clubes, a liga de clubes e o Brasil

A CBF - Confederação Brasileira de Futebol é uma associação civil. Associações civis são regidas pelo Código Civil e se constituem pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos1. A CBF foi constituída há décadas, por pessoas físicas ou jurídicas2, que podem ou não estar presentes. Surge, então, a dúvida: quem são, atualmente, os associados formais da CBF?  O tema da titularidade, ou da ausência dela, foi resolvido pelo sistema estatutário de alocação de poder entre federações e clubes. Federações votam em todas as assembleias; clubes, em algumas. Nas assembleias em que os clubes votam, o colégio eleitoral é submetido a votos plurais desiguais, com atribuição de peso 3 às federações, peso 2 aos clubes que estiverem na série A e peso 1 (portanto, sem privilégio de fator de multiplicação) aos clubes que estiverem na série B3. Ou seja, as 27 federações juntas computam 81 votos, enquanto os 40 clubes de ambas as séries somam 60 votos (40 da série A e 20 da série B). Dessa forma, toda federação vale mais do que qualquer clube e, entre as federações, todas têm o mesmo peso. A federação de São Paulo ou do Rio de Janeiro, cujos principais clubes reúnem milhões de torcedores - e dezenas de títulos nacionais -, valem o mesmo que federações sem tradição e sem clubes representativos (que jamais participaram da série A ou, mesmo, da B). Nesse sistema, federações e clubes que reúnem milhões ou dezenas de milhões de torcedores são arrastados pelos interesses federativos e, na prática, sujeitam-se a interesses políticos dissociados dos propósitos que justificaram - e justificam - a própria existência da associação (pois as próprias regiões sem tradição não aparentam reagir ao distanciamento estrutural esportivo). A política ditou, nos últimos anos - ou pelo menos nas últimas duas décadas - o debate, sempre de modo negativo: corrupção, assédio, intervenção e interesses individuais em sobreposição a interesses coletivos (e nacionais). Paralelamente, a CBF se beneficia de um modelo de negócios único, mesmo não sendo formalmente uma empresa: (i) dispõe de milhões de consumidores-torcedores cativos, em relação aos quais ela não precisa gastar um real para conquistá-los ou mantê-los; (ii) a representação de um país e de seu povo, sem pagar um centavo de royalty; (iii) a utilização das cores da bandeira e da própria bandeira, bem como do hino nacional, sem pagar um centavo de royalty; (iv) a utilização esporádica, porém recorrente, das relações e dos ativos dos clubes (jogadores), sem a devida contrapartida e sem custos de formação, trabalhistas, previdenciários, estruturais e de outras naturezas; e (v) o gozo de incentivos e benefícios estatais, como imunidades ou isenções tributárias. Esse estado de coisas deveria levar a um necessário debate público a respeito da natureza e, em especial, das funções esportiva, social e econômica de entidades como a CBF, e da necessária fixação de políticas públicas que, sem intervir no funcionamento da atividade - e das próprias entidades -, ditem os rumos de um sistema nacional. Que não se afirme que essa proposta poderia afrontar o sistema internacional do esporte e ameaçar a coexistência das estruturas estatal, de um lado, e futebolística, de outro, comandada pela Fifa, e ocasionar reações e sanções. Se todo país é soberano para, por exemplo, instituir regime tributário favorecido incidente sobre a atividade, caso do Brasil, também o será para eliminar favorecimentos ou incentivar movimentos estruturantes, se e quando a função social (e esportiva) não se realizar. Assim, como se diz coloquialmente, do atual limão, o Estado brasileiro tem a oportunidade de produzir a mais doce limonada: o incentivo para formação da liga de clubes, sem interferir no funcionamento da CBF ou na regulação proveniente da Fifa. Aliás, a relevância e a urgência são evidentes, pois o sistema já atestou a sua incapacidade de prover uma solução que atenda ao interesse dos clubes - e, consequentemente, do povo-torcedor, e da nação. A liga de clubes deveria, no plano interno, deixar de ser uma abstração normativa, prevista em lei e no estatuto da CBF, e se constituir em instrumento de desenvolvimento esportivo e de afirmação do futebol como uma das atividades mais pujantes, inclusivas e representativas da cultura nacional; e, no plano externo, se posicionar e se afirmar como poderosa forma de soft power, com acesso (irrestrito) a televisões, smartphones e computadores espalhados pelo globo - como os norte-americanos fazem com o cinema, os sul-coreanos com o K-pop e os ingleses com a Premier League. Não resta dúvida, diante desse cenário, que o desenvolvimento do futebol brasileiro e a constituição de uma liga de clubes interessa ao Brasil - muito além de governos ou partidos - e que o Estado tem legitimidade e competência para promover as políticas necessárias para atingir objetivos rápidos e grandiosos. Dois movimentos (dentre outros que já foram abordados neste espaço e serão resgatados oportunamente) poderiam (ou deveriam) ser implementados: (i)              a criação de um regime especial, inclusive tributário, para incentivar a formação da liga de clubes, sob a forma de sociedade anônima do futebol, que se submeterá a normas incontornáveis de governança, controle, fiscalização, publicidade e responsabilidade; e (ii)           a criação de um órgão, ligado à Presidência da República, com a missão de instituir um plano nacional de desenvolvimento do futebol, para criação do maior mercado do planeta, com preocupações esportivas, educacionais, sociais e econômicas, que contaria com um Conselho composto por agentes públicos como o ministro dos Esportes, o ministro da Fazenda e o presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, e representantes do setor futebolístico e da sociedade, como o presidente da CBF, o presidente da Liga, o presidente da B3, dentre outros.  Com esses movimentos o país poderá recuperar, quem sabe em 2 anos, o protagonismo perdido nos últimos 20 anos, e projetar mundialmente um modelo que se sobreponha às mazelas que sabotam o futebol e o País.  ___________ 1 Código Civil: Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos. 2 Em tese, as federações estaduais deveriam ser associadas; mas, em análise de alguns balanços disponíveis, não se localizou título patrimonial da CBF em conta do ativo.  3 Estatuto Social da Confederação Brasileira de Futebol (2017): "Art. 33 - A Assembleia Geral Administrativa, poder de jurisdição máxima da CBF, compor-se-á das Federações filiadas no pleno gozo de seus direitos estatutários e que atendam às exigências da legislação esportiva. "Art. 34 - A Assembleia Geral, de natureza administrativa, na qual cada Federação filiada terá direito a um voto, reunir-se-á ordinária e extraordinariamente, observadas as normas deste Estatuto. (...). "Art. 40: A Assembleia Geral, de natureza eleitoral, reunir-se-á quadrienalmente, nos 12 (doze) meses anteriores ao término do mandato em exercício, para eleger, em votação secreta, o Presidente e os 8 (oito) Vice-Presidentes da CBF, bem como os membros do Conselho Fiscal, que serão empossados quando da realização da Assembleia Geral Ordinária que vier a se realizar subsequentemente ao término do mandato em curso, sendo o Colégio Eleitoral composto exclusivamente pelas: I - Federações filiadas, que englobam o conjunto de clubes profissionais e não profissionais, e ligas municipais de futebol integrantes de cada unidade federativa, tendo cada uma delas um voto com peso 3 (três); II - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 2 (dois); III - entidades de prática desportiva participantes, no ano da eleição, da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, tendo cada uma delas um voto com peso 1 (um)".
quarta-feira, 14 de maio de 2025

Das encruzilhadas do futebol brasileiro

Quando tudo indicava já adormecida e consolidada a sucessão na CBF com a eleição de Ednaldo Rodrigues, uma reviravolta trouxe novo e indigesto capítulo para a história, com o questionamento judicial do termo de acordo no qual aparentemente um dos seus signatários não dispunha do pleno gozo das faculdades mentais para firmá-lo. O Tribunal Superior, que já homologara tal acordo, foi instado por alegações de falsidade documental e encontrou uma saída olímpica através da decisão do ministro relator nos limites da tecnicidade e daquilo que processualmente falando lhe era razoável fazer, assim devolvendo a matéria para investigação pelo Tribunal de origem no Rio de Janeiro. Não é novidade que a entidade máxima do futebol brasileiro possua um vasto histórico de controvérsias, desmandos e desacertos. Um simples olhar para o último meio século nos evidencia, a partir da administração de João Havelange, a transformação de uma organização quase amadora em uma sólida sociedade empresarial, alavancada a partir dos anos 1970 pela forte entrada de um novo capital no futebol através dos contratos de televisão, dos fornecedores de material esportivo e da publicidade em geral, e ainda da ampliação da influência política na sua administração e trajetória. Assim vimos a época do "onde a arena vai mal, mais um time no nacional", o arrego no ano de 1987 que resultou na Copa União, a CPI da Nike, a derrocada de Ricardo Teixeira, o envolvimento de ex-presidentes no Fifagate, assédio sexual, o flerte inadequado com a Corte Suprema e a atual sensação de vacância pelas várias trocas havidas no comando. E, como se não bastasse, agora com o ineditismo da possível fraude de documentos; o que veremos nos próximos tempos é certamente uma série de novas "idas e vindas" de despachos, liminares e recursos, mantendo a direção da CBF "sub judice" e o cenário de acefalia no comando e nas diretrizes da entidade, tendo no horizonte a Copa de 2026. Para além da participação na próxima Copa do Mundo com a comprometida preparação em curso (mesmo a seleção tendo agora um novo treinador), o futebol brasileiro e a sua entidade máxima notadamente não dispõem de qualquer plano fora o fisiologismo, nem tampouco tem dimensão da responsabilidade social que tem com a nação, quem lhe outorga os símbolos e as propriedades, a seleção brasileira por exemplo: em verdade, urge um basta no continuísmo e uma guinada para reverter o quadro de letargia e clientelismo que insiste em nortear os caminhos do nosso futebol, algo que obviamente não é fácil, porém se faz imperioso. A cooptação da totalidade das federações e dos clubes das séries A e B alcançou o ápice na eleição por aclamação ocorrida em março passado, desde quando os clubes de modo dissimulado manifestam concordância com a gestão ou, quando cobrados, sustentam que mesmo somados não reúnem quórum para pensar em mudança. Pura conveniência e vassalagem, um tipo de parceria na conduta lesa pátria por parte de quem deveria exigir as modificações na direção organizacional, fundamentalmente para permitir aos clubes que regulem e liderem por si só uma parcela do seu próprio negócio. Nos últimos 5 anos, a estrutura da indústria do futebol tem se revigorado com os novos modelos e ferramentas que alteraram o "modo e o meio", impactando diretamente as formas de gestão, em especial a dos clubes isoladamente (atual divisão dos direitos de TV, possibilidade de transformação em SAF, investimentos e regulamentação das Bets, novos patamares de patrocínio e premiação, entre outras novidades e ativações). O mercado foi turbinado pelos investimentos das SAF e pelos aportes pesados das Bets, além do incremento dos direitos transmissivos após a regulamentação dos mandantes, e assim a maioria dos clubes tem experimentado um hiato episódico com uma grande afluência de recursos (o que não exclui a elevação de dívidas no período e as deficiências nos controles internos e na governança, inclusive entre os 2 ou 3 dos mais badalados). Em que pese o auspicioso e positivo recorte econômico financeiro, algo a ser bastante comemorado, existe também seu lado perverso, pois a farta disponibilidade de recursos conduz invariavelmente à miopia, exatamente o que ocorre no âmbito das duas ligas. E dentro delas, muito longe da unanimidade que foi alcançada para eleger o mandatário da entidade máxima do nosso futebol, nem mesmo se logrou superar definitivamente a discussão de "mais valia" promovida entre seus membros de modo contraproducente há 5 anos, frustrando o objetivo de desenvolver e aperfeiçoar em todos os seus aspectos o que seria o pretendido novo mercado, cuja formação passa por embates, rupturas e a permanente interlocução com a direção da CBF, seja ela com quem for (ou vier a ser). Há muito o que fazer para formatar um modelo viável e próspero, sendo imprescindível o alinhamento dos clubes e da CBF para trabalharem no enfrentamento de temas como a organização de alguns campeonatos por ligas, um modelo de fair play financeiro, a questão dos gramados, a obsolescência do nosso VAR, a violência, o calendário, a perda da atratividade, os efeitos mercadológicos das transições geracionais, licenciamentos conjuntos, os games e E-Sports, entre outros assuntos de estratégia e governança. Sem contar principalmente a necessária revisão do produto para melhorar a experiência do consumo interno e para fins de exportação, afinal, não dá mais para tolerar o tanto que tem de reclamação em campo a cada partida, a constante perda do tempo de jogo e a vergonha das simulações, como tomar pontapé na canela e rolar com a mão no rosto. É preciso que seja alterado o estado atual das coisas, a fim de subtrair o viés político na direção do futebol brasileiro possibilitando oportunidade de ressignificação da entidade máxima e do seu objeto, assim reforçando a atribuição da competência institucional das seleções brasileiras, registros e filiações, junto da permissão de organização para a Liga e reserva da organização de algumas competições com reciprocidade quanto à inclusão dos clubes que disputarem suas próprias ligas (Clube Série A/B na Copa do Brasil, p. ex.). A hora é de evoluir, de refletir e planejar, não há mais espaço para seguirmos apenas nos valendo daquela bengala de sermos o único pentacampeão do mundo, de sermos detentores do futebol arte ou de acreditar de forma simplista que num piscar de olhos seremos "Top 3" das ligas do mundo: o momento de agir chegou e todos os atores têm responsabilidade pela mudança, sob pena de continuarmos sendo a "eterna promessa." 
O show do milhão é um programa de perguntas e respostas protagonizado, em sua origem, pelo apresentador Silvio Santos, e veiculado na emissora que ele criou e controlou por décadas: o SBT. O participante que respondesse corretamente às perguntas que eram propostas poderia ganhar a cifra título do programa. Apesar da distribuição esporádica de dinheiro, o show explorava a dificuldade alheia e exalava crueldade; características, aliás, de outras atrações que compuseram as grades dominicais da televisão brasileira, como o "topa tudo por dinheiro". De todo modo, parecia à população que ali se convertia cidadãos comuns em milionários. "A crônica de uma morte anunciada" é uma das obras de um dos maiores escritores da história, Gabriel García Márquez, premiado com o Nobel de Literatura em 1982, ano em que, por coincidência, o mais encantador time de futebol se formou, perdeu e decaiu: a seleção brasileira, de Telê Santana. Narra-se, na obra, um evento de desfecho inevitável: a morte de determinado personagem, cuja sentença já fora anunciada por dois outros personagens, e se tornara de conhecimento dos moradores do povoado, que não a impediram ou preveniram a vítima. A atual situação do futebol no Brasil pode ser explicada por diversos prismas, ângulos, perspectivas ou quaisquer outros parâmetros, desde que se tenha alguma, e não necessariamente muita, criatividade. E, assim, ela também pode ser compreendida pela câmera do show do milhão ou pela pluma mágico-realista do escritor colombiano. Mais, até: pela fusão de conceitos ou de mundos tão distantes, ética, moral e ideologicamente, como os de Silvio Santos e de Gabriel García Márquez. O ponto de partida é a safra de demonstrações financeiras dos exercícios de 2024 de alguns dos principais times brasileiros. E aí se revela o show de dívidas bilionárias (ou que encostam no bilhão). Alguns exemplos se destacam: Corinthians1, Cruzeiro2, São Paulo3, Vasco4 e Santos5, dentre outros. Desde que as porteiras se abriram, com casos de clubes tradicionais que até hoje pagam o preço de erros que levaram a endividamentos extremos, outros clubes, conduzidos por dirigentes eleitos em ambientes políticos (sem freios internos, a despeito de normas estatutárias), adotaram o mesmo caminho, e passaram a colecionar problemas que demandarão muitos anos (eventualmente mais de década) para solucionamento. Gostaram, enfim, do show do endividamento bilionário.   Ao mesmo tempo, a sociedade, como um todo, parece inebriada com a situação e aceita, como algo normal, a acumulação de dívidas e contingências, por entidades sem fins econômicos - ou que nelas tiveram origem -, sem donos e sem entes responsabilizáveis. Daí a inevitabilidade da socialização do problema. Sim, pois passivos de tais magnitudes costumam ser pagos com recursos de terceiros, por via (i) de aportes de capital, oriundos de credores ou de sócios (investidores), (ii) de financiamentos para equalização da crise, ou (iii) de redução forçada e parcelamento de dívidas, à conta de credores, em ambientes de negociações coletivas, como a recuperação judicial. Ao contrário do que se narrou na obra de Gabriel García Márquez, o cenário não anuncia, por enquanto, uma ou algumas mortes, apesar de que, na história, certos times que tiveram relevância, desapareceram ou se tornaram zumbis associativos. O cenário indica, porém, uma perigosa aceitação ou normalização de situações extremas, que abalam a capacidade operacional, organizacional e reputacional de instituições históricas, além da relação entre elas e seus torcedores.   Esse estado de coisas reforça a tese que vem sendo sugerida neste espaço, consistente na necessidade de revisão do modelo de futebol, que passa pela concepção de políticas voltadas à formação (desde a infância até o fim da profissionalização), gestão, organização, investimento, tributação, afirmação e divulgação de um produto universal. Não se trata mais de movimento prevencionista, pois a crise, aparentemente sistêmica, já se instalou; mas de um trabalho, inicialmente, de contenção e correção, a fim de evitar uma catástrofe, e, na sequência, de redirecionamento ou de direcionamento (pela ausência histórica de uma política de Estado) que viabilize a construção de ambiente saudável, sustentável, eficiente e contributivo. O Estado foi leniente, ao longo de décadas, com o sistema, e o sistema, que deveria se autorregular e se resolver, sem a intervenção (legislativa) do Estado, o usou em benefício de poucos - e em detrimento de muitos. É preciso dar um basta, antes que, mais uma vez, a sociedade pague a conta. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3Disponível aqui. 4Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
quarta-feira, 30 de abril de 2025

Tite e o direito de não trabalhar

Tite foi elogiado pela coragem de reconhecer que não tinha condições psicológicas para aceitar um desafio ao mesmo tempo grandioso e complexo, proposto pelo time que o projetou ao panteão dos treinadores e à seleção brasileira. Ele podia ter apresentado outra justificativa, mas preferiu revelar sua intimidade, ou melhor, sua falibilidade - característica, aliás, inerente a ser humano. Como também caracteriza a raça humana a capacidade de superação, sempre enaltecida para glorificação de personagens. Acontece com frequência em transmissões de grandes eventos, como os jogos olímpicos, para enfatizar, por exemplo, as dificuldades de esportistas humildes que atingem o pódio. No caso de Tite, a superação será de outra ordem, pois o obstáculo, desta vez, não é material. Mas o final do roteiro já se pode, com algum nível de certeza, antecipar: o retorno em alguns meses à direção de time de primeira linha, mais um título e a reverência. Um (quase) conto de fadas, ou melhor, de futebol. Mesmo que, hipoteticamente, o final não seja tão feliz, e a sua questão pessoal se aprofunde e o afaste por mais tempo dos gramados - algo que, imagino, ninguém deseja; ao contrário -, ainda assim ele terá, por seus méritos, todos os meios para encontrar um desfecho adequado ao seu desafio. Poucos brasileiros têm direito ao que ele tem: (direito) de, em algum momento da carreira profissional, optar por não trabalhar, provisória ou definitivamente. Mais do que isso: a maioria enfrenta algum tipo de obstáculo ou de drama, digno de ser retratado no Fantástico, para sustentar casa, família e eventualmente amigos. No âmbito do futebol acontece o mesmo, desde a infância até o final do profissionalismo. Em quase todos os casos, não há opção, além de seguir. Importante: não se pretende, aqui, promover uma crítica a Tite; ele é privilegiado pelo seu próprio suor e pode (e deve) aproveitar sua situação, em seu interesse. A provocação tem outro propósito: a fragilidade do sistema esportivo, construído sobre a irrealidade da superação permanente. Semana passada ouvi do presidente de um clube brasileiro, muito bem-organizado - cujo nome se mantém preservado porque a conversa ocorreu em ambiente privado -, que o sistema em geral esquece que jogadores são pessoas como quaisquer outras, formadas por histórias próprias, que carregam seus problemas, seus fantasmas, seus desejos e suas obstinações. Nada mais óbvio e, ao mesmo tempo, mais ignorado.   Na mesma oportunidade ele narrou alguns episódios de saúde, inclusive de natureza psicológica, que afetam seus atletas, parentes de atletas e, até, animais de estimação, que repercutem em atuações e, com frequência, no ambiente clubístico; situações que, perante torcedores, são invisíveis pois apenas importam o resultado e as imagens idealizadas. Aí surge, então, um dilema: como internalizar problemas pessoais em atividades que, por definição, são competitivas e absorvem a teoria do mais forte? Há casos, muitos, de apostas na recuperação física ou psicológica de jogador. Alisson, do São Paulo, atualmente titular absoluto, relatou, após a conquista do título da Copa do Brasil, que vivera um drama pessoal e que chegara a pensar em parar de jogar (e se suicidar). Calleri, jogador do mesmo time, também externou, em certos momentos, tristeza ou depressão, por eventos alheios ao campo. Dezenas ou centenas de narrativas parecidas poderiam ser listadas, algumas já conhecidas, outras a se revelar. Situação como a de Tite, com a qual a sociedade passou a conviver e aceitar, em diversas profissões, também acontece aos montes no futebol, mas o protagonista cai no esquecimento e é devolvido para o ambiente de onde veio, geralmente sem formação e preparo para se recuperar e recomeçar a vida profissional, esportiva ou em outra função. E assim ele se perde, com frequência, em vícios ou na tristeza, aprofundada pelo esquecimento.  A imagem é triste. Dramática. Desumana, talvez. Menos do que uma certa reverência à atitude de Tite, que não tem nada de heroica, a sua recusa ao trabalho deveria servir, aí sim, para uma profunda reflexão público-privada a respeito da formação e educação de atletas e da criação de políticas voltadas à inserção pré e pós-carreira.
Clubes de futebol foram beneficiados por um modelo legislativo arquitetado para evitar a intromissão do Estado autoritário e manipulador na organização do esporte. O inciso I do art. 2171 da Constituição Federal criou, assim, um muro protetivo, que pretendia, após décadas de ditadura, atribuir à sociedade civil a prerrogativa organizacional e funcional da atividade esportiva. Havia, naquele momento, a esperança, ou melhor, a convicção de que pessoas (de bem) saberiam reconduzir o país, em todos os planos, a partir de princípios que pareciam, em si, suficientes para materialização de propósitos discursivamente eloquentes. O (compreensível) equívoco em relação ao modelo, motivado pelo momento político - e pela convicção nas intenções -, resultou no isolamento, dentro de associações esportivas, de castas que não tinham - e na maioria das vezes ainda não têm - propósitos ou atributos para desempenho de funções exercidas privadamente, mas que denotam incontornável interesse público. Talvez tenha faltado, aos idealizadores do modelo, naquele momento de esperança, o realismo lindamente expressado pelo poeta moçambicano Jorge Rebelo, sobre a natureza das gentes (ou das revoluções): "não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós". Pois, como ele escreve, ao assumir que "dos que vieram e conosco se aliaram muitos traziam sombras no olhar, motivos ocultos, intenções estranhas", deveria estar evidente que o propósito "para alguns outros era uma bolsa"; uma bolsa vazia, que esperavam enchê-la. O mencionado inciso I do art. 217 da CF, baluarte do associativismo supostamente livre, gerou, ao contrário do propósito originário, um sistema de confinamento e autoproteção, que se expandiu entre as diversas estratificações clubísticas, titulares ou não do poder de mando (e de controle), e exacerbou a gana patrimonialista, raiz da crise sistêmica do futebol. Eis o cenário: associados de clubes bajulam por privilégios; dirigentes digladiam pelo poder (e pelas regalias inerentes às posições) e se afirmam por intermédio da concessão de privilégios; e a torcida vive em estado de ciclotimia, oscilante entre a euforia (propagandística ou de resultado) e a resignação (decorrente do discurso dissimuladamente responsável, o qual, na maioria das vezes, encobre a incerteza ou a impossibilidade de títulos). A esse cenário se soma a incompreensão (e a incompetência) estatal, que, dentro de seus limites constitucionais, movimenta-se oportunisticamente e, no mais, lava as mãos, como se o fracasso esportivo nacional não lhe pertencesse. O pertencimento, porém, é inafastável; tal estado de coisas decorre justamente da leniência generalizada com a irresponsabilidade, inclusive fiscal. Exemplos não faltam. Dois dos três maiores times do Estado de São Paulo, Corinthians e São Paulo, ilustram as preocupações. O primeiro ostenta em torno de 30 milhões de torcedores2 e, o segundo, 20 milhões. A soma resulta na impressionante cifra de 50 milhões de torcedores, maior do que a população de todos os países europeus, com apenas seis exceções: Rússia, Turquia, Alemanha, França, Inglaterra e Itália. E como podem esses times, dotados de torcedores-consumidores perpétuos, e beneficiários de um sistema tributário paternalista, acumularem dívidas da ordem de R$ 3,5 bilhões3-4? Pior: dívidas dificilmente solucionáveis sem a realização de transações tributárias (portanto, à conta do contribuinte) e de movimentos bruscos, como o regime centralizado de execuções ou a recuperação judicial, que implicarão, necessariamente, algum tipo de socialização do problema com credores de todas as naturezas. Mais: como podem as mazelas se multiplicar ao longo de anos, passando de grupo de interesse a grupo de interesse, e se intensificar a despeito da configuração interna de poder? A situação não é privilégio (ou desvantagem) dos times paulistas; a crise se espalha por todas as regiões e dificulta (ou inviabiliza) a formação de uma "indústria" que deveria contribuir, inclusive orçamentariamente, para o desenvolvimento interno e para afirmação externa da Nação. Certamente se usará, em contestação, o exemplo do Palmeiras, o único grande time do Estado em boas condições. Mas a excepcionalidade de sua situação serve para confirmar a regra, pois decorre de uma sequência de fatores não replicáveis: duplo mecenato, inaugurado com Paulo Nobre e seguido por Leila Pereira/Crefisa, e estabilização política provisória (decorrente da limitação estatutária à reeleição), viabilizada pelo exercício do poder econômico - além, evidentemente, da coleção de acertos administrativos da atual presidente. Enfim, a propaganda, no atual estágio de crise do futebol, que passou a se inserir em uma rede global de negócios e interesses, não solucionará problemas materiais, econômicos e patrimoniais, mesmo que, eventualmente, se alcance, geralmente com o agravamento da crise, algum êxito esportivo. O modelo se esgotou. É preciso repensar, de forma sistêmica, o futebol no Brasil. E para o Brasil.    __________ 1 "(...) Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; (...)" 2 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025. 3 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025. 4 Disponível aqui. Acesso em 22 de abril de 2025.
O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu levantamento com o propósito de mapear as condições mais relevantes de operações societárias que envolveram determinados clubes e suas SAF's. Nesse primeiro ensaio, embrião de futura pesquisa que deverá abraçar todas as operações ocorridas em times das séries A a D do campeonato brasileiro de futebol, foram selecionados sete casos: (i) Associação Portuguesa de Desportos; (ii) Botafogo de Futebol e Regatas; (iii) Club de Regatas Vasco da Gama; (iv) Clube Atlético Mineiro; (v) Coritiba Foot Ball Club; (vi) Cruzeiro Esporte Clube; e (vii) Esporte Clube Bahia. Escolheram-se, inicialmente, três aspectos principais para catalogação e consolidação: (i) tipo de operação (algo que já constara da 2ª Pesquisa do IBESAF, cujo resultado foi publicado neste espaço1); (ii) condições gerais da operação; e (iii) tratamento/destinação de equipamentos esportivos, como estádios e centros de treinamento.  Os pesquisadores João Vítor Codelo e Iago Espírito Santo acessaram e utilizaram apenas informações públicas, disponíveis a qualquer pessoa, em sítios e mídias dos próprios clubes envolvidos e na imprensa em geral. Não consultaram, portanto, qualquer documento celebrado pelas partes envolvidas nas operações e, por enquanto, também não formularam perguntas para esclarecimentos dos clubes ou investidores. A técnica empregada não compromete o resultado, ao contrário, pois os pesquisadores se depararam com um conjunto informacional relevante e coerente, entre as diversas fontes públicas acessadas. O resultado obtido, ainda que a partir de uma base relativamente pequena, porém, envolvendo clubes expressivos e as sete maiores negociações realizadas com base na Lei da SAF, já indica a recorrência de algumas práticas jurídicas e negociais, que podem servir como referências, positivas ou negativas, conforme o caso, e adaptáveis, ou não, a situações futuras. Destaca-se que a transferência de ativos do clube para a SAF se operou, em todos os casos, via drop-down. A coincidência, por razões jurídicas já explicadas neste espaço em textos anteriores, para por aí. Em relação aos outros dois quesitos, há, sim, recorrência, mas o resultado, plotado abaixo, indica que as modelagens atendem às características do clube, ao perfil do investidor e à combinação, ou não, do negócio esportivo com o imobiliário - negócio esse que, em regra, costuma extrapolar o interesse apenas futebolístico e tratar o equipamento esportivo como uma unidade específica de negócios a desenvolver. Além disso, a inclusão do centro de treinamento, local que, ao contrário do estádio ou arena, costuma ter finalidade única, também varia em função das perspectivas econômicas do negócio. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 14 abr. 2025.
quarta-feira, 9 de abril de 2025

Futebol, mercado da SAF e interesse coletivo

"Private interests must be made subservient to the general interests of the community". A frase foi utilizada pelo juiz da Suprema Corte norte-americana, Samuel Miller, em emblemático caso julgado em 1873 (Slaughter-House Cases), que envolvia, de um lado, um grupo de açougueiros de New Orleans e, de outro, o Estado da Louisiana, que havia promulgado uma lei que impunha a centralização de abate em apenas um abatedouro.  Tentava-se, com ela, evitar que animais fossem esquartejados onde bem cada esquartejador quisesse e que as sobras de mais de 300.000 animais fossem despejadas, anualmente, no Rio Mississipi, principal fonte de água potável (drinking water) da cidade.  O grupo de inconformados pretendia afastar a legalidade da lei com base na 14ª emenda à Constituição, idealizada para proteger e estender direitos constitucionais à comunidade afro-americana. A extensão, porém, de direitos atribuídos originalmente a cidadãos às companhias não consistia em novidade, como explica em detalhes Adam Winkler, no excelente livro "[w]e the corporations - how american businesses won their civil rights" (Liveright Publishing Corporation).   A tese apenas se moldava ao conteúdo da emenda, pois, desde os primórdios da colonização e, sobretudo, após a independência, a colônia e o país foram marcados pela dominação e influência de companhias, tais como a Virginia Company of London, a Massachusetts Bay Company e a East India Company, que souberam defender posições e pleitear direitos. O embate envolvendo a extensão de direitos individuais às corporações pautou a Suprema Corte e oscilou em função das correntes políticas (que opunham dois "founding fathers", Alexander Hamilton e Thomas Jefferson) que ascendiam ao poder e, consequentemente, influenciavam a composição da corte.  O que se pretendia, naquele momento, era, mais uma vez, afastar a competência dos tribunais estaduais, geralmente compactuantes com as políticas locais, para decidir o caso - como já se conseguira em outras oportunidades, a exemplo do paradigmático litígio conhecido como Bank of the United States v. Deveaux, de 1809 -, apesar de, como escreve Adam Winkler, a "[e]menda não ter sido concebida para resolver o descontentamento de açougueiros brancos com atos de regulação econômica".  A ideia de preponderância do interesse comunitário sobre o particular, sem que se promova o afastamento de direitos individuais e da livre iniciativa, e ainda se mantenha o respeito a contratos - e, em especial, sem que se estatizem os meios de produção ou, para o que interessa neste texto, os meios de prática futebolística - ressurgiu, recentemente e em outro contexto, no berço do liberalismo e do mercantilismo contemporâneo, a Inglaterra.  Apesar da abertura do mercado do futebol ao capital privado, local e internacional, a preocupação com o interesse coletivo vem pautando o debate, por conta da exposição a que se submeteram os times locais. No âmbito da Premier League, entidade privada controlada pelos próprios times, foi instituído o OADT - Owners' and Directors' Test - "que tem como propósito assegurar que a pessoa que detenha participação em um time (ou o administre), acima de determinado percentual, ateste o preenchimento de padrões, sem os quais não estará habilitado à consumação de uma aquisição (ou à posição de administrador)" 1.  Mas a preocupação pulou o muro da autorregulação e alcançou o Estado inglês, que reconheceu a relevância do futebol na sociedade; mais do que isso: reconheceu a sua essencialidade em certas comunidades, que giram ao redor de times e dos jogos que acontecem aos finais de semana. O próprio Rei Charles já expressou a preocupação real e indicou que o parlamento iria legislar a respeito do futuro dos clubes de futebol no interesse das comunidades e dos torcedores.  Paradoxalmente, talvez não exista, no planeta, um país mais identificado com o futebol do que o Brasil, por motivos esportivos e sociais. E talvez não exista, neste país, uma atividade que empreste, com encargos impagáveis, alguma (ou ilusória) esperança a parte da população desfavorecida, que aposta o futuro na profissionalização de crianças e adolescentes no futebol.  E talvez também não exista, no mesmo planeta, uma perspectiva tão alvissareira como a criada pela lei da SAF, que abriu a possibilidade, após mais de um século de dominação cartolarial, de implementação de um modelo receptivo à captação de recursos e à implementação de técnicas avançadas de governo e de controle, em ambiente regulado.  Mas talvez também não exista, dentre os países do planeta, em especial os países relevantes no planeta do futebol, um que, como o Brasil, ao mesmo tempo não perceba a importância econômica que o esporte passou a ter e se esforce tanto para, senão destruir, inibir o seu desenvolvimento.  Em mais um paradoxo, o Brasil está, no entanto, à frente da Inglaterra, em matéria legislativa. A lei da SAF instituiu uma série de instrumentos que visam à segurança sistêmica - apesar da intranquilidade, local e internacional, provocada por decisões judiciais oportunísticas, que tendem (ou deveriam) ser reformadas em tribunais superiores. Mas ainda falta uma inequívoca política de Estado que conduza e conforte o mercado em formação e que contribua para a inocorrência, como se viu séculos atrás em Nova Orleans, de eventos carregados de externalidades negativas, prejudiciais à coletividade.  Nenhum governo brasileiro, independentemente de sua ideologia ou corrente política, percebeu, até o presente ano de 2025, o tamanho que o mercado do futebol pode alcançar e como ele serviria aos interesses nacionais, sob a forma de softpower e de gerador (e distribuidor) de riquezas.  A conivência com o modelo de apropriação patrimonialista, em todos os planos, inclusive de acesso e transmissão do futebol (que só agora começa a ser desafiado), não encontra respaldo na sociedade e no sistema, em especial na Constituição. Porém, enquanto ela não for substituída pela ação, sobretudo voltada ao interesse comum - respeitando-se os interesses, os movimentos e os negócios individuais legítimos -, o futebol brasileiro permanecerá a serviços de poucos agentes que lucram com a contaminação e degradação do sistema.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 7/4/25.
quarta-feira, 2 de abril de 2025

Quem pode ser acionista de SAF?

Esse foi um tema que surgiu durante todo o processo de concepção, proposição, debate, crítica, negociação e aprovação da Lei da SAF: deveria ser instituída uma lista de pessoas autorizadas a investir em SAF? Alternativa e inversamente, a lista poderia indicar apenas as pessoas que não se qualificariam como potenciais investidoras? Sempre houve - e ainda há - uma legítima preocupação com a preservação de um dos maiores patrimônios do país, o futebol, apesar do esforço hercúleo que se empreende, há décadas, para destruí-lo. Aliás, não fossem alguns movimentos isolados, como a Lei da SAF e a Lei do Mandante, talvez a destruição já tivesse abalado o sistema. Mas, é justamente no atual sistema que reside o problema: o futebol, dentro de cada clube (ou seja, de cada associação sem fins econômicos), passa de mão em mão (ou de grupo em grupo), dentro de uma lógica patrimonialista e irresponsável. O dono da vez, eleito pela assembleia geral de associados (a qual, por sua vez, não representa a torcida), isolada ou conjuntamente com pequeno grupo de seguidores, concentra poder, geralmente inabalável, para, como já indicado acima, agir soberanamente sem ter investido um centavo de real no clube (apesar de investir em campanha de eleição). E, como a história demonstra, o dono de fato, se tiver habilidade política (ou força para se impor por via do temor reverencial ou do medo), conduz os órgãos internos, do conselho deliberativo à assembleia geral, passando pelo conselho fiscal, no sentido de satisfazer seus planos e ego. Se o dirigente for qualificado, o time pode ir bem; se for ruim, costuma deixar uma situação periclitante. Em qualquer caso, a cada eleição, promove-se uma espécie de loteria gerencial, cujo resultado, para o time e para torcida, se enquadra no campo da álea.    Pior: os donos de fato ainda constroem a falsa narrativa de que seus times são diferentes, especiais mesmo, e que jamais terão proprietários, quando, na verdade, eles o são (na posição de representantes de uma estrutura associativa dispersa e incapaz de controlar, fiscalizar e sancionar condutadas irregulares, e que concede a eles a prerrogativa de disporem dos recursos alheios como querem). Por isso que qualquer torcedor, que não seja associado e membro da diretoria, não pode acessar o centro de treinamento do seu time do coração. Porque ele é apenas um torcedor, manipulado pelo discurso fácil que se reproduz, como dogma, desde sempre. Não se pretende, aqui, propor que o torcedor acesse livremente os equipamentos utilizados pelos jogadores; seria o caos. Apenas se apresenta a realidade para conectá-la com o tema deste artigo: a qualificação para ser acionista de SAF. A Lei da SAF, inclusive nesse aspecto, oferece mais segurança ao sistema, ao impor ao acionista (e aos administradores da SAF) uma série de obrigações que não são, nem de longe, aplicadas ao modelo clubístico. O contexto apresentado acima contribuiu para que, no âmbito da construção da Lei da SAF, se evitasse o caminho do populismo e a criação de barreiras abstratas para situações concretas, barreiras essas que dificilmente se aplicariam quando devessem se aplicar, e que serviriam para criar mais e novos problemas e inseguranças. Lembre-se, ademais, que nenhuma operação de SAF acontecerá se os associados do respectivo clube não autorizarem, em assembleia geral, a proposta formulada pela diretoria e, necessariamente, recomendada pelos seus órgãos internos, como o conselho deliberativo. Se a diretoria negocia, assina e submete aos seus órgãos internos e a assembleia aprova, mesmo num ambiente de poder cartolarial (escolhido e mantido pelos próprios associados), deveria a lei, ainda assim, impor barreiras regulatórias ou legislativas, e definir que, exemplificando, o russo pode, mas o ucraniano não (ou vice-versa); que o fundo árabe não pode, mas o norte-americano, sim (ou vice-versa); que uma companhia aberta brasileira pode, mas uma sediada no Caribe, não; e assim por diante? Ainda: a lei deveria levar em conta a qualidade e a (boa ou má) intenção dos dirigentes responsáveis pela negociação e formação de uma SAF, assumindo a eventual incapacidade de decidir de modo adequado e no interesse do time? O modelo brasileiro, plasmado na Lei da SAF, afasta, por um lado, o intervencionismo estatal em relação aos atributos de eventual investidor, mas, de outro, impõe instrumentos de verificação, controle e sanção mais efetivos dos que aqueles praticados às companhias em geral, envolvendo, inclusive, a afetação de direitos políticos e econômicos. Daí a possibilidade, em tese, de qualquer pessoa, física ou jurídica, e dentre as jurídicas, qualquer sociedade, personificada ou não, aberta ou fechada, com controle concentrado ou difuso, nacional ou estrangeira, e ainda qualquer ente despersonalizado, como fundo de investimento, deterem participação em SAF, desde que, em qualquer caso, como já indicado, observem os requisitos instituídos pela Lei da SAF e demais leis que incidam no caso concreto (que incluem, dentre outros, técnicas avançadas de governança, não concentração e observância de normas anticorrupção).
O InfoMoney divulgou interessante pesquisa sobre o ambiente da SAF1. Aliás, não apenas o conteúdo é interessante, como também o fato de o tema interessar ao veículo de imprensa, especializado em noticiário econômico. Trata-se de mais um reflexo de que a Lei da SAF, de autoria do Senador da República e ex-Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, "pegou" (como se diria, popularmente, sobre a eficácia de uma lei). Há diversos motivos que explicam o interesse, dentre os quais: a existência de 99 SAF's2, além de outras sabidamente a caminho; e, na ótica do mercado, as perspectivas que as companhias do futebol passaram a oferecer para realização de uma gama de alocações (ou investimentos) em ativos atrelados à atividade futebolística. Opera-se, com efeito, nesse ambiente etéreo chamado mercado, um movimento, não coordenado, cuja amplitude ainda não foi compreendida pelos torcedores e pela imprensa em geral, que deverá modificar de modo substancial as forças e as características do esporte no Brasil. Gestores de fundos, investidores, banqueiros e empresários, dos mais variados perfis, estão empreendendo movimentos táticos e estratégicos para se posicionarem ou se fortalecerem no novo mercado do futebol. Até o maior banco privado do país comunicou a sua entrada. A Lei da SAF oferece um arcabouço único, cuja previsibilidade está em processo de construção, sem paralelo em qualquer outro país, inclusive no que se refere ao sistema comunicacional de seus atos: primeiro porque se aplica à SAF todo o ferramental oferecido a qualquer sociedade anônima pela Lei 6.404/1976 ("Lei das Sociedades por Ações"); segundo porque a Lei da SAF amplia, em relação especificamente a toda e qualquer SAF, a régua de exigências para atuação no ambiente em que clubes (originalmente os proprietários do futebol) e investidores se encontram e relacionam. Tanto as normas da lei geral (ou seja, da Lei das Sociedades por Ações) como as da lei específica (da Lei da SAF) são inafastáveis, formando um conjunto normativo único, que oferece, em relação às primeiras, quase 50 anos de doutrina e jurisprudência, e, quanto às segundas, um esforço de determinação semântica e de pacificação. Daí o resultado apurado pelo InfoMoney, no sentido de que: 60% dos torcedores avaliam positivamente o modelo de SAF; e, dentre os times que atuam como SAF, as aprovações no âmbito de Vasco e Galo são de 63,6% e 60,8%, respectivamente. Por outro lado, as torcidas dos dois clubes mais poderosos dos últimos anos, Flamengo e Palmeiras, são as mais resistentes à alteração de natureza jurídica. A pesquisa vai além e traça interessante mapa, ao, por exemplo, apresentar um recorte por idade e constatar que a faixa entre 18 e 24 anos é mais aderente ao modelo da SAF, seguida, em segundo lugar, pela faixa que compreende 25 e 34 anos.   Porém, apesar de o resultado geral ser positivo, poderia (e deveria) ser melhor, não fossem as falhas no trato do tema, nos níveis estatal e privado. No nível estatal porque ainda não se percebeu a grandeza da Lei da SAF e os resultados sociais e econômicos que ela traz e poderá trazer ao país e à sociedade como um todo. No privado porque, de um lado, clubes olham para ela (apenas) como via de salvação para suas dificuldades financeiras imediatas ou como via necessária para não se apequenarem diante de clubes mais ricos ou de times que mudaram de patamar após a passagem para o modelo de SAF; enquanto os financiadores e investidores também se preocupam (apenas) com os seus financiamentos e respectivos retornos. Não se pretende, aqui, investigar culpas ou erros; ao contrário, o propósito envolve a conscientização da urgência de compreensão, pública e privada, do fenômeno, que já deixou de ser pequeno e, no curto prazo, deverá abraçar senão todos, mas praticamente todos os principais times brasileiros. O processo de orientação, instrução e formação de consciência cabe, assim, a todos os agentes que gravitam ou se relacionam no sistema, inclusive - e especialmente - ao Estado, que introjetou a Lei da SAF no sistema, mas jamais se preocupou em apontar o norte e propor planos e metas nacionais. A falta de orientação e de informação ainda inebria, para o bem ou para o mal, o torcedor incauto, que ora aposta na SAF como uma vara de condão, com poderes mágicos de transformação (algo que, definitivamente, a Lei da SAF jamais ofereceu), e ora reage, passionalmente, como uma ameaça existencial ao time. Acerta a maioria dos torcedores brasileiros ao aprovar a SAF, mas seria importante que individual e coletivamente compreendessem, de maneira sólida, os motivos.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 25 de março de 2025. 2 Disponível aqui. Acesso em 25 de março de 2025.
O IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol promoveu o mapeamento dos meios adotados para a constituição de sociedades anônimas do futebol ("SAF's") que, na temporada de 2025, fazem parte das séries A, B, C e D do campeonato brasileiro de futebol. Os meios estão previstos nos artigos 2º e 3º da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF"). O art. 2º lista três hipóteses: (i) transformação do clube ou pessoa jurídica original; (ii) cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do patrimônio cindido à SAF; ou (iii) iniciativa originária de pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento. O art. 3º prevê mais um meio, consistente no drop down, que se opera mediante a transferência de patrimônio relacionado ao futebol de clube ou pessoa jurídica original para integralização de capital da SAF. Esses são, portanto, os 4 caminhos identificados na Lei da SAF.  No mapeamento e levantamento das informações, os pesquisadores Riccardo Stefano Malarenko Scarcella e Iago Fernandes Espírito Santo utilizaram as ferramentas de consulta empresarial disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, inclusive aquelas oferecidas pela Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - Redesim, sob a regulamentação e fiscalização do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI, juntamente com informações retiradas de notas oficiais e documentos societários disponibilizados nos sítios eletrônicos dos pesquisados. O universo é composto por 30 sociedades anônimas do futebol disputantes, como indicado acima, das séries A, B, C e D do campeonato brasileiro em 2025, distribuídas entre as seguintes unidades federativas: No processo de identificação do meio adotado, os pesquisadores não se restringiram ao texto formal utilizado no ato de constituição, e foram além, para capturar a verdadeira consistência do meio. Isto porque não é incomum a utilização da expressão cisão (prevista no art. 2º da Lei da SAF) quando, na prática, se realiza um drop down (na forma do art. 3º). Nesse sentido, o resultado indica a conclusão a respeito da materialidade constitutiva de cada SAF. Além disso, como não foi possível acessar as informações de 7 SAF's, o contingente utilizado na compilação compreende 23 casos. Os gráficos abaixo plotam as informações coletadas e produzidas (referentes, portanto, a 23 de 30 SAF's): (i) Em relação aos meios de constituição, 15 SAF's foram constituídas por drop down1, 4 por transformação do tipo societário (ou associativo) e 4 por iniciativa de pessoa natural, pessoa jurídica ou fundo de investimento (portanto, nenhuma pelo caminho da cisão), conforme o seguinte gráfico: (ii) Em relação à natureza do constituinte da SAF (ou seja, se a SAF foi constituída por clube, sociedade empresária ou via originária), o resultado é o seguinte: (iii) Em relação aos meios de constituição dentre os times de mesma divisão, o cenário é o seguinte: A pesquisa do IBESAF apresenta, por fim, a seguinte tabela que indica as informações de cada SAF analisada, seguindo a ordem das divisões (maior para menor) e, dentre elas, ordem alfabética. __________ 1 No caso do A.C. Esportes S.A.F. (Athletic - MG), foi acessado apenas o organograma societário (e não o ato constitutivo), disponibilizado no sítio oficial do clube, e, dele, se presumiu que a constituição se operou via drop down.
quarta-feira, 12 de março de 2025

Não quero ter razão sobre Neymar

Este texto foi mentalmente concebido semanas antes do jogo do último domingo, 9 de março, entre o Santos e o Corinthians, e escrito após o seu desfecho. A ausência de Neymar e o resultado não influíram (ou não deveriam influir) no conteúdo de que se trata abaixo. A motivação dessa concepção decorreu da festa de apresentação do jogador à torcida santista, ocorrida em 31 de janeiro, que provocou toda sorte de reações e provocações. Pessoas ficaram indignadas com as imagens que circularam nas redes sociais nas quais ele celebrava o momento com representantes da direita ou da extrema-direita (que reforçariam suas posições ideológicas); já outras não se conformaram com a participação de ícones de pautas humanistas ou identitárias nas festividades.   Correndo o risco de cair no erro de Tite (mas por motivos diversos), que justificou a convocação de Daniel Alves à Copa de 2024 por uma suposta transcendência em relação ao futebol, os debates sobre Neymar há tempos envolvem muito mais do que futebol. Não se trata de uma transcendência, pois o futebol é maior do que qualquer jogador, por mais expressivo que tenha sido, mas de um posicionamento que gera paixões e ódios, independentemente do que ele faça (ou não faça). Neymar passou a conotar e a denotar muitas coisas, até mesmo políticas e ideológicas.     A posição que ocupa não aconteceu por acaso e não provém apenas de suas qualidades técnicas; tem muito a ver com o personagem que passou a representar, que não deixa de ser um personagem de si próprio, e de atitudes que o confundem, para o bem e para o mal, com um popstar (o que, de fato, ele é). Apesar de suas polêmicas (saída prematura do Barcelona, aparente pouca empatia com Paris, atuação fantasma na Arábia Saudita, ausência no jogo contra o Corinthians etc.), continua a ser e talvez sempre seja um dos maiores fenômenos midiáticos do século. O acúmulo de centenas de milhões de seguidores nas redes sociais confirma a proposição. E aí surgem os principais debates sobre o que ele é e o que poderia ser, em diversos planos, tais como esportivo, político e social. Invariavelmente se transferem a ou se projetam em Neymar as condutas que, sob a perspectiva dos debatedores, eles as realizariam se fossem Neymar: focar e treinar mais, para ganhar o prêmio de melhor do mundo; dedicar-se à seleção e à conquista de uma copa; apoiar pautas progressistas; envolver-se em projetos sociais; dentre outras. Aqui sim se revela um dilema de transcendência, pois o exercício que se faz, ao se colocar no lugar de outra pessoa, não leva em conta as distintas realidades e toda a carga social, emocional e educacional que separam o crítico e o criticado. Mesmo que, eventualmente, provenham das mesmas origens, ainda assim a apropriação da personalidade, para efeitos de especulação de condutas imaginárias, falha pela falta de contato com a realidade criticada. A verdade é que, no início de sua trajetória, sabidamente humilde, ninguém ou quase ninguém estava lá para contribuir para sua formação e ascensão, exceto, com as limitações que tinham, seus próprios parentes; assim como quase ninguém está lá para apoiar milhares (ou milhões) de crianças de comunidades brasileiras, que provavelmente não atingirão seus sonhos de transformação em jogadores e, muito precocemente, se depararão com subempregos ou empregos que não desejaram.   Mais: quando um egresso da base rompe a bolha e se projeta sobre a sociedade, a sociedade reage e passa a cobrar-lhe atitudes que ela não lhe proporcionou; nem ou muito menos o Estado, que se revelou, desde a sua concepção brasileira, incapaz de solucionar o problema da desigualdade originária e da distribuição de educação e de saúde, apesar das montanhas de recursos arrecadados cotidianamente para financiamento de uma burocracia (executiva, legislativa e judiciária) ineficiente e, não raro, ultraprivilegiada. Apesar disso tudo, na minha visão, Neymar poderia ser diferente, em muitas coisas. Não apenas na minha, mas de outras pessoas também. E o que isso importa, na prática? Nada. Inclusive porque, muito provavelmente, para milhares de (outras) pessoas, está tudo em ordem com as suas decisões e posições. Aliás, em um ambiente tão polarizado, ele passou a sintetizar, para um lado ou para outro, os desejos e as aversões dos polos, de modo que, para onde for, encontrará elogios, apoios, resistências e críticas. Neymar, como produto, é um sucesso planetário e lucrativo. Não apenas como produto, mas como jogador também. Ainda não foi campeão do mundo, e daí? Zico e Sócrates também não foram. Azar da copa do mundo, como diria o jornalista Fernando Calazans. Isso não diminui as suas qualidades técnicas, quase divinas, e as perspectivas de negócios atuais e futuros de suas empresas, pois, em algum momento, ele, ou melhor, sua equipe, chefiada por Neymar Pai, adotou um caminho que, empresarialmente, é e deverá continuar a ser muito exitoso. Neymar já poderia ter deixado o campo há muito tempo, mas se mantém ativo. Talvez porque ainda sonhe com a copa do mundo ou porque ainda reste alguma vontade de jogar. Ou simplesmente porque faz parte do projeto de desenvolvimento dos produtos Neymar. Ou, quem sabe, um pouco de cada. Isso tudo (sem fidelidade a um dos elementos) é Neymar. Para alegria e idolatria de muitos e aversão e repúdio de outros; combinação que, ao final, o tira do pedestal e, nas palavras de Mario Vargas Llosa, escritas em relação a Victor Hugo, o humaniza: "hacen mal los biógrafos explorando estas intimidades sórdidas y bajando de su pedestal al dios olímpico? Hacen bien. Así lo humanizan y rebajan a la altura del común de los mortales, esa masa con la que está también amasada da carne del genio. Victor Hugo lo fue (...) una de las más ambiciosas empresas literarias del siglo XIX (...). Pero también fue un vanidoso y un cursi (...)." Os biógrafos não precisarão mostrar as patologias do ser humano Neymar, pois ele não faz questão de escondê-las, no presente, como se vivesse - e de alguma forma vive - em um permanente (e inconsequente) reality show; e, mesmo assim, consegue atrair multidões, incluindo, no limite, ideólogos, que se despem de suas ideologias para ver um dos maiores gênios do século jogar.